Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3297/16.0T8LLE-B.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: ESTADO
HABILITAÇÃO
HERANÇA JACENTE
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Tendo o executado falecido e os dois herdeiros conhecidos, seus filhos, repudiado a herança, a qual ainda não foi aceita, sendo que igualmente não foi declarada vaga para o Estado nos termos das leis de processo, verifica-se que a herança aberta por morte do executado se encontra jacente;
II – Não tendo sido reconhecida judicialmente a inexistência de outros sucessíveis e a herança declarada vaga para o Estado, no âmbito do processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado, previsto nos artigos 938.º a 940.º do CPC, antes se mantendo a herança jacente, não pode o Estado ser chamado à sucessão;
III – É de indeferir a requerida habilitação do Estado Português para intervir na execução em substituição do executado falecido.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3297/16.0T8LLE-B.E1
Juízo de Execução de Loulé
Tribunal Judicial da Comarca de Faro


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que (…) move contra (…), falecido a 02-12-2010, deduziu a exequente o presente incidente de habilitação contra o Estado Português, pedindo a habilitação do requerido como sucessor do executado falecido.
Alega, para o efeito, que o executado faleceu no estado de divorciado, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, deixando os dois filhos que identifica, os quais repudiaram a herança, e não sendo conhecidos outros sucessores, como tudo melhor consta do requerimento apresentado.
O Estado Português, representado pelo Ministério Público, apresentou contestação, defendendo o indeferimento da requerida habilitação como sucessor do executado falecido, sustentando, em síntese, que o Estado só sucede, e só passará a ser herdeiro do executado falecido, após sentença que declare a herança vaga, no âmbito do processo especial previsto nos artigos 938.º a 940.º do Código de Processo Civil.
Por decisão de 29-11-2021, foi proferido despacho saneador, discriminaram-se os factos considerados provados e apreciou-se o mérito da causa, tendo-se decidido o seguinte:
Pelo exposto, julgo procedente a pretensão formulada pela Requerente/exequente (…) e, em consequência:
a) Declaro o Estado Português, habilitado em substituição nos autos de execução do executado (…);
b) Condeno o Requerido, Estado Português no pagamento das custas e demais encargos com o processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, sem prejuízo da isenção de que goza.
Registe e notifique, sendo também o (a) senhor (a) Agente de Execução.

Inconformado, o Estado Português, representado pelo Ministério Público, interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação e substituição por outra que o absolva da instância, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1- (…), exequente nos autos de execução, veio por apenso aos mesmos, deduzir incidente de habilitação de herdeiros requerendo fosse o Estado Português habilitado no lugar do executado falecido.
2- Em 29/11/2021 foi proferida no incidente de habilitação de herdeiros decisão que declarou o Estado Português habilitado autos de execução em substituição do executado (…).
3- Mesmo admitindo, o que não é ocaso, a admissibilidade da habilitação do Estado, enquanto sucessível, para prosseguir nos autos no lugar do executado falecido, em sede de incidente de habilitação de herdeiros, não é possível concluir nos mesmos pela inexistência de outros sucessíveis, sendo que o Estado apenas é chamado à herança na falta de cônjuge e de todos os parentes sucessíveis (artigo 2152.º do Código Civil).
4- O reconhecimento da posição de herdeiro do Estado tem lugar em processo próprio, no processo especial previsto nos artigos 938.º a 940.º do Código de Processo Civil, não ocorrendo de forma automática a vacatura da herança para o Estado.
5- É necessária uma sentença que declare a herança vaga para o Estado, nos termos das leis de processo, reconhecida que for judicialmente, a inexistência de sucessíveis que lhe prefiram (artigo 2155.º do Código Civil), o que se prende com a necessidade de acautelar a existência de herdeiros desconhecidos que prefiram ao Estado.
6- Ou seja, o Estado só sucede, e só passará a ser herdeiro do executado falecido após declaração de herança vaga, no âmbito do processo especial referido.
7- Até esse momento, a herança aberta por óbito do executado encontra-se jacente, uma vez que não foi aceite, e nem ainda declarada vaga para o Estado (artigo 2046.° do Código Civil).
8- Ao ser requerida a habilitação do Estado em incidente judicial de habilitação de herdeiros, foi utilizado um meio processual inadequado, verificando-se erro na forma do processo de conhecimento oficioso – artigos 193.°, n.º 2, 196.º, 546.°, n.º 2, 938.° a 940.° do Código de Processo Civil.
9- Deveria assim o Estado Português ter sido absolvido da instância, nos termos do disposto nos artigos 577.°, alínea b), 578.º e 278.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil, por se verificar uma excepção dilatória inominada.
10-Violou a decisão recorrida o disposto nos artigos 2155° do Código Civil, 193°, nº 1, 196, 546º, nº 2, 351°, nºs 1 e 2, 938º a 940, 576°, nºs 1 e 2, 5779 al. b), 578° e 278°, n.º 1, al. e), todos do Código de Processo Civil, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que absolva o Estado Português da instância.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar se o Estado Português pode, no âmbito do presente incidente de habilitação, ser considerado sucessor do executado falecido.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto
A 1.ª instância considerou provados os factos seguintes:
1. (…) intentou no dia 26 de Outubro de 2016 contra (…), acção executiva sob a forma de processo comum, a qual corre termos neste Juízo de Execução de Loulé do Tribunal Judicial da Comarca de Faro sob o n.º 3297/16.0TT8LLE;
2. O executado (…) faleceu no dia 02 de Dezembro de 2010, no estado de divorciado de (…);
3. Foi elaborado o escrito que faz fls. no essencial com o seguinte teor “Conservatória do Registo Civil de Amadora. Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registos. Habilitação de Herdeiros n.º …/2011. Autor da Herança, (…), nascido a 28 de Agosto de 1946, falecido no estado de Divorciado (…) com última residência habitual em Rua da (…), Edifício (…) – Apartamento n. (…), 2.º-D, (…), Loulé, com o NIF (…). Cabeça-de-casal e Herdeiro, (…), de 41 anos de idade (…) no estado de solteiro, natural de República de Moçambique, filho de (…) e de (…); Herdeiro, (…), de 36 anos de idade (…) no estado de solteiro, natural de freguesia de São Jorge de Arroios, concelho de Lisboa, filho de (…) e de (…). Presente: O cabeça-de-casal acima identificado. Declarações prestadas pelo cabeça-de-casal. O autor da herança, faleceu no dia 2 de Dezembro de 2010, na freguesia de Campo Grande, concelho de Lisboa. O autor da herança não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade. Declarados herdeiros do falecido: Filho: (…) e Filho: (…). Que não há quem lhes prefira ou com eles possa concorrer na sucessão. O cabeça de casal foi advertido de que incorre nas penas aplicáveis ao crime de falsidade de depoimento ou declaração se, dolosamente e sem prejuízo de outrem, tiver prestado declarações falsas (…) O titulo foi lido e o seu conteúdo explicado ao interveniente. Data: 14 de Janeiro de 2011 (…) 1º Ajudante (…), por competência delegada (…)”;
4. Foi elaborado o escrito que faz fls. dos autos, no essencial com o seguinte teor “Renúncia de Herança. No dia vinte e um de Fevereiro de dois mil e onze, no Cartório Notarial da (…), sito na Rua (…), número 382-A, na (…), perante mim, (…), a respectiva notária, compareceu como outorgante: (…), NIF (…), solteiro, maior (…) Declarou o Outorgante: Que, pela presente escritura, renuncia à herança de seu pai, (…), falecido em dois de Dezembro de dois mil e dez, na freguesia de Campo Grande, concelho de Lisboa, que era natural da freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa, com última residência habitual na Rua da (…), Edifício (…) – Apartamento n.º (…), 2.º-D, na (…), Loulé, no estado de divorciado. Mais declarou o outorgante, sob sua inteira responsabilidade: Que da herança não fazem parte quaisquer bens imóveis. Assim o outorgou. Foi esta escritura lida ao outorgante e ao mesmo explicado o seu conteúdo (…) A notária (…)”;
5. Foi elaborado o escrito que faz fls. dos autos, no essencial com o seguinte teor “Renúncia de Herança. No dia vinte e um de Fevereiro de dois mil e onze, no Cartório Notarial da (…), sito na Rua (…), número 382-A, na (…), perante mim, (…), a respectiva notária, compareceu como outorgante: (…), NIF (…), solteiro, maior (…) Declarou o Outorgante: Que, pela presente escritura, renuncia à herança de seu pai, (…), falecido em dois de Dezembro de dois mil e dez, na freguesia de Campo Grande, concelho de Lisboa, que era natural da freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa, com última residência habitual na Rua da (…), Edifício (…) – Apartamento n.º (…), 2.º-D, na (…), Loulé, no estado de divorciado. Mais declarou o outorgante, sob sua inteira responsabilidade: Que da herança não fazem parte quaisquer bens imóveis. Assim o outorgou. Foi esta escritura lida ao outorgante e ao mesmo explicado o seu conteúdo (…) A notária (…)”;
6. No apenso A, (…) e (…) foram notificados, por mais do que uma vez, para informarem nos autos se têm conhecimento da existência de netos, pais ou irmão do seu falecido pai, (…), e não responderam ao solicitado, apesar das insistências feitas pelo Tribunal e foram condenados em multa por falta de colaboração com o Tribunal;
7. O Serviço de Finanças Loulé 2 (Quarteira), na sequencia de notificação feita pelo Tribunal, remeteu para o Apenso A o ofício, no essencial com o seguinte teor “Oficio n.º 2062. 2020-09-08. Comarca de Faro. Juízo de Execução de Loulé-Juiz 1 (…) Assunto: Resposta a pedido de informação. De harmonia com o solicitado no ofício 117504670, de 07-09-2020, informamos que não foi ainda participado, em sede de Imposto de Selo, o óbito de (…), NIF (…). Com os melhores cumprimentos. O Chede de Finanças (…)”;
8. No apenso A, por despacho datado de 15/01/2021 (Refª 118823932), o Tribunal notificou o senhor Chefe do Serviço de Finanças de Loulé-2 (Quarteira) para instauração do processo de liquidação do imposto de selo por óbito de (…);
9. Na sequência da notificação efectuada pelo Tribunal, o senhor Chefe do Serviço de Finanças-2 (Quarteira) o Serviço de Finanças Loulé-2 (Quarteira), remeteu para o Apenso A o expediente, no essencial com o seguinte teor “Oficio n.º 100 2021-01-25. Tribunal Judicial da Comarca de Faro. Juízo de Execução de Loulé-Juiz 1 (…) Assunto: Processo 3297/16.0T8LLE-A. Conforme solicitado no v/ Ofício n.º 118955816, datado de 21-01-2021, em anexo remetemos o comprovativo do Imposto de Selo instaurado por óbito de (…), NIF (…). Com os melhores cumprimentos. O Chefe de Finanças, em substituição (…) Imposto do Selo. Comprovativo de Participação de Transmissões Gratuitas (Modelo 1). Serviço de Finanças 3859-Loulé-2. Autor da Transmissão. NIF: (…). Nome: (…). Estado Civil: Div. Testamento: Não. Origem do Facto Tributário: Facto: óbito. Data: 2010-12-02. Local: Campo Grande-Lisboa. Identificação do cabeça de casal e do NIF da herança: NIF: (…). Nome: (…). NIF da Herança: (…). Identificação dos Beneficiários da Transmissão: NIF: (…). Nome: (…). Tipo de Beneficiário: Herdeiro. Relação de parentesco com o autor da transmissão: Descendente. Quota ideal: ½. Domicilio Fiscal: Território Nacional. NIF: (…). Nome: (…). Tipo de Beneficiário: Herdeiro. Relação de parentesco com o autor da transmissão: Descendente. Quota ideal: ½. Domicilio Fiscal: Território Nacional. Observações: Instaurado oficiosamente conforme oficio emitido em 21/01/2021 pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro. Processo: 3297/16.0T8LLE-A. Encerramento da Participação: NIF do Participante: (…). Data Recepção: 2021-01-25. Data limite Entrega: 2011-03-312. O Participante (assinatura). O Funcionário (assinatura): (…) (Anexo I-Relação de Bens). Activo – Bens Imóveis – Propriedade Plena (Cod. 1). Verba n.º 1: Quota parte transmitida: 1/45 indicador Herança indivisa: não. Tipo de Prédio: Urbano – Artigo (…). Freguesia: (…). Município: (…). Distrito: Faro. Disp. Entrega Mod. 1 IMI: Não (…) Verba n.º 2: Quota parte transmitida: 1/1 indicador Herança indivisa: Não. Tipo de prédio: Urbano. Artigo: …. Freguesia: … (extinta). Município: (…). Distrito. Beja. Disp. Entrega Mod. 1 IMI: Não (…) Encerramento da Participação (…) O funcionário (assinatura). (…) (Anexo II-Tipo 01). Anexo Para a Liquidação (Herança). Sujeito passivo do Imposto: (…). Verbas activas: 1,2, verbas passivas: Beneficiário da Transmissão: NIF: (…). Tipo: isento. Quota Parte não Onerada com Encargos atribuídos: ½. NIF: (…). Tipo: isento. Quota parte Não Onerada com Encargos Atribuídos: ½ (…) Encerramento da Participação (…) O Funcionário (assinatura). (…)”.

2.2. Apreciação do objeto do recurso
Vem posta em causa na apelação a decisão que julgou procedente o incidente de habilitação e, em consequência, declarou o Estado Português habilitado para intervir na execução que constitui o processo principal em substituição do executado falecido.
A fundamentar tal decisão, consta da sentença recorrida, além do mais, o seguinte:
Resulta da factualidade assente que o executado (…) faleceu no preterido dia 02 de Dezembro de 2010 no estado de divorciado de (…) e deixou como sucessores e universais herdeiros, (…) e (…), que foram julgados habilitados como únicos e universais herdeiros do falecido (…) no Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registo lavrado na Conservatória do Registo Civil de (...) no dia 14/01/2011, na qual foi outorgante (…) que, além do mais, declarou que o seu pai, o executado (…) faleceu no dia 02/12/2010 no estado de divorciado, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade e deixou como herdeiros os seus 2 filhos, não havendo quem lhes prefira ou com eles possa concorrer na sucessão.
Está também assente que os filhos do falecido executado por escrituras de 21 de Fevereiro de 2011 repudiaram a herança e apesar das diversas diligências realizadas não foi possível identificar qualquer outro sucessor de (…), pelo que a herança aberta por óbito do mesmo irá ficar vaga a favor do Estado, pelo que a nosso ver deverá o Estado Português ser julgado habilitado no lugar de (…).
Não desconhecemos a jurisprudência que tem entendimento contrário, nomeadamente o douto acórdão citado pela Digna Procuradora da República, mas a nosso ver, tendo sido esgotadas todas as diligências tendo em vista identificar herdeiros do falecido (…), não seria de exigir à Requerente / executada que intentasse novo incidente de habilitação de herdeiros contra os herdeiros incertos, sendo certo que nesse incidente, teria que ser citado o Ministério Público para representar os herdeiros incertos.
No sentido por nós pugnado, de que deve ser habilitado o Estado Português, decidiu o Venerando Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 24/01/2019, proferido no processo n.º 818/12.1TVPRT-A.P1, disponível na internet in www.dgsi.pt/jtrp (...).
Discordando da decisão proferida, o apelante defende que o Estado Português não pode, no âmbito do presente incidente, ser considerado habilitado como sucessor do executado falecido.
Alega o apelante que a vacatura da herança a favor do Estado não ocorre de forma automática, mostrando-se necessário que a herança seja declarada vaga para o Estado através de sentença proferida no âmbito do processo especial previsto nos artigos 938.º a 940.º do Código de Processo Civil; afirmando que o reconhecimento da posição de herdeiro do Estado tem lugar no indicado processo, sustenta que, ao ser requerida a habilitação do Estado no âmbito do presente incidente de habilitação, foi utilizado um meio processual inadequado, verificando-se erro na forma do processo, exceção dilatória que deverá conduzir à absolvição do requerido da instância.
Vejamos se lhe assiste razão.
O artigo 260.º do CPC consagra o princípio da estabilidade da instância, designadamente quanto às pessoas, ressalvando as possibilidades de modificação consignadas na lei; o artigo 262.º do mesmo código, por seu turno, prevê determinadas modalidades de modificação subjetiva da instância, entre elas, conforme enuncia a alínea a), a efetuada em consequência da substituição de alguma das partes, por sucessão, na relação substantiva em litígio.
O incidente de habilitação mortis causa encontra-se regulado nos artigos 351.º e seguintes do CPC e destina-se a substituir a parte falecida pelos seus sucessores, a fim de com estes prosseguir a demanda, operando uma modificação subjetiva da instância nos termos previstos na alínea a) do citado artigo 262.º.
Prevendo o falecimento de uma parte na pendência da causa ou a certificação, decorrente das diligências para citação, do falecimento do réu ocorrido em data anterior, o referido artigo 351.º permite, tanto às partes sobrevivas como aos sucessores da parte falecida, a promoção do incidente de habilitação, o qual deverá ser deduzido contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes.
Em anotação ao citado preceito, explicam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 406) o seguinte: “Os sujeitos habilitados serão, regra geral, os sucessores identificados (herdeiros e/ou legatários), mas não está afastada a possibilidade de a habilitação ser da própria herança, como herança jacente, nos casos em que a mesma ainda não foi aceita (artigo 355.º, n.º 4), ou de, em lugar de herdeiros certos, se requerer a habilitação de herdeiros incertos (artigo 355.º, n.º 1)”.
Sob a epígrafe Habilitação no caso de incerteza de pessoas, dispõe o artigo 355.º do CPC, além do mais, o seguinte: 1 - Se forem incertos, são citados editalmente os sucessores da parte falecida; (…) 4 - Nos casos em que à herança é atribuída personalidade judiciária, é lícito requerer a respetiva habilitação.
O artigo 12.º, alínea a), do CPC, atribui personalidade judiciária à herança jacente, que assim se mostra suscetível de ser parte, conforme dispõe o artigo 11.º, n.º 1, do mesmo código, sendo lícito requerer a respetiva habilitação, nos termos previstos no n.º 4 do citado artigo 355.º.
Diz-se jacente, conforme noção constante do artigo 2046.º do Código Civil, a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado.
Quanto ao momento da abertura da sucessão, dispõe o artigo 2031.º do mesmo código que se abre no momento da morte do seu autor.
No que respeita às formas de aceitação da herança, determina o artigo 2056.º do citado código que pode ser expressa ou tácia, sendo havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir, não implicando a aceitação tácita da herança a prática pelo sucessível de atos de administração.
O artigo 2133.º do referido código, por seu turno, estabelece as classes de sucessíveis legítimos e define a ordem por que são chamados os herdeiros, integrando o Estado a última das classes de sucessíveis, conforme decorre das várias alíneas do n.º 1 do preceito.
Relativamente à sucessão do Estado, dispõe o artigo 2152.º do citado código que, na falta de cônjuge e de todos os parentes sucessíveis, é chamado à herança o Estado, cumprindo atender ao estatuído no artigo 2155.º do mesmo código, o qual determina que, reconhecida judicialmente a inexistência de outros sucessíveis legítimos, a herança é declarada vaga para o Estado nos termos das leis de processo.
Ora, o Código de Processo Civil prevê, nos artigos 938.º a 940.º, o processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado, o qual visa pôr termo à situação de jacência da herança.
Dispõe o n.º 1 do citado artigo 938.º que, no caso de herança jacente, são citados os interessados incertos para deduzirem habilitação como sucessores; se ninguém aparecer a habilitar-se ou decaírem todos os que se apresentem como sucessores, determina o n.º 1 do artigo 939.º que a herança é declarada vaga para o Estado, após o que se inicia a fase executiva a que alude o n.º 2 do preceito, destinada à liquidação da herança.
Esclarece Cristina Pimenta Coelho (CÓDIGO CIVIL: Anotado, Coord. Ana Prata, volume II, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 1033) o seguinte: “No que respeita à sucessão legítima deve-se ter em especial consideração que o Estado é o último dos sucessíveis legítimos. O Estado é chamado à sucessão depois de reconhecida judicialmente a inexistência de outros sucessíveis legítimos. Há uma declaração de herança vaga, nos termos da lei de processo, e a partir desse momento o Estado adquire a herança automaticamente (ver artigos 2152.º e seguintes)”.
No caso presente, em que o executado faleceu e os dois herdeiros conhecidos, seus filhos, repudiaram a herança, a qual ainda não foi aceita, sendo que igualmente não foi declarada vaga para o Estado nos termos das leis de processo, dúvidas não há de que a herança aberta por morte do executado se encontra jacente, nos termos definidos no citado artigo 2046.º do Código Civil.
Não tendo sido reconhecida judicialmente a inexistência de outros sucessíveis e a herança declarada vaga para o Estado, no âmbito do processo especial supra referido, antes se mantendo a herança jacente, não poderá o Estado ser chamado à sucessão.
Como tal, impõe-se revogar a decisão recorrida, que declarou o Estado Português, representado pelo Ministério Público, habilitado para intervir na execução que constitui o processo principal em substituição do executado falecido, cumprindo indeferir a habilitação requerida.
Neste sentido, cfr. o acórdão da Relação de Lisboa de 18-11-2021 (relatora: Laurinda Gemas), proferido no processo n.º 364/13.6TCFUN-A.L1-2 e publicado em www.dgsi.pt, cujo sumário tem a redação seguinte: I – No incidente de habilitação dos sucessores da falecida executada, deduzido contra os demais executados, a filha desta e também, após despacho de convite ao aperfeiçoamento, contra o Estado Português, estando provado que aquela estava divorciada e deixou uma filha (ora demandada), a qual repudiou a herança e não tem descendentes, não se pode considerar que o Estado deve ser chamado à sucessão como herdeiro legítimo (que tenha direito a suceder), sendo sintomático disso o facto de não ter sido intentado o processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado (cfr. artigos 2032.º, 2133.º e 2134.º do CC); II – O Estado Português, representado pelo Ministério Público, não pode ser considerado sucessor da falecida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 351.º do CPC, havendo, ao invés, de ser realizada, conforme expressamente previsto no artigo 355.º do CPC, (i) a habilitação dos sucessores incertos ou ii) a habilitação da herança jacente, que é um património autónomo com personalidade judiciária [cf. art. 12.º, alínea a), do CPC e artigos 2046.º a 2049.º do CC]; III –A primeira hipótese pressupõe a existência de outros sucessores da falecida executada, num cenário de incerteza carecido de averiguação; a segunda, de habilitação da herança jacente, faz-se com a alegação de facto da inexistência de quaisquer sucessores que tenham aceitado (expressa ou tacitamente) a herança, que não foi declarada vaga para o Estado.
No mesmo sentido, cfr. o acórdão da Relação de Coimbra de 12-03-2019 (relator: Barateiro Martins), proferido no processo n.º 596/14.0TBPBL-D.C1 e publicado em www.dgsi.pt, invocado pelo apelante, de cujo sumário se extrai o seguinte: 1 – A aquisição sucessória depende da aceitação da herança; mantendo-se jacente a herança que ainda não foi aceite (por algum sucessível) e que ainda não foi declarada vaga para o Estado; 2 – Prevê a lei, nos artigos 1039.º e 1040.º do CPC e no artigo 938.º e seguintes do CPC, providências que ponham termo a tal situação, indesejável, de jacência, ou seja, que conduzam ou à sua aceitação ou à sua vacância para o Estado; 3 – É apenas pelo processo especial do artigo 938.º do CPC – após o juiz o declarar nos termos do artigo 939.º/1, do CPC – que o Estado passa a ser herdeiro e adquire a herança; 4 – Assim, tendo falecido os executados e tendo os seus filhos e netos repudiado as heranças, não se pode, com fundamento em não serem conhecidos quaisquer outros sucessores/herdeiros, requerer a habilitação do Estado para prosseguir nos autos, no lugar dos executados/falecidos; 5 – E, tendo sido requerida uma tal habilitação, não pode a mesma ser convertida no processo especial do artigo 938.º e seguintes do CPC, uma vez que a legitimidade activa para tal meio processual é exclusiva do Ministério Público; 6 – Em tal hipótese – tendo falecido os executados, tendo os herdeiros legitimários repudiado as heranças, não sendo conhecidos do exequente quaisquer outros sucessores/herdeiros e não tendo o Ministério Público intentado o processo especial do artigo 938.º do CPC – deve a execução continuar contra as heranças jacentes dos executados/falecidos, sendo, na habilitação a intentar, citados os interessados incertos para deduzir a sua habilitação, após o que, não aparecendo ninguém a habilitar-se, serão as heranças jacentes habilitadas, nomeando-se depois, no processo principal, oficiosamente, quem represente as heranças jacentes em tribunal.
Considerando que o incidente deduzido visa a substituição do executado falecido pelos seus sucessores apenas para efeitos da respetiva intervenção na execução que constitui o processo principal, não estando em causa a aquisição da herança pelo Estado, não se vislumbra que ocorra erro na forma do processo, apenas havendo que indeferir a requerida habilitação.
Em síntese, cumpre indeferir a requerida habilitação do Estado Português para intervir na execução que constitui o processo principal em substituição do executado falecido, revogando a decisão recorrida.

Em conclusão: (…)


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação procedente, em consequência do que se decide indeferir o incidente de habilitação, revogando a decisão recorrida.
Custas pela apelada.
Notifique.
Évora, 09-06-2022
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Vítor Sequinho dos Santos
(1.ª Adjunto)
José Manuel Barata
(2.º Adjunto)