Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
894/21.6GBLLE.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: LIVRE CONVICÇÃO
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O princípio in dubio pro reo enquanto correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido, impõe-se ao juiz no sentido de este se dever pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
II. É o juiz perante o qual a prova é produzida aquele que se encontra em posição privilegiada para colher todos os elementos relevantes para a apreciação crítica das provas – dispondo de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
III. Nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
III. Pertencendo o ato de julgar, exclusivamente, ao Tribunal, sendo este que tem de formar uma convicção segura, mediante uma operação que não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, antes parte de dados objetivos para uma formação lógico-intuitiva.
IV. Com efeito, a operação intelectual de formação da convicção não constitui opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objetivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objetiváveis).
V. Ao impugnante ão basta defender que a apreciação feita pelo Tribunal sobre a prova produzida não é a mais adequada, o que supõe que a mesma é possível; sendo, antes, necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e, em sentido diverso, não consentiam semelhante leitura.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:



I. RELATÓRIO


A –
Nos presentes autos de Processo Comum Singular, com o nº 894/21.6GBLLE, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Local Criminal de Loulé, Juiz 2, o Ministério Público requereu o julgamento do arguido AA, solteiro, filho de BB, e de CC de Freitas, nascido a .../.../1997, na freguesia ..., concelho ... e residente na Rua ..., ..., em ....
Imputando-lhe a prática em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a), do Código Penal.

A ofendida DD deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando a sua condenação, em consequência da prática do crime que lhe vem imputado, no pagamento da quantia de € 3.800,00 (três mil e oitocentos euros), dos quais € 2.000,00 (dois mil euros) a título de danos não patrimoniais e € 1.800,00 (mil e oitocentos euros) a título de danos patrimoniais.

O arguido não apresentou contestação, nem requereu a produção de prova.

Realizado a audiência de julgamento veio a ser proferida pertinente sentença, na qual se decidiu:
a) Condenar o arguido EE pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), e nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
b) Tendo em conta a imagem global da factualidade, afigura-se que a simples censura dos factos e a ameaça de prisão serão suficientes para dissuadir o arguido da prática de futuros crimes, pelo que se decide suspender a execução da pena de prisão pelo período de 4 (quatro) anos (artigo 50º, do Código Penal), suspensão essa condicionada a um regime de prova, assente em plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, que deverá prever a sujeição do arguido às seguintes regras de conduta:
c) Proibição de contactar, onde quer que seja, e por qualquer forma ou meio, com a ofendida, DD, durante o período de suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi imposta (ressalvadas as situações em que tais contactos sejam necessários, de acordo com o prudente arbítrio do Tribunal de Família).
d) Proibição de frequentar a zona de residência da ofendida, bem como a área do seu local de trabalho, durante o período de suspensão da execução da pena de prisão imposta (ressalvadas as situações em que tais contactos sejam necessários, de acordo com o prudente arbítrio do Tribunal de Família).
e) Obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, desenvolvido pela DGRSP.
f) Condenar o demandado e arguido, vista a procedência parcial do pedido de indemnização civil formulado pela ofendida, a pagar à ofendida DD, a título de indemnização por danos não patrimoniais, € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros).
g) Subordinar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido, até ao fim do decurso do prazo da suspensão (quatro anos) à ofendida e demandante cível, DD, da importância pecuniária a que se alude na alínea f), supra, a pagar por inteiro ou em prestações, nos termos do artigo 51º, nº 1, alínea a), do Código Penal (devendo ser documentada nos autos a quitação parcial ou integral).
h) Absolver o arguido e demandado do remanescente do pedido de indemnização civil.
(…)

Inconformado com esta sentença condenatória, o arguido EE da mesma interpôs o presente recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1. O arguido, ora recorrente, não assumiu, a prática em concreto de nenhum dos factos descritos nos autos e atinentes ao crime de violência doméstica, pelos quais foi condenado.
2. O douto Tribunal “a quo” baseou a sua convicção e fundamentou a sua decisão com base no depoimento da Ofendida DD, pois que os factos constantes da acusação não terão sido presenciados pelas testemunhas ouvidas e foram amplamente contestados pelo arguido, como não correspondentes à verdade.
3. Mais se baseou o douto Tribunal “a quo” nas declarações prestadas pelo arguido, em que negou a prática dos factos e “aproveitou” a observação, a nosso ver erradamente (salvo o devido respeito por diverso entendimento) do arguido quando referiu que a ofendida não o ajudava nas tarefas domésticas para concluir que as expressões que a ofendida imputava ao arguido, tais como: “Não vales nada”; “És uma atrasada mental”, seriam credíveis.
4. Na ausência de qualquer outro meio de prova, porque os factos invocados não foram presenciados por terceiros, parece-nos que deveria ter sido suscitada dúvida razoável acerca do cometimento dos mesmos por parte do arguido, e ter o mesmo sido absolvido da prática do crime de Violência doméstica, pelo qual foi, efetivamente, condenado, por manifesta insuficiência de provas, uma vez que estamos perante versões contraditórias apresentadas pelas partes e não presenciadas por qualquer das testemunhas.
5. De igual forma, e pelos motivos supra aduzidos, sempre se dirá que também não ficou comprovada qualquer situação de sexo não consentido entre o casal, ou seja arguido e ofendida.
6. Tal incriminação resultou, somente das declarações da Ofendida, e uma vez mais contraditadas pelo arguido que o negou veemente.
7. Assim sendo, deverá subsistir uma dúvida razoável sobre a autoria dos factos imputados ao arguido e pelos quais foi condenado.
8. «Em sede de direito processual penal português, o princípio da presunção de inocência, enquanto regra probatória, tem como consequência o facto de ser a acusação que tem de carrear para o processo o material probatório, desonerando o arguido do ónus da prova da sua inocência.
9. Revela-se necessário salientar que, neste ponto que agora analisamos, ao princípio de presunção de inocência se pode associar o in dubio pro reo, de tal modo que, uma vez chegados a julgamento, se se concluir que existe uma dúvida razoável quanto aos factos pelos quais o arguido vem acusado e quanto à culpa, a sua absolvição aparece como a única atitude legítima a adotar» - Alexandra Vilela in “Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal”, pág. 121.
10. Em nossa opinião, e salvo o devido respeito, inexistindo quaisquer outros factos provados que impliquem o arguido no crime pelo qual foi condenado, e por dúvidas existirem quanto ao cometimento pelo mesmo de tais ilícitos, deveria o mesmo ter sido absolvido da prática do crime de violência doméstica, por imposição do tão citado princípio da presunção de inocência associado ao princípio do in dubio pro reo, sob pena de violação dos artigos 32º/1 e 18º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
11. Nesta senda, também o arguido deveria ter sido absolvido do pedido de indemnização civil a que efetivamente foi condenado.
12. Assim ao não absolver o arguido, terá o douto Tribunal “a quo” violado, conjuntamente, as disposições conjugadas dos artigos e 71º e 152º e 164º do Código penal, bem como os princípios da proporcionalidade e adequação e do in dúbio pro reo (artigos 18º e 32º/1 da Constituição da República Portuguesa.
13. Não obstante, e sem prejuízo das considerações anteriormente explanadas, caso assim não se entenda, o que só por mero dever de cautela se concebe, outra deveria ter sido a pena concretamente aplicada ao arguido. Senão vejamos,
14. O arguido é primário, não tendo, por isso, averbado quaisquer antecedentes criminais no ser CRC.
15. Está integrado profissional, social e familiarmente.
16. Nunca mais se aproximou ou manteve qualquer contacto com a ofendida.
17. Pelo que e de acordo com a própria fundamentação da douta sentença recorrida, existe uma desproporcionalidade entre os factos alegadamente comedidos pelo arguido, as consequências desses atos e a pena que efetivamente lhe foi aplicada.
18. Considerando-se, por isso, que o mesmo deveria ter sido merecedor de tratamento menos severo por parte do douto Tribunal “a quo”, devendo tal pena ter ficado próxima dos limites mínimos da condenação e, ainda assim suspensa na sua execução ou substituída por pena de multa.
Nestes termos, e sobretudo, nos que serão objecto do douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso, sendo a decisão recorrida revogada na parte em que condena o arguido, ora recorrente, pela prática do crime de violência doméstica, e substituída por outra que o absolva, assim como do pedido de indemnização civil;
Tudo com as legais e ulteriores consequências.
Ou, caso assim não se entenda,
Seja a douta decisão recorrida substituída por outra que condene o arguido, em pena inferior, coincidente ou próximo dos limites mínios, substituída por pena de multa ou suspensa na sua execução.
Com o que se fará a costumada Justiça.

Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal, o Ministério Público, pronunciou-se no sentido da improcedência, concluindo por seu turno (transcrição):

Face a todo o exposto, não nos merece, qualquer crítica a douta decisão recorrida.
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, e salvo o devido respeito e melhor opinião, a decisão recorrida não é passível de censura e deverá ser mantida.
Contudo, V. Exas. farão, como sempre Justiça.

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal, a demandante DD, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto, apresentando as seguintes (transcrição):

Termos em que, devem os V. Senhores Juízes Desembargadores, manter plenamente a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, a qual respeitou a Lei, em face da prova produzida, bem fundamentada, equilibrada, proporcional e produzida com proficiência, assim se fazendo Justiça.
Pede deferimento a V. Exas Senhores Desembargadores

Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Com os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:

Factos provados:
Da discussão da causa, e com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido e a ofendida DD iniciaram em 2019 uma relação de namoro, e em Janeiro de 2020, passaram a coabitar numa residência na ..., ....
2. Em Fevereiro de 2020, o arguido e a ofendida passaram a residir na ..., ..., em ....
3. Da referida relação nasceu uma filha, FF, nascida em .../.../2020; veio posteriormente a nascer o segundo filho do casal, em .../.../2022.
4. Desde o início da relação, com uma frequência de cerca de uma vez por semana, no interior da residência comum do casal, quando ocorriam discussões, o arguido apelidava a ofendida de “puta”, “vaca”, “parvalhona”, dizendo-lhe “és uma parva”, “não vales nada”, “és uma atrasada mental”.
5. Em data não concretamente apurada, tinha a filha menor do casal cerca de 3 meses, o arguido encetou uma discussão com a ofendida, no interior da residência, discussão essa ocorrida por motivo não concretamente apurado.
6. Na sequência da referida discussão, o arguido dirigiu-se à ofendida, que se encontrava sentada no sofá, com a filha junto a si e desferiu-lhe diversos murros e chapadas na zona da cabeça, fazendo com que a ofendida tenha perdido momentaneamente os sentidos.
7. Quando a ofendida acordou, o arguido acusou-a de estar a fingir.
8. Quando a filha do casal tinha cerca de 6 ou 7 meses, tendo a ofendida decidido terminar o relacionamento com o arguido, o que a mesma lhe comunicou, este, pegou numa faca de cozinha, encostou a mesma ao pescoço da ofendida e disse-lhe “Eu mato-te!”.
9. Em seguida, o arguido colocou a mão no pescoço da ofendida, encostou a mesma à parede e desferiu-lhe diversos murros e chapadas na face.
10. No dia 07-10-2021, cerca das 20:00 horas, encontrando-se a ofendida grávida de cerca de 20 semanas, o arguido chegou a casa e encetou uma discussão com a ofendida, pelo facto de a mesma não ter o jantar preparado.
11. Tendo a discussão continuado a decorrer pela noite dentro, quando eram cerca das 03:00 horas do dia 08-10-2021, já o casal se encontrava no interior do quarto, o arguido agrediu a ofendida com murros, chapadas na face, na cabeça e nas costas, tendo manietado as mãos daquela, para que a mesma não se pudesse defender.
12. Após, o arguido ordenou à ofendida que fosse para a cozinha preparar-lhe algo para comer e, não satisfeito com a comida que aquela lhe preparou, o arguido encostou uma faca de cozinha ao pescoço da ofendida e disse-lhe que a matava.
13. Nesse mesmo dia, 08-10-2021, aproveitando a circunstância de o arguido se encontrar a dormir, a ofendida saiu de casa com a sua filha e refugiou-se na casa do seu avô GG, tendo na referida data terminado a relação com o arguido.
14. Como consequência das agressões perpetradas pelo arguido no dia 08-10-2021, a ofendida sofreu fortes dores, tendo ficado com várias equimoses e hematomas nos braços, nos joelhos, bem como com uma equimose ovalada na região occipital direita do crânio, com cerca de 2 cm por 1 cm, lesões que lhe demandaram 7 dias, para completa cura.
15. O arguido sabia que ao praticar os factos supra descritos, actuava no interior da residência comum do casal e, pelo menos numa ocasião, na presença da filha menor de ambos, não se tendo, por tal facto, coibido de agir como quis e agiu.
16. Mais sabia o arguido que ao agir da forma descrita, molestava o corpo e a saúde da ofendida, bem como que a ofendia na sua honra e consideração, provocando-lhe ainda medo e receio pela sua integridade física e mesmo pela vida, em face dos seus comportamentos e das expressões que lhe dirigia, tendo, ainda assim, querido agir como agiu.
17. Sabia também o arguido que, ao actuar da forma descrita, conforme quis, tratava a ofendida, sua companheira, de modo desumano, maldoso e humilhante, de forma reiterada e habitual, o que fez mesmo quando a ofendida se encontrava grávida do seu segundo filho, não obstante saber que tinha para com a mesma especiais deveres de respeito e consideração decorrentes da relação amorosa que os uniu, da coabitação e do facto de aquela ser mãe da sua filha.
18. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas.
19. Em consequência da conduta do arguido, a ofendida e demandante sentiu-se triste, nervosa e com receio daquele.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido, apurou-se o seguinte:
20. O arguido não tem antecedentes criminais – cf. o certificado do registo criminal, actualizado, com data de 21-06-2022 (nos autos).
Quanto às suas condições sociais e económicas, provou-se o seguinte:
21. O arguido trabalha como jardineiro, auferindo uma remuneração de cerca de € 6 (seis euros) por hora de trabalho.
22. Trabalha habitualmente das 8:00 horas às 17:00 horas.
23. O arguido estudou até 2020, tendo posteriormente desistido dos seus estudos.
24. O arguido tem dois filhos menores.


Factos não provados:
Não se provaram os seguintes factos:
I. Em 8 de Outubro de 2021, cerca das 3:00 horas, o arguido disse à ofendida «Já que te portaste mal e não fizeste nada em casa, sofres as consequências», momento em que sujeitou a ofendida a manter com o mesmo, relações sexuais, incluindo cópula anal, sem que a ofendida o quisesse.
II. Desde o início da relação entre ambos, o arguido dirigia-se à ofendida dizendo-lhe «és falsa», e «és o diabo em pessoa».
III. Em data não concretamente apurada do mês de Julho de 2020, o arguido e a ofendida encontravam-se na residência do avô desta, GG, tendo encetado discussão na qual o arguido apelidou a ofendida com as expressões “puta”, “vaca”, “parvalhona”, dizendo-lhe “és uma parva”, “não vales nada”, “és uma atrasada mental”.
IV. Nesse dia, logo que arguido e ofendida chegaram à sua residência, o arguido dirigiu-se à ofendida e agrediu a mesma com murros e chapadas, atingindo-a na face e na cabeça.

Motivação:
A convicção do tribunal, no que respeita aos factos provados, estribou-se na análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do art. 127º do Código de Processo Penal.
O arguido prestou declarações, onde negou os factos que lhe são imputados, designadamente dizendo que nunca agrediu fisicamente a sua companheira, negando outrossim que lhe chamasse nomes (designadamente os referidos nos factos dados como assentes); contudo – com contradição evidente – o arguido não se coibiu de dizer em audiência que a ofendida não o ajudava nas tarefas domésticas, que ele fazia tudo (designadamente na cozinha). Numa perspectiva crítica, este reparo quadra com a utilização de expressões tais como: “não vales nada”, “és uma atrasada mental”, o que dá credibilidade ao depoimento da ofendida.
Quanto às suas condições pessoais, o Tribunal acolheu as declarações do arguido; contudo, quanto à sua remuneração horária, não se reteve o montante por ele referido em audiência (€ 5), mas o montante por ele mencionado às Técnicas que elaboraram relatório para a regulação do exercício das responsabilidades parentais (junção admitida em sede de audiência final).
A ofendida e demandante, DD, referiu que a relação de namoro com o arguido começou em 2019, Outubro. Referiu as duas residências onde coabitaram. Referiu ter sido agredida em 08-10-2021, quando estava grávida de 20 semanas (fls. 68). Referiu igualmente, em data anterior, ter sido agredida, tendo tido perda de sentidos. Mencionou especificamente que foi agredida com chapadas – de mão aberta – e com socos – de mão fechada.
A ofendida disse que sofreu um acidente de automóvel em Maio de 2021, cujas lesões foram leves, e nada tiveram a ver com as lesões causadas pelo arguido – nesta parte se conclui, evidentemente, que o arguido não disse a verdade, quando negou as agressões físicas dadas como assentes.
A ofendida disse que sentiu medo do arguido; que a sua conduta a deixou infeliz; tendo inclusivamente ideias de suicídio, sem nunca tentar ou sequer conceber passar ao acto.
HH, pai da ofendida, nunca presenciou directamente os factos – apenas tendo ouvido gritos, na ..., mas sem perceber o que se passara. Mas viu várias vezes a sua filha com nódoas negras, sabendo hoje que esta não era capaz de lhe contar o sucedido.
GG, avô da ofendida, disse que o arguido a insultava na sua presença – chamando-lhe vaca e puta e dizendo que esta não valia nada. Referiu que havia discussões frequentes, e viu-lhe hematomas nas pernas e braços, sendo que a ofendida sempre arranjava uma desculpa para essas marcas. O depoente ouviu barulho em Outubro de 2021, cerca das 3:00 horas; só nessa ocasião a ofendida se lhe abriu sobre as agressões de que foi vítima.
Por fim, II, para além de confirmar o depoimento da testemunha anterior, disse que a ofendida ficou diferente, mais triste – teve medo do arguido – achando que já não tem, excepto aquando das visitas aos menores.
Foram ainda decisivos o certificado do registo criminal do arguido; o relatório do episódio de urgência de 08-10-2021, a fls. 68-70, que corrobora o depoimento da ofendida, mas onde não existe nenhuma referência a sexo (anal) não consentido – cf. “queixa clínica”, a fls. 68 –; da perícia de fls. 222-224.
Da conjugação de todos estes elementos, concatenados entre si, resulta que os factos ocorreram nos termos descritos acima, nos factos provados.
Relativamente aos factos não provados, constata-se que sobre eles não se produziu prova, para além do que se disse supra: o relatório do episódio de urgência de 8-10-2021, a fls. 68-70, corrobora o depoimento da ofendida, mas nele não existe nenhuma referência a sexo (anal) não consentido – cf. “queixa clínica”, a fls. 68. Entende-se relevante tirar consequências do facto de a vítima, ao reportar os actos de que foi alvo, e ao fazê-lo perante pessoal de saúde, não ter feito qualquer referência a actos de violência sexual. Julga-se neste ponto, dada a falta de assertividade da ofendida (neste ponto – repete-se e sem que isso signifique menor credibilidade da vítima), que inexistem factos materiais e concretos para afirmar que o arguido obrigou a ofendida a manter consigo relações sexuais, na ocasião referida. Com efeito, em linguagem clara, poder-se-á afirmar que, apesar da alegação da existência dessas ofensas sexuais, nenhuma descrição das mesmas foi feita na audiência – apesar das instâncias à ofendida, designadamente que permita a sua fixação pelo Tribunal, em termos consistentes (e não meramente vagos e indeterminados).
(…)

Da medida da pena:
Qualificados juridicamente os factos e operada a respectiva subsunção ao preceito incriminador, resta determinar a natureza e medida da pena a aplicar.
O crime de violência doméstica é punido com pena de prisão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos (art. 152º, nº 2, do Código Penal).
Na determinação da medida concreta da pena tem de se ter em conta três operações: em primeiro lugar, atenta-se na moldura penal abstracta que ao caso é aplicável; depois, determina-se concretamente a pena, o quantum da pena dentro daquela moldura; por fim, escolhe-se a pena (cf. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 198).
Em conformidade com o art. 70º do Código Penal, que determina os critérios conformadores de escolha da pena, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Estas finalidades estão previstas no art. 40º do C. Penal e consistem na protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade.
A aplicação de penas visa, por um lado, repor a confiança dos cidadãos na validade e vigência das normas violadas sempre que a mesma tenha sido abalada pela prática de um crime (prevenção geral positiva ou de reintegração, enquanto estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade na vigência da norma violada) e, por outro lado, a reintegração do agente na sociedade através da “prevenção da reincidência” (prevenção especial positiva).
O crime de violência doméstica não prevê, dada a sua gravidade, já considerada pelo Legislador, a pena de multa alternativa à pena de prisão. Assim, ao arguido terá sempre de ser aplicada uma pena privativa da liberdade.
Sendo de aplicar uma pena de prisão, importa, agora, determinar a medida concreta dessa pena que há-de ser fixada dentro da moldura penal abstracta de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. A pena deve mostrar-se adequada ao comportamento do arguido, atendendo-se, nos termos do art. 71º, nº 1, do C. Penal, à sua culpa e às exigências de prevenção, não olvidando que a medida da pena jamais pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que a verdadeira função desta é a proibição do excesso, em nome do respeito pela pessoa humana (art. 40º, nº 2, do Código Penal).
A prevenção geral positiva ou de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar, e a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva, cabendo à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, atendendo, ainda, às circunstancias favoráveis e desfavoráveis ao agente na medida em que se mostrem relevantes, como preceitua o art. 71º, nº 2 do Código Penal, encontrando-se, assim, a pena adequada e justa.
Importa considerar os factos provados e as seguintes circunstâncias para graduar a pena:
- o grau elevado de ilicitude da conduta do arguido, manifestada em diversos actos de violência física e psicológica, que conduziram a ofendida a uma situação de medo;
- o dolo directo com que o arguido actuou, elevando-se, assim, a sua culpa – neste conspecto, sublinha-se a especial censurabilidade inerente à circunstância de o arguido haver agredido a sua companheira quando esta se encontrava grávida de 20 (vinte) semanas;
- a seu favor será de ponderar a circunstância de o arguido se encontrar inserido profissionalmente;
- milita também a seu favor a inexistência de antecedentes criminais;
- em termos de necessidade de prevenção geral, as mesmas são elevadas, atenta a enorme frequência com que factos idênticos aos em causa nos autos são praticados – dado revelado pelas estatísticas que têm vindo a público – impondo uma postura firme na reafirmação da validade da norma que pune tal conduta e protege aqueles bens jurídicos fundamentais.
Considerando todos os factores supra elencados para a determinação concreta do quantum da pena, entende-se adequado condenar o mesmo na pena de 4 (anos) anos prisão.
(…)

Do pedido civil:
O artigo 21º da Lei nº 112/2009, de 16.09, dispõe, no seu nº 1, que «À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito de obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável»; acrescentando, no seu nº 2, que «Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, excepto no caso em que a vítima a tal expressamente se opuser».
Contudo, nestes autos DD deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido (aqui demandado), pedindo a sua condenação, em consequência da prática do crime que lhe vem imputado, a pagar-lhe a importância pecuniária global de € 3.800 (três mil e oitocentos euros), dos quais € 2.000 (dois mil euros) a título de danos não patrimoniais; e € 1.800 (mil e oitocentos euros) a título de danos patrimoniais. A fls. 249 e seguintes, a demandante alega – em síntese – que, «em consequência da conduta criminosa do arguido (…) sofreu danos físicos diversos, para além de danos psicológicos morais irreparáveis». Sublinha que, à data dos factos, tinha uma filha «com meses» e encontrava-se grávida (duma criança nascida, entretanto, a .../.../2022.
No que concerne a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais postula o art. 496º do Código Civil, no seu nº 1, que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
Os danos não patrimoniais, correspondem aos prejuízos que, como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, os danos de natureza estética, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, por atingirem bens que não integram a esfera patrimonial do lesado, apenas podem ser compensados mediante uma obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo mais uma compensação do que uma indemnização.
Como refere Vaz Serra, “A indemnização por danos não patrimoniais não é uma indemnização no sentido próprio, por não ser equivalente do dano, um valor que reponha as coisas no status quo ante. É, tão só, uma satisfação ou compensação do dano sofrido, que não é verdadeiramente avaliável em dinheiro” (in B.M.J., nº 83-83).
Relativamente à quantificação da indemnização por este tipo de danos, de acordo com o artigo 496º, nº 4, do Código Civil, deverá a mesma ser fixada equitativamente pelo Tribunal atendendo à justiça do caso concreto, às regras da boa prudência e à criteriosa ponderação das realidades da vida, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias cuja influência se faz sentir (cf. artigos 496º, nº 3, e 494º, ambos do Código Civil).
Nestes termos, e remetendo-nos ao caso concreto, a ofendida tem direito a ser indemnizada pelos danos que advieram da conduta do arguido e que se julgaram como provados.
Analisado o pedido de indemnização civil deduzido pela ofendida, verifica-se que há violação ilícita do bem jurídico “integridade física”; as dores físicas sofridas como consequência da conduta do arguido; padecimentos morais ou físicos.
Contudo, não se vislumbram nem forma alegados quaisquer danos de natureza patrimonial. É jurisprudência consolidada que, ainda assim, o tribunal pode – até ao limite do pedido – considerar, no caso concreto, apenas os danos não patrimoniais.
Havendo que recorrer à equidade, a justiça do caso concreto, a ofendida e demandante, dada a violência física e verbal a que foi submetida, merece a fixação de uma indemnização, por danos não patrimoniais, no montante de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros).
Assim sendo, perante esses factos, e atendendo ao grau de culpabilidade do arguido manifestado na prática dos factos, às condições económicas do demandado, e segundo o referido juízo de equidade, tem-se como ajustado o montante indemnizatório de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros).
(…)

II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas como nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, B.M.J. nº 484, pág. 271 e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

No caso em apreço, atendendo às conclusões, as questões que se suscitam são as seguintes:
- Impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, devendo os factos provados serem considerados não provados pelo princípio “in dubio pro reo”.
- Impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de direito, relativamente à medida da pena de prisão.
- Impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de facto e de direito, relativamente à condenação na indemnização civil.

- Da impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, devendo os factos provados serem considerados não provados pelo princípio “in dubio pro reo”.
É sabido que constitui princípio geral que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nº 3 e, nº 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Apreciada a peça recursiva apresentada pelo arguido, constata-se que a mesma não faz referência expressa ao artigo 412º, do Código de Processo Penal, visando a apreciação de eventuais erros de julgamento da matéria de facto, mas da mesma resulta ser essa a sua pretensão.
O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelo nº 3 e, nº 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E, é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros “in judicando” (violação de normas de direito substantivo) ou “in procedendo” (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o tribunal ter decidido de forma diferente.
Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-03-2012, publicado no D.R., I Série, nº 77, de 18-04-2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.
A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.
Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”.
Cabe aqui evidenciar, um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que lança luz sobre a questão em apreço.
Como, de forma impressiva, refere o Conselheiro Carmona da Mota no acórdão do STJ de 27-02-2003, Proc. 140/03, “ii. O valor da prova, isto é a sua relevância enquanto elemento reconstituinte do facto delituoso imputado ao arguido depende fundamentalmente da sua credibilidade: ou seja a sua idoneidade e autenticidade. iii. A credibilidade da prova por declarações depende essencialmente da personalidade, do carácter e da probidade moral de quem as presta, sendo que tais características e atributos, em princípio, não são apreensíveis ou detectáveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, mas sim através do contacto pessoal e directo com as pessoas. iv. O tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido".
Ou seja, e como assinala Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, pág. 204 e sgs., a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade meramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis - v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova, e mesmo puramente emocionais. Em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, capaz de se impor aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade, para além de toda a dúvida razoável.
E, nesta matéria assume-se, como fundamental, o princípio da imediação, isto é, a relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.
Só a oralidade e imediação, com efeito, permitem avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.
Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, decorre da peça recursiva apresentada pelo recorrente que pretende impugnar a matéria de facto considerada como provada que em seu entender deverá ser julgada como não provada.
Como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05-06-2002, proferido no processo nº 0210320, disponível em www.dgsi.pt, “a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente. (…) Assim, a reapreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1ª instância, caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas.”.
Assim, no âmbito do referido erro de julgamento em matéria de facto, mesmo concedendo (por esforço argumentativo) ter o recorrente dado o devido cumprimento ao disposto no artigo 412º nº 3 e nº 4, do Código de Processo Penal (sendo manifesto que desacatou o ónus de especificação ali prevenido como condição de validação da apreciação, pelo Tribunal “ad quem”, do recurso em matéria de facto), há-de também admitir-se que, revista a prova produzida, na audiência de julgamento (particularmente no cotejo das declarações ali produzidas pelo arguido e pela ofendida/demandante, dado o carácter pessoal e reservado dos factos e, a sua própria natureza, descritos e sopesados na sentença pelo Mmº Juiz do Tribunal recorrido, com adequado critério), os factos permitem concluir, que as declarações da ofendida, fazem prova das agressões físicas e verbais do arguido. Essas declarações foram confirmadas, não só e pontualmente pelo depoimento das testemunhas de acusação, mas também pela prova documental junta aos autos, nomeadamente o relatório de urgência de 08-10-2021. Assim, a tese sustentada, fundamentadamente, na sentença, nos termos e âmbito do disposto, nos artigos 374º nº 2 e 127º, do Código de Processo Penal, tem de ter-se por consentida pela prova realizada na audiência em primeira instância.
Com efeito, sob análise e valoração, neste Tribunal “ad quem”, das provas produzidas no Tribunal recorrido, a convicção ora formada sobre os factos sob julgamento (seja quanto aos que devem considerar-se como provados, seja no que respeita aos que devem ter-se como não provados) não diverge daquela que o Mmº Juiz do Tribunal “a quo” alcançou e exprimiu na decisão recorrida.
E assim, procedendo a ponderação e convicção autonomamente formuladas, nesta instância recursória, e tudo sem embargo dos inultrapassáveis limites de apreciação nesta instância, ditados pela natureza (de remédio), pelo momento de apreciação (de segunda linha e em suporte estático, não sendo caso de renovação de provas), e mesmo pelos termos, modelo e modo de impugnação, inerentes ao recurso em análise, temos de concordar com o juízo formulado pela 1ª instância, improcedendo pois nesta parte o recurso interposto.
Assim, face a este acervo de prova, apenas permite concluir nos termos feitos pelo Tribunal “a quo”, pois nenhuma outra prova directa ou indirecta existe sobre a ocorrência de tais factos.
A prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada.
O julgador tem de apreciar e valorar a prova na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou “hominis”, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção.
Ademais, ressalvado sempre o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, o mesmo olvida o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127º, do Código de Processo Penal, norma de acordo com a qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
É sabido que livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, no ensinamento do Professor Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 201 a 206, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.
A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.
Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das “leges artis”, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do favor rei.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedente a invocada impugnação alargada da matéria de facto por parte do recorrente.
Sabido é que, no artigo 127º, do Código de Processo Penal consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante (o julgamento surge, na estrutura do processo penal, como o momento de comprovação judicial de uma acusação – é o momento do processo onde confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa), pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, artigos 84º (caso julgado), 163º (valor da prova pericial), 169º (valor probatório dos documentos autênticos e autenticados) e 344º (confissão) do Código de Processo Penal e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova, artigo 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa, e artigos 125º e 126º, do Código de Processo Penal e o do “in dubio pro reo” artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
O princípio “in dubio pro reo”, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido, constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não devam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal.
Dito de outra forma, o princípio “in dubio pro reo” constitui imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e quem se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a percepção da personalidade do depoente impondo-se por tal a imediação e a oralidade e a da dúvida inultrapassável, conduzindo ao princípio in dubio pro reo.
A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão
Não basta defender que a leitura feita pelo Tribunal da prova produzida não é a mais adequada, o que supõe que a mesma é possível, sendo, antes, necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e, em sentido diverso, não consentiam semelhante leitura.
Volvendo ao processo, bastará a simples leitura da decisão recorrida, designadamente da motivação da decisão de facto assumida na instância, para se alcançar o processo lógico-formal, o raciocínio efectuado pelo Tribunal “a quo” na ponderação das provas produzidas e privilegiadas na formação da convicção expressa no relato dos factos dados como provados.
Posto isto, surge como evidente que a não-aceitação, que o recorrente manifesta relativamente ao modo como o Tribunal “a quo” decidiu a matéria de facto, não radica na existência de provas que impusessem decisão diversa da que foi proferida, mas tão só na sua análise pessoal da prova e da sua vontade de a sobrepor à análise levada a cabo por quem tem o poder/dever de a fazer.
Assim, do texto da decisão recorrida não se detecta qualquer violação do princípio “in dubio pro reo”, na medida em que se não verifica, nem demonstra, que o tribunal de julgamento haja resolvido qualquer dúvida contra o arguido.
Ora, também nesta vertente, não se vislumbra que o Tribunal “a quo” haja violado o princípio “in dubio pro reo”, uma vez que pelos motivos expendidos na decisão recorrida a prova consente (e impõe) a convicção formada pelo Tribunal de 1ª instância e a violação de tal princípio suporia, de um lado, a formação de uma convicção positiva sem suporte probatório bastante, o que não ocorre, ou de outro, que o Tribunal demonstrada uma dúvida razoável ante a prova produzida a havia resolvido contra o arguido, o que também não ocorre.
O que não viola qualquer garantia de defesa do arguido, nos termos do disposto no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, do disposto no artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do disposto no 14º, nº 2, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, do disposto no artigo 6º, nº 2, da Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedente a impugnação alargada da matéria de facto por parte do recorrente.

Cumpre por obediência à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, deixar exarado que a sentença recorrida, por si ou com recurso às regras da experiência, não revela qualquer dos vícios prevenidos no nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal.
A alteração da factualidade assente na 1ª instância poderá ocorrer pela verificação de algum destes vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe oficiosamente.
Em comum aos três vícios, terá o vício que inquina a sentença em crise que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, local supra, mencionado.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.”, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local mencionados.
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada.
Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na acusação e no pedido civil e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.
Então do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada e não provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e de igual modo não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras de experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
De igual modo, conforme supra, referido, do texto de tal decisão não se detecta qualquer violação do “favor rei”, na medida em que se não verifica, nem demonstra, que o tribunal de julgamento haja resolvido qualquer dúvida contra o arguido.
Por outro lado, conceda-se, a decisão recorrida, como já se afirmou, não deixa de expor, de forma clara e lógica, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame criterioso, das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
A decisão recorrida está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
O Tribunal “a quo” decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.
Em consequência, mantém-se e, sedimentada se mostra, a factualidade assente pelo Tribunal “a quo”, não se vislumbrando na decisão recorrida vício ou nulidade cujo conhecimento oficiosamente ou a requerimento se imponha a este Tribunal “ad quem”.
Por tal, não resulta existir qualquer dos vícios constantes do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) ou, c), do Código de Processo Penal, bem como não se mostra verificado qualquer nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código ou nos termos dos artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, que não devam considerar-se sanadas.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedentes a invocada impugnação da matéria de facto por parte do recorrente, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal.

- Da impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de direito, relativamente à medida da pena de prisão.
Importa desde logo ter presente (faz doutrina e jurisprudência de há muito sedimentadas) que, em sede de medida da pena, o recurso não deixa de reter o paradigma de remédio jurídico (na expressão de Cunha Rodrigues), no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, (também) neste particular, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normação que definem e demarcam as operações de concretização da pena na moldura abstracta determinada na lei.
Vale por dizer que o exame da concreta medida da pena estabelecida na instância, suscitado pela via recursiva, deve aproximar-se desta, senão, quando haja de prevenir-se e emendar-se a fixação de um determinado “quantum” em derrogação dos princípios e regras pertinentes, cumprindo precaver (desde logo à míngua da imediação e da oralidade de que beneficiou o Tribunal “a quo”) qualquer abusiva fixação de uma concreta pena que ainda se revele congruente e proporcionada.
Resulta da sentença recorrida:
“Importa considerar os factos provados e as seguintes circunstâncias para graduar a pena:
- o grau elevado de ilicitude da conduta do arguido, manifestada em diversos actos de violência física e psicológica, que conduziram a ofendida a uma situação de medo;
- o dolo directo com que o arguido actuou, elevando-se, assim, a sua culpa – neste conspecto, sublinha-se a especial censurabilidade inerente à circunstância de o arguido haver agredido a sua companheira quando esta se encontrava grávida de 20 (vinte) semanas;
- a seu favor será de ponderar a circunstância de o arguido se encontrar inserido profissionalmente;
- milita também a seu favor a inexistência de antecedentes criminais;
- em termos de necessidade de prevenção geral, as mesmas são elevadas, atenta a enorme frequência com que factos idênticos aos em causa nos autos são praticados – dado revelado pelas estatísticas que têm vindo a público – impondo uma postura firme na reafirmação da validade da norma que pune tal conduta e protege aqueles bens jurídicos fundamentais”.
No caso, seja em vista do relevante grau de ilicitude dos factos, seja em vista das elevadas necessidades de prevenção geral (que reclamam severidade na punição de crimes de violência doméstica, ademais quando levados com violência e sem aparente razão cognitiva), mesmo de prevenção especial, seja ainda ao que consta apurado sobre os réditos do arguido, não se vê que Mm.º Juiz do Tribunal “a quo” haja valorado as circunstâncias apuradas com inadequado peso prudencial, por isso que a sentença revidenda não merece nem suscita, também neste particular, qualquer intervenção ou suprimento reparatório.
Nestes termos também nesta parte improcede o recurso interposto.

- Da impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de facto e de direito, relativamente à condenação na indemnização civil.
Quanto à impugnação da sentença proferida, relativamente à matéria de facto, reproduz-se neste segmento tudo o supra referido relativamente à impugnação dos factos provados.
A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil (artigo 129º, do Código Penal).
O princípio geral em matéria de responsabilidade civil extra-contratual é o consignado no artigo 483°, do Código Civil, segundo o qual “aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Nos termos dos artigos 496º, nº1 e, nº 3, 1ª parte, e, 494º, do Código Civil, o montante da indemnização por danos não patrimoniais é fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção, a gravidade e extensão dos prejuízos, o grau de culpabilidade do lesante, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso – cf. Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 4ª edição, 1982, pág. 304.
Os danos não patrimoniais abrangem os prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação e os complexos de ordem estética) que, não sendo susceptíveis de avaliação pecuniária, apenas podem ser compensados com obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo mais uma satisfação do que uma indemnização.
Resulta do disposto no artigo 496º, nº 1 e, nº 3, do Código Civil, que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
Do princípio geral em matéria de responsabilidade civil extra-contratual consignado no artigo 483°, do Código Civil, supra, referido, resulta que constituem, em regra, pressupostos da responsabilidade civil extracontratual:
- O facto ilícito;
- O dano;
- O nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano;
- A culpa.
O facto ilícito é o facto voluntário – a acção ou omissão – que viola o direito de outrem ou deveres impostos por lei que vise a defesa dos interesses particulares, sem, contudo, conferir, correspectivamente, quaisquer direitos subjectivos.
O dano consiste na ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica e pode ter natureza patrimonial e não patrimonial.
O nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano representa a imputação objectiva dos resultados danosos ao comportamento do agente, de maneira a determinar-se quais os danos verdadeiramente causados por este e nessa medida indemnizáveis – artigo 563°, do Código Civil.
Finalmente, a culpa representa a imputação subjectiva do facto ao agente e traduz uma determinada posição ou situação censurável deste perante o facto ilícito, podendo assumir a forma de negligência ou de dolo.
No caso em apreço, provou-se o facto ilícito pelo arguido praticado e bem assim a sua culpa.
Verifica-se, por tal, o preenchimento por parte do arguido/demandado de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual no que tange aos danos não patrimoniais.
Estabelecida a obrigação de indemnizar nos precisos termos expostos, importa apenas apurar quais os danos que por ela são abrangidos e fixar o respectivo “quantum” indemnizatório.
No caso concreto, resultaram provados nos autos, conforme supra, referido e, bem consta da sentença recorrida, que para a demandante advieram do comportamento do arguido, os seguintes danos não patrimoniais:
Nestes termos, e remetendo-nos ao caso concreto, a ofendida tem direito a ser indemnizada pelos danos que advieram da conduta do arguido e que se julgaram como provados.
Analisado o pedido de indemnização civil deduzido pela ofendida, verifica-se que há violação ilícita do bem jurídico “integridade física”; as dores físicas sofridas como consequência da conduta do arguido; padecimentos morais ou físicos.
Contudo, não se vislumbram nem forma alegados quaisquer danos de natureza patrimonial. É jurisprudência consolidada que, ainda assim, o tribunal pode – até ao limite do pedido – considerar, no caso concreto, apenas os danos não patrimoniais.
Havendo que recorrer à equidade, a justiça do caso concreto, a ofendida e demandante, dada a violência física e verbal a que foi submetida, merece a fixação de uma indemnização, por danos não patrimoniais, no montante de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros).”.
Os danos não patrimoniais são os insusceptíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária, porque atingem bens, como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a liberdade, a honra, o bom nome, a reputação, a beleza, dos quais resulta o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação, tudo constituindo prejuízos que não se integram no património do lesado, apenas podendo ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo mais uma satisfação do que uma indemnização, assumindo o seu ressarcimento uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória ou de pena privada.
Visa a lei, no dano não patrimonial, proporcionar ao lesado uma compensação para os sofrimentos que a lesão lhe causou, contrabalançando o dano com a satisfação que o dinheiro lhe proporcionará (Mota Pinto, Teoria Geral, 3ª Ed., pág. 115).
Como se refere no Ac. do STJ de 16-04-91, in BMJ 406, pág. 618 “O artigo 496º do C. Civil fixou-se definitivamente não numa concepção materialista da vida, mas num critério que consiste que se conceda ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada, adequada a proporcionar-lhe alegria ou satisfação que de algum modo contrabalancem as dores, desilusões, desgostos ou outros sofrimentos que o ofensor lhe tenha provocado. Assim, será o tribunal que, equitativamente, terá de fixar quais os danos relevantes e qual a indemnização que lhe corresponderá, de harmonia com as circunstâncias de cada caso, o que importará numa certa dificuldade de cálculo, com o inerente risco de nunca se estabelecer indemnização rigorosa e precisa
Como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, (Cód. Civil Anot., Vol. I, 2ª Ed., pág. 435) “o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado (...) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc.. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.”
Também Leite de Campos (A Indemnização do Dano da Morte, pág. 12) ensina que nos danos não patrimoniais “a grandeza do dano só é susceptível de determinação indiciária fundada em critérios de normalidade. É insusceptível de determinação exacta, por o padrão ser constituído por algo qualitativo diverso como é o dinheiro, meio da sua compensação. Aqui, mais do que nunca, nos encontramos na incerteza, inerente a um imprescindível juízo de equidade.”
Estando em causa a fixação do valor da indemnização por danos não patrimoniais com apelo a um julgamento segundo a equidade, em que os critérios que “os tribunais devem seguir não são fixos” – Antunes Varela/Henrique Mesquita, Código Civil Anotado, 1º vol., anotação ao art. 494º - “devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”” – só se justificando uma intervenção correctiva se a indemnização se mostrar exagerada por desconforme a esses elementos.
O juízo equitativo é critério primordial e sempre corrector de outros critérios.
Tendo tudo isto em atenção, afigura-se-nos justa a indemnização de €3.500,00, arbitrada quanto a tais danos não patrimoniais que, por isso, se mantém, atentos os insultos de que foi alvo, as repetidas agressões na face, na cabeça e nas costas, as ameaças com uma faca e os rendimentos mensais do arguido, cerca de €1.000,00 (mil euros).
Então improcede, portanto, a pretensão constante das motivações do recurso interposto pelo demandado civil, confirmando-se, consequentemente, a sentença recorrida.

Nestes termos improcedem, portanto, todas as pretensões constantes da motivação do recurso interposto pelo arguido EE, confirmando-se consequentemente a sentença recorrida.

Em vista do decaimento total no recurso interposto pelo arguido EE, ao abrigo do disposto nos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 5, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação do recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.
Sendo, na parte cível, devidas custas nos termos legais.


III - DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido EE, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.
Custas da parte cível, nos termos legais.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 08-10-2022
Fernando Paiva Gomes M. Pina (Relator)
Beatriz Marques Borges (Adjunta)
João F. R. Carrola (Adjunto)