Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
761/21.3T8STB-A.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: PLANO DE PAGAMENTO
HOMOLOGAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Sujeitando a regimes idênticos credores que se encontram em circunstâncias objetivamente diferentes, sem o consentimento dos credores lesados, o plano viola o princípio da igualdade dos credores e prevê um tratamento discriminatório.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 761/21.3T8STB-A.E1


Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:
I. Relatório
1. No processo especial de insolvência em que são requerentes e devedores (…) e mulher, (…), foi proferida sentença a homologar o plano de pagamentos apresentado pelos devedores.

2. A credora (…) – Instituição Financeira de Crédito, S.A., recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:
“1 – Citada para se pronunciar nos termos do n.º 2 do artigo 256.º do CIRE a recorrente opôs ao plano apresentado pelos devedores, com fundamento da natureza errónea do crédito reconhecido à credora e do valor do crédito.

2 – Isto, em razão, dos devedores terem-se comprometido a pagar todos os créditos comuns e o crédito privilegiado, e propositadamente ignorando a existência de um crédito garantido pela hipoteca voluntária e constituída e registada sob o veículo automóvel, com a matrícula (…) e que se encontram a usufruir.

3 – Assim, os devedores propuseram o pagamento de 100% de todos os créditos comuns reclamados em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas e com perdão dos juros vincendos.

4 – Como tal verificou-se uma equiparação do crédito da recorrente (crédito garantido) aos demais créditos (créditos comuns) não sendo efetuada qualquer distinção proveniente da natureza garantida do crédito da aqui credora.

5 – Atenta a oposição da credora, os devedores apresentaram um novo plano de pagamentos, por via do qual reconheceram o valor do crédito reclamado e a natureza do mesmo.

6 – Todavia, mantiveram a equiparação do crédito garantido aos créditos comuns, não se verificando qualquer diferença no plano de pagamento dos valores reclamados:

“…I. Créditos Garantidos: Propõe-se o pagamento dos créditos em 100,00% do montante reclamado, em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas, com juros calculados de 0% ao ano, não sendo afetadas as garantias que possuem e com início de pagamentos 30 dias após o trânsito em julgado da douta sentença homologação do Plano.

III. Credores Comuns: Propõe-se o pagamento dos créditos em 100,00% do montante reclamado, em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas, com juros calculados de 0 % ao ano, não sendo afetadas as garantias que possuem e com início de pagamentos 30 dias após o trânsito em julgado da douta sentença homologação do Plano.”

7 – Logo, constata-se que os devedores estão a tratar de forma igual o que é diferente, não esquecendo que o facto de a credora ser detentora de um crédito garantido não lhe dá a preferência que a hipoteca registada sob o veículo automóvel lhe confere.

8 – Todavia, na aplicação prática deste plano é que se consegue perceber a desigualdade no tratamento:

O veículo automóvel em questão constitui um bem de rápido desgaste, de rápida desvalorização comercial e um bem móvel.

9 – Ora, se o plano apresentado vai ter a duração de dez anos, o veículo automóvel em questão, que visa garantir o cumprimento das obrigações emergentes do contrato de crédito celebrado com os devedores, vai rapidamente perder o valor que ainda tem.

10 – Ao invés, os créditos comuns, no período dos dez anos previsto para a duração do pagamento dos valores reclamados, “nada têm a perder”, porque inexiste qualquer bem sob o qual se encontre registada uma garantia.

11 – Acresce que, para amortizar esse crédito, os devedores não liquidam qualquer prestação desde 19/11/2019, nem entregam o veículo automóvel para ser vendido e o produto da venda amortizado ao valor em dívida à recorrente.

12 – Deste modo, salvo melhor opinião em sentido contrário, os devedores, pelo menos, deveriam aumentar o valor da prestação mensal a liquidar ao credor recorrente, pois a garantia que tem sob o veículo, com o passar do tempo, perderá o seu efeito útil.

13 – Nessa medida, se os devedores querem manter-se na posse do veículo deverão compensar o credor hipotecário pela desvalorização do bem que visa garantir o cumprimento das obrigações emergentes do contrato, nomeadamente o incumprimento do mesmo.

14 – E mais uma vez, sendo este o segundo processo judicial por via do qual os devedores apresentam um plano de pagamentos, a recorrente é a única prejudicada.

15 – No primeiro PEAP, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Comércio de Setúbal, Juiz 2, os devedores perante dois credores com créditos garantidos, a recorrente e a Caixa Económica (…), apresentaram condições diferentes de pagamento.

16 – No que respeita à Caixa Económica, os credores assumiam o valor das prestações contratualizadas, e à recorrente apresentavam condições menos prestigiosas e que envolviam perdão de 20% do capital.

17 – Em razão disso, e por se constatar um clara violação do princípio da igualdade dos credores da insolvência, previsto no artigo 194.º do CIRE, foi proferida decisão de não homologação.

18 – Decisão que, posteriormente, foi reconhecida e confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora.

19 – Atento o teor da resposta dos devedores ao (segundo) requerimento de não aprovação apresentado pela recorrente extrai-se o seguinte:

1º) Entre os dois processos judiciais venderam o imóvel sob o qual a Caixa Económica (…) tinha registado a seu favor hipoteca e liquidaram a dívida existente;

2º) Defendem a manutenção das condições apresentadas para a recorrente e para os demais credores, sem prejuízo de reconhecerem a diferença na natureza do crédito da credora – garantido – para os créditos dos demais credores – comum.

20 – Face à oposição da recorrente o Tribunal A Quo decidiu suprir a aprovação da recorrente ao plano de pagamentos apresentado.

21 – Determina a alínea b) do n.º 1 do artigo 258.º do CIRE que:

“…Se o plano de pagamentos tiver sido aceite por credores cujos créditos representem mais de dois terços do valor total dos créditos relacionados pelo devedor, pode o Tribunal, a requerimento de algum desses credores ou do devedor, suprir a aprovação dos demais credores, desde que:

…b)Os oponentes não sejam objeto de um tratamento discriminatório injustificado.”

22 – Dispõe o n.º 1 do artigo 194.º do CIRE que:

“…O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas…”

23 – Reza o n.º 2 do mesmo dispositivo legal que:

“…O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afetado, o qual se considera tacitamente prestado no caso no caso de voto desfavorável.”

24 – Em termos de imputação ao caso concreto, aplica-se o disposto no n.º 2 do artigo 194.º do CIRE, mas numa interpretação ab contrário.

25 – Isto é, o credor garantido está a ter o mesmo tratamento que os credores comuns, sem prejuízo do bem que atribui a natureza garantida ao crédito da recorrente se manter na posse dos devedores, estar a perder valor, circunstância que se irá agravar nos dez anos previstos para a duração do plano homologado pelo Tribunal A Quo.

26 – Consignou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/07/2005, proferido no âmbito do processo n.º 5228/2007-7, disponível em www.dgsi.pt que:

“…Igualdade não se confunde com igualitarismo formal que frequentemente apenas serve para justificar desigualdades de ordem material. Como tem sido frequentemente decidido em sede de apreciação dos contornos do referido princípio, designadamente na sua vertente constitucional, o mesmo impõe que seja tratado de modo igual o que é substancialmente semelhante, admitindo-se, todavia, o tratamento diferenciado do que se revele substancialmente diverso.” (n/sublinhado)

27 – Deste modo, e consequentemente deverá a douta sentença proferida ser revogada e substituída por douto acórdão que determine a não homologação do plano apresentado pelos devedores, por violação do princípio da igualdade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 258.º do CIRE (ex vi artigo 194.º do CIRE).

Fazendo assim a costumada Justiça!

Não houve lugar a resposta.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso

As conclusões da motivação do recurso delimitam o seu objeto (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, ambos do CPC); vistas estas, importa decidir se plano de pagamentos estabelece um tratamento discriminatório injustificado para os credores que a ele se opuseram.

III- Fundamentação
1. Factos
A decisão recorrida não discrimina os factos que julgou provados (como prevê e impõe o artigo 607.º, nºs 3 e 4, do CPC), remetendo o juízo de facto, por assim dizer, para o que consta dos autos; “(…) da análise dos autos e do plano de pagamentos apresentado e modificado pelos devedores, verifica-se…”, consignou.

A Recorrente não suscita reservas quanto à construção da sentença e a remissão nesta operada permite com segurança afirmar a seguinte factualidade relevante para o conhecimento do recurso:

a)- Os devedores relacionaram os seguintes créditos:

- € 12.827,13; credor: Banco (…), SA; crédito comum;

- € 1.091,25; credor (…) Banco, SA; crédito comum;

- € 722,11; credor Banco (…); crédito comum;

- € 886,13; credor Banco (…); crédito comum;

- € 21.220,42; credor (…) Capital; crédito garantido;

- € 3.582,56; credor (…) - Inst. Financeira SA; crédito comum;

- € 28.561,23; credor (…), Portugal, Unip., SA; crédito comum;

- € 1.262,81; credor Instituto de Gestão Fin. SS; crédito privilegiado;

- € 6.980,43; credor Autoridade Trib. e Aduaneira, crédito privilegiado;

b) O plano de pagamentos prevê o seguinte:

I. Créditos Garantidos: Propõe-se o pagamento dos créditos em 100,00% do montante reclamado, em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas, com juros calculados de 0% ao ano, não sendo afetadas as garantias que possuem e com início de pagamentos 30 dias após o trânsito em julgado da douta sentença homologação do Plano.

II. Autoridade Tributária e Instituto da Segurança Social, IP: Propõe-se o pagamento integral do montante reclamado, até 36 prestações mensais, iguais e sucessivas, com o pagamento de juros vencidos e vincendos à taxa legalmente fixada para os juros de mora aplicáveis às dívidas ao Estado, não sendo afetadas as garantias que possuem e com início de pagamento da primeira prestação, no máximo, até final do mês seguinte à data da sentença homologatória do plano.

Nos termos do n.º 13 do artigo 199.º do CPPT, devem manter-se as garantias existentes.

III. Credores Comuns: Propõe-se o pagamento dos créditos em 100,00% do montante reclamado, em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas, com juros calculados de 0% ao ano, não sendo afetadas as garantias que possuem e com início de pagamentos 30 dias após o trânsito em julgado da douta sentença homologação do Plano.”

c) Os credores (…)-Instituição Financeira de Crédito, SA e (…) Personal Finance, S.A., opuseram-se ao plano de pagamentos.

2. Direito

Os devedores não empresários e titulares de pequenas empresas podem apresentar, conjuntamente com a petição inicial do processo de insolvência quando requerentes, um plano de pagamentos destinado à satisfação dos direitos dos credores (artigos 249.º, 251.º e 252.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante designado por CIRE).

Os credores são notificados do plano de pagamentos, este considera-se aprovado caso não seja recusado por nenhum dos credores e é homologado por sentença (artigos 257.º, n.º 1 e 259.º, n.º 1, ambos do CIRE).

A lei permite, ainda, que o plano de pagamentos seja aprovado quando tiver sido aceite por credores cujos créditos representem mais de dois terços do valor total dos créditos relacionados pelo devedor, desde que algum destes credores, ou o devedor, o requeira, caso em que o tribunal pode suprir a aprovação dos credores que recusaram o plano.

Assim, o artigo 258.º do CIRE:

1 - Se o plano de pagamentos tiver sido aceite por credores cujos créditos representem mais de dois terços do valor total dos créditos relacionados pelo devedor, pode o tribunal, a requerimento de algum desses credores ou do devedor, suprir a aprovação dos demais credores, desde que:

a) Para nenhum dos oponentes decorra do plano uma desvantagem económica superior à que, mantendo-se idênticas as circunstâncias do devedor, resultaria do prosseguimento do processo de insolvência, com liquidação da massa insolvente e exoneração do passivo restante, caso esta tenha sido solicitada pelo devedor em condições de ser concedida;

b) Os oponentes não sejam objeto de um tratamento discriminatório injustificado;

c) Os oponentes não suscitem dúvidas legítimas quanto à veracidade ou completude da relação de créditos apresentada pelo devedor, com reflexos na adequação do tratamento que lhes é dispensado.

2 - A apreciação da oposição fundada na alínea c) do número anterior não envolve decisão sobre a efetiva existência, natureza, montante e demais características dos créditos controvertidos.

3 - Pode ser sempre suprida pelo tribunal a aprovação do credor que se haja limitado a impugnar a identificação do crédito, sem adiantar quaisquer elementos respeitantes à sua configuração.

(…)”

O suprimento da aprovação dos credores pelo tribunal mostra-se assim condicionada à verificação dos seguintes requisitos:

- o plano não envolva, para os oponentes, uma desvantagem económica superior àquela que resultaria do prosseguimento do processo de insolvência, com liquidação da massa insolvente e exoneração do passivo restante, quando seja previsível a sua verificação;

- os oponentes não sejam objeto de um tratamento discriminatório injustificado;

- os oponentes não suscitem dúvidas legítimas quanto à veracidade ou completude da relação de créditos apresentada pelo devedor, com reflexos na adequação do tratamento que lhes é dispensado.

Verificados estes requisitos o tribunal pode suprir a aprovação dos credores que recusaram o plano desde que tal lhe seja requerido pelo devedor ou por algum dos credores que constituem o quórum de 2/3 que não se opuseram ao plano e foi este o caminho percorrido pela decisão recorrida ao suprir a aprovação do plano pelos credores (…)-Instituição Financeira de Crédito, SA e (…) Personal Finance, S.A. e ao homologar o plano de pagamentos apresentado pelos devedores.

Decisão que não merece a concordância da credora (…)-Instituição Financeira de Crédito, SA, assente na afirmação que o seu crédito está garantido por hipoteca e o plano prevê o seu pagamento de forma igual aos créditos comuns, assim o discriminando injustificadamente.

Com razão, a nosso ver.

A referida credora opôs-se ao plano de pagamentos e uma das condições necessárias ao suprimento da aprovação do plano dos credores oponentes é que estes não sejam objeto de tratamento injustificado.

“Está aqui em causa comparar a solução proposta para os respetivos créditos em confronto com outros de igual natureza e qualidade, para não ser posto em causa o princípio da igualdade”[1]

E a “razão objetiva porventura mais clara que fundamenta a diferença de tratamento dos credores assenta na distinta classificação dos créditos, nos termos que está agora assumida no artigo 47.º do Código (…)”.

A lei distingue os créditos sobre a insolvência em «garantidos» e «privilegiados» quando beneficiem, respetivamente, de garantias reais, «subordinados» e «comuns» (artigo 47.º do CIRE) e a esta classificação corresponde uma ordem ou preferência que, deliberadamente simplificada, se traduz em dar pagamento em primeiro lugar aos créditos garantidos e privilegiados, em segundo lugar aos créditos comuns e finalmente aos créditos subordinados (artigos 174.º a 177.º do CIRE).

O respeito pelo princípio da igualdade de tratamento entre os credores impõe a observância desta ordem de pagamento, sem prejuízo da estipulação de diferenciações que respeitando a natureza dos créditos e suas garantias, se imponham por razões objetivas.

No caso dos autos, o plano prevê o pagamento do crédito da Recorrente, garantido por hipoteca, precisamente nos mesmos termos em que prevê o pagamento dos créditos comuns, dele não se podendo dizer que observa o princípio da igualdade entre credores, uma vez que trata por igual créditos objetivamente diferentes em razão das suas garantias.

Sujeitando a regimes idênticos credores que se encontram em circunstâncias objetivamente diferentes, sem o consentimento dos credores lesados, o plano viola o princípio da igualdade dos credores e prevê um tratamento discriminatório da Recorrente, razão pela qual não reúne, a nosso ver, as condições para que o tribunal supra a aprovação dos credores oponentes.

Procede o recurso, restando revogar a sentença recorrida.

3. Custas

Obtendo a Recorrente vencimento no recurso, sem oposição, as custas ficarão a cargo de quem as houver que pagar a final.

IV. Dispositivo

Delibera-se, pelo exposto, em revogar a decisão recorrida e em consequência, não se homologa o plano de pagamentos apresentado pelos Devedores.

Custas pelo vencido a final.

Évora, 9/9/2021
Francisco Matos
José Tomé Carvalho
Mário Branco Coelho

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[1] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, 2009, pág. 828.