Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1173/18.1T9STC.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO PARTICULAR
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
INJÚRIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 04/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Deduzida pelo Ministério Público acusação por crime de violência doméstica, não pode o mesmo notificar a ofendida para deduzir acusação particular por injúria e com referência a factualidade já contida na acusação por violência doméstica, para a eventualidade de, em julgamento, apenas ser produzida prova de factos que integrassem a prática de um crime de injúria.

2 - A assistente não teria que deduzir acusação particular pela prática do crime de injúria, porque os factos já integravam a acusação de violência doméstica, mas devia prevenir a situação e acompanhar a acusação do M.º P.º, o que também veio a fazer no devido momento.

3 - Uma impugnação da matéria de facto quer ao abrigo do art.º 412.º, n.º 3 e 4, quer ao abrigo do art.º 410.º, n.º 2, é-o da matéria de facto que consta da acusação ou da pronúncia, não da matéria de facto que já devia lá obrigatoriamente constar mas não consta. Ou seja, a impugnação da matéria de facto não serve para colmatar omissões de matéria de facto que devesse constar da acusação ou da pronúncia.
Decisão Texto Integral:
I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, do Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Santiago do Cacém, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, em que (...) se constituiu assistente e deduziu pedido cível contra o arguido (...), foi a fls. 91 e ss. deduzida acusação pelo M.º P.º contra este, imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º. n.º 1 al.ª a), 2 e 4, do Código Penal, no fim da qual o M.º P.º lavrou ainda o seguinte:
Para a eventualidade de, em julgamento, apenas ser produzida prova de factos que integrem a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181° do CP, o qual reveste natureza particular, importa desde já garantir o preenchimento dos requisitos de procedibilidade por tal crime.
Assim, notifique a ofendida para, querendo, requerer a sua constituição como assistente e deduzir acusação particular.
Em consequência, a ofendida constituiu-se assistente, aderiu à acusação pública produzida pelo M.º P.º e deduziu acusação particular contra o arguido por crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal.
A fls. 140 e com data de 5-2-2020 proferiu então o Senhor Juiz "a quo" o seguinte despacho:
Regista-se que o Ministério Público deduziu acusação pela prática de um crime de violência doméstica ainda que tenha considerado, na parte final do despacho acusatório, a eventualidade de os factos integrarem a prática de um crime de injúria, pelo que determinou a notificação da ofendida para se constituir assistente e deduzir acusação particular.
A ofendida, nessa sequência, requereu a sua constituição como assistente, a qual foi admitida, aderiu à acusação pública, e, bem assim, deduziu acusação particular pela prática de um crime de injúrias.
O Ministério Público acompanhou a particular deduzida pela assistente.
A questão que aqui se suscita, é se é possível, no processo penal, a dedução de acusações subsidiárias ou em relação de subsidiariedade entre si, para se atender à segunda na improcedência da primeira.
A possibilidade de deduzir um pedido ou pretensão subsidiária é permitida no processo civil (artigo 554.º do Código de Processo Civil), mas não nos parece que essa regra seja extensível à acusação deduzida no processo penal, considerando as exigências decorrentes do princípio do acusatório.
A acusação é deduzida pelo crime que o acusador, em concreto, entende-se verificar-se; dito ainda de outra forma, na multiplicidade de incriminações legais que, em abstrato, se podem considerar atingidas pela conduta, traduz uma opção, não sob condição ou eventualidade, mas concreta e definida; é fundamentalmente isto que demandada o princípio do acusatório.
Não pode suceder, com efeito, esta dedução de acusações subsidiárias, que a lei processual penal não prevê, e, consequentemente, se pode afirmar a ocorrência de uma nulidade suis generis no quadro do processo penal, socorrendo-nos do conceito geral de nulidade dos atos proveniente do artigo 195.°, n.° 1, do Código de Processo Civil.
A invalidade ocorre nas acusações deduzidas em segundo lugar ou subsidiárias, neste caso, na acusação particular e na acusação do Ministério Público que adere à acusação particular; pois quer o Ministério Público quer a assistente optaram peio crime de violência doméstica (na acusação pública e na acusação pelo assistente).
Termos que declaro nulas e de nenhum efeito:
- a acusação particular (fls.111-ss do processo físico);
- a acusação do Ministério Público que acompanha a acusação particular (fls. 122-ss).
(…)
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Inconformado com o assim decidido, o M.º P.º interpôs recurso (doravante designado por «1.ª recurso interlocutório»), apresentando as seguintes conclusões:
1 - No despacho de acusação Refa CITIUS 88889428, o Ministério Público imputou ao arguido a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, n°s 1, a), 2 e 4, do Código Penal, e determinou, a nosso ver bem, o seguinte:
"Para a eventualidade de, em julgamento, apenas ser produzida prova de factos que integrem a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181° do CP, o qual reveste natureza particular, importa desde já garantir o preenchimento dos requisitos de procedibilidade por tal crime.
Assim, notifique a ofendida para, querendo, requerer a sua constituição como assistente e deduzir acusação particular."
2 - Nessa sequencia, a ofendida, (...), requereu a sua constituição como assistente, e deduziu acusação particular contra o arguido, pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181°, n° 1, do C.P.
3 - Por despacho Refa CITIUS 89248507, foi admitida a constituição de assistente.
4 - Por despacho Refa CITIUS 89314061, o Ministério Público acompanhou a acusação particular no que se refere aos factos que integram a prática do crime de injúria.
5 - No despacho recorrido, o tribunal a quo declarou nulas e de nenhum efeito:
- a acusação particular (fls. 111-ss do processo físico); e
- a acusação do Ministério Público que acompanhou a acusação particular (fls. 122-ss).
6 - Com fundamento no facto de em processo penal, considerando as exigências decorrentes do princípio do acusatório, não ser possível deduzir uma acusação subsidiária, para o caso de improcedência da primeira.
7 - O tribunal a quo conclui que, uma vez que o Ministério Público e a assistente optaram pelo crime de violência doméstica (na acusação pública, que foi acompanhada pela assistente) então, a acusação particular deduzida pela assistente e a acusação do Ministério Público que acompanhou essa acusação particular, são nulas e de nenhum efeito, o que declarou, a nosso ver, mal.
8 - O arguido está acusado da prática de um crime de violência doméstica, e, findo o julgamento, poderá, eventualmente, vir a ser convolada a sua conduta como integrante da prática de um crime de injúria.
9 - O princípio do acusatório significa que só se pode ser julgado pela prática de um crime mediante prévia acusação que o contenha, deduzida por entidade distinta do julgador e constituindo ela, acusação, o limite do julgamento.
10 - A lei admite que na sentença, possam ser considerados factos novos, resultantes da discussão da causa [ou por esta tornados relevantes] ainda que constituam alteração dos constantes da acusação [ou da pronúncia], observadas que sejam determinadas formalidades e verificados que sejam determinados pressupostos, matéria que o C. de Processo Penal regula nos arts. 1°, 358° e 359°.
11 - Deste modo, aos casos ressalvados na própria Lei, tem a jurisprudência adicionado outros que com eles partilham a mesma irrelevância negativa para os direitos de defesa do arguido.
12 - Referimo-nos, por exemplo, aos casos em que a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado: entende-se que não há qualquer alteração relevante para o efeito em causa, uma vez que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia).
13 - Este entendimento é o que urge seguir in casu uma vez que o arguido, está acusado pela prática de um crime "composto" — na medida em que integra condutas que em si mesmo já são consideradas crime mas que obtêm uma cominação mais grave em resultado da qualidade especial do autor ou o dever que sobre ele impende [violência doméstica].
14 - Como se sabe, o crime de violência doméstica é um crime específico impróprio, pois a qualidade especial do autor ou o dever que sobre ele impende constitui o fundamento da agravação relativamente aos crimes que as condutas já integravam.
15 - Ou seja, é a consideração da qualidade do autor e, particularmente, do dever que sobre ele impende que fundamentam e justificam a criação de um tipo de crime com uma cominação agravada.
16 - Quando, como no caso presente, a prova que vier a ser produzida, não permita a condenação pelo tipo "composto" ["agravado"], a defesa do arguido em nada é prejudicada ou surpreendida com a condenação pelos tipos de crime integrantes.
17 - Haverá nas hipóteses mencionadas que apurar se se verificam quanto a esses crimes as necessárias condições objectivas de procedibilidade, designadamente o exercício do direito de queixa relativamente a ilícito de natureza semi-pública (pensamos nas ofensas à integridade física simples visto o consignado pelo art.° 143.°, n.° 2, do Código Penal), e a dedução de acusação particular relativamente aos ilícitos que assumam tal natureza (crimes de injúrias visto o art.° 188.°, n.° 1, do mesmo diploma substantivo).
18 - Atribuída natureza particular ao crime de injúrias, pelo art.° 188.°, n.° 1 do Código Penal, a dedução de acusação particular, imposta pelo art.° 50.°, do CPP, constitui pressuposto processual do procedimento criminal respetivo, ou seja, condição positiva daquele mesmo procedimento que, do mesmo modo, condiciona a responsabilidade penal.
19 - A falta de acusação da assistente, num crime particular, integra a nulidade insanável prevista no art. 119°, al. b) do CPP.
20 - Com efeito, este artigo comina com nulidade insanável a falta de promoção do Ministério Público, nos termos do artigo 48°, do CPP.
21 - O artigo 48°, por seu turno, refere que o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49° a 52°.
22 - Ou seja, o Ministério Público deve promover o processo penal de acordo com o regime previsto nos artigos 49° a 52°, sob pena de nulidade insanável.
23 - Assim, cabe ao assistente, nos crimes particulares, delimitar o tema do processo, definir os factos e proceder ao enquadramento jurídico dos mesmos, no crime que imputa ao arguido.
24 - Não sendo passível de suprimento a falta de acusação particular, carece o Ministério Público de legitimidade para o prosseguimento do processo pelo referido crime de injúrias.
25 - A referida nulidade insanável invalida,, assim, todos os actos subsequentes, na parte respeitante ao crime de injúria – art. 122°, 1 do CPP.
26 - In casu, a ofendida constituiu-se assistente, e deduziu acusação particular contra o arguido pelos factos suscetíveis de integrarem o crime de injúrias, acusação essa que foi acompanhada pelo Ministério Público.
27 - E a assistente também acompanhou a acusação pública.
28 - Imputado crime de violência doméstica e o crime de injúria, julgamos não se verificar nenhum elemento de surpresa que determine que seja atribuída ao arguido uma maior amplitude de defesa. E, nessa medida, julgamos não haver lugar ao cumprimento do disposto no artigo 358°, n° 3 do C.P.Penal.
29 - Nesta conformidade, concluímos no sentido de que não se verifica qualquer obstáculo legal /processual impeditivo da apreciação da responsabilidade criminal do arguido quanto ao crime de injúria p. e p. pelo arguido 181° do C. Penal.
30 - No caso, aliás, é o princípio do acusatório que impõe que seja admitida a acusação particular deduzida pela assistente.
31 - Não há fundamento legal, em face da indiciação processual e das normas processuais vigentes, que permita ignorar esta manifestação da vontade, por parte da ofendida, na prossecução da tutela penal dos direitos violados, expressa pela dedução de queixa, constituição de assistente, acompanhamento da acusação pública e dedução de acusação particular.
32 - O despacho recorrido viola os artigos 20°, n° 4, e 32°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa, os artigos 1°, n° 1, alínea f), 48°, 50°, n° 1, 119°, alínea b), 122°, n° 1, 358° e 359°, todos do Código de Processo Penal, e viola os artigos 152°, 181°, e 188°, n° 1, todos do Código Penal.
33 - Deve assim ser revogado, e substituído por outro, que receba a acusação particular (fls. 111-ss do processo físico) e a acusação do Ministério Público que acompanha essa acusação particular (fls. 122-ss).

Nos termos vindos de expor, e nos mais de direito que, como sempre, mui doutamente suprirão, devem V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora julgar totalmente procedente o presente recurso e por consequência, deverão revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que receba a acusação particular (fls. 111-ss do processo físico) e a acusação do Ministério Público que acompanha essa acusação particular (fls. 122-ss).
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Este 1.º recurso interlocutório foi admitido com efeito devolutivo e a subir nos próprios autos e com o que fosse interposto da decisão que pusesse termo à causa – com o que concordamos.
Nesta Relação, no parecer emitido pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, é o mesmo de opinião de este 1.º recurso interlocutório deve ser julgado improcedente.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma do qual serão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de origem), o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que a questão posta neste 1.º recurso interlocutório ao desembargo desta Relação é a de se, tendo sido deduzida pelo M.º P.º acusação por crime de violência doméstica em relação a uma ofendida que se constitui assistente e adere àquela acusação, podia o M.º P.º ter ainda notificado a ofendida para deduzir acusação particular por injúria e com referência a factualidade já contida na acusação por violência doméstica (acusação particular que a assistente veio realmente a fazer), para a eventualidade de, em julgamento, apenas ser produzida prova de factos que integrassem a prática de um crime de injúria.
E a resposta é: não.
Primeiro, porque o procedimento criminal pelo crime de injúria depende de queixa e acusação (art.º 181.º e 188.º, n.º 1, do Código Penal) e, no caso dos autos, não há queixa.
Diz o Senhor Procurador-Geral Adjunto em seu parecer que consta na certidão que originou o presente processo, concretamente no auto de inquirição da ora ofendida efectuado na GNR de Santiago do Cacém, datado de 27-7-2018, a existência do auto de denúncia n.° 127/17.0GGSTC, pelo que se presume a existência de queixa formulada pela ofendida.
Acontece que nesse processo 127/17.0GGSTC, quem fez queixa foi (...) (ex marido da ora assistente e ora arguido no presente processo) e contra (...) (sua ex esposa e ora assistente) e por furto de bens comuns do casal. Quando foi ouvida, a então denunciada falou sobre o assunto por que estava a ser acusada pelo ex marido – e também contou ao inquiridor as suas desgraças conjugais, as quais, sendo indício do cometimento pelo então queixoso do crime de violência doméstica, originou a extracção de certidão com vista ao respectivo procedimento criminal contra o então queixoso, a qual deu origem aos presentes autos, nos quais aquele passou a ser arguido. Mas nessas declarações, repete-se, em que a ora assistente (...) era a denunciada, ela não apresentou queixa pelo que quer que fosse e contra quem quer que fosse (cf. fls. 2 e 7 a 9). Nem depois o fez em momento algum do presente processado.
Mas ainda que nos presentes autos houvesse queixa formulada pela ofendida, mesmo assim não podia o M.º P.º, deduzida a acusação por crime de violência doméstica, ter notificado a ofendida para deduzir acusação particular por injúria e com referência a factualidade já contida na acusação por violência doméstica, para a eventualidade de, em julgamento, apenas ser produzida prova de factos que integrassem a prática de um crime de injúria.
É que, como bem assinala o senhor Procurador-Geral Adjunto em seu mencionado parecer e que agora passamos a seguir de perto, a ofendida não deveria ter sido notificada para deduzir acusação particular uma vez que os factos acusados integraram a prática do crime de violência doméstica (crime público) imputado na acusação deduzida pelo M.º P.º.
Bastar-lhe-ia que se constituisse como assistente e acompanhasse ou aderisse à acusação do M.º P.º, o que veio a fazer.
A assistente não teria que deduzir acusação particular pela prática do crime de injúria, porque os factos já integravam a acusação de violência doméstica, mas devia prevenir a situação e acompanhar a acusação do M.º P.º, o que também veio a fazer no devido momento.
Conforme se decidiu no ac. TRP de 30-1-2013, proc. 1743/11.9TAGDM.P1, www.dgsi.pt:
I - Nada impediria, mesmo sem observância dos regimes previstos pelos art. 358° e 359° do CPP, a condenação do arguido pelos factos e qualificação jurídica já contidos, como um "minus" [injúria], nos factos e qualificação jurídica por que o arguido vinha acusado [violência doméstica].
II - Tratando-se, porém, de um crime de natureza particular e uma vez que, em momento oportuno, não foi deduzida acusação particular, impõe-se a absolvição do arguido também quanto a este crime.
III - Se o assistente tivesse acompanhado a acusação pública [art. 284° do CPP] poderia considerar-se que esse acompanhamento contido implicitamente a acusação pela prática de crimes de injúria.
Ora, no caso em apreço, a assistente acompanhou a acusação pública (art.º 284.°) pelo que podia considerar-se que esse acompanhamento continha implicitamente a acusação pela prática do crime de injúria.
Assim sendo, constituindo-se previamente como assistente e aderindo à acusação pública pelo crime de violência doméstica (na qual se continham os factos consubstanciadores do crime de natureza particular), verificar-se-iam (caso, recorde-se, tivesse apresentado queixa) os requisitos de legitimidade da ofendida, entendendo-se também como desnecessário o cumprimento do preceituado nos art.º 358.° ou 359.°.
De facto, tendo em conta o disposto no art.º 1.º al.ª f), não estamos perante uma situação a que se deva aplicar o regime do art.º 359.° (alteração substancial dos factos), ou o regime do art.º 358.° (alteração não substancial dos factos), precisamente porque não é imputado ao arguido um crime diverso, dado que os factos que podiam integrar a prática do crime de injúria estavam já integrados no ilícito pelo qual o arguido se encontrava acusado (violência doméstica).
Assim, improcede o 1.º recurso interlocutório interposto pelo M.º P.º, mantendo-se inalterado o despacho recorrido, que está a fls. 140.
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No decurso das declarações prestadas pela assistente na audiência de julgamento, o M.º P.º apercebeu-se que as fotografias da agressão física ocorrida no dia 19-3-2013 não tinham sido juntas ao processo, embora do auto de declarações da assistente perante a Digna Magistrada do M.º P.º, constante de fls. 14 a 17, tivesse ficado a constar o seguinte parágrafo:
A ofendida requereu ainda a junção aos autos das fotos que tirou numa das vezes que foi agredida, em 19-03-2013, tendo para o efeito sido transferidas para o e-mail da signatária e depois impressas e juntas aos autos.
Quando se apercebeu da falta das fotografias, o M.º P.º perguntou à assistente se tinha na sua posse o telemóvel com essas fotografias, tendo a assistente respondido que o tinha consigo e que o disponibilizava para serem extraídas as fotografias dessa agressão física e juntá-las aos autos.
Ato contínuo, o M.º P.º requereu ao Mm° Juiz, ao abrigo do art.º 340.°, n.º 1, que fossem extraídas do telemóvel da assistente as fotografias da agressão física que alegadamente lhe foi infligida no dia 19-3-2013, por se afigurar serem essenciais para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Mais requereu, ao abrigo do art.º 356.°, n.º 3 al.ª a) e b), que fossem lidas as declarações prestadas pela assistente perante o M.º P.º, constante de fls. 14 a 17, nas quais refere, precisamente, esta agressão física ocorrida no dia 19-3-2013.
Ao que o Senhor Juiz "a quo" lavrou o seguinte despacho:
Expressamos concordância com a posição da defesa, porque, efetivamente, tais fotografias, a existirem, e não pomos em causa que existam, já podiam ter sido juntas ao processo, e a junção neste momento, prejudica as garantias de defesa do arguido.
Para alem do mais, não se deteta na acusação publica, agressão temporalmente localizada no ano de 2013; há que distinguir entre contradições e questões de concretização ou pormenorização factual, e não encontramos razão, do ponto de vista da contradição, que justifique que se proceda à leitura das declarações prestadas pela assistente em fase de inquérito, pelo que se indefere o promovido.
Notifique.
Tendo o M.º P.º arguido a nulidade deste despacho de indeferimento, nos termos do art.º 120.°, n.º 2 al.ª d), in fine, e 3 al.ª a), uma vez que, com esse indeferimento o Tribunal "a quo" omitia diligências essenciais para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
E o Senhor Juiz proferido o seguinte despacho:
Julgamos que a mesma não prefigura nulidade do despacho propriamente dito, até porque a questão suscitada não se enquadra em causas de nulidade do despacho, julgamos que a questão tem a ver com a discordância do decidido, todavia, tendo o Tribunal proferido despacho e apreciado a questão, a mesma não poderá ser, digamos, posta em crise por via de reclamação, mas apenas e tão-somente por via de recurso do despacho, uma vez que o Tribunal pronunciou-se sobre a questão, na verdade conforme decorre do despacho, o Tribunal considerou que o requerido não era admissível pelas razões que invocou, e portanto, está em vigor essa decisão, a qual poderá ser reparada por via de recurso, mas não por via de nulidade, pelo que se mantém para todos os efeitos o decidido no antecedente despacho.
Notifique-se.
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Inconformado com o assim decidido nestes dois despachos, o M.º P.º interpôs recurso (doravante designado por «2.ª recurso interlocutório»), apresentando as seguintes conclusões:
1 - No decurso das declarações prestadas pela assistente na audiência de julgamento com a Refa CITIUS 90549409, o Ministério Público apercebeu-se que, as fotografias da agressão física ocorrida no dia 19-3-2013, não tinham sido juntas ao processo, embora do auto de declarações da assistente perante a Digna Magistrada do Ministério Público (refa CITIUS 87026445), tivesse ficado a constar o seguinte parágrafo:
"A ofendida requereu ainda a junção' aos autos das fotos que tirou numa das vezes que foi agredida, em 19-03-2013, tendo para o efeito sido transferidas para o e-mail da signatária e depois impressas e juntas aos autos."
II - Quando se apercebeu da falta das fotografias, o Ministério Público perguntou à assistente se tinha na sua posse o telemóvel com essas fotografias, tendo a assistente respondido que o tinha consigo e que o disponibilizava para serem extraídas as fotografias dessa agressão física e juntas aos autos.
III - Ato contínuo, o Ministério Público requereu, ao Mm° Juiz de Direito do Tribunal a quo, ao abrigo do artigo 340°, n° 1, do CPP, que fossem extraídas do telemóvel da assistente, as fotografias da agressão física que lhe foi infligida no dia 19-3-2013, por se afigurar serem absolutamente essenciais para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
IV - Mais requereu, ao abrigo do artigo 356°, n° 3, alíneas a) e b) do CPP, que fossem lidas as declarações prestadas pela assistente, perante a Digna Magistrada do Ministério Público (documento Refa CITIUS 87026445), nas quais refere, precisamente, esta agressão física ocorrida no dia 19-3-2013.
V - O MM° Juiz a quo indeferiu o requerido, com o seguinte despacho:
" Expressamos concordância com a posição da defesa, porque, efetivamente, tais fotografias, a existirem, e não pomos em causa que existam, já podiam ter sido juntas ao processo, e a junção neste momento, prejudica as garantias de defesa do arguido.
Para alem do mais, não se deteta na acusação publica, agressão temporalmente localizada no ano de 2013; há que distinguir entre contradições e questões de concretização ou pormenorização factual, e não encontramos razão, do ponto de vista da contradição, que justifique que se proceda à leitura das declarações prestadas pela assistente em fase de inquérito, pelo que se indefere o promovido."
VI - O Ministério Público arguiu a nulidade desse douto despacho de indeferimento, nos termos do artigo 120°, n° 2, alínea d), in fine, e n° 3, alínea a), do CPP, uma vez que, com esse indeferimento, o Tribunal a quo omitia diligências essenciais para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
VII - Também a arguição desta nulidade foi indeferida, com o seguinte despacho: "Julgamos que a mesma não prefigura nulidade do despacho propriamente dito, até porque a questão suscitada não se enquadra em causas de nulidade do despacho, julgamos que a questão tem a ver com a discordância do decidido, todavia, tendo o Tribunal proferido despacho e apreciado a questão, a mesma não poderá ser, digamos, posta em crise por via de reclamação, mas apenas e tão-somente por via de recurso do despacho, uma vez que o Tribunal pronunciou-se sobre a questão, na verdade conforme decorre do despacho, o Tribunal considerou que o requerido não era admissível pelas razões que invocou, e portanto, está em vigor essa decisão, a qual poderá ser reparada por via de recurso, mas não por via de nulidade, pelo que se mantém para todos os efeitos o decidido no antecedente despacho.
VIII - O presente recurso versa, portanto, sobre os dois despachos acima destacados: ou seja, tanto incide sobre o despacho que rejeitou a junção das fotografias da dita agressão física, bem como da leitura das declarações prestadas pela assistente no inquérito, perante a Digna Magistrada do Ministério Público, como também incide sobre o subsequente despacho nos termos do qual o Tribunal rejeitou, outrossim, a existência da nulidade processual invocada pelo Ministério Público nos termos supra expostos.
IX - Como resulta expressamente do n.°1 do art.340.° do C.P.P., a investigação judicial visa a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, isto é, a chamada verdade material.
X - Independentemente de alguém ter ou não indicado uma prova anteriormente à audiência de julgamento, se no decurso desta o Tribunal, oficiosamente ou a requerimento, considerar que uma prova antes não indicada é necessária para a descoberta da verdade e à boa decisão da causa, deve obrigatoriamente ordenar a sua produção.
XI - No presente caso, o Tribunal recorrido indeferiu o requerimento, apresentado pelo Ministério Público ao abrigo dos artigos 340.° e 356°, n° 3, alíneas a) e b) do CPP, explicando que as fotografias já podiam ter sido juntas ao processo, e a junção neste momento, prejudicar as garantias de defesa do arguido, e quanto à leitura das declarações da assistente, disse que não deteta na acusação publica, agressão temporalmente localizada no ano de 2013; havendo que distinguir entre contradições e questões de concretização ou pormenorização factual, não encontrando razão, do ponto de vista da contradição, que justificasse que se procedesse à leitura das declarações prestadas pela assistente em fase de inquérito.
XII - O art.316.° do C.P.P. conjugado com o art. 340.° CPP, dizem-nos que independentemente de alguém ter ou não indicado uma prova anteriormente à audiência de julgamento, se no decurso desta o Tribunal, oficiosamente ou a requerimento, considerar que uma prova antes não indicada é necessária para a descoberta da verdade e à boa decisão da causa, deve obrigatoriamente ordenar a sua produção.
XIII - Apesar da fase de julgamento em processo penal estar fundamentalmente vocacionada para a discussão de toda a prova já indicada no processo que será, consequentemente, aí reproduzida, vigora, ainda, nesta fase do processo, o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material (bem como o do inquisitório).
XIV - Tal significa, para além do mais, que o legislador processual penal teve a preocupação de fazer prevalecer o interesse da descoberta da verdade, o qual constitui um princípio nuclear e estruturante de todo o processo penal, sobre os formalismos inerentes ao momento da indicação e produção da prova.
XV - Não assiste, portanto, qualquer razão ao Tribunal a quo ao ter indeferido a junção das fotografias, e a leitura das declarações prestadas pela assistente, na fase de inquérito, perante autoridade judiciária, peticionada pelo Ministério Público, nos termos acima expostos, mesmo admitindo que o Ministério Público pudesse e devesse ter indicado a prova em apreço nos momentos sublinhados pelo julgador.
XVI - Isto porque, em primeiro lugar, é preciso ter em conta que, de acordo com a tese da acusação, entre Setembro de 2011 e Julho de 2017, o arguido desferiu socos na cara da ofendida, apertou-lhe o pescoço com as mãos e, quando ela caía ao chão, ele continuava a pontapeá-Ia no corpo todo, e portanto, as fotografias da agressão física ocorrida no dia 19-3-2013, e a leitura dessas declarações prestadas pela assistente em sede de inquérito na presenta da Digna Magistrada do Ministério Público, mostra-se indispensável à descoberta da verdade, pois comprovam uma dessas agressões físicas, ocorrida nesse período de tempo, e a violência da mesma.
XVII - Ainda para mais, quando o arguido nada contribuiu para o esclarecimento dos factos (já que se remeteu integralmente ao silêncio), e quando a prova requerida se mostrava suscetível de poder dilucidar dúvidas, ilustrando os factos que suportam a acusação, designadamente as agressões físicas a que a assistente esteve sujeita, e a violência das mesmas, em particular, aquela que lhe foi infligida no dia 19-3-2013.
XVIII - O julgador estava legalmente obrigado a admitir a produção desta prova, independentemente do Ministério Público dever ter ou não providenciado mais cedo pela sua junção aos autos, pelo que, não o tendo feito, violou os comandos legais previstos nos supra referidos artigos 340°, e 356°, n° 3, alíneas a) e b), do CPP.
XIX - Não colhe a argumentação expendida pelo Tribunal A Quo no sentido de que as fotografias em apreço, já podiam ter sido juntas ao processo, e a junção neste momento, prejudicar as garantias de defesa do arguido, porque na verdade, o que interessa, é o facto de serem indispensáveis para a descoberta da verdade material, com a agravante de que, como já se disse, o tribunal a quo, não explicou no despacho recorrido, que os documentos em causa, e a leitura das declarações da assistente, prestadas em inquérito, perante autoridade judiciária, não eram indispensáveis para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, e é disso que se trata.
XX - Não virá mal ao Mundo em que ao Tribunal escute e analise os meios de prova referidos. Podendo ter mais elementos decidirá com mais segurança.
XXI - É certo que o Ministério Público já poderia ter junto as fotografias, e indicado no texto da acusação a data desta agressão física (19-3-2013), de qualquer forma, em nome da descoberta da verdade material e da justiça do caso concreto, entende-se ser de dar lugar à produção das provas requeridas.
XXII - Tendo presente o contexto em que nos encontramos, resulta igualmente vincado no presente recurso, que o indeferimento, pelo Tribunal a Quo, relativo à prova por nós peticionada, e a sua confirmação com a prolação do segundo despacho ora sob discussão, gerou uma nulidade processual, nos termos do disposto no art. 120°, n° 1 e 2, alínea d), Código de Processo Penal, na medida em que constituiu efetivamente uma omissão de diligências probatórias reputadas como essenciais à descoberta da verdade.
XXIII - Temos, portanto, que, por errada interpretação, e face à posição confirmada com o segundo despacho recorrido, o Tribunal a Quo violou outrossim, para além das normas acima referidas, o disposto no art. 120°, nrs. 1 e 2, alínea d), do Código de Processo Penal.
XXIV - Desta feita, observamos ainda que, segundo dispõem os arts. 122°, nrs. 1 e 2, do Código de Processo Penal, as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar, sendo que a sua declaração determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição.
XXV - Em face da construção lógica que temos vindo a empreender, e ao abrigo deste dispositivo legal, alcança-se que todos os atos processuais subsequentes aos despachos ora recorridos se encontram também, para além dos próprios, feridos de nulidade, carecendo, por isso, da necessária correção e repetição.
XXVI - Deverá ser reconhecida e declarada nula a omissão de prova em questão, tal como o despacho que a gerou e aquele que não reparou a mencionada nulidade e, bem assim, todos os atos que se lhes seguiram, como será porventura o caso, da sentença que vier a ser proferida nos presentes autos, cuja nulidade ora se pretende ver igualmente declarada, procedendo-se, portanto, à anulação de todo o correspondente processado, nos termos do referido art. 122°, nrs. 1 e 2, do Código de Processo Penal.
XXVII – O tribunal a quo violou o disposto nos arts. 9°, n° 1, 323°, alíneas a), b) e c), 165°, n° 1, 340°, n° 1, 356°, n° 3, alíneas a) e b), 316°, e 120°, n° 1, n° 2, alínea d), in fine, e n° 3, alínea a), todos do Código de Processo Penal.

Nos termos vindos de expor, e nos mais de direito que, como sempre, mui doutamente suprirão, devem V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora julgar totalmente procedente o presente recurso e por consequência, deverão
declarar nula a decisão proferida nos autos e ordenar a produção e a análise da prova referida, em repetição de audiência, anulando-se todo o restante processado e decisão final, por se mostrar imprescindível à descoberta da verdade dos factos, com as necessárias consequências,
2° se assim não entenderem, devem revogar os despachos recorridos e substituí-los por uma decisão superior que, não só, ordene a junção aos autos das referidas fotografias, mas também, que permita a leitura das declarações prestadas pela assistente no inquérito, perante a Digna Magistrada do Ministério Público, a fim de se provar e concretizar a data dessa agressão física e, por conseguinte, ordene ainda, a oportuna prolação de nova sentença, onde os resultados probatórios de tais diligências sejam tidos em consideração, impondo-se assim a revogação da sentença proferida nos autos, o que, à cautela, desde já, também se requer.
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O arguido respondeu a este 2.º recurso interlocutório, concluindo da seguinte forma:
1- O recorrente não apresenta conclusões — reproduz na íntegra a motivação do recurso;
2-A falta de conclusões tem como consequência a rejeição do recurso.
3-Em conformidade com o disposto nos artigos 420º, n° 1, al. b) e c), por referência ao art.º 414º n.º 2 todos do Código de Processo Penal, deve ser rejeitado o recurso.
4-Se assim não se entender, o recurso terá apenas por objecto o primeiro despacho proferido, pois as conclusões são omissas quanto ao 2º despacho.
5-Ambos os despachos estão conforme a lei e não merecem censura.
6-Desde a alteração ao artigo 340º do C.P.P., através da Lei n.º 20/2013 de 21/02, as provas que podiam ter sido arroladas com a acusação, só devem ser admitidas posteriormente se forem indispensáveis à descoberta da verdade material e boa decisão da causa.
7-A factualidade que o Recorrente pretende provar com a junção das fotografias, não consta da acusação e nem teve relevância para a mesma. Se tivesse tido, teria sido detectada a omissão da junção atempadamente.
8-O despacho deve ser mantido porque não estão verificados os pressupostos para a junção em audiência de julgamento de provas que a assistente tem desde momento anterior ao inquérito e por não resultar das mesmas qualquer contributo para o apuramento da verdade e boa decisão da causa.
9-No que respeita ao 2º despacho não estamos perante qualquer nulidade.
10-Para a leitura das declarações da assistente perante a autoridade judiciária serem permitidas, teria que ser para avivar a sua memória ou por existem contradições face às declarações prestadas em julgamento, o que não se verificou.
11-Os doutos despachos postos em crise não violaram qualquer preceito legal.

Nestes termos e nos mais de Direito, por terem feito correcta interpretação e aplicação das normas legais, devem ser confirmados os doutos despachos recorridos e ser negado provimento ao recurso, assim e fazendo a costumada Justiça!
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Este 2.º recurso interlocutório foi admitido com efeito devolutivo e a subir nos próprios autos e com o que fosse interposto da decisão que pusesse termo à causa – com o que concordamos.
Nesta Relação, no parecer emitido pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, é o mesmo de opinião de que este 2.º recurso interlocutório deve ser julgado procedente.
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E a questão posta neste 2.º recurso interlocutório ao desembargo desta Relação é a de se foi correcta a decisão do tribunal "a quo" em, na fase de julgamento, ter recusado a junção aos autos, ao abrigo do art.º 340.°, n.º 1, de umas fotografias alegadamente referentes a uma agressão física à assistente ocorrida em 19-3-2013, bem como a leitura, ao abrigo do art.º 356.°, n.º 3 al.ª a) e b), das declarações prestadas pela assistente perante o M.º P.º e constantes de fls. 14 a 17, nas quais se refere a esta agressão física.
Uma vez que este assunto está interligado, como a seu tempo veremos, com a questão posta no recurso da sentença, trataremos dele em conjunto com o conhecimento desse recurso.
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Realizado o julgamento, foi o arguido absolvido quer da acusação, quer do pedido cível contra si formulado pela assistente (...).
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Inconformado com o assim decidido, o M.º P.º interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1 - De acordo com a tese da acusação, entre Setembro de 2011 e Julho de 2017, o arguido desferiu socos na cara da ofendida, apertou-lhe o pescoço com as mãos e, quando ela caía ao chão, ele continuava a pontapeá-la no corpo todo, e portanto, as fotografias da agressão física ocorrida no dia 19-3-2013, e a leitura das declarações prestadas pela assistente em sede de inquérito na presença da Digna Magistrada do Ministério Público, comprovam uma dessas agressões físicas, ocorrida nesse período de tempo, e a violência da mesma.

II — O Tribunal a quo devia ter dado como provados, também, os seguintes factos:
4 — No dia 19-3-2013, em hora não concretamente apurada da manhã, mas antes das 10h00, no interior do domicilio comum, sito na (…), o arguido queria manter relações sexuais com a assistente, mas esta dirigiu-lhe as seguintes palavras: "eu papel de puta não faço"
5- O arguido respondeu à arguida "estás com a cena cheia de andar a fornicar com os teus amigos" e, quando a arguida se levantou da cama, para se ir arranjar, para ir trabalhar, o arguido levantou-se também da cama, foi atrás da assistente e, de forma inopinada, desferiu vários pontapés (pelo menos dois pontapés), e murros com o punho de uma das mãos fechado (pelo menos dois muros), que atingiram os dois olhos da cara da assistente, que ficaram negros.
6 - A assistente não recebeu assistência médica, mas sofreu dores e hematomas, nas zonas do corpo atingidas, e, para disfarçar os olhos negros, no seu local de trabalho, usou bastante maquilhagem na cara, em particular nos olhos.
7 — Em data não concretamente apurada, do mês de Julho ou Agosto de 2017, o arguido telefonou para a assistente e dirigiu-lhe as seguintes palavras "minha puta, estás-me outra vez a foder a vida."
8 - Como consequência direta e necessária dessa agressão, (...) sofreu dores e hematomas no rosto, pescoço e braços, sentiu-se humilhada, nervosa, e viveu em constante sobressalto, com medo de que o arguido ofendesse a sua honra, integridade física ou atentasse contra a sua vida, o que perturbou o seu bem - estar físico e psíquico.
9 - O arguido atuou da forma descrita com a intenção de humilhar, causar medo e inquietar a ofendida, de modo a subjugá-la à sua vontade, bem sabendo que o fazia na casa de ambos e que isso afetava a saúde e o bem-estar da assistente, o que quis e conseguiu.
10 - O arguido agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
III - As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida: 1° as fotografias da agressão física ocorrida no dia 19-3-2013,
o auto de declarações da assistente perante a Digna Magistrada do Ministério Público (Refa CITIUS 87026445), nas quais ficou a constar o seguinte parágrafo:
"A ofendida requereu ainda a junção aos autos das fotos que tirou numa das vezes que foi agredida, em 19-03-2013, tendo para o efeito sido transferidas para o e­mail da signatária e depois impressas e juntas aos autos."
As declarações prestadas pela assistente na audiência de julgamento de 29-06-2020 (Ata Refa CITIUS 90549409), que ficaram gravadas entre as 14h25m25s e as 14h56m55s, das quais se transcrevem as seguintes passagens:
(do Minuto 08:10 ao minuto 12:49)
"Sim, também agredia fisicamente, dava-me murros na cara, aliás a cara foi sempre o ponto fulcral para ele ...os olhos, pescoço, eu tinha depois de disfarçar para ir trabalhar, com muita base ...apertava-me o pescoço provavelmente para eu não respirar e depois dava-me socos na cara ... caí algumas vezes e ele dava-me pontapés ...nunca fui ao médico, houve uma vez que tirei fotografias, não sei porquê Dra....porque eu tirei muitas vezes, todas as vezes que ele me batia e eu fazia aquilo porque eu achava que era uma injustiça muito grande derivado à minha idade e não havia razão para aquilo, mas sempre apaguei, naquele dia foi muito grave mesmo, e fiquei com as fotografias .... Eu o dia não posso precisar mas foi mais ou menos no ano 2013 Dra.... eu naquele dia fiquei bastante marcada e pensei, é desta vez que eu vou ao Hospital e vou denunciá-lo ... mas recuei, porque, tenho uma loja, é um meio muito pequeno e tinha vergonha, até vergonha de mim mesmo, de deixar, de permitir que ele me fizesse aquilo, portanto nunca fiz, e também porque, de facto, ainda gostava dele, há sempre aquela esperança que .... O que é hoje amanhã já não vai acontecer mais e nunca o fiz, provavelmente devia tê-lo feito, mas nunca fiz ..nesse dia foi logo de manhã, porque eu tive que me maquilhar bastante para ir trabalhar e pronto ...é assim, como ele ia muita vez para a mãe, e quando vinha, a única coisa que ele queria, pronto era fornicar comigo, até que uma vez eu lhe disse que eu papel de puta não fazia ... e portanto, ele nessa noite ou de manhã, eu penso que tenha sido por isso, porque ele disse que eu estava com a cona cheia de andar a fornicar com os meus amigos ... isto foi pela manhã ... ele começou – me a bater ... eu levantei-me da cama ele veio atrás de mim e começou-me a dar pontapés e murros na cara .... Foi nesse dia .... Para mim foi o mais grave porque fiquei deveras muito marcada, tanto a nível físico como psicológico .... Apanhou-me mais nos dois olhos ...aliás as fotografias assim o mostram ...." (do minuto 15:03 ao minuto 15:26)
"tirei fotografias antes de estar maquilhada e tirei depois de maquilhada..." (do minuto 17:47 ao minuto 18:20)
"ele ligou-me a dizer "minha puta estás-me outra vez a foder a vida" ... isso foi depois de nós já estarmos divorciados, terá sido, sei que foi, ou Julho ou Agosto do ano de 2018 Dra. ... 18 não, 2017, no mesmo ano que nos divorciámos".
(do minuto 18:40 ao minuto 19:10)
"punha muita base .... É claro que quem estivesse a olhar fixamente para mim notava ali qualquer coisa ....mas eu às vezes ....as pessoas mais ...que já tenho mais confiança ou mesmo as amigas ... caía, porque, pronto, inventava assim uma estória, não é? ... as minhas amigas repararam..."
As declarações prestadas pela testemunha (…), na audiência de julgamento de 07-09-2020 (Ata Refa CITIUS 90855255), que ficaram gravadas entre as 14h30m29s e as 14h51m29s, das quais se transcrevem as seguintes passagens:
(do minuto 05:00 ao minuto 06:20)
"A (…) apresentava marcas, vi marcas, que no início ela dizia que caía, vi marcas no rosto ...nos olhos ...no pescoço também, cheguei a ver, só que ela punha maquilhagem ...na altura em que eu ia à loja .... Ela dizia que caía, uma vez também partiu um pé, também tinha o pé partido e ela disse que caiu da escada ... eu achava estranho mas também nunca questionei, ela desabafava comigo e eu respondia ....mais tarde é que ela depois começou a desabafar comigo, a dizer que sofria de agressões da parte do Senhor Varela ... e chorava e desabafava e por último ela até já estava com receio de ir para casa quando saía da loja, com medo que acontecesse alguma coisa, eu ainda lhe cheguei a sugerir se quisesse ir para minha casa enquanto não tivesse as coisas resolvidas, ela não aceitou, não quis sair de casa"
(do minuto 06:52 ao minuto 07:07)
"Só via as marcas na cara .... Mais num olho, uma vez ela tinha o olho muito negro mesmo ...ela punha muita maquilhagem e agente também nunca ...ultimamente é que ela começou a desabafar essas coisas comigo ..."
As declarações prestadas pela testemunha (…), na audiência de julgamento de 07-09-2020 (Ata Refa CITIUS 90855255), que ficaram gravadas entre as 14h52m15s e as 15h03m03s, das quais se transcrevem as seguintes passagens:
(do minuto 03:09 ao minuto 03:52)
"Ela a conversar comigo, ela dantes nunca se tinha aberto comigo mas ultimamente começou-se a abrir, mostrou fotografias ...da cara dela agredida ...ela tinha um olho bastante negro e .... Que eu fiquei bastante surpreendida porque nunca tinha visto nada daquilo ...era na cara sim ..."
(do minuto 05:07 ao minuto 05:58)
"Ela disfarçava e dizia que lhe apetecia estar um bocadinho mais maquilhada, ela nessa altura nunca, a mim pelo menos nunca contou ...ela maquilhava-se mais nesta parte dos olhos, na cara, punha mais base, era um bocadinho evidente ...ela dizia sempre que não .... depois pelas fotografias viemos a constatar que era isso sim
IV - O tribunal a quo violou o disposto nos artigos 127°, e 358°, ambos do C.P.P. e violou o artigo 152°, do Código Penal.
V – Deve a sentença recorrida ser revogada, e substituída por outra, que dê como provados tais factos, e que condene o arguido como autor material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, n°s 1, alínea a), n° 2, alínea a) e n° 4, do Código Penal.
VI - Nos termos do n° 5, do art° 412°, do CPP, o Ministério Público mantém interesse nos recursos interpostos:
- no dia 25-2-2020 Refa CITIUS 4964536, e
- no dia 10-07-2020 Refa CITIUS 5192691.

Nos termos vindos de expor, e nos mais de direito que, como sempre, mui doutamente suprirão, devem V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora julgar totalmente procedente o presente recurso e por consequência, deverão revogar a sentença recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que que dê como provados tais factos, e que condene o arguido como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, n°s 1, alínea a), n° 2, alínea a) e n° 4, do Código Penal.
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O arguido recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:
1-As conclusões apresentadas pelo Recorrente correspondem a uma fiel reprodução da motivação.
2-É entendimento da jurisprudência que, quando tal se verifica, as conclusões são consideradas não escritas.
3-Na motivação, o Recorrente não indica as normas jurídicas que foram, no seu entendimento, violadas.
4-Assim, não pode fazê-lo nas conclusões pois, estas, são um sumário da motivação.
5-O ponto IV das conclusões deve ser considerado como não escrito.
6- O recurso deve ser, assim, rejeitado por falta de conclusões ou, caso assim não se entenda, por falta de indicação das normas violadas na motivação e, consequentemente, nas conclusões.
7-Caso se decida pela manutenção da admissão do recurso, sempre terá que ser julgada a sua improcedência, por falta de fundamentação de facto e de Direito.
8-Não resulta da prova produzida, nem em inquérito, nem em julgamento, matéria que leve a que sejam considerados os 7 factos que o Recorrente alega que deveriam ser dado como provados.
9-A factualidade que o Recorrente quer ver provada não consta da douta acusação.
10-É a acusação que define o objecto do processo.
11-Do libelo acusatório resulta imprecisão na indicação de factos concretos e o circunstancialismo de modo, tempo e espaço em que os mesmos teriam ocorrido.
12-No crime de violência doméstica, a reiteração e a intensidade da actuação do arguido, são elementos fulcrais que levam ao preenchimento do tipo legal de crime.
13-Fazer uma acusação vaga e genérica, em que o arguido não sabe o que alegadamente fez, quando e como, é subverter os princípios basilares do processo penal.
14-Para o arguido conseguir exercer a sua defesa, têm que estar concretizados os factos que lhe são imputados, o espaço, modo e tempo em que ocorreram, de acordo com o princípio do processo justo e equitativo.
15- In casu, a imprecisão da acusação foi admitida pelo Recorrente que, procurou em audiência de julgamento, colmatar as deficiências do inquérito, conforme resulta do áudio 20200907143028_3602649_3995004, mn. 18:55: «Sr.a Procuradora: Isto está tudo muito vago (...) por isso eu estou a tentar concretizar» Mn.21:00
16-Assim, bem andou o Tribunal «A Quo» quando decidiu que se deparou com uma «dificuldade intransponível» que foi a ausência de concretização dos factos e das circunstâncias de tempo, modo e lugar imputados ao arguido.
17-0 Recorrente entende que a factualidade que quer ver provada resulta de fotografias e dos depoimentos das testemunhas (…), bem como das declarações da assistente, o que não se verifica.
18-As fotografias não se encontram juntas aos autos e, ainda que estivessem, não resulta dali qualquer agressão perpetuada pelo arguido.
19-A assistente tem um discurso incongruente e vago.
20-As testemunhas contradizem-se entre si e com o declarado pela assistente.
21-A reapreciação do julgamento com vista à modificação da matéria de facto não é livre, tem limites, como seja o facto de ter que resultar da prova produzida, necessariamente, uma decisão diversa.
22-Ora, da prova produzida não resulta em momento algum a factualidade que o Recorrente quer ver provada.
23-A assistente, confrontada com o facto de ter apresentado queixa mais de um ano após a separação de facto do arguido, não soube explicar o motivo pela demora na apresentação de queixa, o que não é compaginável com a gravidade dos factos que imputa ao arguido.
24-Já o mesmo, nega a prática dos factos e entende que a participação criminal efectuada pela assistente decorre de uma retaliação, por ter ele próprio apresentado uma participação criminal anterior, contra aquela. Áudio 20200907153007_3602649_399500400,mn.00:50 «Este processo aparece (...) porque eu fiz uma queixa e esta queixa só aparece após a minha queixa».
25-Após insistência, a assistente refere que foi o medo que a impediu de apresentar queixa anteriormente. Porém, quer da descrição que faz dos diálogos que tinha com o arguido, eivados de expressões provocatórias, quer do depoimento da testemunha (…), áudio 20200907115215_3602649_3995004,Mn.06:33 «Eu acho que não. Nunca achei que ela tivesse medo», resulta com base na experiência comum, que a assistente não tinha medo do arguido.
26-0 Recorrente fundamenta o sua motivação no artigo 4102 n.2 1 e n.22 alíneas a) e b) do Código de Processo Penal porém, não se verificam os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
27-A verificação da existência dos vícios constantes no artigo 4109 do Código de Processo Penal tem que resulta do texto decisor, porquanto são defeitos estruturais da decisão.
28-Da douta sentença não decorre, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a verificação desses vícios.
29-Já no que concerne à reapreciação do julgamento com vista à modificação da matéria de facto, tal só pode ocorrer se se verificar da prova produzida, inequivocamente, que a decisão teria que ser diversa.
30-Da prova produzida, dos elementos indicados pelo Recorrente, isso não se verifica.
31-Não resulta que tenham sido praticadas agressões nos termos descritos nos pontos 1 e 2 que o Recorrente quer ver provados.
32-Ninguém referiu que a assistente sentiu dores, nem a própria.
33-Assim como ninguém mencionou que a assistente se sentiu nervosa, com medo e inquieta. Resulta inclusive do depoimento da testemunha (…) que propôs à assistente que fosse viver temporariamente para sua casa e ela não quis. A testemunha (…), referiu que a assistente nunca teve medo do arguido.
34-Ambas as testemunhas se declararam amigas de longa data da assistente e, ainda assim, a mesma nunca lhes confiou as alegadas agressões de que era vítima, nem as mesmas se aperceberam de um quadro de violência doméstica no seio do então casal.
35-Acresce que da experiência comum resulta que, a terem ocorrido as agressões como descritas pela assistente, as mesmas implicariam necessariamente assistência médica e medicamentosa e deixariam marcas impossíveis de disfarçar com maquilhagem.
36-Face ao exposto, da prova produzida não resulta factualidade que permita considerar provados os factos indicados pelo Recorrente no seu recurso.
37-A douta sentença posta em crise não violou nem fez interpretação errónea de qualquer dispositivo legal.
38-Deve ser mantida na íntegra a douta sentença
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Nesta Relação, no parecer emitido pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, é o mesmo de opinião de que este recurso deve ser julgado procedente.
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II
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
1. O arguido e a ofendida/assistente contraíram casamento em 17 de novembro de 2000 e divorciaram-se em 02 de julho de 2008.
2. Em finais de 2009, voltaram a viver juntos, e casaram, novamente, em 2 de junho de 2010.
3. Durante o segundo casamento, o casal morou na (…), vindo a divorciar-se novamente a 03 de maio de 2017, mas continuaram a habi­tar nessa mesma casa até julho de 2017.
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-- Factos não provados:
1. Em data não determinada, após a morte do pai do arguido, ocorrida em 01.09.2011, e após a sua reforma laboral, o arguido tornou-se mais possessivo e ciumento para com a assistente, o que motivava muitas discussões.
2. Em data não determinada, entre Setembro de 2011 e Julho de 2017, por várias vezes, quando a ofendida se preparava para sair de casa e ir trabalhar, o arguido dizia-lhe: "Puta, estás-te a empiriquitar para ires para a loja para foderes com os gajos".
3. No mesmo período temporal, por várias vezes e em datas não determinadas, quando se apercebia que a ofendida falava com algum homem pelo telefone, mesmo por moti­vos profissionais, o arguido dizia-lhe: "Andas a foder com ele, não é!?!".
4. No mesmo período temporal, por várias vezes, em datas não concretamente determinadas, quando a ofendida se dirigia a (…) para visitar a sua filha ou os seus ami­gos, o arguido dizia-lhe "A tua filha é igual a ti", "Vão as duas foder com os gajos", "Ainda bem que vais foder com os gajos, porque assim deixas-me livre".
5. Durante o mesmo período temporal, em datas não determinadas, o arguido também disse várias vezes à ofendida: "A tua filha tem um filho e não sabe quem é o pai", mesmo sabendo que isso não correspondia à verdade, ao que a ofendida ripostava "A tua filha é que teve de fazer um teste de ADN para saber quem era o pai do filho mais velho dela", e daí ele dizia-lhe "A tua filha é que é uma grande vaca e tu és igual a ela", ao que ela respondia "Se sou uma vaca porque é que estás comigo?".
6. Na sequência de várias das aludidas trocas de palavras, o arguido desferiu socos na cara da ofendida, apertou-lhe o pescoço com as mãos e, quando ela caía ao chão, ele continuava a pontapeá-la no corpo todo.
7. A data altura, durante o referido período temporal, o arguido começou a ficar tem­poradas na companhia da sua mãe, em (…), regressando esporadicamente à resi­dência onde o casal morava.
8. Desagrada com essa situação e convencida de que o arguido apenas regressava ao lar com o intuito de manter relações sexuais com ela, por várias vezes, a ofendida disse ao arguido:'"Não sirvo só para despejares os tomates" e perante esta resposta o arguido desferia-lhe socos na face e pontapés em todo o corpo, bem como lhe dizia: "Tu vais ficar com a cara desfeita, nunca mais ninguém vai olhar para ti" e "Vieste de Cascais, vens com a cona cheia!".
9. Mesmo depois do divórcio, no início do mês de Outubro de 2018, o arguido telefonou para a ofendida e disse-lhe "Oh! Puta do caralho, estás me outra vez a foder a vida!".
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Fundamentação da decisão de facto:
A prova é apreciada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, de acordo o princípio da "livre apreciação da prova" (artigo 127.0 do Código de Processo Penal), princípio que é "direito constitucional concretizado", que há-de traduzir-se numa valoração "racio­nal", "crítica", "lógica", cf., Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Ed., UCE, pág. 329.
Dir-se-á que a prova, no mais essencial tem como finalidade produzir uma convicção no julgador, não de certeza absoluta, mas, pelo menos, de probabilidade forte, quanto à verificação ou ocorrência do fato afirmado, "deve entender-se que se encontra de­monstrada a realidade do facto desde que se atinja aquele grau de certeza que as pes­soas mais exigentes da vida reclamam para dar como exato um determinado facto", cf., Artur Anselmo de Castro, in Lições de Processo Civil, 40 Volume, Atlântida - Coimbra, 1968, pág. 106.
A decisão da matéria de facto reverte ao julgamento de factos, é efetivamente rele­vante sublinhar que nos movemos no domínio dos factos e não dos juízos de valor, das opiniões, dos estados de consciência, por natureza insondáveis, em suma, de tudo aquilo que não é suscetível de prova ou demostração inequívoca, para além da dúvida razoável.
Facto é, por inerência, um acontecimento do mundo externo, não apenas na aceção comum do termo facto, mas inclusivamente sob o ponto de vista da sua relevância ju­rídica, "Tanto os actos interiores como os exteriores são actos morais ou imorais, mas só os actos exteriores, ou acções, ou factos, são, do ponto de vista jurídico, lícitos ou ilícitos", cf., Manuel Cavaleiro de Ferreira, in Lições de Direito Penal, Parte Geral 1-- II, Almedina, 2010, pág. 16.
Os factos constituem os dados objetivos do problema, como já tivemos a ocasião de assinalar nos aspetos gerais da fundamentação, e esta objetividade reflete-se no facto, ou seja, no que o facto é e no que ele em si mesmo representa, e, simultaneamente, no que representa a fundamentação da decisão da matéria de facto, "recondutível a crité­rios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e de controlo", cf., Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora, 1974, pág. 203.
A convicção do tribunal e as razões que, em concreto, determinaram a decisão da ma­téria de facto:
Iniciamos a análise da presente decisão de facto com uma dificuldade intransponível que é a da ausência, na acusação pública, da concretização dos factos, da descrição das circunstâncias de tempo, modo e lugar, quanto aos episódios que consubstanciam a violência doméstica – no fundo a acusação pública apenas no descreve a agressão ou a ofensa propriamente dita.
É absolutamente inadmissível omitir esse circunstancialismo, que nos revela, no fundo, a realidade, o evento histórico, porque essa factualidade podia, perfeitamente, ter sido reunida ou apurada na fase de inquérito, não se trata, propriamente, de matéria inova­dora que apenas no julgamento se descubra ou possa ser descoberta; a acusação, no seu conjunto, é de um teor vago, genérico, em que se assinalam as ofensas, as agres­sões, mas não os concretos dias em que ocorreram, as suas circunstancias envolventes, portanto não descreve, suficientemente, a realidade – é, com efeito, uma imputação genérica do crime de violência doméstica.
O crime de violência doméstica é um crime que se concretiza tanto com um ato isolado, como com um conjunto de atos, ou reiteradamente; mas daqui não resulta que o acusador esteja dispensado de alegar, de demostrar, cada um desses episódios que levam à reiteração.
Portanto, e em bom rigor, se formos, com efeito, rigorosos nesta análise, a acusação pública, na sua quase totalidade, é de teor conclusivo; as conclusões não devem ser le­vadas ao que se declara provado e não provado, porque uma conclusão não é suscetível de uma tal resposta, mas se o tribunal procedesse com esse absoluto rigor nesta situa­ção, muito pouca seria a matéria sobre a qual se poderia pronunciar, retirando aquilo que é fundamentalmente objetivo ou que decorre da prova documental – os casamen­tos celebrados entre o arguido e a assistente.
E assim o tribunal vai, de certo modo, ignorar esta questão e assumir que a descrição genérica da acusação pública (sendo a acusação da assistente de adesão à acusação pública) é suscetível de uma resposta de provado ou não provado.
Avançando nestes termos para a exposição da convicção do tribunal, que não pode ser uma convicção de índole subjetiva, particular ou arbitrária, que tem que se explicar, por razões, razões que possam ser compreendidas pelos destinatários da decisão, é abso­lutamente impossível firmar uma convicção de relevo quanto a um conjunto de eventos – alguns de gravidade muito assinalável, note-se – difusos ou espalhados pelo tempo em que verdadeiramente só nos é dada a conhecer a agressão física ou verbal e nada ou quase nada da realidade ou do contexto em que decorreu a agressão.
A prova oral produzida em julgamento — todas as declarações/depoimentos se encon­tramexarados no suporte áudio das atas de julgamento referência eletrónica 90549409 e 90855255, que aqui nos abstemos de reproduzir, no todo em parte ou por súmula, pois que podem, na sua integralidade, ser escutados -, é inquinada ou afetada pela vagui­dade da acusação pública, pela vaguidade do objeto, daquilo que se pretende compro­var, e disso é cabal exemplo, desde logo, a prova por declarações da assistente.
As declarações da assistente como a remanescente prova oral/testemunhal, partindo de um objeto que é vago, também em si mesma se apresente vaga e indeterminada, e, no geral, é pouco esclarecedora, a menos que nos contentemos com uma discussão su­perficial, pela rama, dos eventos.
A impressão geral que nos produz a prova oral da acusação pública, as declarações da assistente, os depoimentos das testemunhas (…), pois que esta avaliação é transversal à prova oral produzida em julgamento, é a de que algo aconteceu, mas não conseguimos entrar no detalhe de cada um desses acontecimentos, desde logo porque não sabemos, em face da acusação pública quais foram, em concreto, esses eventos, não conseguimos, em suma, entrar no detalhe dessas experiências de vida.
Para que fique absolutamente claro, o libelo acusatório é vago, e prova oral da acusação pública padece da mesma vaguidade e indeterminação, que é provocada, evidentemente, por aquela primeira vaguidade, sendo inviável formar convicção de relevo nes­tes termos. Seria como dar a resposta sem saber qual é a questão, o que não pode ser.
Diga-se de passagem que este caso bem nos revela a importância da forma no processo, a importância do cumprimento do ónus de alegação, como meio direto, imediato, ine­quívoco, de chegar à substância, sob pena de conversão do julgamento numa discussão vaga, infrutífera, dos eventos.
Da prova documental da acusação pública – certidão de fls. 2 e ss; - certidões de fls. 18 e 88; - CRC" –também não decorre contrito ou esclarecimento que imponha ao tribunal convicção ou decisão diversa da já exposta.
O depoimento da testemunha arrolada pelo arguido, (…), é um depoimento de teor fundamentalmente abonatório, sendo que no prisma da acu­sação pública é desde logo em face do teor da acusação pública e da sua prova que a mesma não se mostra solidamente fundamentada.
Em suma, o tribunal a considerar o descrito na acusação pública quanto à alegada vio­lência, com muitas reservas como inicialmente notado, como fatual, somente lhe pode dar a solução de não provado.
A fundamentação acima é extensível ao pedido de indemnização civil deduzido pela assistente, que contém a mesma matéria, ou seja, que se baseia na acusação pública sendo que o descrito nos pontos 14.-SS é conclusivo e/ou de direito (a retirar ou não da demais matéria, mas em sede de julgamento de direito e não propriamente de facto).
Também os dados de índole subjetivo ou referentes ao foro interno — o que o agente pensava ou julgava que fazia — constitui matéria conclusiva ou mais propriamente de direito — ou seja tal matéria deve ser aquilatada no julgamento de direito e também não no julgamento de facto.
Ademais nesses pontos finais da acusação pública atesta-se, por outras palavras, que o arguido praticou um crime, e, por isso, parece-nos incorreto declarar provada ou não provada matéria dessa natura, que o arguido humilhava a vítima ou que a sua conduta é proibida por lei, ou outras expressões do género, conclusões a extrair ou não no julgamento de direito.
Revela-se desnecessário levar em consideração ao acervo de factos provados/não pro­vado matéria para efeitos de determinação da sanção.
III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que a questão posta ao desembargo desta Relação é a seguinte:
Que foi por ter avaliado mal a prova produzida em julgamento que o tribunal "a quo" não deu como provada uma agressão ao murro e ao pontapé do arguido à assistente ocorrida em 19-3-2013, bem como o teor do ponto 11 da acusação – e, em consequência, não condenou o arguido pelo crime de violência doméstica pelo qual o mesmo vinha acusado.
Vejamos:
A acusação, deduzida pelo M.º P.º, tem o seguinte teor:
0 arguido e a ofendida (...) contraíram casamento em 17.11.2000 e divorciaram-se em 02.07.2008. Contudo, em finais de 2009, voltaram a viver juntos como se de marido e mulher se tratassem e casaram em 2-07-2010.
Durante o segundo casamento, o casal morou na (…), vindo a divorciar-se novamente a 03.05.2017, mas continuaram a habitar nessa mesma casa até Julho de 2017.
Em data não determinada, após a morte do pai do arguido, ocorrida em 1-09-2011, e após a sua reforma laborai, o arguido tornou-se mais possessivo e ciumento para com a ofendida, o que motivava muitas discussões.
Em data não determinada, entre Setembro de 2011 e Julho de 2017, por várias vezes, quando a ofendida se preparava para sair de casa e ir trabalhar, o arguido dizia-lhe: "Puta, estás-te a empiriquitar para ires para a loja para foderes com os gajos";
No mesmo período temporal, por várias vezes e em datas não determinadas, quando se apercebia que a ofendida falava com algum homem pelo telefone, mesmo por motivos profissionais, o arguido dizia-lhe: "Andas a foder com ele, não é!?!".
No mesmo período temporal, por várias vezes, em datas não concretamente determinadas, quando a ofendida se dirigia a (…) para visitar a sua filha ou os seus amigos, o arguido dizia-lhe "A tua filha é igual a ti", "Vão as duas foder com os gajos", "Ainda bem que vais foder com os gajos, porque assim deixas-me livre".,
Durante o mesmo período temporal, em datas não determinadas, o arguido também disse várias vezes à ofendida: "A tua filha tem um filho e não sabe quem é o pai", mesmo sabendo que isso não correspondia à verdade, ao que a ofendida ripostava "A tua filha é que teve de fazer um teste de ADN para saber quem era o pai do filho mais velho dela", e daí ele dizia-lhe "A tua filha é que é uma grande vaca e tu és igual a ela", ao que ela respondia "Se sou urna vaca porque é que estás comigo?".
Na sequência de várias das aludidas trocas de palavras, o arguido desferiu socos na cara da ofendida, apertou-lhe o pescoço com as mãos e, quando ela caía ao chão, ele continuava a pontapeá-la no corpo todo.
A data altura, durante o referido período temporal, o arguido começou a ficar temporadas na companhia da sua mãe, em (…), regressando esporadicamente à residência onde o casal morava.
10°
Desagrada com essa situação e convencida de que o arguido apenas regressava ao lar com o intuito de manter relações sexuais com ela, por várias vezes, a ofendida disse ao arguido: "Não sirvo só para despejares os tomates" e perante esta resposta o arguido desferia-lhe socos na face e pontapés em todo o corpo, bem como lhe dizia: "Tu vais ficar com a cara desfeita, nunca mais ninguém vai olhar para ti" e "Vieste de (…), vens com a cona cheia!"
11°
Mesmo depois do divórcio, no início do mês de Outubro de 2018, o arguido telefonou para a ofendida e disse-lhe "Oh! Puta do caralho, estás me outra vez a foder a vida!".
12°
Como consequência directa e necessária dessas agressões, (...) sofreu dores e hematomas no rosto, pescoço e braços, sentiu-se humilhada, nervosa e viveu em constante sobressalto, com medo de que o arguido ofendesse a sua honra, integridade física ou atentasse contra a sua vida, o que perturbou o seu bem estar físico e psíquico.
13°
O arguido actuou da forma descrita com a intenção de humilhar, causar medo e inquietar a ofendida, de modo a subjugá-la à sua vontade, bem sabendo que o fazia na casa de ambos e que isso afectava a sua saúde e bem-estar, o que quis e conseguiu.
14°
O arguido agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Constituiu-se, assim, o arguido como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, n°s 1, a), 2 e 4, do Código Penal.

Desta acusação, o tribunal "a quo" deu como provado:
1. O arguido e a ofendida/assistente contraíram casamento em 17 de novembro de 2000 e divorciaram-se em 02 de julho de 2008.
2. Em finais de 2009, voltaram a viver juntos, e casaram, novamente, em 2 de junho de 2010.
3. Durante o segundo casamento, o casal morou na (…), vindo a divorciar-se novamente a 03 de maio de 2017, mas continuaram a habi­tar nessa mesma casa até julho de 2017.
E como não provado todo o demais teor da acusação.
Agora e através da impugnação da matéria de facto que o M.º P.º recorrente faz ao abrigo do art.º 412.º, n.º 3 e 4, pretende o mesmo que o tribunal "a quo" devia ter dado como provado ainda mais o seguinte, em resultado da prova produzida em julgamento:
4 – No dia 19-3-2013, em hora não concretamente apurada da manhã, mas antes das 10h00, no interior do domicilio comum, sito na (…), o arguido queria manter relações sexuais com a assistente, mas esta dirigiu-lhe as seguintes palavras: "eu papel de puta não faço"
5- O arguido respondeu à arguida "estás com a cona cheia de andar a fornicar com os teus amigos" e, quando a arguida se levantou da cama, para se ir arranjar, para ir trabalhar, o arguido levantou-se também da cama, foi atrás da assistente e, de forma inopinada, desferiu vários pontapés (pelo menos dois pontapés), e murros com o punho de uma das mãos fechado (pelo menos dois muros), que atingiram os dois olhos da cara da assistente, que ficaram negros.
6 - A assistente não recebeu assistência médica, mas sofreu dores e hematomas, nas zonas do corpo atingidas, e, para disfarçar os olhos negros, no seu local de trabalho, usou bastante maquilhagem na cara, em particular nos olhos.
7 – Em data não concretamente apurada, do mês de Julho ou Agosto de 2017, o arguido telefonou para a assistente e dirigiu-lhe as seguintes palavras "minha puta, estás-me outra vez a foder a vida."
8 - Como consequência direta e necessária dessa agressão, (...) sofreu dores e hematomas no rosto, pescoço e braços, sentiu-se humilhada, nervosa, e viveu em constante sobressalto, com medo de que o arguido ofendesse a sua honra, integridade física ou atentasse contra a sua vida, o que perturbou o seu bem - estar físico e psíquico.
9 - O arguido atuou da forma descrita com a intenção de humilhar, causar medo e inquietar a ofendida, de modo a subjugá-la à sua vontade, bem sabendo que o fazia na casa de ambos e que isso afetava a saúde e o bem-estar da assistente, o que quis e conseguiu.
10 - O arguido agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Ora desde já se diga que a pretensão de que tais factos sejam dados como provados subverte, em absoluto, a estrutura acusatória do processo penal, além de configurar uma claríssima violação das garantias de defesa do arguido e, como tal, é inconstitucional, nos termos do art.º 32.º, n.º 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos:
A questão posta pelo Digno recorrente não se cinge apenas a uma mera alteração da matéria de facto resultante de uma impugnação da mesma, efectuada ao abrigo do art.º 412.º, n.º 3 e 4, mas também e sobretudo, a uma alteração dos factos descritos na acusação, a enquadrar ou no art.º 358.º ou no 359.º – e isto porque o mencionado acervo de factos manifestamente que não constam da acusação.
Ora uma impugnação da matéria de facto quer ao abrigo do art.º 412.º, n.º 3 e 4, quer ao abrigo do art.º 410.º, n.º 2, é-o da matéria de facto que consta da acusação ou da pronúncia, não da matéria de facto que já devia lá obrigatoriamente constar mas não consta. Ou seja, a impugnação da matéria de facto não serve para colmatar omissões de matéria de facto que devesse constar da acusação ou da pronúncia.
Por outro lado, enquanto o art.º 358.º rege para a alteração não substancial ou simples ou para os casos de simples alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, o art.º 359.º rege para a alteração substancial.
Esta é definida no art.º 1.º, n.º 1 al.ª f), nos seguintes termos: (…) considera-se alteração substancial dos factos: aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
O citado art.º 359.º determina que a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal, para efeito de condenação no processo em curso (n.º 1), salvo se, havendo acordo entre o M.º P.º, arguido e o assistente na continuação do julgamento, o conhecimento dos factos novos não acarretar a incompetência do tribunal (n.º 2), concedendo-se então ao arguido, sob requerimento, um prazo para a preparação da defesa (n.º 3).
Por seu lado, de harmonia com o art.º 358.º, se a alteração dos factos for simples ou não substancial, isto é, que não determine uma alteração do objecto do processo, o tribunal pode investigar e integrar no processo factos que não constem da acusação ou da pronúncia e que tenham relevo para a decisão da causa, desde que ao arguido seja comunicada, oficiosamente ou a requerimento, a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
Acontece que em ambos os casos tem de tratar-se de factos novos, quer em sentido objectivo, quer em sentido subjectivo.
Estamos perante factos novos em sentido objectivo, quando ocorreram já depois da acusação ou da pronúncia, sendo factos novos em sentido subjectivo aqueles que vem ao conhecimento do processo depois daquelas fases.
Por outro lado, deve entender-se por factos relevantes os essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, ou que influenciem na determinação da medida da pena, que constituem o objecto da prova, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido.
Como é sabido, sob pena de nulidade da sentença, cominada no art.º 379.º, n.º 1 al.ª b), o julgador apenas tem o dever de accionar o mecanismo resultante daqueles preceitos, por iniciativa própria ou a requerimento dos sujeitos processuais, se durante a discussão da causa tiver surgido factos novos, quer em sentido objectivo, quer em sentido subjectivo, que impliquem uma alteração substancial ou não substancial dos factos descritos na acusação ou pronúncia.
Ressalva-se, na situação de alteração não substancial, o caso da alteração ter derivado de factos alegados pela defesa (art.º 358.º, n.º 2) e na situação de alteração substancial, os casos em que o M.º P.º, arguido e assistente, estejam de acordo com a continuação do julgamento pelo novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal (art.º 359.º, n.º 3).
No caso vertente, estaríamos perante uma alteração não substancial. Não obstante, o que se segue é que o rol de factos que agora o M.º P.º pretende ver aditado como matéria de facto assente como provada, não são factos novos em qualquer dos dois referidos sentidos, não ocorreram já depois da acusação ter sido proferida ou cujo conhecimento fosse levado ao processo já depois disso. Resultam, desde logo, do auto de declarações tomadas à ofendida pelo M.º P.º em fase de inquérito e constantes de fls. 14 a 17 (ref. Citius 87026445), aliás mencionadas pelo Digno recorrente como sendo uma das concretas provas que impõem decisão de facto diversa da recorrida.
Daí que o aditamento daqueles factos à matéria de facto assente como provada não seja permitida nem em resultado da impugnação da matéria de facto, nem pelo recurso à alteração dos factos constantes da acusação ou da pronúncia quer pelo art.º 358.º, quer pelo 359.º, constituindo apenas um subterfúgio – sem sustentação legal – para tentar colmatar com o decurso do julgamento ostensivas deficiências da acusação em concretizar as imputações genéricas que aí são feitas ao arguido.
E daí que se tenha revelado correcta a decisão do tribunal "a quo" em, na fase de julgamento, ter recusado a junção aos autos, ao abrigo do art.º 340.°, n.º 1, de umas fotografias alegadamente referentes a uma agressão física à assistente ocorrida em 19-3-2013, bem como a leitura, ao abrigo do art.º 356.°, n.º 3 al.ª a) e b), das declarações prestadas pela assistente perante o M.º P.º e constantes de fls. 14 a 17, nas quais se refere a esta agressão física.
Sendo certo que também de nada adiantaria ter dado como provado o teor do ponto 11 da acusação, esse sim, uma imputação concretizada de um facto (no início do mês de Outubro de 2018, o arguido telefonou para a ofendida e disse-lhe "Oh! Puta do caralho, estás me outra vez a foder a vida!"), uma vez que, sendo o mesmo insuficiente para, só por si, integrar a prática pelo arguido do crime de violência doméstica, poderia, contudo, consubstanciar o cometimento de um crime de injúria, mas para cujo procedimento criminal seria necessário tivesse sido apresentada queixa, o que, como já acima vimos, não sucedeu.
IV
Termos em que se decide negar provimento aos recursos e manter na íntegra a decisão recorrida.
Sem custas, por o M.º P.º delas estar isento (art.º 522.º, do Código de Processo Penal).
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Évora, 13-4-2021
Martinho Cardoso, relator
Maria Leonor Esteves, adjunta (votou a decisão)
(assinaturas digitais)