Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2339/13.6TBEVR.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
CRÉDITOS DE CONSTITUIÇÃO POSTERIOR
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Na impugnação pauliana de actos anteriores ao crédito, o demandante deverá alegar e demonstrar o dolo, traduzido numa intenção preordenada de impedir a satisfação do futuro credor.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário: (…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Competência Genérica do Redondo, Parvalorem, S.A., demandou …, … (falecido na pendência da causa e habilitado por …) e …, alegando ser detentora de um crédito em relação aos dois primeiros RR. e que estes procederam à doação da nua propriedade de determinado imóvel à terceira Ré, sua filha, reservando para si o usufruto, e visto que tal doação frustra a satisfação dos créditos, invoca o disposto no artigo 610.º do Código Civil e pede que se julgue procedente a impugnação pauliana, declarando-se a ineficácia da doação na medida do interesse da A., devendo a donatária ser condenada a restituir o bem doado na medida do interesse da A., ou seja, do seu crédito, e reconhecido o seu direito de executar o crédito no património da donatária, bem como o de praticar, sobre os bens no mesmo integrados, os actos de conservação da garantia patrimonial, autorizados por lei.
Os RR. contestaram, afirmando que a doação ocorreu em momento anterior à constituição do crédito da A. e que não houve dolo, motivo pelo qual a acção deveria improceder.
Após julgamento, a sentença julgou a causa improcedente.

Recorre a A. e conclui:
I. O Tribunal a quo julgou totalmente improcedente a acção de impugnação pauliana apresentada pelo ora Recorrente;

II. Por não se conformar com o teor da sentença, vem agora a Parvalorem apresentar recurso de alegação, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 645.º do Código de Processo Civil;

III. Resulta como não provado que “aquando do contrato referido em 1) a 4) – contrato de mútuo com data de 22 de Abril de 2010 – já existisse uma situação de incumprimento perante a autora ou a entidade que a antecedeu”.

IV. Entende a Recorrente que existe prova suficiente que demonstre que aquando do mencionado contrato já existia uma situação de incumprimento perante a Recorrente;

V. Em primeiro lugar, resulta do próprio contrato de mútuo assinado pelas partes a 23 de Abril de 2010 – no artigo segundo – que existia já uma situação de incumprimento dos mutuários em relação ao BPN;

VI. O documento não foi impugnado judicialmente pelo que o mesmo faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, conforme prevê o n.º 1 do artigo 376.º do Código Civil;

VII. O contrato de mútuo em causa foi assinado com vista à reestruturação financeira dos mutuários, conforme foi, aliás, confirmado pelas testemunhas que prestaram depoimento em sede de audiência de julgamento;

VIII. Como se tal não bastasse, a declaração de insolvência que veio a ocorrer a 02-04-2012 indiciava logo a existência de graves dificuldades no cumprimento das obrigações contratuais, entre as quais as assumidas para com o BPN;

IX. Para além disso, se atendermos à lista de créditos provisórios resultante do processo de insolvência, à data da celebração do contrato de mútuo com o BPN existia já uma situação genérica de incumprimento com outras entidades bancárias;

X. Por outro lado, resulta igualmente da sentença que o Tribunal a quo não considerou como facto provado que (…) e (…) tenham doado o imóvel com o intuito de impedir a satisfação do crédito do Recorrente;

XI. Da prova documental resulta que por altura da doação os Recorridos já tinham uma situação financeira delicada, o que se confirma pela posterior declaração de insolvência da Recorrida (…);

XII. O bem doado era o único bem relevante na esfera jurídica dos Recorridos;

XIII. Por isso, bem sabiam os Recorridos que, ao doarem o bem, estariam a reduzir substancialmente as possibilidades dos seus credores viram a recuperar o seu crédito;

XIV. Naturalmente que esta diminuição era aplicável tanto aos créditos que na altura já estavam constituídos como em relação aos que seriam constituídos em data posterior, como é o caso do crédito que veio a ser constituído por via do mútuo celebrado com o BPN;

XV. Aquando da doação, bem sabiam os Recorridos da necessidade de restruturarem a sua situação financeira, nomeadamente através de contratos de mútuo;

XVI. Quando se constituíram devedores do BPN, através de contrato de mútuo de 22 de Abril de 2010, já não corriam o risco de perder o único bem relevante que detinham;

XVII. A doação, feita com reserva de usufruto, limitou-se a antecipar uma transmissão que iria decorrer sempre pela via sucessória, sem que tenha constituído qualquer alteração na utilização do imóvel;

XVIII. Por outro lado, o imóvel estava, como refere e bem a sentença, onerado com um largo conjunto de direitos reais de garantia.

XIX. Posto isto, como pode a Recorrida (…) dizer – como o fez em declarações de parte prestadas em sede de audiência de julgamento – que a doação visava assegurar o futuro da sua filha do casal, (…)?

XX. Nestes termos, devia a sentença considerar como facto provado que os réus, ora Recorridos, agiram dolosamente, com o fim de impedir a satisfação do futuro crédito do BPN, entretanto transmitido para a Parvalorem.

Termos em que não se deve manter a douta sentença, devendo o presente recurso merecer integral provimento, proferindo-se acórdão que julgue procedente a impugnação pauliana, declarando-se a ineficácia da doação na medida do interesse da Recorrente e condenando, ainda, a Recorrida (…) a restituir o bem doado.

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Dispensados vistos, cumpre-nos decidir.

Do vício de insuficiência da decisão de facto
Invoca a Recorrente que os elementos documentais recolhidos nos autos permitiriam julgar provada a seguinte matéria de facto que a sentença recorrida declarou não provada:
“A. Que aquando da celebração do contrato referido em 1) a 4) já existisse uma situação de incumprimento perante a autora ou a entidade que a antecedeu;
B. Que (…) e (…) tenham doado o prédio referido em 11) com o intuito de impedir a satisfação do crédito da autora.”
Preliminarmente, observar-se-á que a Recorrente não impugna a prova gravada, para os fins do artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil, limitando-se a invocar, em abono da sua tese, o documento corporizando o contrato de mútuo, a sentença de insolvência da 1.ª Ré e a lista de créditos provisórios constante do processo de insolvência da 1.ª Ré.
O artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Uma vez que o recurso não tem por fundamento a impugnação de prova gravada, a nossa apreciação está restrita aos factos assentes por acordo e à análise de documentos autênticos ou com força probatória plena.
Pois bem, quanto ao contrato de mútuo de 23.04.2010, a respectiva cláusula 2.ª dispõe, singelamente: “O empréstimo destina-se à liquidação das responsabilidades dos mutuários.”
Nada diz sobre que “responsabilidades” seriam essas, quais as datas de constituição ou sequer se estavam vencidas e/ou em incumprimento. Nada, absolutamente nada, é dito sobre os elementos essenciais de identificação de tais “responsabilidades”, nem o restante clausulado daquele contrato permite obter qualquer esclarecimento acerca desta matéria.
Por outro lado, a sentença de insolvência da 1.ª Ré também não permite identificar qual o momento de não cumprimento das respectivas obrigações perante o BPN, e analisando a reclamação de créditos ali apresentada pela A. também nada se consegue concluir a este respeito.
Assim, para além do aspecto conclusivo que consta da alínea A) do elenco de factos não provados – o incumprimento de uma obrigação é uma conclusão jurídica a retirar da análise dos factos e a da aplicação das normas legais pertinentes – os referidos documentos não permitem a prova pretendida pela Recorrente.
E quanto à alínea B) do elenco de factos não provados, o juízo é idêntico – sabemos apenas que a doação ocorreu por escritura de 22.12.2008, levada ao registo a 21.01.2009, sendo o mútuo titulado pelo contrato de 23.04.2010.
Para além de se notar que, na sua petição inicial, a A. nada alega quanto à intenção dos RR. no momento de celebração da doação, certo é que a mera análise documental nada permite concluir a esse respeito, pelo que também nesta parte a pretensão da Recorrente não merece acolhimento.
Em resumo, a impugnação fáctica é julgada improcedente.

O relevo factual fica assim estabelecido:
1. Em 23/04/2010 a sociedade BPN – Banco Português de Negócios, S.A., (BPN) na qualidade de mutuante, declarou conceder, e a Ré (…) e o Réu (…), na qualidade de mutuários, declararam receber, a título de empréstimo, a quantia de € 23.000,00, comprometendo-se os segundos a restituir a quantia mutuada ao BPN no prazo de 60 meses a contar da data da primeira utilização, em prestações mensais, constantes e sucessíveis de capital e juros.
2. As partes acordaram, ainda, “que o empréstimo é utilizado na data da transferência do respectivo montante para a conta bancária que os mutuários indicarem”.
3. As partes fizeram constar do acordo referido em 1) que “o empréstimo destina-se à liquidação das responsabilidades dos mutuários”, as quais tinham origem num crédito da sociedade BPN com origem em financiamento prestado sob a forma de conta corrente caucionada.
4. No âmbito da renegociação do crédito e da celebração do contrato referido em 1), foi analisada e tomada em consideração a situação patrimonial dos mutuários, não tendo sido constituída hipoteca sobre o imóvel identificado em 11) em face do valor mutuado e dos ónus que impendiam sobre o mesmo.
5. Por acordo datado de 29/03/2012, a sociedade BPN declarou ceder à autora Parvalorem, S.A., a qual declarou aceitar, o crédito emergente do acordo referido em 1).
6. Por sentença proferida em 02/04/2012, no processo n.º 662/12.6TBEVR, que correu termos no 2.º Juízo Cível do extinto Tribunal Judicial de Évora, foi declarada a insolvência da Ré (…).
7. A sociedade BPN reclamou no processo de insolvência referido em 6) um crédito no valor de € 26.707,66 com origem no acordo referido em 1) a 4), dos quais € 23.000,00 correspondiam a capital em dívida e € 3.707,66 a título de juros vencidos à taxa de 11,426%, o qual foi reconhecido pelo Administrador de Insolvência.
8. Nem a sociedade BPN nem a autora lograram receber qualquer montante para pagamento do crédito referido em 1) a 4) a partir do processo de insolvência.
9. O processo de insolvência referido em 6) foi encerrado por insuficiência da massa insolvente.
10. (…), em data não apurada, foi declarado insolvente no processo n.º 18/13.3TBVVC.
11. Até 21/01/2009, (…) e (…) encontravam-se registados pela apresentação n.º 2 de 1999/01/13, como proprietários do prédio urbano sito na Rua (…), 15, freguesia e concelho de Redondo, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º (…) e inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…).
12. Em 22/12/2008, (…) e (…) declararam doar à Ré (…), por conta da respectiva quota disponível, que a aceitou, o prédio melhor identificado em 11), tendo tal acto sido registado na competente conservatória de registo predial pela apresentação n.º (…), de 21/01/2009.
13. Pela indicada apresentação n.º (…), de 21/01/2009, reservaram (…) e (…) o usufruto vitalício sobre o prédio identificado em 11).
14. Pela apresentação n.º (…), de 12/04/2010, rectificada em 26/04/2010, foi averbado o cancelamento, por renúncia, do usufruto constituído em favor de (…).
15. À data de 22/12/2008, encontravam-se averbados os seguintes registos, no que respeita ao prédio identificado em 11):
a. Pela apresentação n.º (…), de 07/12/1999, a constituição de hipoteca voluntária a favor de Banco BPI, S.A. para garantia do capital de 18.000.000$00, com o montante máximo assegurado de 23.340.240$00 (€ 116.420,55);
b. Pela apresentação n.º (…), de 09/04/2001, a constituição de hipoteca voluntária a favor de Banco BPI, S.A., para garantia do capital de 6.500.000$00, com o montante máximo de 8.742.175$00 (€ 43.605,76); e
c. Pela apresentação n.º (…), de 10/01/2007, a constituição de hipoteca voluntária a favor de Banco BPI, S.A. para garantia do capital de € 56.000,00, com o montante máximo de € 73.225,60.
16. Em data não apurada mas que se situa entre o final do ano de 2009 e o início de 2010, a Ré (…) tomou conhecimento que (…) mantinha relações extraconjugais, tendo decidido cessar o casamento com este.
17. Em Maio de 2010, foi decretado o divórcio de (…) e de (…).
18. A Ré (…) encontra-se registada como filha de (…) e de (…) pelo assento de nascimento n.º (…), de 2008, resultante do assento n.º (…)/1988, de 30/05/1988.
19. Após a doação, a Ré (…) deu em arrendamento o prédio referido em 11).
20. Do património de (…) e de (…) não resulta identificado qualquer outro bem que permita a satisfação da autora.
21. A doação referida em 12) tinha como objectivo assegurar o futuro da Ré (…), única filha de (…) e de (…).
22. Em razão da doação, inexistem outros bens ou direitos de (…) e de (…) que permitam a satisfação do crédito da autora.

Aplicando o Direito.
Da impugnação pauliana e do dolo em actos anteriores ao crédito
A impugnação pauliana consiste num meio de conservação da garantia geral do cumprimento de obrigações, tutelando o interesse dos credores contra o desvio do património pelo devedor, que ocasione obstáculo à satisfação dos seus créditos. Nos termos dos artigos 610.º e 612.º do Código Civil, pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
a) a existência do crédito;
b) anterioridade do crédito em relação ao acto impugnado ou, sendo posterior, que o acto tenha sido realizado dolosamente, com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
c) resulte do acto a impossibilidade ou agravamento da impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do crédito;
d) se o acto for oneroso, exige-se que o devedor e o terceiro tenham agido de má-fé, entendida como a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.
Quanto ao requisito do dolo exigido pelo artigo 610.º, alínea a), do Código Civil para actos anteriores ao crédito, João Cura Mariano observa que, nestes casos, a impugnação pauliana poderá proceder “desde que aos mesmos presidisse uma intenção preordenada de impedir a futura satisfação daquele, sendo realizados dolosamente.”[1] A conduta dolosa, prevista na parte final da mencionada norma, limita a utilização da impugnação pauliana “às hipóteses em que o devedor não só pretendeu evitar que o bem retirado do seu património viesse a responder pela satisfação duma obrigação a contrair, mas também agiu de modo a que o credor continuasse erradamente convencido, ou se convencesse, que esse bem se mantinha no seu património, garantindo o cumprimento da obrigação a contrair.”[2]
De igual modo, Antunes Varela e Pires de Lima, comentando a referida norma, observam que “este requisito não pode deixar de se exigir. Haveria uma enorme perturbação no comércio jurídico, se os negócios pudessem ser impugnados em consequência de dívidas posteriormente contraídas. (…) O dolo supõe, na verdade, a intenção de enganar (cfr. artigo 253.º). Quer-se, por exemplo, fazer crer ao credor que os bens ainda existem no património do devedor à data em que foi constituído o crédito.[3]
Ora, como bem se observa na sentença recorrida, «não resultou de modo algum demonstrado que os réus tenham procurado proteger o seu património pessoal perante a sociedade BPN (e, posteriormente, perante a autora), precavendo-se de um futuro incumprimento de um crédito que não houveram ainda constituído, especialmente tendo em consideração que, no momento da transmissão, o prédio já se encontrava onerado por garantias reais constituídas por montantes manifestamente superiores ao crédito da autora.»
Não estando estabelecido tal requisito de dolo, de resto nem sequer alegado na petição inicial, e não deixando de recordar que a doação constava do registo há mais de 15 meses quando o contrato de mútuo foi celebrado, outra solução não restava senão julgar a causa improcedente.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 13 de Janeiro de 2022
ário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
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[1] In Impugnação Pauliana, Almedina, 2004, página 151.
[2] Idem, página 154.
[3] In Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª ed., Coimbra Editora, página 627.