Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
627/17.1GDSTB.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
MAUS TRATOS
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é a saúde, abrangendo, na sua complexidade, a saúde física, psíquica e mental, que pode ser afectada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinja a dignidade da pessoa visada, seja por acção, seja por omissão.

II - A ratio deste tipo de ilícito não está na protecção da comunidade familiar, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, incluindo os comportamentos reiterados que lesem o seu bem-estar físico, psíquico e mental, sem descurar que se admite, para integração no tipo, que o comportamento configure acto isolado desde que, ao nível do desvalor da acção e do resultado, pela sua especial gravidade, seja apto a molestar o bem jurídico protegido.

III - Pressupõe-se que o agente se encontre numa determinada relação para com a vítima desses comportamentos e, neste sentido, é um crime específico, não supondo, contudo, um vínculo afectivo estável.

IV - Para a subsunção ao crime, tanto releva a reiteração como a intensidade, o que significa que a conduta daquele que maltrata deve ser especialmente grave, devendo, ainda, incluir-se num determinado contexto social de subordinação existencial, coabitação conjugal ou análoga, ou estreita relação de vida.

V - Todavia, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, mas sim, e apenas, que os actos atinentes, analisados à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetrados, se consubstanciem em maus tratos, isto é, quando revelem uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos presentes autos, de processo comum, perante tribunal singular, que correu termos no Juízo Local Criminal de Setúbal do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, realizado julgamento e proferida sentença, o arguido LL, por via da procedência parcial da acusação e da procedência do pedido de indemnização formulado:

- foi absolvido da prática de um crime de ameaça agravada p. p. pelo art. 155.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal (CP);

- foi condenado:
- pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, alínea a), do CP, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão suspensa na execução por idêntico período, subordinada à regra de conduta de não contactar por qualquer meio com LM e não permanecer e frequentar a residência e local de trabalho da mesma;

- a pagar a LM a indemnização, oficiosamente arbitrada, de € 2.000,00;

- a pagar ao demandante Centro Hospitalar do Barreiro-Montijo, E.P.E., a quantia de € 118,21, acrescida de juros vencidos e vincendos até efectivo pagamento.

Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões:

A- A douta sentença está estribada na consideração de que, pese embora o comportamento do arguido se tenha demonstrado isolado, "tem uma dimensão, intensidade e motivação que caracteriza, ressalvado diverso entendimento, o crime de violência domestica."

B- É apontado como elemento definidor da subsunção legal efetuado o facto de "...poucos comportamentos podem ser mais humilhantes no âmbito da conjugalidade do que o ora em menção, ou seja, o abandono forçado, durante a madrugada, do lar familiar."

C- Em momento algum da douta sentença se refere que a "vítima " no dia da ocorrência dos factos abandonou de forma forçada o lar familiar.

D- Dito de outra forma, o elemento enformador, por referência ao conteúdo da douta sentença, da subsunção dos factos ao disposto no artigo 152 do C.P., não ocorreu, porquanto não consta dos factos provados.

E- Quando analisa o grau de ilicitude dos factos, é o douto tribunal que situa os mesmos em um evento isolado, cujos danos provocados na vítima se limitaram a 10 dias de doença sem incapacidade para o trabalho, não sendo "particularmente gravoso".

F - Lançando mão do vertido no primeiro parágrafo, página 17 da douta sentença, o elemento que permite a destrinça entre o crime de ofensas à integridade física e o crime de violência doméstica, os actos do arguido têm que ser conformes a um "tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima."

G- Agora com recurso ao vertido ao segundo paragrafo da supra mencionada página "...uma só conduta, mormente atendendo à sua intensidade, pode ser suficiente .... tudo dependendo da forma como a mesma é susceptível ou não de consubstanciar uma afetação da dignidade ínsita à condição humana da vítima."

H- Conforma já exposto, é o douto tribunal quem considera a lesão da "vítima" como não sendo "particularmente gravosa".

I- Assim, não se apresenta como um tratamento insensível ou degradante da condição humana da vítima.

J- pelo que subsumível ao disposto no artigo 143 do Código Penal.

Termos em que deverá a sentença recorrida ser revogada e concomitantemente ser o arguido condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física p.p. no artigo 143 do Código Penal.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:
1. A matéria de facto dada como provada, assente que foi na prova produzida em julgamento e numa acertada valoração da mesma, subsume-se ao crime de violência doméstica pelo qual o recorrente foi condenado;

2. Em face do exposto, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, manter-se a sentença recorrida nos seus exactos termos.

Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso, e, em consequência, ser integralmente confirmada a douta sentença recorrida, mantendo-se a condenação do arguido nos precisos termos decididos na primeira instância.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, fundamentado, no sentido que o recurso seja julgado improcedente.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), nada foi apresentado.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas nos arts. 379.º, n.º 1, e 410.º, n.ºs 2 e 3 do CPP, designadamente de acordo com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995.

Reconduz-se, então, a apreciar, unicamente, do alegado diverso enquadramento jurídico dos factos, concretamente, por referência ao crime de ofensa à integridade física simples.

No que ora releva, consta da sentença recorrida:

Factos provados:
Com relevância para a decisão a proferir resultaram provados os seguintes factos (procedendo-se, porém, à actualização do nome da ofendida, o qual, na sequência de divórcio, deixou de ter o apelido 'Machado'):

1. O arguido LL e a ofendida LM iniciaram uma relação de namoro no ano de 2002.

2. Desta relação nasceu, em 03-02-2005, MM, encontrando-se a filiação estabelecida relativamente a ambos os progenitores.

3. O arguido e ofendida foram casados um com o outro desde 14-02-2006.

4. Em dia e hora não concretamente apurados, mas entre o final do dia 04-08­2017 e as 2h30 do dia 05-08-2017, no interior da residência onde então todos viviam, sita na Rua António da Costa.., Quinta do Anjo, o arguido, não estando a ofendida em casa, dirigiu-se ao filho menor de ambos, MM, perguntando-lhe onde tinha ido LM, ao que o mesmo respondeu que não sabia.

5. Nesta sequência, o arguido declarou que era a segunda vez que chegava a casa e LM não estava e, dirigindo-se ao filho menor de ambos, disse "Deus queira que não tenha de ser a primeira vez que tenha de por a mão na tua mãe!", o que motivou o menor a enviar SMS relatando a LM o sucedido, pedindo-lhe que não fosse para casa.

6. Pelas 2.30 horas, do dia 05 de Agosto de 2017, no interior da referida residência, o arguido LL foi ao encontro da ofendida assim que esta aí chegou, dizendo-lhe que fosse buscar as suas coisas e saísse daquela casa, dirigindo-lhe expressões como "Vais sair daqui, e vais sair já!”;"Puta!': "Vadia!': "Põe-te no caralho!", empurrando-a, para que subisse as escadas aí existentes, em direcção ao quarto de dormir do casal.

7. Logrando, com o referido comportamento, que a ofendida subisse as escadas, respondendo-lhe esta que não saía de casa.

8. Acto contínuo o arguido de frente para as costas da ofendida, colocou um dos seus braços à volta do pescoço da mesma e fez pressão até que LM se sentisse sufocar, momento em que aquele a largou.

9. Sensivelmente no mesmo local, junto ao corrimão das escadas, o arguido, da mesma forma, voltou a fazer pressão no pescoço da ofendida.

10. Nessa altura, logrando que o arguido a largasse, com o ajuda do filho menor de ambos, que tentava separá-los, LM fugiu para o quarto do casal, sendo seguida por aquele.

11. Já no interior dessa divisão, o arguido empurrou o corpo da ofendida, fazendo com que a mesma se desequilibrasse e caísse sobre a cama do casal, tendo-­lhe então aquele apertado o pescoço.

12. Após, continuando a ofendida a recusar sair de casa, o arguido, em local não concretamente apurado, mas no exterior, dentro da mesma propriedade, disse "Ai não sais?! Então vou já começar pelo carro!" e, acto contínuo, pegou, sucessivamente, em duas pedras e arremessou-as contra o veículo automóvel utilizado por aquela, partindo-lhe o vidro de trás e amolgando-lhe o tejadilho.

13. No interior da referida residência o arguido disse "Ai não sais de casa?! Então vou partir isto tudo!", pegando, de seguida, num objecto não concretamente apurado, que arremessou contra uma cristaleira aí existente, partindo um vidro da mesma.

14. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida LM sofreu dores e edema do quarto dedo da mão direita, edema da região maxilar (ângulo esquerdo da mandíbula), hematoma na região do grande trocânter e hematoma no terço superior externo da coxa direita.

15. Tais lesões determinaram para LM 10 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral ou escolar.

16. Os factos supra descritos ocorreram no interior da casa de morada de família e na presença do filho comum do arguido e da ofendida, menor de idade.

17. Ao agir da forma descrita, o arguido LL sabia que atingia no seu corpo e saúde a ofendida LM, sua mulher, que fazia com que a mesma receasse pela sua vida e integridade física, sabendo que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico e que prejudicava a sua liberdade de acção, o que quis, representou e fez, atemorizando-a e humilhando-a, pondo em causa a sua paz e sossego, valendo-se, para o efeito, da sua superioridade física.

18. O arguido ao dirigir ao filho MM, as expressões supra descritas em 5., o qual há data dos factos tinha 12 anos de idade, previu e quis amedrontá-lo, do modo acima descrito, com o intuito concretizado de o fazer recear pela integridade física da progenitora.

19. Conhecia igualmente a relação de parentesco que nessa data o unia a LM, bem como a relação de parentesco que os une a MM e a menoridade deste.

20. O arguido actuou sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as referidas condutas lhe estavam vedadas e eram puníveis por lei penal.

Mais resultou demonstrado que:
21. O arguido detém o certificado de registo criminal n.º 238215-E, tendo sido condenado pela prática de factos que consubstanciam um crime de difamação do artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, cometidos em 28.12.2012, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 10, por sentença proferida pelo Juízo Local Criminal do Barreiro - Juiz 1 - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa em 16.11.2015 e transitada em julgado em 26.12.2015 (processo n.º ----/12.0PBMTA).

22. O arguido reside com a actual companheira em casa arrendada pela qual despende mensalmente a quantia de € 950.

23. É vendedor de automóveis auferindo mensalmente a quantia correspondente a € 3.000.

24. A companheira do arguido trabalha.

25. A pensão de alimentos fixada a favor do filho do arguido e a que este se encontra obrigado corresponde ao montante de € 150.

26. Enquanto habilitações literárias o arguido tem o 9.º ano de escolaridade.

Do relatório social
27. LL é o único filho da relação mantida entre os pais, sendo esta a segunda relação conjugal de cada um. O arguido tem duas irmãs uterinas mais velhas e um irmão mais novo, este oriundo do último relacionamento da progenitora.

28. O seu processo de desenvolvimento decorreu no Barreiro inserido numa família de condição económica modesta. Os pais separam-se quando o próprio tinha 8 anos de idade.

29. A relação com o progenitor após a separação dos pais tornou-se muito limitada, tendo cessado após aquele ter ido viver para Guimarães donde é oriundo, tendo entretanto falecido.

30. LL abandonou os estudos após completar o 9º ano de escolaridade, situando o abandono escolar cerca dos 17 anos de idade.

31. LL afirmou que o seu primeiro trabalho foi como ajudante de serralheiro civil, actividade que iniciou com cerca de 17 anos de idade e que manteve até cerca dos 22 anos. Passou posteriormente a trabalhar na área das cobranças/recuperação de créditos, actividade que terá mantido durante cerca de 5 a 6 anos e que foi desenvolvida para diversas empresas, entre elas a DEBGEST, SERVICREDITO e ainda a CONFIRA. O arguido afirma que em paralelo a estas actividades tem exercido também a compra e venda de automóveis.

32. Após o encerramento da última empresa em que trabalhou como recuperador de créditos, sensivelmente há cerca de 8 anos, LL passou a trabalhar na área da restauração, constituindo também a sociedade SG… Lda, com LM, actividade que manteve em paralelo com a venda de automóveis, que consistia na revenda de automóveis importados e que manteve até à separação do casal ocorrida em 2017.

33. A vida amorosa/conjugal de LL iniciou-se cerca dos 17 anos de idade, quando se autonomizou também do seu agregado de origem. Esta relação terminou após cerca de 5 anos de vida em comum, da qual tem um filho presentemente com 18 anos.

34. Em Agosto de 2017, arguido vivia com a esposa e o filho na morada constante nos autos, tratando-se de uma vivenda arrendada.

35. O casal mantinha, segundo o próprio uma situação financeira bastante confortável, sendo reportados rendimentos que oscilavam entre os 3000 e os 4000 euros mensais, decorrentes da exploração do restaurante onde ambos trabalhavam, sendo que LL referiu ainda verba de cerca 2000 a 3000 euros decorrente do negócio com a venda de automóveis, sendo com esta verba que subsiste presentemente.

36. Após a separação do casal ocorrida em agosto de 2017, LM reintegrou o seu agregado de origem, vindo LL a mudar para outra moradia sita no mesmo empreendimento na Rua Pêro Vaz de Caminha, …Quinta do Anjo,… Palmela e que tem as mesmas condições da anterior residência.

37. Após a instauração do presente processo a vítima não reporta qualquer comportamento/atitude de que pudesse colocar em risco a sua integridade física, afirmando-se contudo ainda bastante fragilizada em termos emocionais e psicológicos, por se ter sentido humilhada, desrespeitada e usada ao longo da relação que manteve com o arguido.

Do pedido de indemnização cível deduzido pelo "Centro Hospitalar do Barreiro-Montijo, E.P.E."

38. Mercê do referido em 14., LM beneficiou de atendimento hospitalar, tendo o respectivo custo, no montante de € 118,21, sido suportado pelo demandante.

Factos não provados:
Com relevância para a decisão a proferir ficaram por demonstrar os seguintes factos:

A. Por referência ao descrito em 7., o arguido agarrou um dos braços de LM e torceu-lho, causando-lhe dores.

B. A propósito do descrito em 9. e 11., LM sentiu-se sufocar, momento em que o arguido a largou.

C. O apertar de pescoço referido em 11. foi efectivado pelo arguido através das duas mãos.

D. O referido em 11. ocorreu enquanto o arguido dizia a LM "Vais sair desta casa, caralho!".

E. O mencionado em 13. ocorreu posteriormente ao mencionado em 12 ..
F. Mercê das expressões referidas em 5., o arguido perturbou o sentimento de segurança e liberdade de movimentação e actuação de MM, bem sabendo que essa conduta era idónea a produzir esse efeito.

Fundamentação de direito:
Enquadramento jurídico-penal dos tipos incriminadores cuja prática é imputada ao arguido

Quanto ao crime de violência doméstica
Com a incriminação em questão visa o legislador, antes de mais, tutelar a integridade física e psíquica, bem como a liberdade e autodeterminação sexual no âmbito de um contexto restrito, o que se retira da própria epígrafe do tipo criminal do artigo 152.º do Código Penal. Por outro lado, dir-se-á que é visada a tutela da dignidade humana no âmbito das relações familiares e para-familiares, mesmo após a respectiva cessação, atendendo aos qualificados deveres de respeito resultantes de tais relações e, bem assim, atento o por vezes verificado ascendente do agente em referência a uma das pessoas referidas no tipo criminal em apreço, em especial no que concerne aos cônjuges, podendo tal ascendente traduzir-se, exemplificadamente, numa situação de superioridade física do agressor face à vítima ou de dependência económica da vítima face ao agressor.

Segundo Taipa de Carvalho, a ratio do artigo 152.º do Código Penal não está «na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana», indo muito mais além «dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.), a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou à saúde (física, psíquica ou mental) do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas», acrescentando que «o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental» (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, p. 132).

Trata-se, pois, de uma incriminação que visa a protecção de um bem jurídico complexo, reconduzível a vários outros tipos criminais (v.g., ofensa à integridade física, ameaça, coacção, entre outros) no âmbito de um quadro e de uma realidade social delimitada.

Com efeito, delimita o legislador o objecto da acção típica a pessoas que revestem determinada qualidade, denotando esta uma relação de proximidade da vítima com o actor criminis, tratando-se, pois, de um crime específico impróprio, pois que unicamente o agente que tenha uma das relações descritas no tipo é susceptível de cometê-lo.

Por outro lado, conforme supra se referiu, a tipificação do crime de violência doméstica assenta na protecção de um bem jurídico complexo, o qual integra uma multiplicidade de bens jurídicos cindíveis entre si.

Ora, no que concerne às relações de concurso entre o tipo aqui em apreço e os demais tipos susceptíveis de integração por via de condutas simultaneamente reconduzíveis àquele, cujo exemplo mais flagrante se refere à ofensa à integridade física, existe uma relação de especialidade, já que o primeiro exige uma conduta particularmente atentatória da dignidade individual da vítima por via de um ascendente do agressor perante a mesma de que supra se deu conta.

Conforme decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.5.2010 (processo n.º JTRP00043966, disponível em www.dgsi.pt). relatado pelo Dr. Joaquim Gomes, «no crime de violência doméstica, a acção típica tanto se pode revestir de maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima» (…), sendo certo que é este tipo de tratamento que permite destrinçar entre a prática de um crime do artigo 152.º do Código Penal ou de um crime que tutele parceladamente um dos bens jurídicos protegidos pela incriminação da violência doméstica a que supra fizemos referência.

Refira-se que o preenchimento do tipo não carece de uma conduta reiterada por parte do agente, isto porque uma só conduta, mormente atendendo à sua intensidade, pode ser o suficiente para considerar-se praticado o tipo de crime em questão, tudo dependendo da forma como a mesma é susceptível ou não de consubstanciar uma afectação da dignidade ínsita à condição humana da vítima.

O tipo subjectivo de ilícito reclama uma conduta dolosa por parte do agente, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, tal como resulta do artigo 13.º do mesmo diploma legal.

Quanto ao crime de ameaça
(…)
Subsuncão dos factos provados aos tipos incriminadores
A factualidade consolidada torna patente que o arguido interveio por referência a LM, então sua mulher, actuando numa dimensão física, mas também emocional, mas resultando essa intervenção contextualizada por um único episódio, impondo-se, pois, questionar se o mesmo se cinge ao tipo incriminador da violência cujo cometimento é imputado na acusação àquele.

Abordando a questão, é de registar que a verificação da incriminação em referência não carece de uma actuação reiterada ou que abranja um hiato relativamente longo, podendo restringir-se a uma única actuação suficientemente intensa que possa ser caracterizada enquanto acto de infligir maus tratos físicos ou psíquicos. Conforme se enquadrou no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24.2.2015, «(...) importa, nesses casos, descortinar se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como "maus tratos"» (relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador Proença da Costa, processo n.º 921/13.0PBFAR, disponível em www.dgsi.pt).

Também como se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.6.2015, «a verificação do tipo de ilícito não exige a repetição de condutas ofensivas da integridade física ou moral (...) podendo assim verificar-se com uma única conduta, mas desde que a sua gravidade intrínseca permita o enquadramento na figura dos maus tratos. Já que não são todas as ofensas, obviamente todas as ofensas ou agressões, quer físicas, quer psíquicas, que cabem na previsão legal, mas somente aquelas que fundamentalmente traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária do agente, segundo os padrões sociais vigentes» (relatado pela Exma. Sra. Juíza Desembargadora Fátima Furtado, processo n.º 7/14.0GHVNG.P1, também disponível para consulta em www.dgsi.pt).

Volvendo ao caso em apreciação, reiterando-se que a actuação do arguido se atém a um único episódio, é de considerar que este, todavia, tem uma dimensão, intensidade e motivação que caracteriza, ressalvado diverso entendimento, o crime de violência doméstica.

Com efeito, a actuação do arguido desenvolveu-se através da agressão física de LM, não se deixando de considerar que a foi empurrando de molde a que subisse as escadas, mas especialmente registando-se que aquele lhe apertou por três vezes o pescoço, ou seja, visou uma zona sensível do corpo da visada, inclusivamente fazendo-a sufocar numa das ocasiões, o que transcende, parece evidente, a 'mera' agressão caracterizadora do crime de ofensa à integridade física, antes revelando a intensidade e gravidade ínsitas aos maus tratos que revelam o crime de violência doméstica.

Porém, é de reter que a actuação do arguido transcendeu a dimensão física, repercutindo-se também na esfera emocional da ofendida, não se ignorando as expressões que o arguido lhe dirigiu - mormente, "puta" e "vadia" - e o propósito inusitado que esteve subjacente àquela, reconhecido, aliás, pelo arguido nas palavras que lhe transmitiu, ou seja, expulsar a ofendida de casa durante a madrugada, inclusivamente quebrando objectos no interior da habitação e o próprio veículo utilizado por aquela, o que revela, aliás, o intuito de o arguido subjugar LM ao domínio da sua vontade. De resto, permita-se, poucos comportamentos podem ser mais humilhantes no âmbito da conjugalidade do que o ora em menção, ou seja, o abandono forçado, durante a madrugada, do lar familiar.

Afigura-se, pois, que a actuação do arguido se subsume ao tipo incriminador contido no artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal, transcendendo o âmbito do crime de ofensa à integridade física, o qual, de resto, sempre seria qualificado ante a relação de matrimónio que unia aquele a LM (v. artigos 143.º, 145.º, n.º 1, alínea a), e 2, e 132.º, n.º 2, alínea b), todos do Código Penal).

Prosseguindo, é de reter que o arguido actuou na presença do filho comum do casal, o qual é menor de idade, sendo certo que igualmente prosseguiu o iter criminis na residência comum que mantinha com a vítima, justificando-se, assim, concluir pela prática do crime na sua forma agravada, por via da alínea a) do n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal.

O arguido actuou a título de dolo directo, tal como conceptualizado no artigo 14.º, n.º 1, da lei penal, sendo que não se verificam causas de exclusão da culpa e/ou da ilicitude, concluindo-se, assim, pela procedência da acusação neste âmbito.

No que se atém ao crime de ameaça (…).

Apreciando:
Versando o recurso no enquadramento jurídico da matéria de facto dada por provada, note-se, desde logo, analisada esta matéria e a fundamentação probatória que à mesma presidiu (que aqui se dispensou reproduzir), que não se descortina que padeça de qualquer vício, o qual, para existir, teria de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (art. 410. n.º 2, do CPP).

Considerada, então, como assente, o recorrente, que a não contesta, preconiza que não seja subsumível ao crime de violência doméstica, por que foi condenado, mas, ao invés, ao crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º do CP.

Para o efeito, apela, no essencial, às consequências da sua actuação, por referência ao que a sentença mencionou em sede de dosimetria da pena, sem que se refira a que a vítima no dia da ocorrência dos factos abandonou de forma forçada o lar familiar, concluindo que essas consequências não foram particularmente gravosas e não se apresenta tratamento insensível ou degradante da condição humana da vítima.

Vejamos.
As considerações gerais aduzidas pelo tribunal recorrido acerca do crime de violência doméstica não merecem censura, aliás, nem mesmo, pelo recorrente, são postas em causa.

Outras se deixam aqui sublinhadas.

O actual tipo legal, previsto no mencionado art. 152.º do CP, foi introduzido pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, além do mais, tendo o legislador evoluído na própria denominação de maus-tratos para violência doméstica e optado por distribuir por três preceitos as previsões que se encontravam concentradas numa só (Teresa Pizarro Beleza, in “Violência Doméstica”, Jornadas sobre a revisão do Código Penal – Estudos, Revista do CEJ 1.º semestre 2008, n.º 8 (especial), págs. 288/289).

A sua consagração surgiu como reflexo de uma crescente consciencialização da sociedade para a necessidade de intervenção do Estado perante uma realidade existente, traduzindo problemática de afirmação de domínio do mais forte, para o que concorrem diversos factores de risco, sociais e culturais.

E acompanhando, por recente, o acórdão do STJ de 07.12.2018, no processo n.º 312/15.9POLSB.S1, in www.dgsi.pt (citado e transcrito em parte pelo Digno Procurador-Geral Adjunto):

O crime de violência doméstica é um caso paradigmático de neocriminalização fundamentada, revelando a preocupação do legislador em recorrer à via repressiva para erradicar tanto quanto possível esta forma de violência, muito disseminada na sociedade, onde ainda persistem resquícios de uma mentalidade patriarcal hoje completamente anacrónica, sendo embora certo que o fenómeno é transversal a toda a sociedade, e não específico de certos estratos sociais, que geralmente incide sobre as mulheres, e que até há pouco tempo não merecia uma censura social correspondente à sua danosidade e à sua reprovabilidade.

Este tipo de violência é com efeito de enorme gravidade: praticada geralmente na sombra do lar, sem testemunhas, dirigida contra pessoas indefesas, quer pela fragilidade física, quer pela idade (menoridade ou idade avançada), quer pela “hierarquia” de posições (no caso de o ofendido ser filho), quer pela relação de domínio psíquico que o agressor consegue, pela violência ou pela astúcia, estabelecer sobre a vítima, acabando na grande maioria das vezes por reduzi-la a um ser sem vontade própria, sem capacidade de afirmação pessoal, muito menos de reacção perante qualquer agressão, inclusivamente sem capacidade de denúncia junto das autoridades, ou mesmo de familiares ou confidentes, das violências sofridas.

Na última década e meia assistiu-se porém a uma tomada de consciência generalizada da grande dimensão e da extrema gravidade deste tipo de violência. A esta tomada de consciência social vem correspondendo a ação do Estado, que se desdobra em diversas vertentes, traduzidas em sucessivos planos plurianuais de prevenção e combate à violência doméstica (o último dos quais abrangendo o período de 2014-2017), abrangendo a definição de estratégias no sentido de prevenção do fenómeno, de intervenção junto dos agressores, de proteção das vítimas, de qualificação de profissionais envolvidos na assistência às vítimas e de reforço das estruturas de apoio e atendimento das mesmas, sem que no entanto, como adiante veremos, o fenómeno da violência doméstica tenha perdido intensidade.

A intervenção penal, pelas suas características de “ultima ratio”, não pode alvejar erradicar o fenómeno, mas também não pode desistir da sua função de prevenção geral, enquanto finalidade central da aplicação das penas, sem porém ceder a tentações populistas, também muito em voga na sociedade de hoje.

Em sintonia com o que já Taipa de Carvalho referia quanto ao crime de maus tratos, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Coimbra Editora, 1999, tomo I, pág. 332, a ratio do tipo de ilícito não está na protecção da comunidade familiar, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, incluindo os comportamentos reiterados que lesem o seu bem-estar físico, psíquico e mental, sem descurar que se admite, para integração no tipo, que o comportamento configure acto isolado desde que, ao nível do desvalor da acção e do resultado, pela sua especial gravidade, seja apto a molestar o bem jurídico protegido.

O bem jurídico protegido é a saúde, abrangendo, na sua complexidade, a saúde física, psíquica e mental, que pode ser afectada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinja a dignidade da pessoa visada, seja por acção, seja por omissão.

Pressupõe-se que o agente se encontre numa determinada relação para com a vítima desses comportamentos e, neste sentido, é um crime específico, não supondo, contudo, um vínculo afectivo estável.

Para a subsunção ao crime, tanto releva a reiteração como a intensidade, o que significa que a conduta daquele que maltrata deve ser especialmente grave, devendo, ainda, incluir-se num determinado contexto social de subordinação existencial, coabitação conjugal ou análoga, ou estreita relação de vida.

Todavia, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, mas sim, e apenas, que os actos atinentes, analisados à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetrados, se consubstanciem em maus tratos, isto é, quando revelem uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente.

Assim, o bem jurídico, enquanto materialização directa da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos (Plácido Conde Fernandes, in “Violência Doméstica, Novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ cit., pág. 305).

Como tal, tem de ser integrado por padrão de comportamento com perigosidade típica para o bem-estar físico e psíquico da vítima, o que haverá de ser apreciado pela imagem global do facto, conforme sublinhado no acórdão desta Relação de Évora de 08.01.2013, no proc. n.º 113/10.0TAVVC.E1 (rel. ora Adjunto), in www.dgsi.pt: entendemos ser exigível que a análise - fazendo apelo essencial à “imagem global do facto” se debruce, no pólo objectivo, pela existência de uma agressão ou ofensa que revele o mínimo de violência sobre a pessoa, intensidade ou reiteração; subjectivamente e da parte do agressor uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; da parte da vítima o reflexo negativo e sensível na sua dignidade, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.

E como decorre da literalidade da previsão legal e conforme já era salientado na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X (na descrição típica da violência doméstica e dos maus-tratos recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, não sendo imprescindível uma continuação criminosa), o crime tanto pode realizar-se mediante uma pluralidade de actos, como através de um acto único, desde que atinjam o bem jurídico protegido, sendo que, no caso de acto isolado, com a intensidade resultante da intrínseca gravidade desse acto na configuração subjacente dos valores que se visam tutelar.

Dentro de todos os assinalados parâmetros, afigura-se que o tribunal a quo enveredou por correcto enquadramento, ao ter integrado os factos provados no crime de violência doméstica.

Na verdade, tal como ficou fundamentado na sentença, “a actuação do arguido desenvolveu-se através da agressão física de LM, não se deixando de considerar que a foi empurrando de molde a que subisse as escadas, mas especialmente registando-se que aquele lhe apertou por três vezes o pescoço, ou seja, visou uma zona sensível do corpo da visada, inclusivamente fazendo-a sufocar numa das ocasiões, o que transcende, parece evidente, a 'mera' agressão caracterizadora do crime de ofensa à integridade física, antes revelando a intensidade e gravidade ínsitas aos maus tratos que revelam o crime de violência doméstica”, bem como “transcendeu a dimensão física, repercutindo-se também na esfera emocional da ofendida, não se ignorando as expressões que o arguido lhe dirigiu - mormente, "puta" e "vadia" - e o propósito inusitado que esteve subjacente àquela, reconhecido, aliás, pelo arguido nas palavras que lhe transmitiu, ou seja, expulsar a ofendida de casa durante a madrugada, inclusivamente quebrando objectos no interior da habitação e o próprio veículo utilizado por aquela, o que revela, aliás, o intuito de o arguido subjugar LM ao domínio da sua vontade”, com o que revelou importante desvalor da acção, adequado a consentir a perspectiva, ainda que tratando-se de um único episódio, de que se esteja perante o tipo legal em apreço.

Aliás, sublinhe-se, atentando no provado em 17 (“Ao agir da forma descrita, o arguido LL sabia que atingia no seu corpo e saúde a ofendida LM, sua mulher, que fazia com que a mesma receasse pela sua vida e integridade física, sabendo que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico e que prejudicava a sua liberdade de acção, o que quis, representou e fez, atemorizando-a e humilhando-a, pondo em causa a sua paz e sossego, valendo-se, para o efeito, da sua superioridade física”), a mera ofensa à integridade física não constituiria resposta subsuntiva a toda a dimensão que os factos patenteiam.

Com efeito, a intensidade agressiva e lesiva exigida pelo tipo legal, se bem que reconduzindo-se, em concreto, àquele episódio, manifestou-se suficientemente mediante os actos do recorrente, porque, além do mais, reveladores de tratamento incompatível com a dignidade e a liberdade da ofendida, dentro do espaço de intimidade em que ocorreram e denotando considerável desrespeito, assentes em posição de domínio e de controlo que transmitiu.

O mesmo é dizer que a imagem global do facto fornece acentuado desvalor de acção e de resultado, tendente à sua percepção como efectiva violência doméstica.

Ainda que as consequências físicas da acção não se tenham revelado como particularmente gravosas, atentando no provado em 14 (“Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida LM sofreu dores e edema do quarto dedo da mão direita, edema da região maxilar (ângulo esquerdo da mandíbula), hematoma na região do grande trocânter e hematoma no terço superior externo da coxa direita”) e em 15 (Tais lesões determinaram para LM 10 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral ou escolar”), e como ficou referido, na sentença, em sede de dosimetria da pena, afigura-se que não só essas relevam, contrariamente ao que o recorrente pretende fazer valer, mas também as de ordem psíquica, dada a situação de que a ofendida foi vítima, sujeita a vexame, humilhação, insegurança e vulnerabilidade, no contexto, bem importante, de que abandonasse a casa de família.

Do mesmo modo, não se pode aceitar que o recorrente entenda que fosse necessário que dos factos constasse que a vítima abandonou de forma forçada o lar familiar, como se esse aspecto devesse influir na valoração da sua acção, uma vez que, tivesse ou não saído de casa, a imagem dos factos cometidos é o que releva e, esta, não se afastaria, em qualquer caso, do que se perspectivou em termos de gravidade e censurabilidade do comportamento.

Aliás, se, como o tribunal fundamentou, “poucos comportamentos podem ser mais humilhantes no âmbito da conjugalidade do que o ora em menção, ou seja, o abandono forçado, durante a madrugada, do lar familiar”, outro sentido não tem senão o de ter reflectido, e bem, que esse abandono esteve subjacente ao propósito do recorrente, sendo inequívoco que a ofendida a tanto se revelou, quanto possível, relutante.

Se bem que discordando, a argumentação do recorrente não serve minimamente ao desiderato de não subsunção dos factos ao crime de violência doméstica, a que acresce que, mesmo que assim se não entendesse, a ofensa à integridade física do cônjuge não seria simples, mas haveria de ser qualificada nos termos, referidos pelo tribunal, do art. 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do CP.

Ao recorrente não assiste qualquer razão.

Deve manter-se, pois, a sua condenação nos moldes em que a sentença a assentou.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, assim,
- manter a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, com a taxa de justiça de 3 UC (arts. 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).

Processado e revisto pelo relator.

11.Julho.2019

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(Carlos Jorge Berguete)

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(João Gomes de Sousa)