Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
760/21.5T8FAR.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
PRISÃO PREVENTIVA ILEGAL
SENTENÇA ABSOLUTÓRIA
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Em ação de responsabilidade civil intentada contra o Estado por prisão preventiva ilegal, pode o autor, absolvido por in dubio pro reo, demonstrar que não foi o agente do crime (art. 225º nº 1 alª c) do CPP), o que apenas se concebe com uma prova “absoluta” e “inequívoca” de que, por exemplo, não esteve no local do crime no momento da ocorrência ou que outro foi o agente.
2 - O legislador no art. 225º nº 1 alª c) do Código de Processo Penal ao referir-se à expressão “comprovar” quer significar que o direito de indemnização apenas está, em princípio, reservado ao arguido que tenha sido absolvido sem dúvidas acerca da sua inocência, afastando a “indemnização por prisão ilegal” aos arguidos absolvidos por intermédio do princípio in dubio pro reo.
3 - A prisão preventiva obedece a regras e finalidades específicas, orienta-se pelos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da necessidade (artºs 193º, 1 e 2 CPP), tem natureza subsidiária (art. 202º CPP), sendo admissível desde uma fase embrionária da investigação (artº 254º, 2 e 257º CPP), está sujeita a prazos de reexame dos seus pressupostos em diversas fases do processo (artº 213º CPP) e é compatível com o princípio da presunção de inocência previsto no art. 32º da CRP.
4 - Para aferir se, nas diversas decisões que fixou ou confirmou a prisão preventiva, ocorreu erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que a mesma dependia, para efeitos do direito indemnizatório previsto no art. 225º nº 1, alª b) do CPP, há que ter em conta o concreto histórico indiciário ou probatório com que cada uma das decisões pôde contar, e não com o que veio a ser apurado no futuro.
5 - O facto de o arguido sujeito a prisão preventiva, no final e em recurso, vir a ser absolvido por não provados os factos que lhe eram imputados é, por si só, insuscetível de revelar a existência de erro grosseiro por parte de quem decretou a aludida medida de coação.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I

J… veio interpor a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra o ESTADO PORTUGUÊS, devidamente representado pelo Digno Magistrado do Ministério Público, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 115 579,83 (cento e quinze mil, quinhentos e setenta e nove euros e oitenta e três cêntimos), dos quais:
A) € 100 000,00 (cem mil euros), são referentes a danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora calculados desde a citação até integral e efetivo pagamento; e,
B) € 15 579,83 (quinze mil quinhentos e setenta e nove euros e oitenta e três cêntimos), a título de danos patrimoniais, acrescido de juros de mora calculados desde a citação até integral e efetivo pagamento.

Fundamenta o pedido, sumariamente, no seguinte:
“[o] Autor, sendo inocente como se veio mais tarde a apurar” esteve preso preventivamente, na sequência de decisões que o indiciaram, acusaram, pronunciaram e condenaram sem trânsito em julgado, no âmbito do Processo n.º …, pela prática do crime de homicídio e profanação de cadáver; a decisão que decretou a sua prisão preventiva era desprovida de qualquer prova, ainda que indiciária, “conforme de resto veio a concluir o acórdão absolutório” proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, os indícios apontados eram insuficientes para imputar tal conduta ao arguido, aqui Autor (relatório pericial dos vestígios de ADN e um alegado contacto telefónico); Pelo que, a sujeição do Autor à medida de coação de prisão preventiva, consubstanciou um erro grosseiro na aplicação do Direito, incorrendo o Réu em responsabilidade civil por erro judiciário nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 225.º, n.º 1, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal; O sentimento de revolta do Autor adensou-se com a decisão instrutória da sua submissão a julgamento, inocente, perante uma investigação sem quaisquer elementos probatórios que sustentassem tal decisão; a prisão preventiva do Autor foi mantida a cada fase em que se exigia a sua revisão; Em cada notificação que o Autor rececionava com um despacho de manutenção da prisão preventiva, sentia-se agoniado, triste, revoltado, totalmente incapaz, como se ninguém visse o que estava à vista de qualquer um, – “que era inocente”; O Autor esteve privado da sua liberdade durante 505 dias até o Tribunal da Relação de Évora o ter absolvido. Prisão que lhe acarretou danos patrimoniais e não patrimoniais, cujo ressarcimento ora reclama.

O Estado Português contestou pugnando pela improcedência do pedido e sua absolvição do pedido.
Invocou o Réu Estado, desde logo, o sentido do acórdão absolutório: não havendo nele qualquer comprovação de que o Autor não foi o agente do crime de homicídio que lhe havia sido imputado; o Acórdão absolutório refere textualmente algo distinto, como: Da conjugação dos elementos probatórios coligidos nos autos e neles avaliados não conseguimos atingir a certeza considerada indispensável a dar como provado que o Arguido foi o autor da morte da I…. E não conseguimos ultrapassar um estado de dúvida que convoca a aplicação do princípio in dubio pro reo.(...)”; Assim, não é verdade que o Autor tivesse sido preso preventivamente, julgado e condenado, erradamente, por ser inocente, inexiste no Acórdão absolutório/revogatório invocado, passagem alguma da qual possa resultar o reconhecimento ou a declaração de que não foi o ora Autor o responsável pelos factos pelos quais fora acusado, pronunciado e condenado em 1.ª instância.
Por outro lado, os elementos de prova carreados para o processo nº … sustentavam, desde a primeira decisão de prisão preventiva, abundantemente, um juízo de forte indiciação pela prática dos factos imputável ao Autor, juízo esse que, aliás, fora inteiramente corroborado na sequência do decidido pelo Tribunal da Relação de Évora após interposição pelo ora Autor de recurso da prisão preventiva que lhe fora aplicada. Em todos os sucessivos despachos de revisão e manutenção da medida de coação de prisão preventiva imposta ao Autor, todos os Senhores Juízes subscritores desses despachos, fizeram uma avaliação dos pressupostos de facto e de direito que determinaram a aplicação da mencionada medida e as circunstâncias posteriores, tendo sempre concluído que estas não se haviam alterado no sentido de atenuação das exigências cautelares; Sendo absolutamente legal a sujeição do Autor a prisão preventiva, não veio a mostrar-se, como pretende o Autor – nomeadamente, com recurso ao teor do Acórdão absolutório fundamento da presente ação – injustificada tal prisão por ter havido (suposto) erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia o seu decretamento.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida decisão que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, foi o Réu/Estado Português absolvido dos pedidos contra si dirigidos.

Inconformado com tal decisão, veio o Autor recorrer, assim concluindo, embora de forma claramente excessiva e prolixa, as suas alegações de recurso:
“1. Normas jurídicas violadas:
Art.º 154.°, 195.° e 615.°, n.º 1, al. b) e d), do CPC
Art.º 27.º, 32.º, 205.º Constituição da República Portuguesa.
Art.º 255.º n.º 1 al. b) e c) do CPP
Art.º 38.º da Lei 5/2008
2. A decisão recorrida deve ser revogada.
(…)
111. Em face da factualidade julgada provada constante na decisão recorrida, bem como merecendo provimento o presente recurso, alterando a factualidade julgada não provada, passando a mesma a constar como provada, e incluindo-se como provada a factualidade em falta alegada em sede de petição inicial supra mencionada, respeitante ao aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito, deverá o Recorrido, Estado Português ser condenado a pagar ao Recorrente o montante de € 100 000,00.
112. Termos em que deverá a decisão recorrida ser revogada, sendo o Recorrido Estado Português, condenado no pagamento de indemnização relativa a danos patrimoniais e não patrimoniais, no total de € 115 579,83, decorrentes da prisão preventiva do Autor/Recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 225.º n.º 1 als. b) e c) do CPP.
Nestes termos e nos demais de Direito deverá o presente recurso ser julgado procedente e em consequência revogada a sentença recorrida nos termos humildemente propostos.
V. Exas. farão a acostumada Justiça!

O Réu Estado Português respondeu, assim concluindo:
1 – Por Sentença de 10/11/2021, proferida nos autos à margem supra referenciados, foi decidido pelo Tribunal “a quo” julgar a presente ação como totalmente improcedente e, em consequência, absolver o Réu Estado Português dos pedidos que contra ele foram dirigidos pelo Autor J….
(…)
13 – Motivo pelo qual a douta Sentença objeto do presente recurso não merece qualquer censura no tocante à matéria de facto que foi dada como provada e não provada, feita com base na correta apreciação que fez dos elementos de prova constantes dos autos.
Nestes termos deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo Autor, confirmando-se a douta Sentença recorrida nos seus precisos termos.
V. Exas. farão, como sempre, Justiça.
II
O Tribunal a quo deu como assente o seguinte elenco de factos:

A) Factos provados
1. No âmbito do processo comum singular que correu termos sob o n.º …, do J3, do Juízo Criminal de Loulé, o autor foi condenado pela prática, 9 de março de 2017, de um crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, al. a), do CL n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-A e B, anexa ao aludido diploma legal, na pena de 1 (um) ano de 8 (oito) meses de prisão, suspensa pelo mesmo período e acompanhada de regime de prova, assente em plano a elaborar pela DGRSP direcionado à aquisição de competências pessoais, a par de despistagem de eventuais problemas do foro de saúde mental e encaminhamento para tratamento, caso nisso o arguido consinta (artigos 50.º e 53.º, do Código Penal).
2. O autor apresentou recurso da referida sentença, ao qual veio a ser negado provimento por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora (…) transitado em julgado em (…) de 2020.
3. No âmbito do processo comum coletivo que correu termos sob o n.º …, do J1, do Juízo Central Criminal de Faro, o autor foi absolvido do crime de sequestro de que vinha acusado e condenado pela prática, em 27 de novembro de 2017, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, sujeito a regime de prova.
4. O autor apresentou recurso, não concordando com a pena que lhe foi aplicada, ao que foi dado provimento através de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em …2021 e transitado em julgado em … 2021, através do qual a referida pena foi alterada, sendo aplicado uma pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros).
5. Pelas 16h13m do dia 27 de agosto de 2018, H… esteve presente nas instalações da GNR de Loulé, comunicando o desaparecimento da sua companheira I… (o auto de notícia de fls. 243 v.º e ss.)
6. Pelas 17h00m/18h00m, do mesmo dia, a viatura … de cor verde foi encontrada no .., em Quarteira (auto de inquirição de fls. 289 e ss.)
7. Após deslocação ao local da patrulha da GNR do posto territorial de Quarteira foi quebrado um dos vidros e encontrado no seu interior no banco traseiro ao meio, com o cinto de segurança colocado, o cadáver da desparecida (relatório da inspeção judiciária de fls. 256 e ss.)
8. O autor tinha estado, por várias vezes, com I…, no interior do veículo onde aquela foi encontra morta e ambos mantiveram um relacionamento sexual.
9. Em 5 de setembro de 2018 mostra-se proferido despacho pelo Digno Magistrado do Ministério Público titular do inquérito que corria termos sob o n.º 243/18.0JAFAR, atinente ao segredo de justiça, onde se lê: (…) tendo em conta que dos autos resulta que a morte de I… pode estar relacionada com dívidas por si contraídas no âmbito a atividade de tráfico de estupefacientes (…). (despacho de fls. 248 e ss.)
10. Nas declarações prestadas pelo autor, na qualidade de testemunha, no âmbito dos aludidos autos de inquérito, consta:
“(…)
Referiu que conhecia a mesma “de vista” e que a costumava encontrar nos bares de locais de diversão noturna de Quarteira e Vilamoura (…).
Salienta que no início do mês de agosto passado, em data que não consegue precisar mantiveram atos sexuais.
(…)
Pelo que se recorda, a última vez que se encontrou com a I… ou viu a I… foi a meio do mês de agosto passado, Tal encontro ocorreu no bar “Ponto Final” em Vilamoura. A I… estava sozinha, como costumava andar.
(…)
Refere que teve o número de telemóvel de I… há três meses atrás. Também a I… teve o contacto telefónico do depoente. No entanto, não tinham o hábito de falar ao telemóvel. Aliás, não se recorda de ter falado com a I… ao telemóvel (…).
Sabe que a mesma utilizava três viaturas automóveis. Dois carros da marca “Opel”, tipo carrinha, um deles de cor verde e outro de cor cinzenta.
(…)
Refere que chegou a andar em todas essas viaturas com a I… A última vez que andou de carro com a I…, foi no início do mês de agosto. A I… deu-lhe boleia de Quarteira até Almancil, no “…” de cor verde. Nunca teve qualquer relação sexual com a I… no interior das suas viaturas.» (auto de inquirição de fls. 318 v.º e ss.)
11. Resultava do depoimento de várias testemunhas, prestados no âmbito do inquérito, que I… mantinha relacionamentos sexuais com mais de uma pessoa. (autos de inquirição de fls. 272 e ss. e fls. 279 e ss.)
12. No dia 26 de novembro de 2018, no âmbito do Processo n.º …, cujo inquérito correu termos no Ministério Público – Procuradoria da República da Comarca de Faro – Departamento de Investigação e Ação Penal – 1.ª Secção de Loulé, foram emitidos mandados de detenção fora de flagrante delito pela Polícia Judiciária, por um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, als. d), g) e i), ambos do Código Penal (despacho de fls. 339 e ss.)
13. No dia seguinte, 27 de novembro de 2018, (o ora autor) foi submetido a primeiro interrogatório judicial, tendo negado a prática dos factos (auto de interrogatório de fls. 347 e ss.)
14. Sendo submetido à medida de coação de prisão preventiva, através de despacho onde se lê: “Considerando as regras da experiência comum, da lógica e as demais circunstâncias do caso, nomeadamente, o teor da prova pericial e documental junta aos autos, isto é, auto de notícia de fls. 2/4, termo de entrega de cadáver de fls. 5, verificação do óbito de fls. 7, comunicação de notícia de crime de fls. 58/60, fichas de identificação civil, biográfica e de registo automóvel de fls. 70/73, relatório de serviço de fls. 74/78, autos de inquirição de testemunhas de fls. 89/92, 190/194, 197/203, 214/225 e 263/270, relatório de inspeção judiciária de fls. 93/129, autos de diligência de fls. 204/210, 226, 232/233, 237/242 e 257/260, cota de fls. 227, perícia informática forense e auto de recolha de dados informáticos de fls. 242/248, guias de entrega de fls. 250/253, print de fls. 261/262, relatório videográfico da autópsia de fls. 280/281, relatório de serviço de fls. 301/304, auto de denúncia por desaparecimento de fls. 309/311, cota de fls. 313, relatório de inspeção judiciária de fls. 318/326, auto de diligência de fls. 333/334, auto de apreensão de fls. 335/336, relatórios de fls. 338/249, 418/420, 455/456, 483/487, cota de fls. 366, autos de diligência de fls. 367/374, guia de entrega, auto de teste rápido de fls. 379/381, auto de apreensão de fls. 387/388, autorização de fls. 391, guia de depósito de objetos de fls. 392, auto de diligência de fls. 393, auto de inquirição de fls. 394/397, auto de apreensão de fls. 400/401, guia de entrega de fls. 402, termo de entrega de fls. 405, cota de fls. 410, termo de entrega de fls. 411/413, auto de recolha de imagens de fls. 416/417, informações de fls. 431/438, 466/467, cota de fls. 453, relatório de exame pericial de fls. 473/475, guia de depósito de objetos de fls. 476, cota de fls. 477, CRC de fls. 478/480, auto de diligência de fls. 481/482, informações de fls. 494/495, auto de diligência de fls. 496, certidão de fls. 499, relatório de fls. 804/805 e dossier nº 3342300 anexo aos autos, assim como o teor das declarações prestadas pelo arguido, assinalando-se quanto a estas o facto de apesar do arguido ter negado a prática do crime de homicídio, o mesmo não conseguiu explicar por que razão no seu ADN (perfil genético na vagina da falecida da I…, na mão esquerda da mesma e no fio áudio que se encontrava a envolver os pulsos daquela, conforme relatório pericial dos autos constante o qual infirma as declarações do arguido, nomeadamente, quando este afirmou que a última vez que se lembra de ter tido contacto com a I… ter sido em meados de Agosto do corrente ano. Por outro lado, verifica-se igualmente que o arguido era na altura titular do numero de telemóvel 96… o qual se mostra associado aos últimos contactos estabelecidos entre e com a vítima, o que igualmente, infirma as declarações do arguido já que este nega ter contactado telefonicamente com a I… o que se revelou também contraditório das suas próprias declarações atenta a procacidade e que aquele disse que contactava a com a I… (quatro vezes por mês).
Toda a prova foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º do C.P.P.).
(...)
Não existem dúvidas, em conformidade com o supra exposto, quanto à gravidade dos factos indiciados nos presentes autos e quanto aos fortes indícios de que o arguido foi o autor do crime em causa.
Da factualidade descrita pode-se concluir, no que ao crime de homicídio qualificado concerne, por um concreto perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de fuga e de perturbação do decurso do inquérito.
Por outro lado é inequívoco o alarme social que se mostra subjacente a conduta do arguido; a gravidade e a violência extrema que a mesma se mostram associadas e o perigo de fuga que in casu se revela no facto daquele ter nascido em … e de em tal país ter familiares próximos (avós, tios, primos, etc.).
Considera-se, com efeito, em face dos fatores expostos que nenhuma outra medida de coação que não uma detentiva da liberdade será suficiente para salvaguardar os perigos concretos que se fazem sentir, desde logo em face da gravidade dos factos, de personalidade revelada pelo arguido e dos supra enunciados perigos.
Assim, por todo o exposto, não se revelando adequadas e suficientes quaisquer outras medidas de coação, atendendo a que as exigências cautelares de continuação da atividade criminosa e de perigo de fuga não se bastam com qualquer medida não privativa da liberdade, a ponderação entre a aplicação da prisão preventiva e a aplicação da obrigação de permanência na habitação, não obstante o carácter subsidiário destas medidas de coação (cfr. art.º 28º, nº 2, da CRP e 193º, nº 2 do C.P.P.).
Importa, no entanto, salientar que a medida de obrigação de permanência na habitação (art. 201º do C.P.P.) não impediria, no caso, o perigo de fuga, pois o arguido sempre poderia tentar escapar ao controlo da justiça e conseguir encetar uma fuga.
Sempre esta medida seria insuficiente para colmatar as exigências cautelares, pois, em face da inexistência de uma barreira física intransponível, o arguido, muito provavelmente, irá sair dela eximindo-se à Justiça, pelo que, as exigências cautelares em concreto impõem a aplicação ao arguido da medida de coação de prisão preventiva.
Em conformidade, considerando a gravidade dos factos, o alarme social provocado, o perigo de continuação da atividade criminosa, de fuga, de perturbação do decurso do inquérito e demais perigos e da personalidade desrespeitadora das regras sociais e de direito vigentes, demonstrada pelo arguido, só a medida de coação de prisão preventiva se revela adequada às exigências cautelares do crime de homicídio, proporcional à gravidade do mesmo e da sanção que previsivelmente lhe virá a ser aplicada.
Em consequência, e à luz do disposto nos arts. 191.º, n.º 1, 193.º, n.º 1, 202.º, n.ºs 1, als. a) e b) e 204.º, als. a), b) e c), todos do C.P.P., considera-se que a conduta grave e persistente do arguido, aliada à circunstância da falta de sentido crítico para alterar a sua conduta, impõem a aplicação ao mesmo da medida de coação mais gravosa, a de prisão preventiva – apesar de não se ignorar que a aplicação desta medida de coação é de “ultima ratio”.
Como acima se referiu, qualquer outra medida de coação, neste momento, não seria apta a afastar aquele mencionado perigos.
(…)” (idem)
15. No dia …, o autor foi conduzido ao Estabelecimento Prisional de Olhão.
16. Logo após ter sido detido, o autor, foi notícia, na comunicação social, designadamente no Jornal do Algarve, a qual era acessível através do endereço eletrónico
17. Foi publicada notícia no Jornal Correio da Manhã da detenção do autor.
18. Tendo inclusive sido publicada uma fotografia do arguido no referido jornal, de tiragem nacional, …
19. Nas diversas notícias publicadas em jornais em suporte de papel, acompanhadas de suporte digital, lê-se o nome do autor J…, a sua alcunha “Y…”, (como era chamado e conhecido por todos, pelos amigos e familiares), a sua idade, o local onde residia.
20. O que permitiu a sua inequívoca identificação e associação aos factos noticiados.
21. Sendo o autor rotulado de “homicida”.
22. Foi noticiado e discutida a alegada conduta do autor, em diversos programas televisivos, nomeadamente no programa …
23. E, https://www.google….
24. E ainda no programa …
25. No Estabelecimento Prisional de …, quando esteve preso preventivamente, o autor era apontado por todos como perigoso, homicida e colocado de parte por uns e ameaçado por outros.
26. O autor, ao ser-lhe imputada a prática do crime de homicídio, sentiu-se angustiado, nervoso e ansioso.
27. O autor passou várias noites sem conseguir dormir.
28. Quando era visitado pela sua namorada e pelos familiares, mãe e irmã, sentia vergonha por estar naquela situação e impotente para tranquilizar os seus familiares.
29. O autor interpôs recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Évora do despacho que decretou a sua prisão preventiva (alegações de recurso de fls. 357 e ss.)
30. Em 22 de fevereiro de 2019, foi revisto o estatuto processual do autor, sendo sido decidido pelo Mm.º Juiz de Instrução manter a medida de coação de prisão preventiva, por se manterem os pressupostos de facto e de direito que haviam determinado a sua aplicação (fls. 390 v.º e ss.)
31. Por acórdão proferido em 26 de março de 2019 foi a medida de coação que lhe havia sido aplicada em 1.º interrogatório judicial mantida, sendo o recurso interposto pelo arguido julgado improcedente (fls. 406 v.º e ss.)
32. No referido acórdão pode ler-se:
“(…) O conceito de «fortes indícios» não é projetado no enunciado juízo de prognose, intervindo, na maioria dos casos, num momento processual anterior, em que a investigação se encontra por vezes ainda numa fase incipiente.
Nesta ordem de ideias, serão «fortes indícios» aqueles que, no contexto de um determinado estado de desenvolvimento da investigação se apresentem particularmente claros, inequívocos e fiáveis.
Em síntese, o recorrente censura ao despacho impugnado o ter julgado fortemente indiciado que o arguido tirou a vida à ofendida I…, nos termos nele descritos.
Nas declarações que prestou, no interrogatório judicial no termo do qual foi proferido o despacho sob recurso, o arguido J… afirmou conhecer a ofendida I… e ter-se relacionado com ela, inclusive sexualmente, tendo estado com ela, pela última vez, em meados de Agosto, altura em que mantiveram relações sexuais.
Nega ter tido qualquer intervenção no processo causal que, na noite de 26 para 27/8/2018, conduziu à morte de I….
Antes de mais, importa ter presente que a investigação dos factos, que estiveram na origem do decesso de I…, e das respetivas implicações jurídico-criminais, se encontra ainda num estádio relativamente atrasado do seu desenvolvimento.
Tal realidade espelha-se, por exemplo, na circunstância de o relatório da autópsia da ofendida, pelo menos à data da prolação do despacho sob recurso, não ter sido ainda junto aos autos, pelo que se encontraram por determinar cientificamente as causas do seu falecimento.
No entanto, a prova pessoal produzida, mormente os depoimentos testemunhais de H… (fls. 117 a 121), companheiro da falecida, e de … (fls. 125 a 128), permite estabelecer que I…, pelas 0 horas do dia 27/8, saiu de casa, onde habitava com o companheiro, a mãe e os filhos tendo dito ao companheiro que ia tomar café com uma amiga.
Posteriormente, a ofendida já só voltaria a ser vista sem vida, quando a viatura onde veio a ser encontrada chamou a atenção de Olena Lenyvenko e do marido desta …, que chamaram a GNR, a qual compareceu no local e procedeu à abertura do veículo. A diligência subsequentemente efetuada possibilitou, além de atestar o óbito da ofendida, por declaração da autoridade de saúde a fls. 63, apurar que I… se encontrava deitada lateralmente, no banco traseiro da viatura, com as mãos atadas atrás das costas e uma t-shirt enrolada e amarrada na zona cervical, tapando parcialmente a boca, e com sinais de ali ter sido ateado fogo, nomeadamente, mediante o uso de papéis – vd. relatório de inspeção, elaborado por inspetores da PJ e reportagem fotográfica a fls. 80 a 116.
Aquilo que permite ligar o arguido J… aos factos dos quais resultou a morte de I… reside no resultado do exame pericial biológico, que possibilitou a deteção de vestígios do seu ADN na vagina da falecida, numa unha da mão esquerda desta e num dos fios que lhe atavam as mãos, cujo relatório figura a fls. 265 a 267.
De fls. 291 consta um diagrama das comunicações telefónicas havidas nos dias 25/8/2018 a 27/8/2018 entre os telemóveis nº 91…4, utilizado pela ofendida, e nº 96…, referenciado nos autos como sendo utilizado pelo arguido, do qual resulta que, posteriormente às 0 horas da mais recente daquelas datas, mais precisamente entre as 0h16m21s e as 0h31m03s, foram efetuadas entre os dois referidos postos telefónicos cinco conversações verbais, cujo teor se desconhece e uma mensagem SMS, esta última com o conteúdo: «Então».
Nas declarações prestou em interrogatório judicial, em situação de detenção, cujo registo sonoro escutámos, o arguido reconheceu ter mantido com I… um relacionamento sexual, mas negou ter estado com ela na noite em que ocorreram os factos de que resultou a sua morte, afirmando ter-se encontrado com a ofendida e com ela ter tido relações sexuais, pela última vez, em meados de Agosto, o que equivale a dizer, sensivelmente, pouco mais de uma semana antes da ocorrência dos factos investigados.
Conforme o Exº Juiz de Instrução justamente não deixou de chamar a atenção do arguido, a versão por este defendida carece de credibilidade, em face do resultado do exame biológico, para mais tendo o corpo da ofendida estado sujeito a elevadas temperaturas, por causa do incêndio que foi ateado no interior da viatura onde veio a ser encontrado. Na motivação do recurso, o arguido insurge-se contra ter o Tribunal «a quo» estabelecido a ligação entre a sua pessoa e a utilização do telemóvel nº 96…, com base em reconhecimentos fotográficos efetuados por indivíduos toxicodependentes, em violação do disposto no art. 147º do CPP; conforme informação a fls. 557 dos autos principais.
Conforme pode verificar-se da fundamentação do despacho recorrido, o juízo de convicção nele formulado não assentou em qualquer elemento, que constasse de fls. 557 do inquérito ou que envolvesse reconhecimentos por fotografia
No auto de diligência certificado a fls. 171 destes autos de recurso, que foi lavrado pela PJ em 4/9/2018, consigna-se que se apurou junto da GNR de Loulé – NIC que o telemóvel nº 96… «é utilizado por um indivíduo conotado com o tráfico de droga», que identificam como sendo o ora arguido, o qual, segundo a GNR, se dedicará a esse tráfico, utilizando duas viaturas, cujas respetivas matrículas, marcas, modelos e cores indica.
Durante o seu interrogatório judicial, foi perguntado ao arguido se era ele o utilizador do número de telemóvel a que nos reportamos, ao que ele respondeu que «não sabia».
É certo que o arguido goza da liberdade de prestar ou não declarações, não pode ser prejudicado se as não prestar e, fazendo-o, não está vinculado ao dever de verdade, não impendendo sobre ele qualquer ónus de prova ou sequer de impugnação.
No entanto, tendo o arguido optado por prestar declarações e sendo-lhe diretamente perguntado, normal teria sido, perante a experiência comum e a lógica das coisas, que não tivesse dado uma resposta tão inconcludente, na hipótese de não ter sido ele quem utilizou o telemóvel em causa.
Neste contexto, poderemos dar como indiciariamente assente que era o arguido quem utilizava, ao tempo dos factos investigados o telemóvel n.º 96…, independentemente do esclarecimento da «razão de ciência» da informação fornecida pela GNR de Loulé à PJ.
No sentido de desvalorizar a indiciação contra si erguida, argumenta o recorrente que, ao contrário dele próprio, outros teriam motivos concretos para atentar contra a vida de I…, mormente, o companheiro desta H…, devido aos relacionamentos sexuais que ela mantinha com outros homens ou ao consumo de estupefacientes por parte dela.
O relatório de exame biológico atesta que foi recolhida zaragatoa bucal de H… e que foram efetuadas as diligências aptas a detetar eventuais vestígios de ADN do companheiro da falecida no material submetido a exame, nada tendo sido detetado, relativamente a ele, ao contrário do que sucedeu com o arguido.
Como já se aflorou, a investigação dos factos causais da morte da ofendida encontra-se num estádio inicial, senão mesmo incipiente do seu desenvolvimento.
É de esperar que tal investigação venha a fazer avanços sensíveis, a partir em que seja carreado para o inquérito o relatório da autópsia da falecida I… e que o mesmo permita estabelecer cientificamente as causas do óbito.
No atual contexto probatório, o quadro factual que resulta mais provável da análise conjunta dos elementos disponíveis é que o arguido, depois das 0 horas do dia 27/8/2018 ter-se-á encontrado com I…, teve com ela relações sexuais, por razões que, pelo menos por ora, se não descortinam, decidiu prendê-la ao banco traseiro da viatura e tirar-lhe a vida, o que logrou ateando fogo.
Consequentemente, e de acordo com o critério que vimos seguindo, deverá ajuizar-se que existem fortes indícios da prática pelo arguido dos factos descritos no despacho aplicador da prisão preventiva, agora sob recurso.
(…)
Em nosso entender, mostram-se reunidos no caso concreto os pressupostos da aplicação da medida de coação prisão preventiva, prescritos pela lei processual penal.
Dado que os requisitos estabelecidos pela lei ordinária se contêm dentro das balizas fixadas pelos normativos constitucionais, mormente a al. b) do nº 2 do art. 27 e o artº 28º, ambos da CRP, não pode o despacho impugnado ter transgredido normas e princípios da Constituição, conforme defendido pelo recorrente, ficando votada à improcedência a pretensão recursiva. (…)”
33. Em 11 de maio de 2019, a Diretoria do Sul, da Polícia Judiciária elaborou relatório, onde, entre o mais, se pode ler:
«(…)
26. Em 30 de Agosto de 2018 o Setor de Telecomunicações e Informática desta Diretoria do Sul da PJ executou perícia no telemóvel da vítima – um aparelho da marca Apple, mod. Iphone 8 Plus (cfr. fls. 242 a 245), com o cartão SIM inserido com o número 91… (a operar na Altice/Meo).
27. Sucede que da análise dos elementos extraídos deste aparelho, designadamente da leitura das chamadas e sms efetuadas e recebidas, percebeu-se que um número telefónico não identificado na lista de contactos surgiu com uma grande frequência entre os dias 26 e 27 de Agosto de 2018.
28. Tal número telefónico é o 96 …, verificando-se que entre as 00H49 do dia 26.08.2018 e as 00H31 do dia 27.08.2018 (data do decesso), ocorreram entre este número telefónico e o da vítima 17 ligações, conforme melhor resulta do «Diagrama de Conexões Com Fluxo de Contatos» do Dossier 3342300 do GAC e que se encontra apensado aos presentes autos.
29. Este número de contactos encontra-se ainda em maior número nos dados de tráfego recentemente juntos aos autos a fls. 1029 a 1034 (dados da operadora Altice/Meo sobre o número de 91…), e constará de dossier futuro a elaborar pelo GAC desta Diretoria. Por sua vez, a elaboração do dossier relativo ao tratamento destes dados encontra-se, por ora, condicionada à receção dos dados de tráfego atinentes ao número telefónico do arguido (cfr. fls. 1042).
(…)
32. Retomando o ponto 28, e como afirmámos na nossa Conclusão de 6 de Setembro de 2018, o número telefónico 96… posicionou-se como o último contacto telefónico que a vítima terá mantido já próximo à hora que se considera a da sua morte (cerca da 01H00 segundo o que se alcança das declarações da testemunha …), deixando em aberto a possibilidade de o seu titular poder ter sido a última pessoa a contactar telefonicamente e/ou pessoalmente I…..
(…)
34. Em 04 de Setembro de 2018 apurou-se que o número 96… se encontrava já inscrito nas bases de dados em uso no OPC GNR associado a J…, indivíduo que segundo a informação prestada se dedicava ao tráfico de estupefacientes (cfr. fls. 260 a 262. Esta informação foi reforçada a pedido do JIC durante o interrogatório judicial que decorreu com o constituído arguido J… – cfr. fls. 557 a 558). 35. Outrossim, as diligências investigatórias desenvolveram-se no sentido de localizar e trazer aos autos o identificado J…, ainda na qualidade de testemunha, para se pronunciar quanto ao uso do número telefónico 96… e sobre a sua eventual relação com a vítima.
36. Este propósito seria alcançado em 17 de Setembro de 2018 com a sua inquirição (cfr. fls. 394 a 397).
37. Como melhor resulta do teor da inquirição, e convocando aqui parte da nossa Conclusão de 08 de Outubro de 2018, esta testemunha declararia (cfr. fls. 418 a 420), «(…) que desconhecia em absoluto que I… havia falecido de forma violenta, pessoa que apenas conhecia de vista, para especificar depois que afinal já havia mantido com ela contactos de natureza sexual, revelando até saber bastantes pormenores da vida íntima da mesma. Segundo ainda esta testemunha, a última vez que teria estado pessoalmente com a vítima havia sido a meio de Agosto do corrente, em Vilamoura, não tendo qualquer memória de ter mantido com ela qualquer contacto telefónico nessa altura ou após essa ocasião. (sic)». (negrito nosso)
38. Ora, como é fácil de compreender, estas declarações causariam logo nessa data dúvida à investigação, deixando em aberto a forte possibilidade de na data do decesso J… e a vítima terem estado – além de telefónico – em contacto pessoal entre si.
(…)
40. Em contemporâneo com a inquirição, aos autos chegaria a informação de que à data a testemunha encontrar-se-ia com o seu telemóvel ativo em Quarteira nos momentos que antecediam a morte de I…, tendo o número 96… ativado uma célula pelas 00H28 em telefonema para a vítima (cfr. fls. 409).
41. Este indicador horário distanciar-se-ia apenas 30 minutos da hora que se considera a da do decesso de I… – cerca da 01H00 -, pelo que J…, com os seus próprios meios ou já na companhia da vítima, rapidamente se deslocaria de Quarteira para o Sítio das Arrochelas, concretizando ali a resolução criminosa.
42. A exemplo, aproveitando porventura a estrada do Morgadinho (conhecida localmente pela estrada da SIC), em Quarteira. Esta localidade e o local dos factos não distam entre si mais de 4 quilómetros, trajeto que se presumindo que sendo conhecido da vítima e do ora arguido, rapidamente seria realizado de automóvel em hora próxima à dos factos.
(…)
60. Só assim se enquadra a quantidade de material genético descoberta pela análise dos objetos e vestígios recolhidos em sede de inspeção judiciária, verificando-se não haver qualquer dificuldade em determinar o seu contribuidor, o ora arguido.
61. Ademais, não se aceita – como expendeu o arguido na sua defesa – que os mesmos foram encontrados apenas e só porque com alguma frequência entrava no automóvel da vítima e envolvia-se com ela em relacionamentos íntimos, perpetuando a assim sua presença no corpo desta última e nos objetos a ela pertencentes.
62. É consabido e aceite que as boas práticas forenses para a salvaguarda dos vestígios biológicos latentes estão, inexoravelmente, dependentes do tempo entre a verificação do facto e a sua recolha, sob pena da sua integral degradação e/ou contaminação, e consequente perda.
63. E se tal premissa não fosse suficiente, no caso em apreço, rememoramos que a vítima esteve grande parte do dia 26 de Agosto de 2018 na praia (vide declarações H… de fls. 190 a 194), sendo de aceitar que por mais que uma vez se banhou em água salgada e que, já na sua residência, tomou seguramente banho, o que inviabilizaria a presença de qualquer eventual vestígio do arguido que se mantivesse no seu corpo por troca ocorrida anteriormente.
64. Consideramos, pois, que os vestígios de natureza genética do arguido revelados nos exames executados pelo LPC não têm natureza perene.
65. E que, portanto, mais não são fruto da sua atualidade, da sai «frescura», pelo contacto físico que ocorreu entre o arguido e I… no termo do dia 26 de Agosto e nos primeiros momentos do dia 27 deste mesmo mês” (relatório de fls. 440 e ss.)
34. Por despacho datado de 15 de maio de 2019, o autor veio a ser acusado da prática de crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal, e um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254.º, n.º 1, alíneas a) e b), do mesmo diploma, com referência aos seguintes factos:
“1. A hora não concretamente apurada da madrugada do dia 27 de Agosto de 2018, o arguido encontrava-se com a ofendida I… no interior do veículo automóvel de matrícula 29-32-RP numa zona de mato no Sítio da Arrochela, em Quarteira.
2. Nessa ocasião, o arguido amarrou as mãos da ofendida atrás das costas, utilizando um cabo de áudio e cordões de sapatilhas, envolveu-lhe a zona da face e do pescoço com uma camisola, e exerceu pressão sobre o nariz e a boca da ofendida, confinando-os, e fechando assim as vias respiratórias superiores, impedindo-a de respirar.
3. Como consequência necessária e direta dessa ação, a ofendida morreu por asfixia mecânica resultante de oclusão das vias respiratórias superiores.
4. O arguido agiu livre, voluntária, e conscientemente, com o propósito concretizado de matar a ofendida I…, amarrando-a previamente, e provocando a sua asfixia, bem sabendo que assim lhe provocava angústia e sofrimento particularmente intenso, sabendo ainda que tais condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
5. De seguida, e por forma não concretamente apurada, o arguido ateou fogo ao banco traseiro do referido automóvel, provocando dessa forma chamas que queimaram parcialmente o referido banco e que causaram queimaduras de primeiro e segundo grau nos membros inferiores e no membro superior direito, e queimaduras de terceiro grau na zona da coxa direita do cadáver da ofendida.
6. O arguido agiu livre, voluntária, e conscientemente, com o propósito concretizado de desfigurar e destruir, ainda que parcialmente, por ação do fogo, o cadáver da ofendida, bem sabendo que para tanto não estava autorizado, e que a sua conduta violava o respeito devido aos mortos e era proibida e punida por lei penal.
(…)” (despacho de fls. 451 e ss.)
35. O autor requereu abertura de instrução, pugnando pela sua não pronuncia, requerendo a realização de novos exames perícias e que fosse recolhida nova amostra referência de ADN para realização de estudo comparativo, pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, tendo sido realizada a recolha de ADN, através de zaragatoa bocal, realizada pela Polícia Judiciária. (fls. 456 v.º e ss.)
36. O autor manteve a pretensão da recolha da amostra referência do seu ADN, ser realizada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, e na presença da sua Mandatária, o que veio a suceder, após requerimentos apresentados nos autos pelo arguido.
37. Em sede de instrução foram os relatórios periciais, analisados e explicados, pelas peritas responsáveis pela respetiva elaboração.
38. Por despacho de 9 de agosto de 2019 foi revista a situação processual do autor, sendo decidida pela Mm.ª Juíza de Instrução, a manutenção da medida de coação de prisão preventiva, por se considerarem inalterados os perigos que fundaram a sua aplicação – certidão (despacho de fls. 482 e ss.)
39. O arguido veio a ser pronunciado pela prática de um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2 al. d), e um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo art.º 254.º n.º 1, als. a) e b), todos do Código Penal (despacho de pronúncia de fls. 496 e ss.)
40. Do despacho de pronuncia datado de 23 de setembro de 2019 consta que:
«(…)
Já vimos que inexiste prova direta do atentado contra a vida de I…, uma vez que não é conhecida qualquer testemunha presencial dos factos.
Sendo que, no que respeita a prova indireta, o arguido entende que a mesma não se mostra suficiente à indiciação da referida autoria.
Vejamos então se lhe assiste razão ou se assiste antes razão ao Mº Pº quanto ao juízo de indiciação que efetua quanto ao arguido na acusação.
A vítima, I…, foi vista com vida pela última vez (além de pelo autor dos factos) pelo seu marido e mãe, antes de sair da residência onde habitava com ambos, depois de terem saído para jantar. Como o marido não quis sair, por se encontrar cansado, a mesma saiu de casa sozinha cerca das 00h30 do dia 27, alegando que queria ir a um bar e que iria na companhia de uma sua amiga, a testemunha … sendo que as saídas da mesma para bares sem a companhia do marido era conduta habitual da mesma, não tendo ela já regressado a casa (cfr. a esse respeito o depoimento da testemunha, agora assistente, H… e da testemunha (…), respetivamente seu marido e mãe, a fls. 190 a 194 e 200 a 203, auto de denúncia por desaparecimento de fls. 31 a 33, relatório de serviço e ficha de pessoa desaparecida, de fls. 62 a 66, em conjugação com fls. 1034 – registo das últimas chamadas efetuadas e ativação de células em Quarteira).
Sucede que a I… não se deslocou a qualquer estabelecimento de bar ou outro local na companhia da sua amiga Nádia Costa, com a qual apenas tentara estabelecer contacto, sem sucesso, várias horas antes (cerca das 21h41, sem que a mesma tivesse ouvido o telefone e, portanto, não tendo atendido a chamada (cfr. depoimento de Nádia Evaristo Costa, a fls. 214 a 216, a qual refere ter sido pelas 21h41, sendo certo que o registo de chamadas referente ao nº usado por I…, a fls. 1034, apenas contém um registo de sms pelas 20h13m).
I… era consumidora (e ao que tudo indica vendedora) de produtos estupefacientes e mantinha frequentemente relações amorosas extraconjugais (cfr. declarações do assistente e depoimentos das testemunhas …, a fls. 89 a 92 e 217 a 219, …, a fls. 219 a 221, …, a fls. 222 a 225, …, a fls. 372 a 373).
Á data dos factos I… mantinha com o arguido uma relação amorosa extraconjugal (cfr. o facto relatado pelas testemunhas supra referidas no sentido de ser habitual manter esse tipo de relacionamentos e declarações do arguido, a fls. 394 a 397 ainda na qualidade de testemunha e em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, cujo auto consta de fls. 525 a 541 e o CD na contracapa do III Vol., sendo que são essencialmente idênticas às prestadas ainda na qualidade de testemunha).
Após sair da sua residência, sem que se tenha encontrado com a sua amiga, também não há notícia de que I… se tenha deslocado a qualquer estabelecimento público, mormente de bar ou café.
No entanto, após sair de casa, a mesma estabeleceu contactos telefónicos, cinco chamadas telefónicas e uma sms para o nº 96…, sendo este o último número de contacto com a vítima (cfr. auto de exame pericial ao telemóvel da vítima e DVD de extração de dados do mesmo, a fls. 243 a 245 e detalhe de tráfego de fls. 1029 e ss., mormente a fls. 1034).
I… viria a ser encontrada sem vida pela GNR, pouco após as 18h00 do dia 27/08/2018, estando no interior do veículo automóvel de marca …, encontrado pouco antes por …. Era em tal veículo que, à data, a vítima se fazia transportar, veículo esse que havia sido emprestado ao seu marido pelo contabilista do mesmo, …, a quem fora entregue pelo respetivo proprietário, …, que à data se encontrava no Brasil, estando o veículo parcialmente carbonizado (cfr. declarações do assistente, a fls. 190 a 194 e depoimentos de …, a fls. 263 a 270 e de .., a fls. 1055 a 1057, bem como auto de notícia de fls. 2 a 4, ficha de registo automóvel de fls. 72, relatório de inspeção judiciária de fls. 93 a 97).
O veículo encontrava-se num local ermo, isolado e com muita vegetação, habitualmente frequentado por prostitutas e seus clientes (cfr. auto de notícia de fls. 2 a 4 e relatório de inspeção judiciária de fls. 93 a 97, em particular fls. 94 e relatório de inspeção judiciária de fls. 318 a 323), ou seja, em local habitualmente escolhido para a manutenção de relações sexuais em veículo automóvel, sendo que se encontrava imobilizado entre a vegetação (cfr. referido auto de notícia).
Algumas horas antes de ter sido encontrado o veículo e a I… sem vida, no mesmo local, cerca das 1h00, foram ouvidos dois gritos provenientes de indivíduo de sexo feminino (cfr. depoimentos de …, a fls. 263 a 270).
Conjugando esta factualidade com as regras da experiência comum, poderá concluir-se com segurança que I… saiu de casa, não para se deslocar a um bar com a sua amiga, mas antes para manter um contacto de cariz sexual com o utilizador do nº telefónico 96… e que para o efeito se deslocaram ao local em que pela tarde desse mesmo dia (27/08/2018) I… foi encontrada sem vida, no interior do veículo automóvel que à data a mesma utilizava.
Sendo frequente a I… manter relacionamentos amorosos extraconjugais, à data a mesma mantinha um tal relacionamento com o arguido J…, como é reconhecido pelo próprio, sendo que embora algumas amigas refiram um relacionamento com um tal “…l”, este (a testemunha …), refere o terminus desse relacionamento em data anterior.
J… tinha residência em Almansil e em Quarteira (cfr. fls. 394 e 525), sendo esse o local onde foi ativada a última célula referente ao nº91…, pelas 00:28 (cfr. fls. 1034 – detalhe de tráfego referente ao nº em causa).
Foi também em Quarteira a célula ativada pelo nº 96… à mesma hora, ou seja, às 00h28 (cfr. fls. 1115 – detalhe de tráfego referente ao nº em causa), último nº com quem a vítima estabeleceu contactos, já após sair da sua residência (cfr. fls. 466 a 467, 1034 e 1115).
Apenas é diversa a célula ativada quando, momentos antes, pelas 00h16m, os referidos nºs trocam um sms (cfr. fls. 1034 e 1115). Porém, esse sms, foi provavelmente enviado quando a vítima ainda se encontrava na sua residência, já que H… refere que a mesma apenas saiu de casa pelas 0h30m/1h00, tendo sido previsivelmente na primeira hora indicada, já que pelas 00h16m envia sms para o nº 96…., que ativa a célula Campina FDDH1 e pelas 00h28m efetua chamada telefónica, ativando a célula Quarteira Centro. Por sua vez, o nº 96… ativa no primeiro momento a célula Quarteira Antiga e no segundo momento a célula Quarteira Centro (esta coincidente). Indiciam, assim, os autos que após a troca da sms pelas 00h16, I… e o utilizador do nº 96… se deslocam para o mesmo local, onde provavelmente teriam combinado o encontro.
Quanto à titularidade do nº 96…, cumpre referir que a primeira referência à sua titularidade surge nos autos a fls. 260 (inicialmente fls. 144), em que a Polícia Judiciária relata ter efetuado diligências junto do NIC da GNR de Loulé, onde o nº em causa é conhecido como sendo pertença do ora arguido, conhecido por esse núcleo por se dedicar ao tráfico de estupefacientes. Posteriormente, a fls. 557 consta nova informação nesse sentido, segundo a qual uma tal indicação havia sido obtida através de consumidores de estupefacientes.
Efetivamente, o arguido foi condenado no âmbito do processo …, do J3 de Loulé (sem trânsito em julgado conhecido nos nossos autos), pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 25º, al. a) do DL 15/93, de 22/02 (cfr. certidão de fls. 1292 e ss., extraída do processo nº …), sendo facto do conhecimento geral e que resulta também da experiência profissional da signatária no âmbito da criminalidade de venda de produto estupefacientes, que é usual os vendedores de produtos estupefacientes trocarem frequentemente de números de telefone (mormente como forma de fuga a serem sujeitos a interceções telefónicas), não possuírem telefones registados em seu nome e possuírem em simultâneo mais do que um contacto telefónico.
Resulta das várias informações que se mostram juntas aos autos referentes a números de telefone conhecidos como usados pelo arguido e contactos indicados pelo próprio (cfr. fls. 394, 1259, 1392 e ss.), que o mesmo utilizava habitualmente números vários de telefone.
Concretamente no que respeita ao nº 96…, trata-se de nº sem qualquer registo e sem pagamentos por multibanco, ou seja, sem qualquer registo que o relacione com o seu titular, facto que é comum e usual no que respeita a telemóveis usados por vendedores de produto estupefacientes (fls. 466). Este nº, que já vimos apresenta vários registos de chamadas para I…, nos dias 26 e 27 de agosto de 2018, não se encontra registado no seu aparelho telefónico associado a qualquer nome.
Sem prejuízo do tipo de valoração que pode ser efetuado das informações de fls. 260 e 557 (válida como elemento indiciário para a investigação, mas não para, por si só, fundar a demonstração da titularidade do nº), já compulsada a listagem de registo de chamadas de fls. 1320 e ss., referente a um número de telefone (96…) cujo aparelho foi apreendido ao arguido no âmbito do referido processo nº … e que o arguido nesses autos reconheceu como sendo sua pertença também reconhecido pelas testemunhas com sendo sua pertença (fls. 1310 a 1319), dela constam alguns registos de chamadas telefónicas para os números que também se encontram na listagem que corresponde ao nº 96. e que consta de fls. 1111 a 1115.
Assim sucede com os nºs 93… e 96…. Este último nº, além de nessa lista, aparece também registado na lista referente ao nº 96…, nº este que operou no mesmo Imei em que operou o nº 96…. Também o nº 96… aparece em ambas as listagens (cfr. informação da Meo/Altice de fls. 1238 e CD de fls. 1288).
Ou seja, mais do que um nº de telefone que estabelecia contactos, no caso do nº 93… muito regulares, com o arguido (para o número de telefone 96…, que se encontrava a operar em aparelho telefónico lhe foi apreendido e se sabe era pertença do mesmo), surgem também como contactos comuns do nº 96…., quanto àquele nº continuando a ser regulares.
De resto, no seu interrogatório judicial, acerca desse número, o arguido referiu não saber se era sua pertença e não possuir o contacto telefónico da vítima, o que não era credível.
Tudo, aliado ao facto de J… manter à data um relacionamento amoroso com I… de esta ter saído de casa dizendo que se ia encontrar com uma amiga, o que não correspondia à verdade, de o nº 96…. ter ativado como última célula nesse dia referente às últimas chamadas com I… Quarteira, local onde o arguido residia, tudo é de molde a que se possa concluir com segurança que o nº 96… era pertença de utilizado pelo arguido.
Por outro lado, compulsados os relatórios periciais de análise de vestígios biológicos recolhidos no local dos factos e no corpo da vítima e sua comparação com as zaragatoas efetuadas ao arguido J… e a H… (fls. 472 e ss., 855 e ss. e fl. 1366 a 1370, da autoria do LPC e do INML, respetivamente), verifica-se que foi encontrado sémen do arguido (ou da sua linhagem paterna) no exsudado vaginal de I…, assim como foram encontrados vários vestígios do perfil genético (ADN) do arguido nas unhas de I…, no auricular que lhe apertava os pulsos, em pontas de cigarro encontradas no exterior do veículo.
Pretende o arguido que todo esse material genético aí se encontrasse em virtude de manter à data com I… um relacionamento amoroso e sexual, sendo usual manterem relações sexuais no veículo automóvel em que I… veio a ser encontrada e que, portanto, tais vestígios aí teriam permanecido desde a última vez que mantiveram relações sexuais, o que segundo o mesmo ocorrera pela última vez em meados de agosto, ou seja, mais de uma semana antes.
Ora, prestados esclarecimentos pelas Srªs peritas autoras dos relatórios periciais do LPC e INML, respetivamente C e T…, embora a primeira tenha referido não se mostrar possível determinar desde quando se encontraria o sémen na vagina da I..., ambas foram unânimes em referir que o ato de lavagem faria desaparecer o mesmo, tendo a última esclarecido ainda que, não sendo embora possível determinar com exatidão o referido momento, já é possível determinar que, em regra, para além de 72 horas após a manutenção das relações sexuais, mesmo sem lavagem vaginal, deixa de ser possível recolher vestígios de sémen na vagina, sendo absolutamente impossível que tais vestígios perdurassem por mais de 8 dias.
Uma tal conclusão não se mostra compatível com as declarações prestadas pelo arguido no sentido de que estivera com I... pela última vez em meados de agosto (tanto mais que a recolha do exsudado vaginal apenas ocorreu em 30/08/2018 – fls. 237).
Ora, sendo embora possível que o arguido tivesse deixado vestígios biológicos seus em objetos que se encontrassem no interior do veículo automóvel, por aí ter estado e eventualmente até mantido em outras datas relações sexuais com a vítima, já considerando que tais vestígios foram encontrados precisamente nos fios dos auriculares que enrolavam os pulsos da vítima, no raspado ungueal, em pontas de cigarro que foram recolhidas no exterior do veículo e não no seu interior (cfr. fls. 98 a 101 e 1366 a 1370), bem como que a mesma apresentava sémen do arguido no exsudado vaginal, mas também nas cuecas que envergava (não sendo credível que usasse as mesmas cuecas e as não tivesse lavado), tendo ainda sido recolhidos vestígios de sémen em papéis e na camisola recolhidos no local, sendo o arguido a pessoa com quem a vítima mantinha à data relação amorosa extraconjugal, tendo sido a última pessoa para quem a vítima telefonou após sair de casa, tudo conjugado com as regras da experiência, é de molde a que se conclua pela indiciação forte de o arguido ser o autor dos factos que lhe são imputados na acusação.
É certo que nos relatórios periciais também foram identificados outros perfis genéticos e que ambos os relatórios não são totalmente coincidentes.
É certo também, como sustenta o arguido, que não foi apurada qualquer motivação para a prática o crime.
Porém, quanto à primeira questão refira-se, por um lado, que é normal que possam ter sido encontrados vestígios de outros fornecedores de ADN, já que, como referiu a Srª perita do INML, qualquer pessoa que toque em um objeto que tenha sido sujeito a análise deixa nele o seu ADN, sendo certo que no que respeita à camisola que tapava a boca a I..., o perfil genético encontrado era do proprietário dessa camisola, o proprietário do veículo automóvel Marcus Vinicius Martins, que aí a deixara, como viria a ser reconhecido pelo mesmo e concluído nos exames periciais (cfr. fls. 1055 a 1057, 1282 e 1366 a 1370).
Por outro lado e no que respeita ao teor de ambos relatórios, também como esclareceu a mesma Srª perita, as perícias biológicas levadas a feito pelo LPC são menos exaustivas e pormenorizadas do que as levadas a efeito pelo INML, o que determina resultados aparentemente divergentes, mas na realidade não divergentes. As divergências podem prender-se tão só com esse facto, referindo a Srª perita que no INML não ocorreu qualquer contaminação de vestígios, embora esta seja algo que por vezes ocorre.
In casu não resulta da análise de ambos os relatórios periciais que as divergências verificadas resultem de qualquer outra circunstância que não essa, uma vez que não se verifica divergência entre dois resultados positivos, mas tão só se verifica indicação de certos resultados positivos pelo INML e ausência de qualquer menção pelo LPC (por exemplo quanto às pontas de cigarro e raspado ungueal direito).» (idem)
41. Decidindo-se ainda, pela manutenção da medida de coação de prisão preventiva a que autor fora sujeito aquando do interrogatório judicial, nos seguintes termos:
“(...)
Dão-se por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos os fundamentos do despacho que aplicou a medida de coação a que o arguido se mostra sujeito. Verifica-se que subsistem os indícios fortes da prática, pelo arguido, do crime que determinou a sua sujeição a prisão preventiva, do qual se encontra agora acusado e pronunciado, bem como também do crime de profanação de cadáver. Igualmente se mantêm inalterados os perigos que fundaram a aplicação dessa medida. Assim sendo, dada a ausência da alteração quanto aos pressupostos de facto e de direito que determinaram a sujeição do arguido ao atual regime coativo, determina-se que o arguido, J…, continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva – art. 213º, nº 1, al. b) e 215º, nº 1, al. a) e 2 do C. P.P.”. (idem)
42. Cada notificação que o autor rececionava com o despacho de manutenção da prisão preventiva, sentia-se agoniado, triste, revoltado e incapaz.
43. Pelo autor foi apresentada contestação, na qual referiu, uma vez mais, não ter cometido os crimes pelos quais foi pronunciado, discordando com a factualidade descrita na acusação para a qual o despacho de pronuncia remeteu, que lhe foi imputada, pedindo a sua absolvição. (contestação de fls. 516 e ss)
44. Foi realizada audiência de discussão e julgamento, tendo em alegações finais o Ministério Público pedido a sua condenação e a defesa a sua absolvição.
45. Por decisão proferida em … de 2019, o Tribunal Coletivo, (Juízo Central Criminal de Faro - Juiz 4) condenou o autor, não pela prática do crime de homicídio qualificado pelo qual vinha acusado, mas pela prática em autoria material, de um crime de homicídio p. e p. pelo art.º 131.º do Código Penal numa pena de (12) doze anos de prisão, e pela prática em autoria material de um crime de profanação de cadáver p. e p. pelo art.º 254.º n.º 1 al. b) do Código Penal, numa pena de (4) quatro meses de prisão, em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de (12) doze anos e (1) um mês de prisão. (acórdão de fls. 528 v.º e ss.)
46. No que concerne aos fundamentos da decisão, em termos de matéria de facto dada como provada, o Coletivo de Juízes do Tribunal de 1.ª instância fez constar:
“(…)
Quanto às circunstâncias objetivas descritas 1 a 3 e 5, atendeu-se aos depoimentos, isentos e coerentes, das testemunhas S… e M… (inspetores da PJ que se deslocaram ao local e intervieram na sua análise, tendo a primeira tido intervenção na investigação subsequente) e O.L… (a qual vivia perto do local dos factos, relatando o que ouviu na noite em causa e as condições em que a viatura com a I... foi encontrada), em conjugação com o relatório de inspeção de fls. 93 e ss., e fotografias que integra (que as primeiras testemunhas confirmaram em audiência), as fotografias de fls. 324 e ss. e o relatório de autópsia (fls. 951/964) – tudo permitindo definir a hora aproximada dos factos, e o local e a natureza dos eventos ocorridos, tal como descrito. Os contactos telefónicos estabelecidos com o telefone da I... (v.g. fls. 1034) também concorrem para delimitar temporalmente os eventos, que teriam ocorrido após tais contactos (em termos conformes, porque prévios, aos elementos sugestivos descritos pela referida testemunha …). Já não facultavam elementos probatórios adicionais porque não existia prova bastante para imputar ao arguido o número com relação ao qual foram tais contactos estabelecidos (96…): a testemunha … referiu ter havido uma correlação do número com o arguido a partir de informação obtida junto da GNR mas sem saber precisar a origem da informação, pelo que tal atribuição não tinha qualquer valor probatório; a circunstância de este 96… ter tido contactos (e por vezes frequentes) com dois números com os quais o telemóvel com o cartão 76…797 também manteve contactos (tendendo a atribuir-se a este último número ao arguido) apenas permite afirmar que os utilizadores dos dois números em causa tinham contactos em comum, e já não que esses utilizadores eram a mesma pessoa (a atribuição do número … ao arguido também não é concludente: assenta nos elementos de fls. 1318 e ss. mas, descontando as declarações de testemunhas não valoráveis nesta sede, resta ali a apreensão de telemóveis sem números atribuídos e depois a recolha de dados de tráfego: esta recolha sugere que se reportaria a um dos telemóveis apreendidos, mas tal não está revelado; e não se justificam diligências adicionais porque, como referido, os dados em causa não são probatoriamente consequentes).
As declarações do assistente, honestas e críveis, foram relevantes no estabelecimento do quadro prévio e geral de conduta da I..., com quem o assistente vivia, à data, em união de facto.
No que toca à autoria dos factos (à sua imputação ao arguido), inexistia prova direta. Relevavam neste aspeto particularmente os vestígios colhidos em objetos existentes na viatura e junto a esta (no local onde o cadáver é encontrado), e nos quais é verificada a existência de ADN do arguido2.( 2Não se trata de uma certeza mas de uma possibilidade com uma elevadíssima probabilidade (compatibilidade); mas esta, por ser tão elevada (como cabalmente revelado nos esclarecimentos de fls. 848/855 e explicitado em audiência pela perita …) e na falta de um irmão gémeo homozigótico do arguido, corresponde a uma identificação segura, praticamente certa.)
Assim, constata-se, a partir dos exames de fls. 473 e fls. 1365, dos esclarecimentos de fls. 848/855, e dos esclarecimentos, consistentes, das peritas C…. e T…, prestados em audiência de forma convincente, que existia ADN do arguido:
- na unha direita da I... (ADN apenas do arguido e da I...)
- na unha esquerda da I... (ADN do arguido, da I... e de outros; o ADN do cromossoma Y é apenas do arguido)
- em 3 beatas / pontas de cigarros encontrados junto ao Opel, no seu exterior (ADN do arguido e da I... em duas pontas, e apenas do arguido na terceira)
- no atacador usado para prender os pulsos da I... (ADN presente em dois locais; num deles, o ADN é do arguido, da I... e de outros, e o ADN do cromossoma Y é apenas do arguido; em outro local, o ADN é apenas do arguido e da I...)
- no fio (cabo de áudio) também usado para prender os pulsos da I... (ADN do arguido, da I... e de outros; o ADN do cromossoma Y é apenas do arguido)
- num segundo atacador encontrado no interior da viatura (ADN do arguido, da I... e de outros; o ADN do cromossoma Y é apenas do arguido)
- em 3 pedaços de papel, encontrados igualmente no interior da viatura (com sangue: o sangue é referenciado no exame de fls. 473; no exame de fls. 1365 já se conseguiu apurar apenas a sua possibilidade; mas as condições dos factos, a circunstância de a I... ter sangrado (v. relatório de autópsia) e a própria apresentação dos papéis o revelam (v. fls. 115) (ADN do arguido, da I... e de outros, e o ADN do cromossoma Y é apenas do arguido num; ADN do cromossoma Y do arguido e de outros nos outros dois)
- nas cuecas da I... (ADN do arguido, da I... e de outros; o ADN do cromossoma Y é apenas do arguido), e
- na vagina da I... (ADN do cromossoma Y apenas do arguido; o exame do LPC também o confirma, referindo ainda um contribuinte menor não identificável porque muito incompleto, mas o exame do IML apenas encontra, quanto ao cromossoma Y, referência compatível com o arguido
(5 . Os exames não revelam com certeza a presença de sémen mas pelo menos de líquido seminal existe; a explicação da perita … permite afirmar que deveria existir sémen. )
- na camisola usada (ADN da I..., do arguido e de outros; o ADN do cromossoma Y é do arguido e de outra pessoa – esta outra pessoa era Marcus Vinícius Vieira Dias Martins, como resulta do exame de fls. 1282 (o seu contributo para os factos foi excluído por se tratar do proprietário da viatura em causa, na altura no Brasil, como decorreu das suas declarações, credíveis; pese embora não tenha identificado cabalmente a camisola em audiência, admitiu que podia ser sua, sendo que também explicitou que quando foi para o Brasil deixou a maior parte dos seus haveres no Opel – que foi emprestado sem o seu conhecimento a H… e à I..., como também decorreu do seu depoimento e das declarações do assistente)
A ligação entre este ADN e estes objetos/locais permite assegurar, em termos diretos e em princípio, que o arguido teve contacto com eles 6, A hipótese de contaminação não tem suporte em dados probatórios colhidos; a pluralidade de objetos com vestígios de ADN, no mesmo local, torna essa contaminação evanescente; e as declarações do arguido, admitindo o contacto com a generalidade dos objetos em causa como referido infra (embora em contexto controvertido, como se refere a seguir), acabam por retirar qualquer valor operatório a tal contaminação já não sendo imediatamente concludentes quanto aos termos desse contacto (o local e momento onde ocorre, ou as condições que o determinam).
Não obstante, impressiona o número elevado de pontos de contacto, a circunstância de estarem todos especialmente concentrados e o facto de se centrarem na órbita da I..., o que, conjugado com o sentido imediato retirado da função dos objetos, tende a colocar o arguido no local dos factos, no momento em que estes ocorrem. Com efeito, e em termos singelos, as pontas de cigarros, fumados e deixados no local, tendem a significar que o arguido ali esteve; a utilização do atacador e do fio/cabo para prender os pulsos da I... sugere que foi o arguido quem atuou sobre a I..., no mesmo sentido concorrendo a utilização da camisola, onde se encontra ADN seu; a existência de outro atacador, também retirado dos ténis (existentes no local, pertencentes à I...), também tende a indicar que o arguido igualmente lhes mexeu no local; os vestígios nas unhas da I... sugerem um contacto muito próximo, ajustado à intervenção do arguido sobre ela, no local; os papéis apontam justamente no mesmo sentido; e os vestígios nas cuecas e vagina da I... sugerem um contacto sexual contemporâneo dos demais vestígios, no mesmo local e ocasião. Assim, o quadro de referência dado pela natureza e localização espacial dos objetos e pela função que lhes cabe ou lhes foi atribuída no local onde foram descobertos aponta claramente para a intervenção do arguido nos factos: a partir dos referidos elementos, aquela intervenção surge como a primeira, mais lógica e congruente asserção, aquela que melhor se ajusta e explica a pluralidade de indícios biológicos e espaços de contacto referenciados. Nesse sentido, apontam para o arguido como autor dos factos.
E esta asserção é compreendida pelo arguido, que procurou contextualizar e esbater o sentido probatório destes elementos, dando para a sua existência uma explicação alternativa, assente num contexto sexual em momento prévio ao dos factos, no mesmo veículo, e contacto que explicaria também, pela forma como foi indicando, o seu contacto com todos os demais objetos. Tal versão não se mostrou, porém e do ponto de vista do tribunal concludente, considerando-se antes que claudicou. Assim:
- quanto aos vestígios de ADN do arguido na vagina da I..., o arguido admitiu ter mantido relações sexuais (sem preservativo) com a I.... Segundo os esclarecimentos da perita T…, os vestígios de sémen/ADN não permanecem mais de 72 horas na vagina da mulher; o depoimento da referida testemunha … (que afirmou que a recolha do exsuado vaginal não foi feita no local) e os elementos de fls. 5-6/278-279 permitem afirmar que a colheita é realizada seguramente depois das 01.15 hrs. do dia 28 de agosto, o que permite afirmar que o contacto sexual ocorrido entre o arguido e a I... terá surgido tendencialmente após as 01.00 hrs. do dia 25 de Agosto. O arguido sustentou que tal contacto ocorreu na noite de 25 de Agosto (prolongando-se após a meia noite, para as primeiras horas do dia 26), o que se ajusta ao aludido lapso temporal. Mas estas declarações não se mostram convincentes.
Assim, constatou-se que a sua versão diverge da relatada no primeiro interrogatório em dois pontos: de um lado, no primeiro interrogatório foi incapaz de indicar qualquer dia certo enquanto em julgamento pretendeu fazê-lo (dando razão de ciência para o efeito); de outro lado, e pese embora de forma genérica, o arguido, no primeiro interrogatório, tendeu a colocar aquele contacto em momento distanciado da data em que I... foi encontrada (e tinha em interesse em fazê-lo, por tal equivaler a distanciar-se da autoria dos factos).
Quanto ao primeiro ponto, releva a circunstância de o arguido iniciar as suas declarações, em julgamento, indicando que esteve com a I... no dia 25 ou 26, mas não dando logo uma indicação exata, como se fosse uma mera aproximação, subsistisse alguma imprecisão. Explicitando a sua razão de ciência, o arguido explicou que alcançou a fixação da data em função de uma viagem do seu pai para …, no dia 26 de Agosto, mais acabando por esclarecer que o seu pai foi para Lisboa na noite de 25, e que o arguido esteve com o seu pai, a despedir-se, entre as 20.00 e as 24.00 hrs. do dia 24 de Agosto (ou as 01.00 hrs do dia seguinte), sexta-feira, estando com a I... assim na noite do dia 25, sábado (que se prolongou para 26, de acordo com os horários que indicou). Ora, sendo perfeitamente definidas as datas em causa (o arguido não teve qualquer dificuldade em indicá-las), não se percebe porque foi o arguido dubitativo (ou meramente aproximado) na indicação da data do contacto ocorrido, quando tinha todas as condições para a indicar de forma precisa (tanto que, segundo disse, se lembrou destas circunstâncias quando foi preso, e teve por isso bastante tempo para as calendarizar e fixar). E confrontado com esta situação, o arguido foi incapaz de a explicar, mostrando-se hesitante, confuso e inconsequente.
Acresce depois que, pese embora no primeiro interrogatório chegue a referir a quarta semana de Agosto como momento para o último encontro com a I..., fá-lo apenas no contexto de afirmação mais genérica, tendendo a referir que não sabe quando esteve pela última vez com ela mas que tal ocorreu mais do que no «meio de Agosto, na 3ª ou 4ª semana, aí a meio do mês», tendo quedado depois por esta última marca temporal na sequência de instância direta, embora sugestiva (a meio? sim). Ora, o que é patente é que o arguido tendia a manter algum lapso de tempo entre esse encontro e a noite dos factos, nunca afirmando que o último encontro se deu pouco antes da descoberta da I... (evento que já conhecia, segundo declarou, desde a sua inquirição pela PJ, em 17 de Setembro), ou sequer com proximidade (enquanto agora o seu encontro sexual ocorre precisamente na noite anterior à noite dos factos).
Confrontado com a falta de rigor ou proximidade na indicação da data em primeiro interrogatório (mormente com a falta de indicação das datas, ou data, que indicou em julgamento), voltou a ser incapaz de explicar a situação, referindo apenas que só pensou nisso (no encontro) quando preso, mostrando-se também aqui, e novamente, confuso, hesitante e inconsequente.
E estas hesitações, imprecisões e dificuldades não são compreensíveis porque: o arguido teve conhecimento da situação em 17 de Setembro, quando ouvido pela PJ (como reconheceu) e interveio em primeiro interrogatório em 27 de Novembro; naquela primeira data tinham passado pouco mais de duas semanas sobre a data dos factos, prazo curto para um apagamento tão expressivo da memória (quanto ao encontro com a I...); o arguido tinha uma relação de amizade íntima com a I..., que não era uma estranha ou um nome no jornal (a relação podia ser casual mas não era superficial); os factos constituíam um evento impressivo (o homicídio de alguém que se conhece, de mais a mais intimamente, é sempre algo marcante, vibrante, impressivo); o último encontro tinha envolvido um contacto demorado (estiveram juntos 20/30 minutos em café, e uma hora e tal a duas horas no carro, segundo disse) e com natureza sexual (ou seja, não foi um contacto passageiro e inespecífico, de que se não guarda memória) – e trata-se de contacto «extraconjugal» e por isso despido da habitualidade da rotina, da habitualidade que pode fazer dissipar a memória distintiva das ocasiões; e tal contacto ocorre na noite imediatamente a seguir a o arguido ter estado com o pai, a despedir-se deste, evento também significativo quer porque a despedida demorou várias horas quer porque se tratou da única viagem do pai naquele ano (como também referiu).
Neste quadro, é absolutamente incompreensível que o arguido, após 17 de Setembro e até ao seu primeiro interrogatório não volte a pensar na situação, e só mais tarde, após este interrogatório, recorde o que nada justifica já ter esquecido em 17 de Setembro; ou que, cerca de duas semanas após os factos, não recorde um contacto sexual que tinha carácter excecional e que ocorreu na noite imediatamente seguinte a ter estado com o seu pai (a despedir-se), ou ainda que quando o recorde seja por mera estimativa ou aproximação (quando a fixação a data era fácil e imediata, como se viu em julgamento). Aliás, esta forma de expressão do arguido (dubitativa) pretendia notoriamente dar a ideia de que era algo que recordara à pouco tempo, algo novo, uma súbita revelação, de que não tinha uma memória segura ou precisa, para emprestar maior espontaneidade à nova, e essencial, afirmação (do mesmo passo procurando também relativizar o facto de não a ter manifestado anteriormente), mas esquecendo que as referenciações temporais que usa são exatas e que já teve (muito) tempo para as considerar, não havendo realmente razão para a indicação meramente aproximada. A importância da situação justifica que, depois de recordada, não mais se apague e seja recordada e revivida e se fixe nas datas exatas que tão fáceis são de determinar.
Neste quadro, tem-se ainda por não acidental a circunstância de só após o primeiro interrogatório vir o arguido a ter conhecimento da limitação temporal referida, quanto à duração do vestígio de ADN encontrado na vagina da I... (a informação vem ao processo após aquele primeiro interrogatório pois só após esse momento são ouvidas as peritas; e o arguido tem dela conhecimento pois esta informação está contida no despacho de pronúncia, que lhe foi lido e comunicado: fls. 1406), e por isso só após aquele interrogatório se suscitar a necessidade de o arguido explicar a persistência do ADN (…).
E se o arguido não esteve com a I... na noite que refere, só poderia ter estado com ela na noite dos factos (porque os eventos ocorrem na noite imediatamente a seguir à noite em que o arguido refere ter estado com a I...; porque o arguido não refere outro contacto anterior próximo; e porque a janela temporal definida pela perita não permitia atribuir relevo a contactos anteriores).
- nas suas declarações o arguido procurou dar uma explicação para ter sido encontrado ADN seu nos objetos em causa. Essa explicação não se revelou convincente quanto aos cigarros. Com efeito, e quanto a estes, o arguido explicou, por gestos depois concretizados, que, não fumando ele, tocava nos cigarros da I... por esta, ao conduzir, lhe pedir cigarros para fumar, os quais estariam na mala daquela, localizada mormente junto aos pés do passageiro, o que teria ocorrido também na última vez que esteve com ela (ficando entendido que, ao fazê-lo, poderia ter tocado nos cigarros depois encontrados no local). A sua conduta consistia, então, em pegar num cigarro com dois dedos, segurá-lo no ar com aqueles dedos enquanto com a outra mão o acendia com a chama de um isqueiro (sem o colocar na sua boca e por isso sem fazer circular ar através do cigarro), e só depois o entregava à I..., que estava a conduzir. O pedido de entrega de cigarros é curial, normal. Já a conduta descrita causa a maior perplexidade porque, de um lado, o cigarro, desta forma (sem «puxar», sem fazer o ar circular no seu interior), não acende realmente, apenas se queima, ficando incandescente o papel e alguma ponta mais solta do tabaco, sendo necessário que de imediato (caso contrário aquela incandescência apaga-se rapidamente) o fumador coloque o cigarro na boca e puxe repetidamente o ar para que as brasas do papel (ou de alguma ponta solta de tabaco) espalhem a brasa pelo resto do tabaco. Não é prático nem conveniente nem eficaz nem corrente. Por essa razão é que, e isso resulta da experiência corrente mesmo dos não fumadores, os fumadores acendem o cigarro na boca, puxando o ar para começar a queimar o tabaco. A atuação do arguido é, deste ponto de vista, bizarra e insólita, e o gesto é em si ridículo (pegar num cigarro com dois dedos e, no ar, queimar a ponta com um isqueiro na outra mão...). E é incompreensível que a I... quisesse ou aceitasse esta conduta tão insólita, reiteradamente. Por outro lado, mais inaudita se torna a conduta quando se atente em que ela se justifica apenas por a I... não chegar ao tabaco, sendo esta dificuldade facilmente superada pela entrega do cigarro (ou até do maço de tabaco) à I..., cigarro que esta se encarrega então de acender (e conduzir com uma mão e usar o isqueiro com a outra é atividade que nenhuma dificuldade especial levanta e é até corrente para os inúmeros fumadores quando seguem, mormente sozinhos, ao volante das suas viaturas) ou que o próprio arguido se encarregaria de acender com o isqueiro (estando o cigarro na boca da I..., caso em que esta podia manter as mãos no volante e os olhos na estrada pois caberia então ao arguido posicionar o isqueiro em frente ao cigarro na boca da I...). A impropriedade da explicação é evidente, sendo manifestamente implausível, tendendo pois a revelar a sua falsidade, compreendendo-se esta versão apenas como forma de ocultar o real contacto (momento e local) com os cigarros.
Acresce que, segundo a versão do arguido, a I... fumava e deitava fora os restos dos cigarros (pela janela da viatura) – o que é conforme ás declarações de H… quando afirmou que a I... fumava de forma escondida (tentando manter em segredo essa atividade), pois então não teria ela interesse em deixar vestígios na viatura. Sendo assim, e face ás circunstâncias do local (onde são encontradas quatro pontas de cigarros no chão, todas próximas entre si, e no exterior e junto ao Opel: fls. 98 e 106), tais cigarros teriam sido fumados no local e aí deixados. Desta forma, fica difícil de perceber como o contacto anterior com o maço levou a que ficasse ADN do arguido em três das pontas de cigarros encontradas. Mas esta dificuldade avoluma-se quando se atenta em que numa das pontas (n.º5 – C1) apenas se encontra ADN do arguido (cromossoma Y), não sendo encontrado sequer ADN da I... (que seria a fumadora em causa): é incompreensível que quem fumou o cigarro (que repetidamente lhe toca e o coloca de forma consciente e reiterada na boca, e com ele teve contacto pouco antes de a ponta ser recolhida) não deixe qualquer vestígio no cigarro fumado, e o arguido, que lhe teria tocado acidentalmente (ao tirar outros cigarros do maço; é o que se extrai da sua versão) um dia antes do cigarro ser levado para o local, ainda lá tenha ADN – o que desde logo e por si revela a falsidade da versão do arguido, pois esta não pode explicar esta situação. Acresce que aquela dificuldade se torna definitivamente incontornável quando se verifica que outra das pontas (ponta 1: fls. 106) nem corresponde a um cigarro com filtro mas a um cigarro enrolado, sem filtro (como se verifica pelas imagens colhidas; decerto por isso vem referenciado na inspeção como “presumivelmente de “charro”), o qual não só não se retira de um maço de tabaco como tem que ser manualmente enrolado, pelo que não vale para ele a explicação adiantada pelo arguido (que apenas falou em passar cigarros do maço à I...) – ponta esta onde se encontra ADN da I... e do arguido. Naturalmente, estes dados, por si e ao demonstrarem a improcedência da explicação do arguido, apontam antes no sentido se o arguido ter tido contacto direto com os cigarros no local, onde estes são consumidos e deitados fora – e local onde esteve, apesar de afirmar nunca lá ter estado.
- quanto aos demais objetos, o arguido tendeu a sustentar que contactou com eles por se encontrarem na viatura, tendo, nomeadamente, que os afastar quando ia com a I... para o banco traseiro, local onde tendiam a estar espalhados vários objetos. Em particular e quanto ao fio (cabo áudio), o arguido afirmou que lhe tocou para o ligar na última vez que esteve com a I.... Quanto aos atacadores, começou por referir que mexia nos sapatos/sapatilhas (e por essa forma nos atacadores) por estarem espalhados no carro; quando questionado sobre no que teria mexido na última vez, mostrou-se hesitante, referiu camisas e toalhinhas em cima de um banco, e só quando questionado diretamente sobre os atacadores referiu que afinal havia atacadores soltos nessa última vez, em cima do banco de trás e da frente, restringindo os de seguida ao banco da frente, e dizendo que pegou neles e os colocou de lado, em cima do travão de mão. Ora, a sua versão mostra-se frágil por procurar explicar com contactos ocasionais e genéricos vestígios em tantos objetos. Torna-se ainda mais frágil quando se atenta na forma como a sua versão muda quanto aos atacadores, passando de um contacto geral com os sapatos/sapatilhas para, após hesitação, um contacto específico com os atacadores, os quais também passam da presença em dois bancos para apenas o banco dianteiro. Por fim, a presença dos atacadores soltos é incompreensível quando se atente em que: apenas um par de atacadores (dois atacadores) foi encontrado no local, atacadores que se ajustam ao único par de sapatilhas existente no local, sapatilhas estas sem atacadores, pelo que aqueles atacadores (onde aparece o ADN do arguido) pertenciam ás sapatilhas; e que a I... calçava as sapatilhas para conduzir (para não conduzir com sapatos com saltos), como H… referiu, o que terá feito na data pois, segundo o mesmo H…, saiu de casa com sapatos de saltos altos, sendo que, aquele H… aditou ainda nunca ter visto atacadores soltos no carro (pelo que não era hábito da I... andar a tirar atacadores das sapatilhas). Neste quadro, não é possível discernir a sombra de um motivo que justifique que a I... tenha, antes de se encontrar com o arguido, tirado os atacadores das sapatilhas e os tenha deixado em cima dos bancos (ou de um banco). Ao invés, já é perfeitamente entendível a versão do arguido como uma tentativa, forçada e não convincente de encontrar razões para justificar a presença de ADN nos atacadores. Num outro plano, impressiona ainda que o ADN do arguido persista nos atacadores (nos dois atacadores e em dois lugares distintos no atacador usado para prender os pulsos – correspondentes a duas recolhas diferenciadas: pág. 2 e 6 do exame de fls. 1365) e já nele se não encontre o ADN de outro contribuinte masculino – e saindo a I... de casa, na noite dos factos, com saltos altos para ir conduzir e assim devendo calçar as sapatilhas para o efeito (como referido), e sendo encontrada descalça e com as sapatilhas junto a si (na parte de trás do carro) mas sem atacadores, sendo um destes atacadores usado para a manietar, é seguro que os atacadores foram retirados das sapatilhas para esse efeito, dando conta de um contacto intenso do agente dos factos com eles em momento relativamente próximo a terem sido encontrados. Tudo contribuindo para excluir qualquer valor persuasivo da versão do arguido.
- monta também a circunstância de em lado algum ter sido encontrado ADN do companheiro da I... (H…), o qual não apenas tinha contacto próximo com a I... (dada a relação mantida) como esteve com ela depois do putativo encontro da I... com o arguido (passou o dia de domingo com ela, segundo as suas declarações, mormente na viatura em causa). Ou seja, aquele H… esteve com a I… após o arguido mas o ADN deste aparece um pouco por todo o lado e o ADN de H… não está em lado algum. O que mais delimita o sentido probatório dos indícios, ao apontar para um contacto do arguido com a I… subsequente ao contacto desta com o H… (e não anterior, como o arguido pretende). Em especial, e quanto ás unhas tal torna-se incompreensível, levando em conta que, após o contacto que o arguido refere ter mantido, a I… tomou banho (como resulta das declarações do H…, tendo decerto também lavado as mãos ao longo do dia, considerando ainda que esteve na praia) e, além de se manter aí o ADN do arguido (o banho não tinha necessariamente que o eliminar todo, como resultou dos esclarecimentos prestados), já nenhum ADN do H... permanece, e o ADN do arguido que permanece é ainda mais consistente (em maior quantidade) que o ADN da própria I…(exame de fls. 473). Tal não é compreensível à luz de um contacto anterior, mediado por outros contactos e pelo banho. Ou seja, tal contribui ainda mais para focalizar o contacto em momento posterior àquele que o arguido sustenta.
- também a existência de ADN do arguido nas cuecas é, neste contexto, refratária à sua explicação pois se torna incompreensível que I…, tendo mantido contacto com o arguido na noite de 25 de Agosto, fique com as cuecas, as tire para ir à praia (onde vai de biquíni), e as volte a vestir depois de tomar banho após regressar da praia (como revelado pelo assistente H…) e com elas saia de casa. A possibilidade de os vestígios aí encontrados resultarem de escorrimento é ínfima dado o lapso de tempo já decorrido, na versão do arguido, desde o contacto sexual, e atento ainda o banho que I… tomou (o banho pode não eliminar todo o ADN, como a perita T… referiu, mas dando conta de situação onde foi encontrado ADN no colo do útero, ou seja, na zona mais interior, de onde dificilmente sairia paras as cuecas.
Ora, a inconcludência, inconsistência e mesmo falsidade da versão do arguido revela, de um lado, que a sua versão não explica os vestígios encontrados (e que há algo a ser por ele escondido, não revelado), e, de outro lado, e de forma mais determinante, converge, por excluir a explicação alternativa do arguido, na indicação de um resultado de sentido único: que teria sido o arguido o Autor dos factos.
Ainda que se diga com tendencial acerto que «a coincidência entre o perfil obtido a partir da amostra e o vestígio encontrado permite apenas afirmar, com elevadíssimo grau de probabilidade, que o vestígio provém de determinado indivíduo, mas não autoriza a concluir, sem ulterior operação lógica sustentada em meios de prova autónomos, que foi ele o Autor do crime», aqueles dados de ADN constituem, no caso, um suporte não isolado. Assim, a informação colhida a partir do ADN vem contextualizada por duas ordens probatórias: de um lado, as declarações do arguido e do assistente, que facultam elementos que enquadram, condicionam e limitam os vários sentidos probatórios que os vestígios possibilitam; e, de outro lado, as circunstâncias espacial (locais onde se encontram), funcional (funções atribuídas) temporal (concentração) e plural (múltiplos) associadas aos próprios objetos em causa, diretamente reveladas, e que tem um sentido probatório próprio – tudo no quadro acabado de explicitar.
Assim, os dados expostos são bastantes para, com exclusão de outra explicação possível e para além da dúvida razoável, afirmar de forma probatoriamente válida ter sido o arguido o autor dos factos. Donde a imputação realizada.” (idem)
47. No aludido acórdão procedeu-se à revisão da situação processual do autor, considerando-se que:
“Dando cumprimento ao disposto no art. 213º n.º 1 al. b) do CPP, constata-se que se não verifica, neste momento, a alteração dos pressupostos que determinaram a sujeição do arguido à medida de coação vigente (por referência às al.s a) e c) do art. 204º do CPP). Ao invés, os factos apurados tendem a reforçar as razões cautelares que determinaram a aplicação de tal medida. Deverá, pois, ela manter-se.”. (idem)
48. Aquando da leitura do acórdão/decisão, em 4 de dezembro de 2019, a sala de audiências encontrava-se cheia de pessoas a assistir.
49. Ao ter conhecimento da condenação, o autor ficou incrédulo, em choque, sem palavras e sentiu-se à beira do abismo.
50. Terminada a leitura da decisão e retirando-se o Tribunal da sala de audiência de julgamento, logo se manifestaram vozes contra o autor, tendo sido chamado de assassino, homicida, que 12 anos era pouco, que lhe deviam fazer o mesmo.
51. Os familiares do autor que assistiam à audiência, mãe e irmã, foram enxovalhadas e verbalmente atacadas.
52. Apercebendo-se o autor do tumultuo que se estava a gerar no Tribunal, sem que nada pudesse fazer para confortar a sua família, uma vez que não lhes podia tocar, abraçar, confortar, porque vedado.
53. O que para si foi frustrante, angustiante, humilhante.
54. Foi necessária a intervenção policial, para acalmar as pessoas que se encontravam no Tribunal, que não paravam de dirigir insultos aos familiares do autor.
55. A mãe, a irmã e a Mandatária do autor tiveram que aguardar dentro do edifício do Tribunal até que os demais dispersassem, e fosse possível abandonar as instalações em segurança.
56. Já no exterior do Tribunal, ouviam-se as vozes, assassino, homicida, deviam fazer-lhe o mesmo.
57. Após a audiência de discussão e julgamento o autor veio a ser transferido para o estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz.
58. Uma vez mais, o autor foi notícia.
59. No jornal Correio da Manhã através de consulta do endereço eletrónico
60. Foi publicado em diversos jornais e telejornais, o nome do autor, a sua condenação.
61. Com a publicidade em telejornais e programas televisivos era o autor no interior do Estabelecimento Prisional enquanto esteve preso preventivamente, apontado pelos reclusos e pelos guardas prisionais, como o assassino ou homicida.
62. O autor, sentiu-se desolado ao ver o seu nome a passar na televisão.
63. Enquanto esteve preso preventivamente o autor sentiu-se humilhado pelos reclusos, e por todos os que trabalhavam no Estabelecimento Prisional.
64. E com medo, receando pela sua integridade física.
65. A condenação do autor foi analisada em diversos programas televisivos, designadamente no programa da CRISTINA no canal televisivo SIC, no programa Você na TV no canal televisivo TVI.
66. A partir do Estabelecimento Prisional o autor assistiu a alguns desses programas televisivos, bem como os demais reclusos, que o identificavam e o apontavam como homicida, assassino.
67. O que deixava o autor inconsolável, frustrado, triste, indignado e revoltado, por estar a ser apontado como assassino.
68. Na sequência de pedido de consulta do processo foi proferido despacho judicial com o teor seguinte: “O art. 90º n.º 1 do CPP condiciona o acesso ao processo à existência de um interesse legítimo. Este interesse legítimo pode assentar na invocação pelo jornalista do interesse no acesso às fontes de informação (art. 8º n.º 3 do Estatuto do Jornalista) mas não se basta com a mera invocação da qualidade de jornalista. Assim, notifique-se o requerente, através do email em causa, para indicar o interesse prosseguido (mormente a finalidade visada).”. (comunicação de fls. 537 e despacho de fls. 538)
69. Após o que, na sequência dos esclarecimentos constantes da comunicação eletrónica de 13 de dezembro de 2019, foi proferido novo despacho judicial no mesmo processo com o seguinte teor: Defere-se o requerido, tendo em conta o motivo invocado, ao abrigo do artº 90º nº 1 do CPP, embora sem prejuízo das proibições decorrentes do art. 88º do CPP (sendo que a permissão de obtenção de cópia não prejudica aquelas proibições: art. 90º n.º 3 do CPP).” (comunicação de fls. fls. 539 v.º e despacho de fls. 540).
70. A imagem e o carácter do autor foram arrasados na comunicação social, todos os que conheciam o autor comentaram a sua condenação.
71. As centenas de comentários em todas as notícias disponíveis na internet, dão igualmente nota que até os que não o conheciam comentavam a notícia.
72. A violência do modus operandi explorada pela comunicação social, levou a que todos comentassem, que o autor era um assassino, que tinha tirado a vida a uma mulher e queimado o corpo.
73. Na localidade onde o autor residia comentava-se que o autor era um assassino, diziam, tinha sido condenado.
74. O autor interpôs recurso da decisão condenatória proferida pelo Tribunal de primeira instância para o Venerando Tribunal da Relação de Évora, pugnando pela sua absolvição. (alegações de recurso de fls. 551 v.º e ss.)
75. Na sequência do recurso interposto pelo autor desse acórdão condenatório proferido pelo Coletivo de Juízes do Juízo Central Criminal da Comarca de Faro, o Ministério Publico apresentou Parecer (n.º 65/2020), destacando-se o seguinte:
“(…)
No caso em apreço, o tribunal, de uma forma abrangente e globalizante, percecionou, racional e criticamente, todos os elementos e dados fornecidos através dos autos, ou produzidos em julgamento (perícias, documentos, depoimentos ou declarações), relacionou-os e conjugou-os devidamente, segundo as regras da experiência de vida.
De facto, na nossa perspetiva, os factos considerados provados correspondem de forma fidedigna à prova efetuada na audiência de julgamento e à constante dos próprios autos, com a devida e merecedora valorização das declarações do assistente, do arguido, dos depoimentos das testemunhas (…), inspetores da PJ – que relataram e explicaram as diligências levadas a efeito com vista à identificação do arguido -, O.L…., moradora próxima do local dos factos – que se se apercebeu de gritos femininos na noite dos factos – e os esclarecimentos importantíssimos das peritas C… e T… – que esclareceram a ligação dos vestígios e perfis genéticos de ADN existentes na cena do crime e no corpo da vítima ao arguido e permitiram perceber a presença deste no veículo – que se mostraram convincentes, porque prestados com toda a clareza, objetividade e imparcialidade e apreciados pelo Coletivo de Juízes de acordo com as regras da experiência e a sua livre convicção.
O arguido apresentou uma versão em julgamento em que, além de negar os factos, se mostrou demasiado omissiva em relação a determinados temas, e procurou, essencialmente, justificar a presença do seu ADN no corpo da vítima e demais objetos em que veio a ser encontrado.
Não nos mereceu credibilidade.
Discordamos, por isso, das motivações de recurso do arguido ao defender que a prova produzida em sede de julgamento foi erradamente analisada e que não poderia produzir de modo suficiente uma sentença condenatória nos termos em que o fez. O recorrente partilhou a prova da forma que mais lhe interessou para fundamentar as suas conclusões, limitando-se a discordar por, na sua opinião, não se ter feito prova, mas relevando sempre o depoimento do arguido.
Com efeito, os factos considerados provados e não provados (fls. 1 a 4 do documento) correspondem de forma fidedigna à prova efetuada na audiência de julgamento e à constante dos próprios autos, com a valorização dos relatórios e depoimentos considerados verdadeiros e isentos.
Aliás, a motivação dos factos provados e não provados constante a de fls. 5 a 24 do douto Acórdão (e que damos por integralmente reproduzida), é bem explicita, ao analisar exaustivamente o teor dos exames periciais, assim como os depoimentos e declarações produzidos com interesse para a descoberta da verdade material, retratando-os fielmente não necessitando de quaisquer outros acréscimos ou desenvolvimentos para a sua compreensão.
Em virtude da matéria de facto fixada no douto Acórdão corresponder integralmente e de forma fidedigna à produzida em sede de julgamento, apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, não se verificando a violação de qualquer norma jurídica, deve improceder o recurso apresentado da matéria de facto, com todas as legais consequências.
IV- O arguido, além de questionar a livre apreciação da prova, também menciona a existência do vício de insuficiência da matéria de facto provada.
Ora é notório que o recorrente confunde o vício previsto no n.º 2 a) do artigo 410.º do Código Processo Penal com insuficiência de prova produzida para a decisão de facto e com a divergência entre a sua convicção pessoal sobre a prova feita em julgamento e a que o tribunal formou sobre os factos. Ora, isto é matéria integrada na livre apreciação da prova.
(…)
Analisando o douto acórdão quanto aos factos dados como provados, constatamos que se encontram provados todos os factos necessários e suficientes ao preenchimento dos elementos constitutivos dos tipos de crime pelos quais o arguido veio a ser condenado.
De forma alguma, pode proceder a alegação do recorrente quanto à aludida existência do vício do acórdão quando, na prática, o que se verifica e resulta da motivação do recurso é tão só, como se disse, a divergência existente entre o recorrente e o tribunal coletivo na apreciação da prova. O arguido não demonstra qualquer insuficiência, apenas pretende pôr em causa, mas sem conseguir, a interpretação da matéria de facto fixada pelo tribunal.
(…) Compulsado o teor do douto acórdão, constata-se de fls. 5 a 24 do documento, a existência da fundamentação, bem elaborada e de forma exaustiva, em estrita obediência ao disposto no artigo 374.º, n.º 2 do CPP, mencionando a prova testemunha e pericial relevante, sem esquecer o exame crítico destes elementos. (…)” (parecer de fls. 621 e ss.)
76. O Tribunal da Relação de Évora absolveu o autor, por acórdão proferido em … de 2020, cuja decisão transitou em julgado em … de 2020. (acórdão de fls. 627 v.º e ss.)
77. Nesse acórdão pode ler-se:
“(...) O teor da fundamentação da matéria de facto constante do acórdão em recurso não consente a alegação do Recorrente.
Porque as razões do Tribunal recorrido, quanto aos factos que selecionou como provados, não se quedam pelos vestígios de ADN recolhidos nos autos. Incluem a valoração das declarações que o Arguido prestou ao longo do processo.
E é da conjugação de tais provas que resulta a convicção quanto à autoria dos crimes de homicídio e de profanação de cadáver.
A bondade de tal entendimento será avaliada mais adiante, conforme se disse.
Improcedendo o recurso, também nesta parte.
(...)
Não pode incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efetuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência – valoração que aquele Tribunal é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código Penal.
Mas tal valoração é, também, sindicável.
O que equivale a dizer que a matéria de facto pode ainda sindicar-se por via da violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
(...)
De regresso ao processo, não resultando das conclusões da motivação do recurso que se assinalem divergências entre aquilo que foi dito no decurso da audiência de julgamento e aquilo que quem julgou diz que se disse, nessa mesma ocasião, o desconforto do Recorrente relativamente à factualidade considerada como provada deve ser ponderado ao nível da violação do disposto no artigo 127.º desse Código e, num segundo momento, através da verificação de algum dos vícios prevenidos no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo compêndio legal.
A decisão recorrida, no que toca à autoria dos factos – à sua imputação ao Arguido J…– é de absoluta clareza.
Inexiste prova direta.
(...)
Aqui chegados, somos remetidos para o domínio da prova indiciária, cuja avaliação deve ter lugar no âmbito do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
E tendo presente o teor deste preceito legal, na expressão regras da experiência incluem-se, obviamente, as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, as quais se devem basear na correção de raciocínio, bem como as regras da lógica, os princípios da experiência e os conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado.
(...)
Perante as frequentes dificuldades de reconstituição do facto delituoso (porque quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua atuação), aceita-se que a prova indireta, indiciária ou por inferência se tenha tornado indispensável em processo criminal.
Ou seja, na ausência de prova direta, admite-se a possibilidade de o Tribunal deduzir racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indireta.
E é indireta a prova cujo objeto é um facto diferente daquele que deve ser provado por ser o juridicamente relevante para a decisão. Ou seja, quando o seu objeto imediato não é um facto principal.
(...)
A perturbante não coincidência entre o resultado das perícias realizadas no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária e na Delegação do Sul do Serviço de Genética e Biologia Forense do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses I.P. não foi objeto de qualquer esclarecimento, sequer no decurso da audiência de julgamento
(…)
No acórdão recorrido não encontramos qualquer referência ao resultado do exame pericial realizado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, e assinalamos como particularmente equívoca, em sede de fundamentação factual, a referência aos esclarecimentos das peritas C… e T…, prestados em julgamento, quanto à existência de ADN do Arguido em todos os itens aí referidos.
(…)
O embaraço que tudo isto nos provoca parece apenas poder explicar-se por incompetência ou por contaminação de vestígios.
(…)
Ainda no domínio dos vestígios recolhidos no local do crime, é com grande estranheza que constatamos que o Coletivo de Juízes da 1.ª Instância não atribuiu qualquer importância aos cabelos que a vítima agarrava com a mão direita.
(…)
E não deixa de causar sensação a circunstância de não ter sido encontrado ADN do H…, companheiro da vítima, em qualquer dos indícios recolhidos.
(…)
E acabaram por fixar o contacto sexual do Arguido com a I… na madrugada de 27 de agosto de 2018. Este raciocínio padece de erro, face aos elementos que os autos fornecem.
(…)
Importa, agora ter presente que a verdade a que se chega no processo é uma verdade aproximativa ou probabilística, característica da verdade empírica, porque submetida a limitações inerentes ao conhecimento humano e adicionalmente condicionadas por limites temporais, legais e constitucionais, mas que traduz um grau tão acentuado de probabilidade que faz desaparecer toda a dúvida razoável e impõe uma convicção.
A dúvida razoável é a dúvida compreensível para uma pessoa reacional e sensata, e não absurda, nem apenas meramente concebível ou conjetural.
O princípio in dubio pro reo, sendo o correlato processual do princípio da presunção da inocência do arguido – constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 2 -, constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal.
Dito de outra forma, o princípio in dubio pro reo constitui imposição dirigida ao Juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
A dúvida que justifica a decisão pro reo «pode definir-se como um “(...) estado psicológico de incerteza dependente do inexato conhecimento da realidade objetiva ou subjetiva.”»
E essa dúvida tem que ser insanável – no sentido de inultrapassável -, razoável – no sentido de ser dúvida que impede a convicção do Tribunal porque existe outra ou outras possibilidades alternativas com a prova produzida; porque é conciliável com a verdade contrária – e objetivável – ou motivável, no sentido de que não é uma mera intuição ou puro pressentimento ou palpite, mas, pelo contrário, uma dúvida argumentada, que se justifica objetivamente.
Da conjugação dos elementos probatórios coligidos nos autos e neles avaliados não conseguimos atingir a certeza considerada indispensável a dar como provado que o Arguido foi o autor da morte da I….
E não conseguimos ultrapassar um estado de dúvida que convoca a aplicação do princípio in dubio pro reo.
(...)”.
78. O autor foi, nesse dia, restituído à liberdade (mandado de libertação de fls. 663)
79. Ao longo do período em que esteve preso, o autor esteve privado da sua família, namorada e amigos.
80. Ficou sem a sua privacidade, foi obrigado a partilhar o espaço de dormir com outros indivíduos, com os quais não tinha qualquer tipo de afinidade, tampouco se identificava.
81. Foi privado do conforto da sua casa, do convívio com os seus.
82. Foi privado da escolha dos alimentos que comia, pois tinha que se alimentar do que lhe era disponibilizado no Estabelecimento Prisional.
83. Teve que fazer a sua higiene pessoal conjuntamente com outros indivíduos, sem qualquer privacidade.
84. Ficou sem liberdade de decisão acerca dos seus horários para comer, dormir, fazer a sua higiene pessoal, estar com os seus familiares, amigos e com a namorada.
85. Não pode trabalhar.
86. Não pode desempenhar a sua profissão de jardineiro ou outra que quisesse e auferir, no mínimo, uma retribuição mensal equivalente ao salário mínimo nacional.
87. E, com tais rendimentos, ajudar os seus familiares.
88. Teve de contratar serviços de advogado, para assegurar a sua defesa, tendo despendido o montante de € 5 500,00 (cinco mil e quinhentos euros).
89. E teve de contratar advogado nestes autos, tendo suportado os respetivos honorários.

B) Não Provados
Não se logrou provar que:
a) Mais tarde veio a apurar-se que o autor era inocente;
b) Desde a detenção do autor e a sua sujeição a prisão preventiva, os elementos probatórios cingiam-se a vestígios de ADN;
c) Em sede de pronuncia verificou-se existirem exames periciais contraditórios, com registos de chamadas telefónicas que em nada comprometiam o ali arguido;
d) Nenhuma prova existia de que o número de telemóvel para o qual a vítima I… contactou, fosse do arguido;
e) O autor é homem muito jovem e pouco diferenciado;
f) Revela dificuldades em se exprimir.
III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artºs. 635º, 3 e 639, 1 e 2 CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.608º in fine), são as seguintes as questões a decidir:

I - Violação do dever de fundamentação / omissão de pronúncia sobre factos e questões jurídicas relevantes
II- Erro na apreciação de facto
III - Erro na apreciação de direito, nomeadamente se:
a) a privação da liberdade do autor se deveu a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia;
b) ficou comprovado que o autor não foi agente do crime.

Nota prévia
A particularidade das questões tal como foram levadas a recurso aconselha a seguinte definição prévia do campo de conhecimento por esta Relação:
Em primeiro lugar, diga-se que as conclusões das alegações não invocam as razões de recurso de forma estanque, antes as apresentam de forma indistinta, com integração de questões umas nas outras e com insistente repetição de matérias, o que, com todo o respeito, obriga o decisor a um esforço redobrado de disciplina concetual de modo a que, por exemplo, se não confunda a omissão de pronúncia sobre factos com divergência da análise crítica das provas, como ressurge das conclusões.
Por outro lado, importa também antecipar que, na divergência quanto à análise crítica das provas esta instância de recurso, sendo uma instância da jurisdição cível só poderá sindicar de forma imediata, prova cível, ainda que esta, mediatamente, integre prova criminal (absolutória ou incriminatória).
Do mesmo modo, são os princípios do processo civil que hão de sistematizar a interpretação factual e jurídica.
Ainda que se conceba a possibilidade de a prova cível, quanto à inocência, ultrapassar a prova criminal (cfr. Ac. TRL P. 30-09-2014 2208/11.4TVLSB.L1-7, in www.dgsi.pt), trazendo o Autor a estes uma prova absoluta, de que, por exemplo, não esteve no local do crime no momento da ocorrência ou que outro foi o agente, o acórdão absolutório que, segundo o Autor, permitiu converter a sua prisão preventiva num ato ilícito, absolvendo-o dos factos e pondo fim à sua prisão, se melhor prova inexistir, constituirá a prova (documental) determinante, permitindo sindicar da (i)licitude dos atos jurisdicionais anteriores que fixaram a prisão preventiva.
Sem deixar de ter em consideração que a prisão preventiva obedece a regras e finalidades específicas, orienta-se pelos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da necessidade (artºs 193º, 1 e 2 CPP), tem natureza subsidiária (art. 202º CPP), sendo admissível desde uma fase embrionária da investigação (artº 254º, 2 e 257º CPP), está sujeita a prazos de reexame dos seus pressupostos em diversas fases do processo (artº 213º CPP) e, é compatível com o princípio da presunção de inocência previsto no art. 32º da CRP, significando este que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
Estão em causa dois pressupostos de responsabilidade civil do Estado: erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a aplicação da prisão preventiva e/ou, a prova de que o arguido não foi o agente do crime.
São esses, no caso concreto, os pressupostos invocados para constituir o Estado em responsabilidade civil (artº 22º da CRP), integrando os mesmos a previsão do artigo 225º nº 1, alªs a) e b) CPP, que consagra a possibilidade de uma indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada.
Impõe-se, assim, apreciar se os factos, à luz dos preceitos constitucionais e legais que regulam e limitam a aplicação da prisão preventiva, permitem afirmar que a prisão do Autor, no seu todo ou a partir de algum momento, se revela assente em erro grosseiro na apreciação dos seus pressupostos de facto, ou, se se comprovou, a final, que o Autor não foi o agente do crime pelo qual esteve preso.
O ónus da prova – factos constitutivos do direito à indemnização – é, nas regras civis, do Autor (art. 342º, 1 CC).
Comprovada que seja a «prisão ilegal», passar-se-á a apurar os danos sofridos.
Não comprovada tal «ilegalidade», inútil se torna esse apuramento.

Definido em abstrato o campo de conhecimento do objeto de recurso, passemos às questões concretas.

I - Violação do dever de fundamentação / omissão de pronúncia sobre factos e questões jurídicas relevantes
Entende o Recorrente que o Tribunal a quo não cumpriu o disposto no art.º 154.º n.º 1 do CPC - dever de fundamentar a decisão - no que se refere aos factos julgados não provados, na decisão recorrida.
Sendo tais factos os seguintes:
(…)
Lê-se na sentença, na parte denominada “Motivação”, o seguinte:
(…)

O dever de fundamentação provém do art. 205º, 1 da CRP.
Dando concretização a tal dever, o art. 154.º do CPC estabelece:
«1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.».

Sendo nula a sentença, nos termos do art. 615º, 1 do CPC, quando:
«…
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.»

Como sumaria o Ac. TRC de 24-04-2019, P. 708/15.6T9CBR.C1, in www.dgsi.pt:
“A fundamentação exigida quanto à matéria de facto tem em vista a explicitação do processo de formação da convicção do julgador, o que pressupõe, para além da indicação dos meios de prova que relevaram nesse iter decisório, a referência ao exame crítico da prova que serviu para formar a sua convicção, dando a conhecer de modo conciso, mas com suficiência bastante, o percurso lógico e racional efetuado em sede de apreciação e valoração da prova que conduziu à demonstração (ou não) da factualidade objeto da decisão recorrida.
O exame crítico das provas corresponde à indicação das razões pelas quais e em que medida o tribunal valorou determinados meios de prova como idóneos e credíveis e entendeu que outros em sentido diverso não eram atendíveis, explicitando os critérios lógicos e racionais que utilizou na sua apreciação valorativa, e que permite, assim, aferir a concreta utilização que o julgador fez do princípio da livre apreciação da prova”.

Ora, embora de forma concisa, o tribunal a quo cumpriu o dever de fundamentação que se lhe impunha, também, quanto aos factos não provados. E fê-lo de modo suficiente, apresentando o seu raciocínio lógico, ainda que muito assente em prova contrária, a qual conduzia à não demonstração daqueles concretos factos. E fê-lo de forma percetível, com linguagem objetiva, por vezes remissiva no respeitante a determinados documentos, mas precisando, o ponto concreto onde o documento se fazia valer.
Assim, o dever de fundamentação mostra-se cumprido, improcedendo tal questão do recurso.

Invoca o Recorrente, ainda, a omissão de pronúncia quanto a factos e questões jurídicas relevantes.
Nos termos do mesmo art. 615º,1 do CPC:
“ É nula a sentença quando:

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

(…)

Vejamos.
Deste elenco de factos, alguns revelam uma componente predominantemente conclusiva (…) e outros, mais do que conclusiva, especulativa (…) visando determinar o sentido decisório sem substrato factual válido. Pouco subsistindo de resíduo factual objetivo. Resíduo esse que quando existe (caso da venda de droga, ou o tipo de relacionamento sexual entre vítima e arguido, por exemplo) se mostra representado na demais factualidade assente, pelo que, não tem de ser de novo autonomizado.
Restando um conjunto de factos reportados à publicidade da prisão do Autor na comunicação social, ao seu sofrimento moral e aos danos de natureza patrimonial (danos emergentes e lucros cessantes).
(…)
A omissão de pronúncia não tem, assim, fundamento, pelo que só pode improceder.


II - Erro na apreciação de facto.
O Recorrente impugna a matéria de facto de duas formas: relativamente a determinados factos contesta a seleção feita por via documental ou, a interpretação daí resultante, relativamente a outros, invoca as declarações do arguido e depoimentos testemunhais como suficientes para a alteração pretendida.
Quanto a estas declarações e depoimentos, o disposto no art. 640º do CPC (ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto) resulta suficientemente cumprido.
(…)
Apreciemos.
A expressão inocente tem uma forte componente jurídica, contudo o que o Recorrente pretende é que foi formalmente declarada a sua inocência.
(…)

Em parte alguma do acórdão absolutório se diz que o arguido é inocente, apenas se declara o arguido presumivelmente inocente face a uma dúvida insanável e inultrapassável que, no entendimento do acórdão e com fundamento na lei, impedia considerá-lo culpado.
Esta declaração de inocência fundada na dúvida, constitui de resto, o cerne da questão jurídica, que mais adiante se desenvolverá, no sentido de determinar o pressuposto da responsabilidade civil definido na lei, de que o arguido não tenha sido o agente do crime pelo qual esteve preso.
Logo, sendo pretensão do Recorrente sobrepor uma declaração de (efetiva) inocência a uma declaração de presumida inocência, sem que melhor prova tenha sido feita, relativamente à que fez no âmbito criminal, e uma vez ressalvado no elenco factual, o excerto do acórdão que define o estado de dúvida sobre os factos e que vincula o juiz a uma presunção de inocência do arguido (princípio geral do in dubio pro reo), só pode improceder a impugnação em referência.
Passemos a apreciar, em conjunto, os factos impugnados sob as alíneas b), c) e d).
A prisão preventiva do Autor foi decretada em 27/11/2018.
Pretende o Recorrente que:
“b) Desde a detenção do autor e a sua sujeição a prisão preventiva, os elementos probatórios cingiam-se a vestígios de ADN;”
O que a prova desmente.
Sem necessidade de transcrição, leia-se o despacho que fundamentou a prisão preventiva e que consta parcialmente reproduzido supra no nº 14 dos factos provados, donde resulta notório que, desde o primeiro momento em que foi decretada, outros elementos probatórios foram considerados, além dos vestígios de ADN, e conjugados entre si (declarações do arguido, autos de inquirição de testemunhas, perícia informática, etc.).
A pretensão do Recorrente terá decerto em vista a Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro (Base de Dados de Perfis de ADN - Identificação Civil e Criminal), nomeadamente o seu art. 38.º: “Em caso algum é permitida uma decisão que produza efeitos na esfera jurídica de uma pessoa ou que a afete de modo significativo, tomada exclusivamente com base no tratamento de dados pessoais ou de perfis de ADN”, mas, tal pretensão, não tem sustentação factual no presente caso.
Leia-se ainda o facto supra elencado sob o nº 32 da factualidade provada que reproduz excertos do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em (…) e que confirmou a prisão preventiva, donde resulta notório que os elementos probatórios não se cingiam a vestígios de ADN.
Por sua vez, a mesma conclusão se impõe, dos despachos de revisão de tal medida, que a confirmaram, proferidos em 22/02/2019 (no âmbito do inquérito), 15/05/2019 (data da acusação), 09/08/2019 (no âmbito da instrução), 23/09/2019 (no âmbito da pronúncia) e 04/12/2019 (no âmbito do acórdão condenatório da 1ª instância, enunciados nos factos nºs 30, 34, 38, 40, 41, 45, 46 47, da factualidade provada.
O que afasta a pretensão do Recorrente.

(…)
Assim, os factos pretendidos, com o alcance pretendido, não correspondem à prova realizada.
Improcedendo a impugnação dos factos nessa parte.

(…)
Esgotada a impugnação da matéria de facto, impõe-se apreciar da questão jurídica.

III - Erro na apreciação de direito
Desde já se diga que a procedência residual da impugnação dos factos nenhuma influência direta tem, na aplicação do direito ao caso concreto.
O que aqui importa apurar é se se verificam os pressupostos factuais e jurídicos do dever de indemnização do Estado por privação da liberdade ilegal ou injustificada, perante uma factualidade predominantemente assente na 1ª instância cível.
O artigo 22º da Constituição da República Portuguesa estabelece que o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.
O n.º 5 do artigo 27.º da Lei Fundamental remete para a lei ordinária os termos em que o Estado deve indemnizar o lesado pelos danos resultantes da privação da liberdade. Proclamando o art. 29º, nº6 da mesma Lei que “Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos”.

No caso importa atender à definição legislativa prevista no art. 225.º do Código de Processo Penal, que prescreve:
«1 - Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando:
a) A privação da liberdade for ilegal, nos termos do n.º 1 do artigo 220.º, ou do n.º 2 do artigo 222.º;
b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia;
c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou atuou justificadamente; ou
d) A privação da liberdade tiver violado os n.ºs 1 a 4 do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
2 - Nos casos das alíneas b) e c) do número anterior o dever de indemnizar cessa se o arguido tiver concorrido, por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade.»

Estão em causa neste litígio apenas os pressupostos não cumulativos enunciados nas alíneas c) e d) do nº 1.
Importa, assim, apurar se ocorreu erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a prisão preventiva (alª c) ou, se se comprovou que o arguido não foi agente do crime (alª d).
Embora tenham ocorrido no decurso de processo criminal, pelo menos, seis decisões a fixar ou confirmar a prisão preventiva do Autor, não especifica este em qual ou quais decisões se verifica o erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que a lei faz depender a prisão preventiva, a qual se fixou desde logo, aquando do seu primeiro interrogatório judicial.
Deste modo, a aferição a fazer deve ter em conta todas essas decisões, com a condicionante que cada uma deve ser apreciada de acordo com o concreto histórico indiciário ou probatório com que pôde contar, e não com o que veio a ser apurado no futuro.
Nesse sentido, o recente Ac. TRG de 13-05-2021 (P. 711/20.4T8VRL.G1) in www.dgsi.pt, que sumaria:
«I- A determinação do que seja a privação de liberdade (prisão preventiva) por grosseiro erro judicial, para os efeitos da atribuição de indemnização nos termos do art. 225º,1,b CPP, na redação da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto só pode ser feita tendo em consideração o tempo em que tal medida de coação foi aplicada, e mantida, com a prova que existia no inquérito nessa altura, e não à luz do que veio mais tarde a decidir o acórdão final.
II- O facto de o arguido ter recorrido da decisão que o prendeu preventivamente, e um Tribunal superior ter confirmado tal despacho torna já improvável a existência do alegado erro grosseiro.
III- O facto de o arguido vir a ser absolvido do crime que levou à prisão preventiva não significa que tenha ocorrido erro grosseiro na aplicação de tal medida de coação.
IV- Em síntese, o julgamento sobre a existência ou não de erro grosseiro só pode ser feito retroagindo ao momento em que a prisão preventiva foi decretada, analisando toda a prova existente nos autos nesse momento.
V- Não existe prisão injustificada por erro grosseiro, quando os fundamentos do acórdão absolutório -ilegalidade na obtenção da prova- não são pacíficos».

Posição essa coincidente com a do Ac. STJ de 11-09-2008, P. 08B1747, no mesmo site, onde se lê:
« 4. No n.º 2 do art. 225º prevê-se o caso de prisão preventiva legal, mas que posteriormente veio a verificar-se ser total ou parcialmente injustificada, por erro grosseiro – ou seja, por erro escandaloso, crasso ou palmar, que procede de culpa grave do errante – na apreciação dos respetivos pressupostos de facto.
5. O erro grosseiro na aplicação da prisão preventiva tem de ser apreciado à luz de um juiz de médio saber, razoavelmente cauteloso e ponderado na valoração dos pressupostos de facto invocados como fundamento desta.
(…)
8. O juízo sobre o erro grosseiro na valoração dos pressupostos de facto determinantes da prisão preventiva, a formular em momento posterior, tem por base os factos, elementos e circunstâncias que ocorriam na ocasião em que esta foi decretada ou mantida.»

Destaque ainda para o teor do sumário do Ac. STJ de 11-10-2011, P. 1268/03.6TBPMS.L1.S1, in www.dgsi.pt, que refere:
«- A medida de coação de prisão preventiva, além de subsidiária em relação às demais previstas na lei, só pode ser aplicada se “houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos”, como prescreve o art. 202.º do CPP, o que implica, necessariamente, e antes de mais, que, no momento da aplicação da medida, sejam ponderados concreta e criticamente todos os indícios até então recolhidos, que só serão relevantes para fundamentar a medida se forem fortes, isto é, se, tendo em conta as regras da experiência comum, revelarem uma séria probabilidade de ter o arguido praticado os factos que lhe são imputados. Não basta, por isso, a existência de indícios da prática do crime se estes não forem firmes e seguros ou forem exclusivamente indiretos ou circunstanciais.»
- É inquestionável que a prisão preventiva só deve ser aplicada quando existam fortes indícios da prática pelo arguido de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos (art. 202º alª a) CPP), impondo-se ainda a verificação de algum dos requisitos a que alude o art. 204º do CPP: a) fuga ou perigo de fuga, b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas, bem como a consideração de que qualquer outra medida de coação é inadequada ou insuficiente (citado art. 202º).»

Analisadas as decisões proferidas que aplicaram ou conformaram a prisão preventiva ao Autor:
- Na sequência do 1º interrogatório, despacho de 27/11/2018 (facto 14)
- No despacho de revisão de 22/02/2019, confirmativo (facto 30)por se manterem os pressupostos de facto e de direito que haviam determinado a sua aplicação”
- No acórdão do TRE de 26/03/2019 (factos 31 e 32)
- No despacho de revisão de 09/08/2019, confirmativo (facto 38)por se considerarem inalterados os perigos que fundaram a sua aplicação”
- No despacho de pronúncia de 23/09/2019 (factos 40 e 41)
- No acórdão da 1ª instância de 04/12/2019 (factos 45 e 47) ainda sem trânsito.

Em qualquer delas é feita uma análise crítica da força indiciária ou probatória das provas até então recolhidas no processo, para efeitos de aplicação de medidas de coação. Tendo essas “provas” consistência probatória. Todas as decisões se mostram fundamentadas, mesmo as que, sem factos novos, consideraram inalterados os pressupostos que fundaram a aplicação da medida de prisão preventiva, remetendo para a decisão antecedente onde o reexame se impôs mais desenvolvido.
Todas se fundamentam também num juízo de prognose acerca da possibilidade de condenação do arguido no final da fase de julgamento.
Como disse e bem o tribunal a quo:
“Conforme resulta da factualidade provada o autor foi submetido a interrogatório judicial e, nessa diligência, ficou sujeito a prisão preventiva, por se entender estarem fortemente indicados os factos que consubstanciavam a prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelo 131.º, n.º 1 e 132.º nºs 1 e 2, alíneas d), d) e i), do Código Penal (pontos 12.º a 14.º dos factos provados).
Tal decisão veio a ser mantida por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora (ponto 31.º dos factos provados) saindo reforçado aquele juízo de forte indiciação que sustentou o despacho proferido pelo Mm.º Juiz de Instrução. Ainda que assim não fosse, o certo é que, o despacho posto em crise remete para vários e extensos elementos documentais que até essa data constavam do inquérito, como sejam: o auto de notícia de fls. 2/4, termo de entrega de cadáver de fls. 5, verificação do óbito de fls. 7, comunicação de notícia de crime de fls. 58/60, fichas de identificação civil, biográfica e de registo automóvel de fls. 70/73, relatório de serviço de fls. 74/78, autos de inquirição de testemunhas de fls. 89/92, 190/194, 197/203, 214/225 e 263/270, relatório de inspeção judiciária de fls. 93/129, autos de diligência de fls. 204/210, 226, 232/233, 237/242 e 257/260, cota de fls. 227, perícia informática forense e auto de recolha de dados informáticos de fls. 242/248, guias de entrega de fls. 250/253, print de fls. 261/262, relatório videográfico da autópsia de fls. 280/281, relatório de serviço de fls. 301/304, auto de denúncia por desaparecimento de fls. 309/311, cota de fls. 313, relatório de inspeção judiciária de fls. 318/326, auto de diligência de fls. 333/334, auto de apreensão de fls. 335/336, relatórios de fls. 338/249, 418/420, 455/456, 483/487, cota de fls. 366, autos de diligência de fls. 367/374, guia de entrega, auto de teste rápido de fls. 379/381, auto de apreensão de fls. 387/388, autorização de fls. 391, guia de depósito de objetos de fls. 392, auto de diligência de fls. 393, auto de inquirição de fls. 394/397, auto de apreensão de fls. 400/401, guia de entrega de fls. 402, termo de entrega de fls. 405, cota de fls. 410, termo de entrega de fls. 411/413, auto de recolha de imagens de fls. 416/417, informações de fls. 431/438, 466/467, cota de fls. 453, relatório de exame pericial de fls. 473/475, guia de depósito de objetos de fls. 476, cota de fls. 477, CRC de fls. 478/480, auto de diligência de fls. 481/482, informações de fls. 494/495, auto de diligência de fls. 496, certidão de fls. 499, relatório de fls. 804/805 e dossier nº 3342300 anexo aos autos), analisando, de forma crítica, as declarações prestadas pelo arguido em confronto com os vestígios do seu ADN encontrados no local (nele se lendo, “o mesmo não conseguiu explicar por que razão no seu DN (perfil genético na vagina da falecida da I…, na mão esquerda da mesma e no fio áudio que se encontrava a envolver os pulsos daquela, conforme relatório pericial dos autos”) e os indícios recolhidos pela Polícia Judicia e plasmados em relatório junto aos autos, de acordo com o qual, o autor seria o titular do telemóvel associado aos últimos contactos recebidos pela vítima.
Contrariamente ao alegado pelo autor, o Mm.º Juiz de Instrução não se limitou pois a espelhar uma realidade que fora veiculada no inquérito, mas analisou criticamente os indícios recolhidos pelos órgãos de polícia criminal conjugando-os com as regras de experiência comum em face da inverosimilhança da versão trazida pelo autor, nas declarações então prestadas.
Mantendo-se esses fortes indícios - os quais seriam reforçados pelas subsequentes diligências em sede de inquérito, como seja a que vem a ser vertida no ponto 33.º dos factos provados - veio a ser deduzida a acusação e, subsequentemente, abriu-se a fase da instrução, a pedido do autor.
Analisando os indícios da prática do crime pelo autor, a Mm.ª Juíza de Instrução que pronunciou o autor, consignou (ponto 40.º dos factos provados) a factualidade que considerava indiciada e os elementos de prova (ainda que indiciária) em que sustentava a sua convicção - depoimento das testemunhas H… …, auto de exame pericial ao telemóvel da vítima e DVD de extração de dados do mesmo, a fls. 243 a 245 e detalhe de tráfego de fls. 1029 e ss., mormente a fls. 1034 – auxiliando-se das regras de experiência comum.
Agora, apurado o local onde a “última célula referente ao nº 91… pelas 00:28 (cfr. fls. 1034 – detalhe de tráfego referente ao nº em causa)” e “a célula ativada pelo nº 96… à mesma hora, ou seja, às 00h28 (cfr. fls. 1115 – detalhe de tráfego referente ao nº em causa) e que o mesmo correspondia ao local de residência do autor e que das diligências apuradas no âmbito de outro inquérito relacionado com tráfico de estupefacientes resultava ser aquele o titular do telemóvel com o n.º 96… – note-se que, entretanto, essa investigação deu azo a uma condenação que, neste momento, já se mostra transitada em julgado (vide, ponto 1.º dos factos provados) - a Mm.ª Juíza de Instrução considerou subsistirem indícios de que o autor e I… haviam combinado um encontro.
Ao contrário do alegado, na análise que faz dos depoimentos prestados, em sede de instrução, pelas peritas que subscrevem os relatórios periciais do LPC e INML, a Mm.ª Juíza de Instrução salienta a unanimidade de tais depoimentos no que concerne à presença de sémen na vagina de I… e ao facto de “o ato de lavagem faria desaparecer o mesmo, tendo a última esclarecido ainda que, não sendo embora possível determinar com exatidão o referido momento, já é possível determinar que, em regra, para além de 72 horas após a manutenção das relações sexuais, mesmo sem lavagem vaginal, deixa de ser possível recolher vestígios de sémen na vagina, sendo absolutamente impossível que tais vestígios perdurassem por mais de 8 dias.”
Neste sequência, a Mm.ª Juíza analisa criteriosamente as declarações prestadas pelo autor, afastando qualquer possibilidade da relação sexual que este admitia ter mantido com I… ter ocorrido em meados de agosto, tudo indiciando ter ocorrido num intervalo próximo das 72 horas que antecederam a recolha de tal vestígio, ou seja, na madrugada de dia 27 de agosto de 2018.
A Mm.ª Juíza também analisa o facto dos “relatórios periciais identificarem outros perfis genéticos e que ambos os relatórios não são totalmente coincidentes”, mas explica, de um modo objetivo e claro que, “é normal que possam ter sido encontrados vestígios de outros fornecedores de ADN, já que, como referiu a Srª perita do INML, qualquer pessoa que toque em um objeto que tenha sido sujeito a análise deixa nele o seu ADN, sendo certo que no que respeita à camisola que tapava a boca a I…, o perfil genético encontrado era do proprietário dessa camisola, o proprietário do veículo automóvel V…, que aí a deixara, como viria a ser reconhecido pelo mesmo e concluído nos exames periciais (cfr. fls. 1055 a 1057, 1282 e 1366 a 1370). Por outro lado e no que respeita ao teor de ambos relatórios, também como esclareceu a mesma Srª perita, as perícias biológicas levadas a feito pelo LPC são menos exaustivas e pormenorizadas do que as levadas a efeito pelo INML, o que determina resultados aparentemente divergentes, mas na realidade não divergentes. As divergências podem prender-se tão só com esse facto, referindo a Srª perita que no INML não ocorreu qualquer contaminação de vestígios, embora esta seja algo que por vezes ocorre.”.
Chegamos, pois, à fase de julgamento, a qual terminou com prolação de acórdão, em 1.ª instância, que decidiu condenar o autor pela prática do crime de homicídio, mantendo-se a situação de prisão preventiva enquanto se aguardava pela decisão do Tribunal da Relação de Évora que sobre ele incidiu, na sequência da apresentação de recurso de apelação pelo autor.
O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora que veio a ser proferido alude a diversas situações que, no seu entender, fragilizam o juízo de culpabilidade do autor.
Vejamos.
O referido acórdão salienta “a perturbante não coincidência entre o resultado das perícias realizadas no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária e na Delegação do Sul do Serviço de Genética e Biologia Forense do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P.” e o facto dos depoimentos prestados pelas peritas não terem sido objeto de esclarecimentos.
E continua, no sentido de que “Ao que acresce resultar do depoimento da Perita … [a cuja audição procedemos, através do suporte informático onde se encontra registado] que em boa parte do material enviado para exame no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. não existia material genético capaz de proporcionar resultados - por ter sido todo usado na perícia realizada no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária. Referia-se a Senhora Perita às zaragatoas retiradas dos diversos puxadores exteriores do veículo automóvel onde foi encontrado o corpo da I…, aos atacadores, ao fio áudio, às zaragatoas vaginais e ao raspado subungueal.
Concluindo que “A este aspeto não foi dada importância, não obstante o resultado da segunda perícia, que apenas assinalou inexistência da amostra nas zaragatoas retiradas dos diversos puxadores exteriores do veículo automóvel.”
E que, “O embaraço que tudo isto nos provoca parece apenas poder explicar-se por incompetência ou por contaminação de vestígios.”
(…)
Mais adiante e divergindo do entendimento seguido no acórdão recorrido, conclui-se que “face ao resultado do exame laboratorial de onde decorre que a I… não evidenciava canabinóides no sangue [fls. 967]” (…) “não pode deixar de se configurar que tal pedaço de charro e outros vestígios recolhidos no exterior do veículo automóvel onde foi encontrado o cadáver da I… aí tenham sido largados em ocasião anterior à da morte desta.”
Aqui, como resulta evidente dos seus dizeres, divergindo da apreciação que o tribunal recorrido fez daqueles elementos de prova, o acórdão da Relação de Évora conclui que os vestígios em causa eram anteriores à morte de I….
Analisando ainda tais vestígios, o acórdão da Relação de Évora considera “com grande estranheza” não ter sido atribuída qualquer importância aos cabelos que a vítima agarrava com a mão direita, admitindo que os mesmos não foram analisados porque se encontravam sem raiz e porque o estudo do ADN mitocondrial – o único possível no caso – não individualizaria a pessoa a quem pertenciam, mas apenas a sua linhagem materna e que “a forma como esses cabelos se encontram em poder da vítima, evidenciada nas fotografias 48 a fls. 183 e 49 a fls. 184, sugerem fortemente que os arrancou a alguém imediatamente antes de morrer.”
Por fim, terminando pela fragilidade da prova pericial constante nos autos, o acórdão salienta o facto de, nos vestígios recolhidos existir ADN de outros sujeitos para além do companheiro e de não ter havido a preocupação de recolha material biológico deles para exame comparativo e identificação de ADN e de terem decorrido mais de 48 horas entre o contato sexual do autor com I… e a recolha de vestígios de sémen.
Salvo melhor opinião, as considerações tecidas no Acórdão da Relação de Évora não permitem imputar aos julgadores do caso I… a prática de qualquer erro grosseiro.
(…)”.

O acórdão absolutório não invalidou a prova feita. Confrontou-se com a inesgotabilidade da mesma (caso dos cabelos encontrados na mão da vítima, sem raiz, que não puderam por isso ser analisados e que não corresponderiam a indivíduo de raça negra, como é o Autor) e com alguma descoincidência de conclusões periciais. O suficiente, para em sede de recurso, ter colocado em crise tal prova. Apenas isso.
O facto de o arguido sujeito a prisão preventiva, no final e em recurso, vir a ser absolvido por não provados os factos que lhe eram imputados, e colocado em liberdade, é, por si só, insuscetível de revelar a existência de erro grosseiro por parte de quem decretou a aludida medida de coação.
Em sintonia com esta posição, remetemos de novo para o sumário do Ac. STJ de 11-09-2008, P. 08B1747, onde se escreveu:
« - E o facto de o arguido sujeito a prisão preventiva legalmente decretada vir a ser posteriormente absolvido em julgamento, por não provados os factos que lhe eram imputados, é, por si só, insuscetível de revelar a existência de erro grosseiro por parte de quem decretou a aludida medida de coação, e, por isso, não implica, só por si, a possibilidade de indemnização nos termos do art. 225º/2 do CPP.
- Dizendo-se, no acórdão penal absolutório, que “não resulta dos factos provados que os arguidos, ou qualquer deles, tenham ateado fogo ou provocado incêndio”, e que, por isso, vão absolvidos dos crimes que lhes eram imputados, a absolvição é, no caso, decorrência do princípio in dubio pro reo: não se provar que praticaram os factos não significa que os não tenham praticado.»

Por isso, tal absolvição não implica, só por si, a possibilidade de indemnização nos termos do art. 225º n.º 1, b) do CPP.
Importa assentar pois, que não demonstram os autos erro grosseiro na aplicação da prisão preventiva.

Vejamos então se o Autor comprovou que não foi o agente do crime (alª c) do nº 1 do art. 225º do CPP).
Importa que primeiro se defina o alcance da expressão legal “comprovar que não foi o agente do crime”.
Nas expressivas palavras do Ac. TRG 13-2-2020, P.975/17.0T8BGC.G1, in www.dgsi.pt:
«Tendo por base as regras da interpretação da lei, em particular o n.º 2 do artigo 9º do Código Civil, temos de concluir da interpretação do artigo 225º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal, recorrendo aos trabalhos preparatórios, que a opção do legislador ao referir-se ao “comprovar” quer significar que o direito de indemnização apenas está reservado ao arguido que tenha sido absolvido sem dúvidas acerca da sua inocência e que foi vontade do legislador restringir a indemnização aos arguidos absolvidos por intermédio do princípio in dubio pro reo.»

A jurisprudência tem sido unânime em afirmar que «o princípio da presunção de inocência do arguido não acarreta automaticamente o dever de indemnizar por parte do Estado a todo aquele que, mantido em prisão preventiva, vem a final, a ser absolvido» (entre muitos outros, o Acórdão do STJ de 4/4/2000, P.104/00, in www.dgsi.pt)
Cabia, pois ao Autor demonstrar que não foi agente do crime. Teria de demonstrar a sua inocência pela positiva, de modo a afastar as suspeitas de culpabilidade que sobre si recaíam.
Alega o Autor, com base no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora que o absolveu da prática do crime de homicídio pelo qual fora condenado em 1.ª instância, ter sido comprovado não ter sido ele o agente do crime e, como tal, assistir-lhe o direito de ser indemnizado pelo Estado Português.
Contudo, a expressão do dito acórdão, não permite tal afirmação.
Concluiu o mesmo que:
“Da conjugação dos elementos probatórios coligidos nos autos e neles avaliados não conseguimos atingir a certeza considerada indispensável a dar como provado que o Arguido foi o autor da morte da I….
E não conseguimos ultrapassar um estado de dúvida que convoca a aplicação do princípio in dubio pro reo.
(...)”.
Tal absolvição não provém da prova da não autoria dos crimes de homicídio e profanação de cadáver pelo arguido, mas antes da dúvida quanto à sua autoria.
No âmbito do processo criminal o Autor não logrou comprovar não ter sido agente do crime e, no âmbito do processo civil não logrou melhor prova.
O que torna inviável a atribuição ao Autor do direito a indemnização pela prisão preventiva sofrida.
Podemos, pois concluir que, apesar de os indícios recolhidos no processo criminal justificarem a prisão preventiva e levarem à suposição de o arguido vir a ser condenado, não se tendo feito prova cabal dos factos integrantes dos crimes por que foi pronunciado, ficando-se pela dúvida, o arguido teria necessariamente de ser absolvido, por se presumir inocente, mas tal absolvição não preenche o campo de previsão do art. 225º nº 1, alª b) do CPP, que pressupõe a comprovação, ou seja, a prova positiva, da não autoria.
Nenhuma censura, nos merece, pois a decisão em recurso que, por tais razões, julgou improcedente o pedido.

III

Termos em que, acorda-se em julgar apenas parcialmente a impugnação da matéria de facto, sem influência na decisão, e improcedente quanto ao mais a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


Évora, 09 de junho de 2022
Anabela Luna de Carvalho (relatora)
Maria Adelaide Domingos
José António Penetra Lúcio