Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
914/20.1T8PTM.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: REIVINDICAÇÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para conhecer da ação de simples apreciação, mediante a qual o autor pretende ver declarado o direito de propriedade sobre uma faixa de terreno parte integrante de um prédio seu, direito tornado incerto por deliberação da Câmara Municipal que qualificou a faixa de terreno como caminho público.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 914/20.1T8PTM.E1


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório.
1. (…), solteiro, maior, residente na Rua Dr. (…), n.º 44-4.º, Esq., em Faro, instaurou contra Município de Albufeira, com sede na Praça da República, Albufeira, ação declarativa como processo comum.

Alegou, em síntese, que é proprietário e legítimo possuidor do prédio misto composto de terra de semear com árvores e edifício de um só piso, com cinco divisões, logradouro e piscina, sito em Cerro de (…), freguesia de Albufeira e Olhos de Água, descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º (…), da extinta freguesia de Albufeira, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…), com a área de 3.265 m2 e na matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia de Albufeira e Olhos de Água, com a área de 177,30 m2, sobre o qual se mostra constituída uma servidão de passagem, com 3 metros de largura e 56 metros de cumprimento, a favor do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º (…), servidão que com a anuência do autor e seus antecessores passou a ser posteriormente utilizada pelos proprietários dos prédios descritos, na mesma Conservatória, sob os nºs (…), (…) e (…), em virtude de não disporem estes de acesso à via pública.

Desde pelo menos 1963, o autor e seus antecessores, ininterruptamente, à vista de todos e sem oposição e na convicção de serem seus proprietários, vem exercendo a posse sobre o prédio e sobre a faixa de terreno em que se encontra constituída a servidão que o onera.

Por deliberação de 21 de Agosto de 2019, nula por falta de fundamentação, por preterição da audiência dos interessados e por vício de usurpação de poder, a Câmara Municipal qualificou a servidão como “caminho público” e veio posteriormente a autorizar a proprietária de um prédio situado a sul do prédio do Autor a executar obras de infraestruturas de águas e esgotos na servidão que integra o prédio deste, obras essas que não chegaram a ser realizadas em virtude da oposição do Autor.

A faixa de terreno sobre a qual se encontra implantada a servidão faz parte integrante do prédio do Autor.

Concluiu pedindo lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre a faixa de terreno em que se encontra implantada a servidão.

Contestou o Réu excecionando a incompetência do tribunal em razão da matéria, uma vez que o Autor apesar de pretender ver reconhecido o direito de propriedade sobre a faixa de terreno suscita a nulidade de uma deliberação da Câmara Municipal cujo conhecimento é da competência dos tribunais administrativos, impugnou ainda os factos alegados pelo Autor e considerou, em qualquer caso, que o troço do caminho a cuja propriedade o Autor se arroga, à luz dos critérios do AUJ de 19/4/1989, têm natureza pública.

Concluiu, na procedência da exceção, pela absolvição da instância e, caso assim não venha a ser entendido, pela improcedência da ação.

2. Seguiu-se despacho a julgar o tribunal incompetente, em razão da matéria, por competentes os tribunais administrativos, concluindo, a final, pela absolvição do Réu da instância.


3. O A. recorre desta decisão e conclui assim a motivação do recurso:
“A. O presente recurso tem por objeto a sentença proferida no passado dia 19.10.2020, a fls., com a qual o Recorrente não se conforma, a qual julgou procedente a exceção dilatória da incompetência absoluta, em razão da matéria, absolvendo, em consequência, o Recorrido da instância, sem que tivesse sido assegurado o contraditório do Recorrente, seja por via da notificação expressa para o efeito, seja por via do agendamento da audiência prévia destinada à mesma finalidade.

B. A omissão do exercício do contraditório constitui uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na medida em que influiu diretamente na decisão da causa, devendo, em consequência, ser anulados todos os termos subsequentes, incluindo a sentença recorrida.

C. A sentença recorrida constitui, assim, uma decisão-surpresa, tanto mais que o Recorrente não previu como possível a decisão que veio a ser proferida pelo Tribunal a quo.

D. Pelo contrário, o Recorrente estava (como ainda está) convicto da competência dos tribunais comuns para a apreciação dos presentes autos, atenta a natureza (privada) do direito que através da presente ação se pretende reconhecer.

E. Nesse sentido, a título meramente exemplificativo, veja-se o acórdão do Tribunal dos Conflitos, proferido em 24-05-2017, no âmbito do processo n.º 01/17, disponível em www.dgsi.pt, acima citado.

F. Ou, ainda, o acórdão do mesmo Tribunal, proferido em 30.11.2017, no âmbito do processo n.º 11/17, disponível em www.dgsi.pt, também acima citado.

G. Donde, os tribunais comuns são competentes em razão da matéria para conhecer do pedido de reivindicação de uma parcela privada, ainda que apresentado contra um município.

H. Assim como são os tribunais comuns competentes em razão da matéria para a apreciação das questões conexas, incidentais ou prejudiciais, ainda que para estas, quando isoladamente consideradas, fosse competente o foro administrativo, nos termos acima citados.

NESTES TERMOS, E NOS DEMAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser:

a) revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue improcedente a exceção dilatória da incompetência absoluta do Tribunal a quo, declarando o mesmo competente em razão da matéria;

Ou, ainda que assim não se entenda, mas por mero dever de patrocínio se admite, ser:

b) declarada a nulidade da sentença recorrida, por omissão de uma formalidade essencial, nos termos e para os efeitos previstos no disposto no artigo 195.º do Código de Processo Civil, e consequentemente ser ordenada a devolução dos presentes autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Faro, a fim de ser dada a possibilidade do Recorrente se pronunciar acerca da invocada exceção dilatória da incompetência absoluta do Tribunal a quo, seguindo-se os demais termos até final.

Assim decidindo, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!”

Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso.
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, são as seguintes as questões colocadas no recurso: (i) nulidade do processo (ii) se o tribunal judicial é competente, em razão da matéria, para conhecer da causa.


III. Fundamentação.
1. Factos
Relevam os factos que resultam do relatório supra.

2. Direito
2.1. Nulidade do processo
Considera o Recorrente que a decisão recorrida, ao conhecer da exceção dilatória da incompetência absoluta sem que tivesse sido assegurado o contraditório (…), seja por via da notificação expressa para o efeito, seja por via do agendamento da audiência prévia destinada à mesma finalidade, deve ser anulada, por proferida depois de omitida uma formalidade que influiu no seu exame.
O Recorrente reclamou desta nulidade na 1ª instância e em 26/1/2021 foi proferido despacho que a desatendeu, despacho transitado em julgado, uma vez que não foi objeto de recurso.

Segundo o artigo 625.º do Código de Processo Civil, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar, princípio este aplicável à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.

A questão da nulidade do procedimento colocada no recurso é a mesma que foi resolvida em 1ª instância em sede de reclamação já transitada, por isto que a sua apreciação no recurso é inútil; de facto, conhecendo dela, se houvesse que desatendê-la repetir-se-ia a decisão já transitada e se houvesse que atendê-la cumprir-se-ia a decisão que a desatendeu por haver passado em julgado em primeiro lugar.

A lei proíbe a prática de atos inúteis no processo (artigo 130.º do CPC).

Assim, não se conhece da suscitada nulidade do procedimento.

2.2. Se o tribunal judicial é competente, em razão da matéria, para conhecer da causa

A decisão recorrida julgou a jurisdição administrativa e fiscal competente para conhecer da causa e o A,. diverge desta solução na consideração que o tribunal judicial é o competente para o efeito.

“Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” – artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP); na concretização deste enunciado constitucional, prevê o artigo 64.º do Código de Processo Civil (CPC) que são “da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

A competência dos tribunais comuns, em razão da matéria, é residual, isto é, afirma-se na ausência de qualquer outra ordem jurisdicional com competência para a causa.

“A competência dos tribunais judiciais constitui a regra; é genérica. A dos tribunais especiais constitui a exceção; é específica”[1].

No caso, o julgamento da causa competirá aos tribunais comuns se não se mostrar atribuído à jurisdição administrativa e fiscal.

“Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” – artigo 212.º, n.º 3, da CRP.

O conceito de relações jurídicas administrativas e fiscais, na lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira, “(…) transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal»[2] (Constituição da República Portuguesa, anotada, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p.p. 566 e 567.).

Neste sentido, ajuizou o Acórdão Tribunal de Conflitos de 25-01-2007, “um litígio emergente de relações jurídicas administrativas é aquele em que existe controvérsia sobre relações jurídicas disciplinares por normas de direito administrativo”[3]

Releva, pois, verificar se a controvérsia documentada na causa é disciplinada por normas de direito administrativo e, nesta indagação, importa considerar os “termos em que foi proposta a ação - seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes). A competência do tribunal (…) afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor.”[4]

A ação, tal como o Recorrente a configura, destina-se a reconhecer o direito de propriedade sobre uma faixa de terreno enquanto parte integrante dum prédio seu.

Trata-se de uma ação de simples apreciação [artigo 10.º, n.º 3, alínea a), do CPC], uma vez que o Autor não pretende exigir do Réu uma qualquer prestação mas tão só o reconhecimento de um direito, por ato deste, tornado incerto.

“Na ação de simples apreciação (…) o autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma incerteza que o prejudica: incerteza sobre a existência dum direito ou dum facto.”[5]

O direito para o qual o Recorrente solicita tutela judiciária é, pois, o direito de propriedade; o direito de propriedade sobre uma faixa de terreno que alegadamente faz parte integrante do prédio misto que lhe pertence.

Pretensão cuja apreciação convoca normas de direito privado, ou seja, por efeito dela incumbe ao tribunal apreciar se o Recorrente é proprietário do prédio misto que identifica e se neste se contém a faixa de terreno que constituí a servidão.

E, para tanto, não se torna necessário conhecer da deliberação tomada pelo Recorrido no passado dia 21/8/2019, segundo a qual a servidão constituída sobre a faixa de terreno foi qualificada como “caminho público”; a deliberação, na configuração que o Recorrente deu à causa, não se destina a ser apreciada – o Recorrente alegou que a deliberação é nula mas não formulou qualquer pedido de declaração de nulidade – expressando simplesmente o ato, válido ou inválido, que tornou incerto o direito que o Recorrente pretende ver declarado.

O facto jurídico de que o Recorrente faz derivar o direito de propriedade – nesta se incluindo a faixa de terreno - não é a nulidade da deliberação, são os atos materiais de posse que alega vir exercendo, por si e seus antecessores, sobre o prédio coevos dos títulos translativos da propriedade que, numa linha cronológica, alega.

Por ser assim, o direito que o Recorrente pretende ver reconhecido não supõe “a anulação ou a declaração de nulidade ou de inexistência de atos administrativos” como se afirma na decisão recorrida, nem se insere no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal [artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/2, com alterações[6]], caindo na alçada dos tribunais judiciais (artigo 64.º do CPC).

Em conclusão, não convocando a resolução do litígio normas de direito administrativo a competência para dele conhecer não é dos tribunais administrativos e ficais caindo na alçada dos tribunais judiciais.

Procede o recurso, com a revogação da decisão recorrida.

3. Custas

A A. obteve ganho no recurso sem oposição do Réu, assim, por inação dos princípios do vencimento ou da causalidade (artigo 527.º, n.º 1, do CPC), não há lugar a custas.

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)

(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida e em determinar os tribunais judiciais competentes para julgar a causa.
Sem custas.
Évora, 25/3/2021
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
__________________________________________________
[1] Manuel de Andrade, Noções elementares de Processo Civil, 1979, pág. 95.
[2] Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 4.ª ed., págs. 566 e 567.
[3] In www.dgsi.pt
[4] Manuel de Andrade, Ob. cit., pág. 91.
[5] Alberto dos Reis, Comentário, vol. 1º, 2ª ed., pág. 19.
[6] Rectif. n.º 14/2002, de 20/3, Rectif. n.º 18/2002, de 12/4, Lei n.º 4-A/2003, de 19/2, Lei n.º 107-D/2003, de 31/12, Lei n.º 1/2008, de 14/1, Lei n.º 2/2008, de 14/2, Lei n.º 26/2008, de 27/6, Lei n.º 52/2008, de 28/8, Lei n.º 59/2008, de 11/9, DL n.º 166/2009, de 31/7, Lei n.º 55-A/2010, de 31/12, Lei n.º 20/2012, de 14/5, DL n.º 214-G/2015, de 02/10.