Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1126/19.2T9STC.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: PROCESSO SUMARISSIMO
REJEIÇÃO DE REQUERIMENTO
DIFAMAÇÃO
Data do Acordão: 09/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O facto de se referir um falso facto anódino sobre uma pessoa a outrem, para que o interlocutor eventualmente confronte o visado e não acredite nele, tomando-o por mentiroso, não constitui difamação.
O direito apenas pode intervir quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO.

No Processo Sumaríssimo nº 1126/19.2T9STC, do Juízo Local Criminal de Santiago do Cacém (Juiz 1), o Ministério Público requereu a aplicação de uma pena (não privativa de liberdade) à arguida MLCCB, imputando-lhe a prática de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos artigos 180º, nº 1, 183º, nº 1, als. a) e b), e 184º, todos do Código Penal.

Através de despacho judicial, o Tribunal rejeitou o requerimento apresentado pelo Ministério Público para aplicação de pena em processo sumaríssimo, por entender que os factos descritos não consubstanciam qualquer crime.

Inconformado com tal decisão, interpôs recurso o Ministério Público, extraindo da motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“I - No caso presente, a falta de elementos constitutivos do crime de difamação agravada não resulta do texto do requerimento apresentado pelo Ministério Público.

II - No requerimento do Ministério Público descreve-se uma conduta da arguida que configura, em abstrato, um ilícito criminal.

III - Destarte, não era de rejeitar o requerimento do Ministério Público com fundamento em que os factos aí descritos e imputados à arguida não integram a prática de ilícito criminal, pois tal não resulta do texto do requerimento apresentado pelo Ministério Publico.

IV - Ou seja, existindo despacho que decida de modo diverso do previsto nas diferentes alíneas do nº 3 do artigo 311º do C.P.P. (como é o caso do despacho recorrido), não existe fundamento razoável para concluir que o recurso não deva ser admissível, já que isso comportaria restrição excessiva da garantia ao recurso, desde logo, porque teria como consequência que o processo não pudesse vir a prosseguir mesmo que sob outra forma processual, o que o legislador não terá querido.

V - Como tal, ao abrigo do disposto no artigo 399º do CPP, este recurso deve ser admitido, dado que este versa sobre despacho cuja irrecorribilidade não resulta da lei.

VI - Neste sentido, v.d. douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, nº 75/18.6 PFPRT.P1, de 11-04-2019, e o douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, nº 35/10.5PESTB.E1, de 31-5-2011, acessíveis na base de dados do ITIJ.

VII - O MP considera que o despacho recorrido, ao rejeitar a acusação que descreve factos jurídico-penalmente relevantes, e ao determinar o arquivamento do processo, violou o disposto no artigo 395°, nº 1, alínea b), e violou o artigo 311º, nº 3, alínea d), do Código de Processo Penal.

VIII - Ao contrário do que ali foi considerado, o despacho de acusação contém todos os elementos de facto necessários ao preenchimento do tipo legal de crime, cuja prática nele vem imputada à arguida.

IX - O fundamento da rejeição da acusação previsto na al. d) do nº 3 do artigo 311º do CPP (quando os factos descritos na acusação “não constituírem crime”) só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos, objetivos e subjetivos, de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa, seja devido a uma insuficiente descrição fáctica, seja porque a conduta imputada ao agente não tem relevância penal.

X - É, no entanto, necessário, nesta fase processual de triagem, que os factos descritos não constituam inequivocamente crime, não bastando que assim seja entendido por uma das várias correntes seguidas pela doutrina ou jurisprudência.

XI - Ou seja, só e apenas quando, de forma inequívoca, os factos que constam da acusação não constituem crime, é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.

XII - E os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra, de forma inequívoca, qualquer conduta tipificadora do crime imputado.

XIII - Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação, objetivamente inequívoca e incontroversa, da inexistência de factos que sustentam a imputação efetuada. Não se trata, nem se pode tratar, de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja (cfr. Ac. da RC de 12/07/2011, proc. nº 66/11.8GAACB.C1).

XIV - No saneamento do processo (artigo 311º do CPP), só há lugar à rejeição da acusação se ela se revelar “manifestamente infundada” (nº 3), o que não abrange os casos em que a acusação trata questão juridicamente controversa (cfr. Ac. da RP de 13/07/2011, proc. nº 6622/10.4TDPRT.P1).

XV - Se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz, no despacho do artigo 311º do CPP, não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente (cfr. Ac. da RP de 11/07/2012, proc. nº 1087/11.6PCMTS.P1).

XVI - Assim, por exemplo, o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na al. d) do nº 3 («se os factos não constituírem crime») se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime (cfr. Vinício Ribeiro, “Código de Processo Penal - Notas e Comentários”, pág. 644).

XVII - E o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15 de outubro de 2013 (relatora Ana Barata Brito, disponível em www.dgsi.pt): “a margem de atuação do juiz de julgamento, no momento em que recebe a acusação, confina-se necessariamente ao enquadramento jurídico dos factos tidos como suficientemente pelo acusador público. Mas mesmo esta margem de conhecimento sobre a questão de direito, limitada à valoração jurídica da factualidade imputada pelo Ministério Público, não é irrestrita. Bem pelo contrário. Os poderes do juiz, sobre a acusação, antes do julgamento, são limitadíssimos”.

XVIII - Assim, e levando em conta a estrutura acusatória do nosso processo penal, da qual decorre que compete ao acusador a iniciativa da definição do objeto da acusação, pensamos ser hoje indubitável que, no momento a que se refere o artigo 95º, nº 1, alínea b), e 311º, nº 3, do Código de Processo Penal, o juiz não pode decidir do mérito da acusação, por via da sindicância da avaliação da suficiência dos indícios efetuada pelo Ministério Público.

XIX - Com efeito, a posição defendida no despacho recorrido sobre o mérito da causa, e que levou à rejeição da acusação, apresenta-se como altamente controversa, como o demonstra a jurisprudência de tribunais superiores em sentido oposto.

XX - Aqui chegados, e não obstante a controvérsia doutrinal e jurisprudencial, independentemente da posição do tribunal a quo quanto à mesma, devia tal tribunal ter considerado que os factos imputados constituem crime.

XXI - O que para nós temos como certo é que, sendo por demais sabido que não existe uniformidade na jurisprudência em torno desta questão - existem, ao invés, correntes divergentes -, e sendo ela crucial para aferir da relevância penal e subsunção jurídica dos factos cuja prática vem imputada à arguida na acusação, não é no momento da prolação do despacho de saneamento do processo que deve ser feita a opção por um dos entendimentos em confronto.

XXII - E isto porque, perante os entendimentos divergentes, não é possível afirmar, para fundamentar a sua rejeição, que a acusação é manifestamente infundada - poderá eventualmente vir a ser julgada improcedente, o que é um efeito jurídico distinto da rejeição.

XXIII - Motivo pelo qual o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que, considerando que os factos imputados constituem crime, proceda à apreciação dos requisitos de admissibilidade do prosseguimento dos autos sob a forma sumaríssima, com as legais consequências, que poderá passar pela sujeição da acusação ao debate público e contraditório do julgamento, resolvendo-se oportunamente a questão de facto e a questão de direito, na sentença, conforme pretende o Ministério Público.

Nos termos vindos de expor, e nos mais de direito que, como sempre, mui doutamente suprirão, devem V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora:

1º - admitir o recurso, por o despacho do qual se recorre ser recorrível;

2º - julgar totalmente procedente o presente recurso e, por consequência, deverão revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que, considerando que os factos imputados constituem crime, proceda à apreciação dos requisitos de admissibilidade do prosseguimento dos autos sob a forma sumaríssima, com as legais consequências”.

*

O recurso foi admitido, e não foi apresentada qualquer resposta.

Neste Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se pela improcedência do recurso (entendendo, em suma, como na decisão revidenda, que os factos em causa nos autos não integram a prática de qualquer crime).

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto do recurso.

No presente caso, a única questão evidenciada no recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem (nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal), consiste em saber se os factos narrados pelo Ministério Público integram, ou não, a prática de um crime de difamação.

2 - A decisão recorrida.

O despacho revidendo é do seguinte teor:

“Estabelece o artigo 395.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, que o juiz rejeita o requerimento e reenvia o processo para outra forma que lhe caiba (…) quando o requerimento for manifestamente infundado, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 311.º;

Acrescenta o n.º 3, na sua al. d) que a acusação considera-se manifestamente infundada (…) se os factos não constituírem crime.

Nos presentes autos de sumaríssimo o Ministério Público acusa a arguida MLCCB da prática de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, alíneas a), e b), e 184.º do Cód. Penal.

Dispõe o artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal que quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, ainda que sob a forma de suspeita, facto, ou formular juízo, ofensivos da sua honra e consideração, bem como reproduzir tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

O bem jurídico tutelado por esta norma incriminadora é a dignidade individual, latente no respeito pela honra e consideração que são devidas a qualquer cidadão.

Como ensina FARIA COSTA, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, p. 602 ss., a conceção de honra que se coaduna com a legislação portuguesa, consiste numa conceção dual, em que a conceção normativa de honra (cujo ponto de partida é “um momento da personalidade do indivíduo (…), um bem que respeita a todo o homem por força da sua qualidade de pessoa” é temperada com uma dimensão fáctica (que será uma alteração empiricamente comprovável de certos elementos de factos, de ordem psicológica ou social). Assim, a honra será vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.

Os elementos do tipo objetivo do crime de difamação são: a) a imputação ou reprodução de facto (visto como dado real da experiência) ou juízo (percebido como a valoração de um dado ou ideia); b) que seja ofensivo da honra ou consideração de outrem; c) que seja dirigido a terceiros; e, d) que seja de forma direta ou insinuada (ser dirigida sob a forma de suspeita).

Deste modo, e ainda no que diz respeito ao tipo objetivo de ilícito em análise, diremos que o que distingue a difamação da injúria é a imputação direta ou indireta dos factos ou juízos desonrosos, porquanto na difamação o agente infrator leva a cabo a ofensa instrumentalizando um terceiro para conseguir os seus intentos – a este propósito vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 03 de julho de 2009, disponível in dgsi.pt.

Refira-se, no entanto, que nem todos os factos que envergonham, perturbam ou humilham, quando lançados sobre terceiros, cabem na previsão da norma contida no n.º 1 do artigo 180.º do Código Penal, porquanto aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena - cfr. BELEZA DOS SANTOS, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92, p. 168.

No que diz respeito ao elemento subjetivo, o tipo-de-ilícito em apreço trata-se de um crime doloso, em qualquer das modalidades referidas no artigo 14º do Código Penal. Na verdade, não se exige que o agente queira ofender a honra e consideração alheias, bastando que saiba que, com o seu comportamento, pode lesar o bem jurídico protegido com a norma e que, consciente dessa perigosidade, não se abstenha de agir.

Cotejado o substrato fáctico carente de apreciação é de considerar que as expressões imputadas à Arguida subsumíveis ao tipo de ilícito nos termos da acusação que lhe é feita são as seguintes:

- No dia 3 de julho de 2019, a arguida enviou uma mensagem de texto, do seu telemóvel nº …, para o telemóvel do constituinte do ofendido, … nº …., onde afirma que entregou ao ofendido a quantia de € 2.750,00, enviando como prova, o talão multibanco, e ainda, a quantia de € 944,50, juntamente com as chaves da casa.

- A arguida afirma também nessa mensagem, que ainda pagou um valor de custas de cerca de € 300,00, que o ofendido lhe exigiu, por o destinatário dessa mensagem ser o cabeça de casal daquele processo de inventário.

- Tais afirmações são falsas, porquanto, para além do montante de € 2.750,00, a arguida não entregou ao ofendido qualquer outra quantia em dinheiro e, tão-pouco lhe entregou as chaves da casa, que o ofendido, aliás, nunca lhe pediu.

Deve sublinhar-se que o tipo objetivo exige a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa ou a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou ainda, numa terceira alternativa, a reprodução daquela imputação ou deste juízo.

Como se referiu, por facto entende-se um dado real da experiência, aquilo que é ou acontece. Por seu lado, o juízo é um raciocínio, uma apreciação relativa ao valor de uma ideia ou de uma coisa. Necessário é que ambos sejam ofensivos da honra.

No caso vertente, salvo o devido respeito por opinião diversa - e excluindo desde logo a formulação de um qualquer juízo, que não tem suporte na matéria de facto -, não se vislumbra a imputação de qualquer facto desonroso, sendo apenas feita referência a um facto, sem valoração ética, nem sequer sob a forma de suspeita, uma simples mentira.

O facto de se referir um falso facto anódino sobre uma pessoa a outrem, para que o interlocutor eventualmente confronte o visado e não acredite nele, tomando-o por mentiroso, não constitui difamação.

Pode-se dizer que a Arguida está neste momento a semear o caminho para a suspeita, para, posteriormente, quando eventualmente for confrontada com a diferente versão do seu Ilustre colega, asseverar que efetivamente lhe entregou o dinheiro e que desconhece as razões pelas quais o Assistente não endereçou tal montante para o seu cliente, lançando a insinuação e deixando a suspeita sobre uma eventual apropriação, consumando-se aí o crime. Todavia, neste momento prévio, descrito na acusação, isso ainda não aconteceu, o facto objetivo comunicado não é desonroso, é apenas uma inverdade, uma diversa narração factual.

Como se refere no Acórdão do Tribunal Relação do Porto de 19 de janeiro de 2005, o direito apenas pode intervir quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função - relatado por MANUEL BRAZ, proc. 0416203, disponível para consulta in dgsi.pt.

Entendemos que o comportamento da Arguida pode ser censurado a diversos títulos, eventualmente até disciplinares, mas, neste momento inicial, carece ainda de dignidade penal.

Em face do exposto, uma vez que os factos descritos não consubstanciam qualquer crime, importa, em conformidade com o disposto no artigo 395.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, rejeitar o requerimento para aplicação de pena não privativa em processo sumaríssimo.

Esclarece-se que, em face da natureza da decisão, a consequência é o arquivamento dos autos e não a devolução ao Ministério Público, uma vez que a mesma encerra a resolução definitiva do processo - neste sentido, cfr., por todos, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Portuguesa, 4ª edição, p. 1028.

Pelo exposto, por manifestamente infundado, decido rejeitar o requerimento para aplicação de pena não privativa em processo sumaríssimo.

Sem custas.

Notifique.

Dê a competente baixa.

Oportunamente, arquivem-se os autos”.

3 - Os factos imputados pelo Ministério Público à arguida.

O requerimento apresentado pelo Ministério Público para aplicação de pena em processo sumaríssimo é do seguinte teor (integral):

“Junte o CRC da arguida, que imprimi do TMENU, e lhe entrego em mãos.

Atendendo à data da prática dos factos, confiro caráter URGENTE aos presentes autos (ex vi artigo 103º, nº 2, alínea g), do C.P.P.).

Anote na capa do processo, alarme no CITIUS e faça menção em todos os ofícios.

Remeta certidão deste despacho à Ordem dos Advogados, em cumprimento do artigo 121º, do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015 de 9 de setembro.

Realizadas as diligências consideradas necessárias à prossecução do desígnio dos autos, declaro encerrado o inquérito (art. 276º CPP).

A arguida tem Ilustre Defensor Oficioso nomeado, que se mantém.

Dê cumprimento ao disposto no artigo 64º, nº 4, do C.P.P, isto é, informe a arguida de que fica obrigada, caso seja condenada, a pagar os honorários do defensor oficioso, salvo se lhe for concedido apoio judiciário, e que pode proceder à substituição do defensor, mediante a constituição de advogado.

*

O Ministério Público requer, nos termos dos arts. 392º e seguintes do CPP, a aplicação em processo sumaríssimo, de uma pena não privativa da liberdade a:

MLCCB, nascida em …, filha de JMCB e de MJCA, natural da freguesia da …, concelho de …, solteira, residente no …, em …,

Porquanto indiciam suficientemente os autos, os seguintes factos:

1. O ofendido, JMF, é Advogado com domicilio profissional na …, em ….

2. A Arguida é Advogada com domicilio profissional, no …, em ….

3. O ofendido é mandatário de JCBA e de PMBA, interessado e cabeça de casal, respetivamente, no processo de Inventário que corre termos no Cartório Notarial de …, sob o nº ….

4. A arguida, no mesmo processo, representou até ao mês de julho de 2019, a interessada, MHSRAR.

5. A interessada MHSRAR, exerceu o cargo de cabeça de casal da herança aberta por morte de seus pais, até dezembro de 2016 e, por via do exercício de tal cargo, recebeu rendas referentes a um imóvel que, por testamento, foi legado aos constituintes do ofendido.

6. A partir de 27 de dezembro de 2016, na sequência de incidente de remoção da cabeça de casal, no referido processo de inventário, foi a então cabeça de casal removida do exercício de tal cargo e nomeado o atual cabeça de casal, PA, constituinte do ofendido.

7. No seguimento deste incidente, o ofendido reclamou o pagamento de custas de parte nos autos de inventário e notificou a arguida da Nota Discriminativa e Justificativa das Custas de parte, por carta registada datada de 04-01-2017 e por e-mail da mesma data.

8. No dia 27 de março de 2017, o ofendido remeteu e-mail à arguida, solicitando a transferência de metade do montante recebido a título de rendas pela sua cliente, MHR, durante o período que exerceu o cargo de cabeça de casal.

9. No dia 19 de abril de 2017, a arguida, mediante transferência bancária, depositou na conta do ofendido, na … – Balcão de …, o montante de € 2.750,00, que este lhe havia solicitado.

10. No dia 3 de julho de 2019, a arguida enviou uma mensagem de texto, do seu telemóvel nº …, para o telemóvel do constituinte do ofendido, PA, nº …, onde afirma que entregou ao ofendido a quantia de € 2.750,00, enviando como prova, o talão multibanco, e ainda, a quantia de € 944,50, juntamente com as chaves da casa.

11. A arguida afirma também nessa mensagem, que ainda pagou um valor de custas de cerca de € 300,00, que o ofendido lhe exigiu, por o destinatário dessa mensagem ser o cabeça de casal daquele processo de inventário.

12. Tais afirmações são falsas, porquanto, para além do montante de € 2.750,00, a arguida não entregou ao ofendido qualquer outra quantia em dinheiro e, tão-pouco lhe entregou as chaves da casa, que o ofendido, aliás, nunca lhe pediu.

13. Ao proferir as expressões acima mencionadas, a arguida agiu com o propósito conseguido de humilhar e ofender a honra, a consideração e o brio profissional de Advogado do ofendido, factos que a arguida conhecia.

14. O ofendido é um Advogado muito conhecido … — nos Tribunais e entre os Advogados.

15. O seu escritório é referencial do ponto de vista da prestação dos serviços da Advocacia, conhecido e reconhecido como é pelas qualidades e competências profissionais do ofendido, enquanto Advogado, e pela seriedade, honestidade e probidade do mesmo.

16. Por isso, granjeia o ofendido da credibilidade, do prestigio e da confiança, dos seus clientes, pessoas individuais e coletivas, bem como dos seus pares, dos tribunais, e de todos aqueles com quem priva, contacta ou que o conhecem.

17. Tudo o que a arguida conhecia e sabia, isto é, que o ofendido como Advogado notoriamente conhecido …, nos meios forenses, e com muitos clientes, granjeia e conserva credibilidade, prestígio e confiança que lhe são reconhecidos pelos clientes, colegas e demais entidades que com ele lidam.

18. Sabia a arguida que, ao proferir as expressões acima mencionadas, ofendia a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao ofendido.

19. O que fez, sabendo que tais factos que, por aquele meio foram propalados, eram falsos.

20. Ao proferir as expressões e ao afirmar e propalar factos inverídicos a propósito do ofendido, na mensagem que enviou ao cliente do mesmo, a arguida agiu com o propósito conseguido de ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao ofendido.

21. Tudo o que a arguida sabia que iria lograr, sendo sempre passível de o conseguir, face à verbalização de tais expressões e factos inverídicos.

22. Sabia que as afirmações proferidas atentariam contra a honorabilidade do ofendido, o que efetivamente sucedeu.

23. Tinha a arguida perfeito conhecimento que o ofendido se encontrava no exercício das suas funções de Advogado e agiu da forma descrita, precisamente por causa dessas funções.

24. A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei penal.

Pelo exposto, a arguida incorreu na prática, como autora material, na forma consumada, de um crime de difamação agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 180°, n° 1 e 183°, n° 1, alíneas a), e b), e 184° do Cód. Penal.

Prova, a dos autos, designadamente:

A - Documental

- auto de denúncia de fls. 2,

- documentos de fls. 5 a 15,

- certidão Notarial de fls. 16 a 19,

- dispensa do sigilo profissional de fls. 20 a 24,

- e-mail’s da arguida de fls. 38, 62-63,

- documento de fls. 68,

B - Testemunhal

1- JJMF, id. a fls. 69,

2- PMBA, id. a fls. 4,

*

Daí que haja que avançar para a escolha e a medida da pena.

Nos termos da referida disposição legal, a moldura legal ou abstrata do crime cometido pela arguida é a de prisão até 6 meses ou pena de multa de 10 a 240 dias, elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo.

O artº 70º CP fornece ao juiz o critério geral que deve presidir à escolha das penas.

Assim, de acordo com a referida disposição legal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja “a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (Artº 40º nº 1 CP)

Como escreve, a propósito, Maria Fernanda Palma Casos e Materiais de Direito Penal, pág. 32. “A proteção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva).

A proteção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial”.

E no que concerne à reintegração social a que alude o referido artº 40º CP, diz ainda a referida autora que tal “significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela proteção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral”.

Assim sendo, diremos que à escolha da pena apenas presidem razões ou exigências de prevenção.

Por isso afastada está a relevância da culpa na escolha da pena.

Ora no caso dos autos justifica-se a preferência pela pena de multa, já que a arguida não tem antecedentes criminais.

Por isso crê-se que a aplicação de uma pena de multa promove a recuperação do delinquente e reprova suficientemente a sua conduta.

A graduação em concreto do número de dias da pena de multa obedece, exclusivamente, aos critérios estabelecidos no nº 1 do Artº 71º CP (concretizados no nº 2 do mesmo artigo) sem esquecer que, de acordo com o artº 40º nº 2 CP, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Como ensina Figueiredo Dias (Direito Penal – Questões fundamentais – A doutrina geral do crime - Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121):

“1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.

2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.

3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.

4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais”.

Aduz o mesmo Ilustre Professor – As Consequências Jurídicas do Crime, §55 que “Só finalidades relativas de prevenção geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma ‘infringida’.

Todavia em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa), pois que o princípio da culpa, como salienta o mesmo Insigne Professor– in ob. cit. § 56 -, “não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer conceção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.” Ou, e, em síntese: “A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização.

A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.” - v. FIGUEIREDO DIAS, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss. A função da culpa encontra-se consagrada no artº 40º nº 2 do Código Penal que estabelece: em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Significa isto que na determinação da medida concreta da pena de multa, a culpa e as exigências de prevenção (geral e especial) intervêm apenas na fixação do número de dias de multa.

Ora no caso dos autos, tendo em conta que:

a) O grau de ilicitude dos factos é de grau médio;

b) A arguida agiu com dolo direto;

c) A ausência de antecedentes criminais;

d) Que as exigências de prevenção geral são relevantes face á frequência com que se verificam este tipo de crimes;

Entende-se adequada, justa e equilibrada a aplicação à arguida da pena de 150 dias de multa.

A fixação do quantitativo correspondente a cada dia de multa obedece ao disposto no artº 47º nº 2 CP - cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 5 Euros e 500 Euros - e em que releva exclusivamente a situação económico e financeira e os encargos pessoais do condenado.

Ora tendo em conta que a arguida é advogada, entende-se ser de fixar o quantitativo correspondente a cada dia de multa em € 7,00 euros, o que perfaz a multa global de € 1.050,00 Euros.

Do direito a indemnização

Consigna-se que no caso concreto, apreciando a matéria de facto dada como provada, o Ministério Público entende que, haverá lugar ao arbitramento de uma indemnização ao ofendido.

Concluindo que há lugar à atribuição de indemnização ao ofendido, que a pediu, segue-se a regra geral, que consta do art. 129º do Código Penal, que diz que «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil».

Vejamos, então, em que termos regula a lei civil a indemnização decorrente da prática de facto ilícito.

Nos termos do art. 483º, nº 1 do Código Civil «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação». São, pois, pressupostos da obrigação de indemnizar:

- o facto voluntário do agente;

- a ilicitude do facto;

- a imputação do facto ao lesante, a título de dolo ou mera culpa;

- a ocorrência de dano;

- a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.

É patente que se verificam os pressupostos do facto ilícito e do dolo na sua execução.

Quanto aos danos, conforme resulta dos factos, a arguida, ao proferir as expressões e ao afirmar e propalar factos inverídicos a propósito do ofendido, na mensagem que enviou ao cliente do mesmo, agiu com o propósito conseguido de ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao colega.

Também resulta, que da atuação da arguida poderão ter ocorrido danos patrimoniais, mas estes, não estão quantificados e, como sabemos, nem só estes são indemnizáveis.

Nos termos do art. 496º do Código Civil, são atendíveis para efeitos indemnizatórios os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. No caso, entendemos que os danos provocados ao ofendido são relevantes.

Os danos não patrimoniais são aqueles que são insuscetíveis de expressão pecuniária, como sejam as dores físicas e morais sofridas.

Por isso a sua quantificação faz-se com recurso à equidade.

A fixação da indemnização de acordo com a equidade significa que o seu valor é determinado considerando a culpa do agente, a sua situação económica e a situação económica do lesado, as especiais circunstâncias do caso, a gravidade do dano, etc., ou seja, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2003, pág. 602 e segs): a indemnização deve ser proporcional à gravidade do dano, a avaliar objetivamente, e ser fixada de acordo com critérios de boa prudência e ponderação das realidades da vida.

E não podia deixar de ser assim porque a indemnização por danos não patrimoniais não visa pagar, nem apagar, os danos provocados pelo facto, porque sobre eles não podem incidir regras de cálculo. O que aqui se pretende é atenuar, minorar e de certo modo compensar os danos sofridos pelo lesado, atribuindo-lhe uma soma em dinheiro que lhe permita um acréscimo de bem-estar que sirva de contraponto ao sofrimento moral provocado.

Sendo essa a função a indemnização pelo dano não patrimonial, não pode ela ser meramente simbólica, a menos que seja isso que se pretenda.

Para o ressarcimento destes danos a lei, conforme resulta do art. 496.º do C. Civil, confia ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, e nesta apreciação releva não o rigor contabilístico da adição de custos, despesas, ou de ganhos mas sim o desiderato de, prudentemente, dar alguma correspondência compensatória ou satisfatória entre uma maior ou menor quantia de dinheiro a arbitrar à vítima e a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ela se viu afetada (Acórdão do T.R.P. de 9-7-1998, CJ, Ano XXIII, tomo IV, pág. 185, citando Pessoa Jorge, in Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil.)

No caso, temos por adequada a atribuição ao ofendido da quantia de € 2.500,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos.

*

Ponderados todos estes elementos, proponho, nos termos do art. 394º, nº 1 e nº 2, do C.P.P, que a arguida seja condenada pela prática, como autora material, na forma consumada, de um crime de difamação agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 180°, n° 1 e 183°, n° 1, alíneas a), e b), e 184° do Cód. Penal:

1º - na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz a multa global de € 1.050,00 Euros, que se entende justificada face à situação económica e financeira da arguida, e dado esta realizar, a nosso ver, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, e

2º - será condenada a pagar a JJMF, a quantia de 2.500,00 € (dois mil e quinhentos euros), pelos danos não patrimoniais causados pelo crime de difamação agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 180°, n° 1 e 183°, n° 1, alíneas a), e b), e 184° do Cód. Penal, praticado sobre este, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.

Remeta os autos à distribuição para apreciação do presente requerimento”.

4 - Apreciação do mérito do recurso.

Alega a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente, em breve resumo, que os factos imputados à arguida no requerimento em apreço constituem crime de difamação, ou, pelo menos, a qualificação jurídica de tais factos é questionável neste caso concreto, pelo que o tribunal recorrido devia proceder à apreciação dos requisitos de admissibilidade do prosseguimento dos autos sob a forma sumaríssima.

Cumpre apreciar e decidir.

O Ministério Público imputa à arguida a prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1, 183º, nº 1, als. a) e b), e 184º, todos do Código Penal.

Incorre na prática de um crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sobre a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo” (artigo 180º, nº 1, do Código Penal).

De acordo com a doutrina tradicional, a ofensa à honra é “a ofensa a esse sentimento da própria dignidade e do decoro que toda a gente, no seu íntimo, põe acima de todas as coisas (honra subjetiva) e a esse património moral de estima e de reputação, junto dos outros, que qualquer pessoa adquira e de que goze vivendo em sociedade (honra objetiva), os quais podem ser ofendidos por meio de atos ou de palavras de outra pessoa” (Borciani, in “As Ofensas à Honra”, tradução Portuguesa, 1950, Coimbra, pág. 5).

Nelson Hungria (in “Comentários ao Código Penal”, Vol. VI, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1958, pág. 39) sustenta que “o interesse jurídico que a lei protege (...) refere-se ao bem material da honra, entendida esta, quer como o sentimento da nossa dignidade própria (honra interna, honra subjetiva), quer como o apreço e respeito de que somos objeto ou nos tornamos merecedores perante os nossos concidadãos (honra externa, honra objetiva, reputação, boa fama). Assim como o Homem tem direito à integridade do seu corpo e do seu património económico, tem-no igualmente à indemnidade do seu amor-próprio (...) e do seu património moral”.

Acrescenta este autor (obra e local citados) que “a honra é um bem precioso, pois a ela está necessariamente condicionada a tranquila participação do indivíduo nas vantagens da vida em sociedade”.

Na previsão legal do crime de difamação fala-se em ofensa à honra ou consideração. A honra, em nosso entender, refere-se à acima aludida “honra subjetiva”, ao passo que a consideração será a reputação da pessoa, a estima que o homem soube, pelos seus atos, conquistar (“honra objetiva”) - cfr., na distinção destes conceitos, Lopes da Silva Araújo, “Crimes Contra a Honra”, Coimbra Editora, 1957, págs. 90 a 97.

Contudo, e como bem salienta Oliveira Mendes (in “O Direito à Honra e a Sua Tutela Penal”, Livraria Almedina,1996, pág. 37), “nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos artigos 180º e 181º do Código Penal, tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa”.

Aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas de um certo país - e no ambiente em que se passaram os factos - não considera difamação, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora.

Nesta ordem de ideias, um facto ou um juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e/ou da consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objeto eticamente reprovável e de tal forma que a sociedade não lhe seja indiferente, reclamando a tutela penal para dissuasão e repressão desse comportamento.

Por outras palavras: a punição por crime de difamação pressupõe a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio/moral da pessoa, da sua honra ou consideração.

A esta luz, sempre que a atuação comportamental de um cidadão não se coaduna com a sensibilidade de outro sobre o mesmo comportamento, não significa que tal atuação equivalha logo a crime, sob pena de chegarmos à absurda conclusão de que todos os comportamentos incorretos ou desadequados constituem crime.

Como refere Oliveira Mendes (ob. citada, págs. 38 e 39), “há um consenso na generalidade das pessoas, pelo menos de um certo país, sobre o que razoavelmente se não deve considerar ofensivo. Na realidade, existe em todas as comunidades um sentido comum, aceite por todos ou, pelo menos, pela maioria, sobre o comportamento que deve nortear cada um na convivência com os outros, em ordem a que a vida em sociedade se processe com um mínimo de normalidade. Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros. Tais limites como que se acham inscritos num «Código de Conduta» de que todos são sabedores, o qual reflete o pensamento da própria comunidade e, por isso, é por todos reconhecido ou, pelo menos, pela maioria”.

De entre as normas de conduta fazem parte regras que impõem que cada cidadão se comporte relativamente aos demais com um mínimo (exigível) de respeito moral, cívico e social, que, porém, nunca se pode confundir com educação ou cortesia, pelo que os comportamentos indelicados (e mesmo boçais) não fazem parte daquele mínimo de respeito que ao direito penal cabe proteger.

A difamação não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez, ou mesmo com a grosseria, que são comportamentos que apenas podem traduzir falta de educação.

Por outro lado, e convém salientar-se, quando se pune um ato difamatório não se visa a proteção da suscetibilidade pessoal deste ou daquele, mas tão só da sua dignidade, da sua honra ou da sua consideração (como atrás se disse).

Ou seja, a consideração como ofensivo, para efeitos penais, de um facto imputado a outrem, tem de basear-se em critérios objetivos, partindo das regras da lógica comumente aceites e do entendimento do Homem comum, não podendo estribar-se na “sensibilidade” subjetiva (maior ou menor) do próprio visado.

Dito isto, e retomando a situação posta nos autos, temos por manifesto que as imputações de factos produzidas pela arguida não consubstanciam, objetivamente, ato ofensivo da honra ou da consideração do ofendido.

Senão vejamos.

1º - A arguida e o ofendido, na sua qualidade de Advogados, e num mesmo processo de inventário, representaram interessados/herdeiros. Um desses interessados, e atual cabeça de casal, é constituinte do Advogado ofendido. O Advogado ofendido reclamou o pagamento de custas de parte, no processo de inventário em causa, e notificou a Advogada arguida da “Nota Discriminativa e Justificativa das Custas de parte”, solicitando ainda a transferência de metade do montante recebido a título de rendas pela cliente da Advogada arguida durante o período em que essa cliente da agora arguida exerceu o cargo de cabeça de casal.

2º - Na sequência dessas solicitações, “no dia 19 de abril de 2017, a arguida, mediante transferência bancária, depositou na conta do ofendido, na … - Balcão de …, o montante de € 2.750,00, que este lhe havia solicitado. No dia 3 de julho de 2019, a arguida enviou uma mensagem de texto, do seu telemóvel nº …, para o telemóvel do constituinte do ofendido, PA, nº …, onde afirma que entregou ao ofendido a quantia de € 2.750,00, enviando, como prova, o talão multibanco, e, ainda, a quantia de € 944,50, juntamente com as chaves da casa. A arguida afirma também, nessa mensagem, que ainda pagou um valor de custas de cerca de € 300,00, que o ofendido lhe exigiu, por o destinatário dessa mensagem ser o cabeça de casal daquele processo de inventário. Tais afirmações são falsas, porquanto, para além do montante de € 2.750,00, a arguida não entregou ao ofendido qualquer outra quantia em dinheiro e, tão-pouco, lhe entregou as chaves da casa, que o ofendido, aliás, nunca lhe pediu” (sublinhado nosso).

3º - É esta “mentira” da Advogada arguida, assim descrita e configurada, que o Ministério Público considera integrar os elementos objetivos típicos do crime de difamação

Ora, e com o devido respeito por diferente opinião, a descrita “mentira” da Advogada arguida, inequivocamente, não viola aquele mínimo de respeito moral, cívico e social a que acima fizemos referência, de tal forma que a atuação da arguida imponha, justifique ou legitime a sua punição por crime de difamação.

A “mentira” da arguida, olhada no contexto em que ocorreu, está, incontroversamente (a nosso ver), aquém da antijuridicidade criminal (ou seja, não possui significado penalmente relevante).

O mesmo é dizer que a conduta da arguida não pode ser tida como comportamento ofensivo da honra ou da consideração do ofendido em medida adequada e suficiente para poder considerar-se como integrando os elementos típicos do crime de difamação.

Objetivamente, e analisada com racionalidade e equilíbrio, a atuação da arguida não constitui, para os efeitos em apreço nestes autos, ofensa à honra ou à consideração do Advogado ofendido, não atingindo, de modo criminalmente relevante, a sua dignidade pessoal, a estima que tem por si mesmo, ou a sua reputação e imagem perante terceiros.

Em nosso entender, dizer-se que se entregou a alguém determinadas quantias monetárias e as chaves de uma casa quando isso não ocorreu, não passa, objetivamente, de afirmar algo que não tem correspondência com a verdade.

Essa “mentira”, se bem que, de um ponto de vista subjetivo, possa “incomodar” seriamente o ofendido (e até fazê-lo sentir-se humilhado e vexado), não vai, objetivamente analisada, além de uma “mentira”, sem carácter ofensivo da honra ou da consideração do ofendido, e, por via disso, não se pode transformar num facto criminoso, que reclame tutela penal ao abrigo do crime de difamação.

Quanto muito, o que podemos afirmar é que a descrita atuação da arguida não se rege pelos ditames da moral, ou da ética, ou até, eventualmente, que tal atuação desrespeita as suas obrigações profissionais, enquanto Advogada num determinado processo e perante um outro Advogado nesse mesmo processo (o ofendido), podendo ser objeto de sanção disciplinar.

Como bem se escreve no despacho revidendo, neste momento “pode-se dizer que a Arguida está a semear o caminho para a suspeita, para, posteriormente, quando eventualmente for confrontada com a diferente versão do seu Ilustre colega, asseverar que efetivamente lhe entregou o dinheiro e que desconhece as razões pelas quais o Assistente não endereçou tal montante para o seu cliente, lançando a insinuação e deixando a suspeita sobre uma eventual apropriação, consumando-se aí o crime. Todavia, neste momento prévio, descrito na acusação, isso ainda não aconteceu, o facto objetivo comunicado não é desonroso, é apenas uma inverdade, uma diversa narração factual”.

Em jeito de síntese: os factos descritos nos autos configuram uma “mentira” da Advogada arguida, mas tais factos, apesar de falsos, são criminalmente irrelevantes, não constituindo crime de difamação, na medida em que, no nosso entendimento, não constituem uma manifestação de menosprezo para com o ofendido, manifestação com carga suficiente para, objetivamente, ser idónea a afetar a honra ou a consideração que ao ofendido são devidas (quer enquanto Advogado, quer enquanto pessoa).

Conforme bem assinala o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, “os factos dados a conhecer a terceiro sobre uma alegada entrega de quantias monetárias ao queixoso, ainda que não correspondam à verdade, no contexto em que o foram e em qualquer outro contexto, não têm dignidade bastante para responsabilizar penalmente a respetiva autora. Ou seja, desses factos, objetivamente, não resulta que a arguida tenha colocado em causa a consideração, o bom nome, a honra e o respeito que são devidos ao queixoso, seja enquanto Advogado, seja a qualquer outro título. No contexto em que foram comunicadas, as afirmações da arguida, ainda que inverídicas, não corporizam, objetivamente, um cunho revelador de um menor respeito e consideração pela pessoa do queixoso e da sua qualidade profissional, não se traduziram na formulação de um juízo com virtualidade bastante para o diminuir perante terceiros (…). Não é possível concluir que as afirmações da arguida tiveram, objetivamente, como fim ou motivo ajuizar da honra, pessoal e profissional, do queixoso. Dizer-se que se entregou a alguém determinadas quantias monetárias, quando tal não teve lugar, não passa, objetiva e indiciariamente, de afirmar algo que não tem correspondência com a verdade, e não vai além disso mesmo, não se alcandorando a facto penalmente relevante e reclamante de tutela penal”.

Em conclusão: a conduta da arguida não é idónea para ofender a honra ou a consideração do ofendido, pelo que, ao contrário do entendimento expresso pelo Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância, a arguida não incorreu na prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1, 183º, nº 1, als. a) e b), e 184º, todos do Código Penal.

Os factos objeto da “acusação” do Ministério Público, e inequivocamente (ou seja, sem posições divergentes, na doutrina ou na jurisprudência, e sem outras putativas possíveis interpretações jurídicas - com o devido respeito por diferente opinião -), não configuram a prática de qualquer crime, sendo tal “acusação”, por isso, manifestamente infundada, e, também por via disso, tendo a mesma de ser rejeitada, nos exatos termos processuais em que o foi no despacho sub judice.

Do que se deixa dito, conclui-se que o recurso improcede, sendo de manter o decidido em primeira instância.

III - DECISÃO.

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.

Sem custas, por o Ministério Público estar isento do seu pagamento.

*

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 21 de setembro de 2021

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia