Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3107/21.7T8STB.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRAZO PRESCRICIONAL
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – A mera propositura da acção não é suficiente para fazer interromper a prescrição, antes o efeito interruptivo ocorre pela citação ou notificação judicial que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito.
2 – O n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 constitui causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
3 – A eficácia suspensiva ou interruptiva da lei não tem só aplicação aos prazos processuais e o prazo de prescrição de três anos, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, foi ampliado durante a situação excepcional pandémica.
4 – Esta suspensão de prazos de prescrição e caducidade prevalece sobre quaisquer regimes que fixassem prazos máximos imperativos, prevendo-se que tais regimes foram alargados pelo período de tempo definido na lei.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3107/21.7T8STB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Local de Cível de Setúbal – J2
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção condenatória emergente de acidente de viação proposta por (…) contra “(…) – Companhia de Seguros, SA”, o Autor interpôs recurso do saneador-sentença que julgou procedente a excepção de prescrição.
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O Autor pediu que a Ré fosse condenada:
i) a reparar o veículo automóvel com a matrícula …-FD-… ou, em alternativa, a pagar ao Autor a quantia de € 15.142,74 (quinze mil, cento e quarenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos), a título de indemnização pelos danos no veículo automóvel com a matrícula …-FD-…, coberto pelo contrato de seguro celebrado;
ii) no pagamento à Autora da quantia de € 8.000,00 (oito mil euros), a título de danos patrimoniais, por privação de uso.
iii) no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data em que a Ré estava obrigada a colocar à disposição do Autor a respectiva indemnização de ressarcimento dos danos causados pelo evento coberto pelo contrato de seguro contratualizado, devendo os mesmos ser contabilizados na data de efectivo e integral pagamento da quantia peticionada.
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Em apoio da sua pretensão, o Autor alega que, em 07/06/2018, ocorreu um embate entre a sua viatura automóvel, à data conduzida pela sua esposa, e o veículo automóvel com a matrícula SC-…-…, que foi responsável pela produção do acidente. Como consequência direta e necessária do acidente de viação, o veículo automóvel do Autor sofreu danos materiais.
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Devidamente citada, a Ré apresentou contestação, impugnando os factos atinentes à dinâmica do acidente e deduzindo a excepção de prescrição.
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Em articulado autónomo, o Autor pronunciou-se relativamente à questão da prescrição.
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Em sede de despacho saneador, o Tribunal a quo decidiu julgar procedente a excepção peremptória de prescrição invocada e, em consequência, absolveu a Ré do pedido.
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O recorrente não se conformou com a referida decisão e as suas alegações apresentavam as seguintes conclusões:
«A) O ora Apelante intentou acção declarativa de condenação contra a “(…) – Companhia de Seguros, SA” pedindo a condenação desta no seguinte:
- na reparação do veículo automóvel com a matrícula …-FD-… ou, em alternativa, pagar ao autor a quantia de € 15.142,74, a título de indemnização pelos danos no veículo automóvel com a matrícula …-FD-…, coberto pelo contrato de seguro celebrado;
- no pagamento ao A. da quantia de € 8.000,00, a título dos danos patrimoniais, por privação de uso; e
- no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data em que a R. estava obrigada a colocar à disposição do A. a respectiva indemnização de ressarcimento dos danos causados pelo evento coberto pelo contrato de seguro contratualizado, devendo os mesmos ser contabilizados desde a data de efectivo e integral pagamento das quantias peticionadas.
B) O douto Tribunal a quo julgou procedente a excepção peremptória de prescrição invocada pela Ré e, em consequência, absolveu a Ré do pedido formulado pelo o ora Apelante.
C) O Recorrente não se conformando com a Douta Sentença de absolvição, vem interpor o presente Recurso, tendo o mesmo como objecto a matéria de direito.
D) O Tribunal a quo deu como provado, no ponto 7 que “O acidente de viação em discussão nos presentes autos ocorreu no dia 07/06/2018 e a Ré foi citada para contestar a presente acção no dia 09/06/2021”.
E) O douto Tribunal a quo deu por assente que não ocorreu causa ou acto de interrupção da prescrição em momento prévio à data da interposição da presente acção em juízo, ao interpretar que ao prazo de prescrição em causa no artigo 498.º do Código Civil, sendo de natureza substantiva, não são aplicáveis os regimes legais consagrados na Lei n.º 1-A/2020 e na Lei 4-B/2021.
F) Destarte, s.m.o., andou mal o douto Tribunal a quo ao interpretar que ao prazo de prescrição em causa no artigo 498.º do Código Civil, sendo de natureza substantiva, não são aplicáveis os regimes legais consagrados na Lei n.º 1-A/2020 e na Lei 4-B/2021.
G) Ao decidir desta forma, o douto Tribunal a quo interpretou e aplicou, de forma errónea, as normas ínsitas no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, conjugado com o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 16/2020, de 29/05, n.ºs 3 e 1 do artigo 6.º-B da Lei 4-B/2021, de 01/02 e no artigo 5.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, e no artigo 498.º do Código Civil.
H) Assim, e nos que aos presentes autos importa, estabeleceu, o n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, que “a situação excepcional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos”.
I) Acrescentando-se no n.º 4 deste preceito: “o disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo que vigorar a situação excepcional”.
J) Esta disposição legal deverá ser conjugada com o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 16/2020, de 29/05, de acordo com o qual “sem prejuízo do disposto no n.º 5, os prazos de prescrição e caducidade que deixem de estar suspensos por força das alterações introduzidos pela presente lei são alargados pelo período de tempo em que vigorou a suspensão”.
K) Conforme resulta da letra e espírito da Lei, as disposições referidas aplicam-se a todos os prazos, substantivos e processuais, não tendo sido feita pelo Legislador qualquer distinção positiva ou negativa.
L) Entendimento plasmado na decisão proferida por Acórdão do TRL em 19/03/2020, in www.dgsi.pt, relativamente a prazo de prescrição, igualmente, substantivo: “I – A suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade contemplada nos nºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 2020-03-19, que ocorreu entre 9 de Março de 2020 e 3 de Junho do mesmo ano, aplica-se ao prazo prescricional contemplado no n.º 1 do artigo 337.º do Código de Trabalho/2009”.
M) Assim sendo, o douto Tribunal a quo deveria ter dado por provado que, in casu, ocorreu causa ou acto de interrupção da prescrição em momento prévio à data da interposição da presente acção em juízo.
N) Deveria ter dado por provado que, de acordo com o n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 conjugado com o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 16/2020, de 29/05, numa primeira fase da pandemia, o prazo de prescrição, aplicável à situação em litígio nos presentes autos, esteve suspenso entre 9 de Março de 2020 e 3 de Junho de 2020.
O) De igual forma, deveria ter dado como provado que o prazo de prescrição aplicável nos presentes autos esteve suspenso entre 22 de Janeiro de 2021 e 5 de Abril de 2021, de acordo com o disposto nos n.ºs 3 e 1 do artigo 6.º-B da Lei 4-B/2021, de 01/02 e no artigo 5.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04.
P) Em conclusão deveria ainda ter sido dado por provado que o prazo prescricional de 3 anos, aplicável à situação em discussão nos presentes autos, não se completaria no dia 7 de Junho de 2021, mas ao invés 157 dias após essa data, ou seja, em 11 de Novembro de 2021, atendendo à suspensão de prazos excepcional que se verificou nos períodos supra referidos.
Q) Atento todo o exposto, verifica-se que o Douto Tribunal a quo andou mal na sua decisão, uma vez que deveria, como se demonstrou, ter julgado, a excepção de prescrição invocada pela Ré improcedente, por não provada, e, consequentemente, dado por assente que o direito do Autor não prescreveu.
R) Ao decidir de forma inversa, o Tribunal a quo interpretou e aplicou, de forma errónea, as normas ínsitas no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 conjugado com o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 16/2020, de 29/05, n.ºs 3 e 1 do artigo 6.º-B da Lei 4 B/2021, de 01/02 e no artigo 5.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, e no artigo 498.º do Código Civil.
S) Pelo exposto e fundamentado deverá este Venerando Tribunal conceder provimento ao Recurso ora apresentado, revogando a Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, que fez uma errada interpretação e aplicação das normas legais consideradas (face à alteração da matéria de facto que defendeu nas prévias alegações do seu recurso), importando por isso alterar a decisão de mérito (julgando-se procedente a acção).
T) Pugna-se assim, pela prolação de acórdão que, emanado deste Venerando Tribunal da Relação, revogue a decisão recorrida, determine a alteração das respostas à matéria de facto da douta sentença recorrida nos termos sobreditos (artigo 662.º do CPC) e, em consequência, revogue a douta Sentença recorrida que deve ser substituída por outra que, considerando improcedente a arguida excepção de prescrição, ordene o prosseguimento e tramitação dos autos nos moldes que reputar convenientes.
Nestes termos, e nos demais de direito, requer-se a V. Exas. que julguem as presentes conclusões procedentes, por fundamentadas, sendo concedido provimento ao presente Recurso, e, consequentemente, revogar a Douta Sentença recorrida que deve ser substituída por outra que considerando improcedente a arguida excepção de prescrição, ordene o prosseguimento e tramitação dos autos nos moldes que reputar convenientes, assim se fazendo a costumada Justiça!».
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A parte contrária respondeu, sustentando que deveria ser negado provimento ao recurso, mantendo-se, na íntegra, a douta decisão recorrida.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento unânime que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro de direito relacionado com a prescrição do direito invocado.
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III – Factos com interesse para a decisão da causa:
1. O Autor é o legítimo dono e possuidor do veículo automóvel, marca e modelo Ford S-Max 1.8 TDCI Titanium 7l 5p 1753CC, com a matrícula …-FD-….
2. No dia 7 de junho de 2018, a esposa do Autor circulava na Avenida de Moçambique, em Vila (…), na Quinta (…), ao volante do veículo automóvel identificado.
3. Atrás de si, e no mesmo sentido, circulava o veículo automóvel com a matrícula SC-…- …, propriedade de (…), e na ocasião conduzido por si.
4. Acabando os referidos veículos por embater um no outro.
5. Ao tempo do acidente, o proprietário do veículo automóvel – SC-…-… – havia transferido para a Ré a responsabilidade civil pelo risco resultante da circulação daquele veículo, através do contrato de seguro titulado pela apólice (…).
6. Como consequência direta e necessária do acidente de viação, o veículo automóvel do Autor sofreu danos materiais.
7. O acidente de viação em discussão nos presentes autos ocorreu no dia 07/06/2018 e a Ré foi citada para contestar a presente ação no dia 09/06/2021.
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IV – Fundamentação:
O decurso do tempo é especificamente causa de extinção ou perda de direitos, por inobservância do prazo para o seu exercício, sendo que a prescrição se destina a sancionar a negligência do titular do direito.
Diz-se prescrição quando alguém se pode opôr ao exercício dum direito pelo simples facto de este não ter sido exercido durante determinado prazo fixado por lei[1].
Vaz Serra[2] escreveu «sem querer entrar na discussão de qual seja exactamente o fundamento da prescrição, que uns veem na probabilidade de ter sido feito o pagamento, outros na pre­sunção de renúncia do credor, ou na sanção da sua negli­gên­cia, ou na consolidação das situações de facto, ou na pro­tecção do devedor contra a dificuldade de prova do paga­mento ou no sossego quanto à não existência da dívida, ou na ne­cessidade social de segurança jurídica e certeza dos di­rei­tos, ou na de sanear a vida jurídica de direitos prati­ca­mente caducos, ou na de promover o exercício oportuno dos direitos – pode dizer-se que a prescrição se baseia, mais ou menos, em todas estas considerações, sem que possa afirmar­-se só uma delas ser decisiva e relevante».
Em trabalho sobre esta temática, Aníbal de Castro comenta que «a prescrição destina-se a contrariar a situação anti-jurídica da negligência; a caducidade a limitar o lapso de tempo a partir do qual há-de assegurar-se a eficácia, de que é condição, mediante o exercício tempestivo do direito, a pôr termo a um estado de sujeição decorrente dos direitos potestativos. Estes os motivos específicos de cada uma das limitações temporais, sendo comuns as razões que as determinam por destinarem-se ambas a servir a segurança e certeza da ordem jurídica, pondo-se assim termo a situações contrárias ao direito e à prejudicial ou perturbante dilação do seu exercício, distinguindo-se ainda pelos efeitos, paralisação num caso, extinção no outro»[3].
Dias Marques define a «prescrição como a extinção dos direitos em consequência do seu não exercício durante certo lapso de tempo, o que significa, em outros termos, que, uma vez completada a prescrição, tem o sujeito passivo por ela beneficiado a faculdade de recusar o cumprimento da obrigação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito»[4].
Estão sujeitos a prescrição os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição (n.º 1 do artigo 298.º[5] do Código Civil).
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Nos termos do n.º 1 do artigo 306.º[6] do Código Civil, «o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido».

A este propósito, considerando as datas do acidente de viação (07/06/2018) e da citação (09/06/2021), o Tribunal a quo decidiu que o direito de indemnização exercido pelo Autor já se encontrava prescrito. Para tanto, adiantou que «nos termos do artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete. A esse respeito, refira-se que resulta dos autos que o lesado (ora Autor) teve conhecimento do sinistro no dia 07/06/2018. Como decorre taxativamente de tal preceito legal, tal prazo de prescrição corre independentemente de o lesado saber a identificação da pessoa do responsável ou a extensão integral dos danos».
E, no epílogo do respectivo raciocínio, o Meritíssimo Juiz de Direito sentenciou que «encontra-se, pois, prescrito o direito de indemnização que o Autor pretendia exercer com a presente ação» e, consequentemente, absolveu a Ré do pedido, ao abrigo da disciplina prescrita nos nºs 1 e 3 do artigo 576.º do Código de Processo Civil).
Na realidade, a mera propositura da acção não é suficiente para fazer interromper a prescrição, antes o efeito interruptivo ocorre pela citação ou notificação judicial que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, tal como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 323.º[7] do Código Civil.
De acordo com o n.º 2 do artigo 323.º, se a citação ou notificação tiver sido feita dentro dos cinco dias após ter sido requerida atender-se-á à data em que ela foi efectivamente realizada. Se não tiver sido feita no prazo de cinco dias depois de ter sido requerida, importará verificar se esse atraso foi ou não devido a causa não imputável ao requerente. Se a causa não foi imputável ao requerente, os efeitos interruptivos da prescrição retroagem aos cinco dias após a citação ou notificação ter sido requerida. Se o atraso for imputável ao requerente a interrupção terá lugar no momento em que a citação ou notificação é efectivamente realizada[8] [9] [10] [11] [12] [13].
Na hipótese vertente, não existiu qualquer causa ou acto de interrupção da prescrição praticado por qualquer das partes e não estamos uma hipótese tradicional de prolongamento do prazo prescricional por via da ocorrência de lesões corporais que constituísse um facto ilícito criminal.
Aquilo que se pergunta é se no decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19, foi editada legislação especial que tivesse eficácia ao nível dos prazos de suspensão e interrupção da prescrição e esta situação ficasse regida por um regime próprio e transitório?
O Julgador de Primeira Instância entendeu que «o prazo de prescrição em causa no artigo 498.º do Código Civil é de natureza substantiva ou material e o referido regime legal consagrado na Lei n.º 1-A/2020 aplica-se a prazos de natureza processual, pelo que este último não é aplicável nesta sede».
Neste particular, é de atender que, face ao consignado no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, «a situação excepcional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos».
Mais, adianta o n.º 4 do mesmo preceito que «o disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo que vigorar a situação excepcional».
Por último, foi ainda editada uma norma (artigo 6.º da Lei n.º 16/2020, de 29/05) que estipula que «sem prejuízo do disposto no n.º 5, os prazos de prescrição e caducidade que deixem de estar suspensos por força das alterações introduzidos pela presente lei são alargados pelo período de tempo em que vigorou a suspensão».
Dito por outras palavras, existe (ou não) um regime excepcional de contagem de prazos de caducidade e prescrição que, ao ter influência no tempo de contagem, implica que se considere temporalmente estendido o prazo de 3 anos previsto para o accionamento da responsabilidade extracontratual emergente de acidente de viação?
Marco Carvalho Gonçalves entende que sim[14]. Defende este autor que «nos termos do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, a situação excecional constituía igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade que fossem relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, isto é, aos prazos de prescrição e de caducidade que dissessem respeito ao exercício de direitos em juízo. É o que sucedia, por exemplo, com o prazo de caducidade de 30 dias para a dedução de embargos de terceiro (artigos 344.º, n.º 2 e 138.º, n.º 4, do CPC), com o prazo de prescrição de três anos, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (artigo 498.º do Código Civil), ou com o prazo de um ano para o exercício dos direitos de eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato ou indemnização no âmbito da empreitada (artigo 1224.º, n.º 1, do Código Civil)».
Também Paulo Pimenta pugna por idêntica solução quando afirma que «o n.º 3 do artigo 7.º, também com foros de excepcionalidade, consagra a suspensão de prazos de prescrição e de caducidade relativamente a todos os tipos de processos e procedimentos, sendo que, nos termos do n.º 4, esta suspensão de prazos de prescrição e caducidade prevalece sobre quaisquer regimes que fixem prazos máximos imperativos, prevendo-se que tais regimes serão alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional»[15].
A voz autorizada de Luís Menezes Leitão[16] também confirma que «o n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 determina ainda que esta situação excepcional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos».

No plano jurisdicional também foi já editada jurisprudência que sustenta que a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade contemplada nos nºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 2020-03-19[17], que ocorreu entre 9 de Março de 2020 e 3 de Junho do mesmo ano, tem aplicação na contagem dos prazos de interposição de determinadas acções[18] [19] [20].
Confrontados com a letra da lei e todos os demais elementos hermenêuticos de natureza história, teleológica e sistemática somos igualmente forçados a concluir que a eficácia suspensiva ou interruptiva da lei não tem só aplicação aos prazos processuais e que o tempo prescricional de três anos, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, foi ampliado durante a vigência da situação excepcional pandémica.
Nesta conformidade, enquanto durou a situação de excepção, não houve necessidade de instaurar processos ou procedimentos para evitar a prescrição ou a caducidade e esses prazos retomaram a sua contagem assim que esta findou.
Assim, é lícito sustentar que, numa primeira fase desta pandemia, o prazo de prescrição, aplicável à situação em litigio nos presentes autos, esteve tolhido e foi alargado pelo período de tempo equivalente ao dessa paralisação.
Em função de tudo isto, existiu, ope legis, uma causa de interrupção da prescrição que não foi considerada pelo Tribunal a quo, impondo-se assim julgar procedente o recurso interposto e revogar a decisão recorrida.
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V – Sumário: (…)

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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso apresentado, revogando-se o saneador-sentença na parte em que declarou prescrito o direito invocado, devendo os autos prosseguir os seus termos.
Custas do recurso a cargo da Ré, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 09/06/2022

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

Mário Branco Coelho

Isabel de Matos Peixoto Imaginário




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[1] Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, vol. II, pág. 155.
[2] Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, 1961, BMJ n.º 105, pág. 32.
[3] Aníbal de Castro, A caducidade, 3ª edição melhorada e actualizada, Petrony, 1984, pág. 30.
[4] Dias Marques, Noções Elementares de Direito Civil, págs. 114 e 112.
[5] Artigo 298.º (Prescrição, caducidade e não uso do direito)
1. Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.
2. Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.
3. Os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície e servidão não prescrevem, mas podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei, sendo aplicáveis nesses casos, na falta de disposição em contrário, as regras da caducidade.
[6] Artigo 306.º (Início do curso da prescrição)
1. O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição.
2. A prescrição de direitos sujeitos a condição suspensiva ou termo inicial só começa depois de a condição se verificar ou o termo se vencer.
3. Se for estipulado que o devedor cumprirá quando puder, ou o prazo for deixado ao arbítrio do devedor, a prescrição só começa a correr depois da morte dele.
4. Se a dívida for ilíquida, a prescrição começa a correr desde que ao credor seja lícito promover a liquidação; promovida a liquidação, a prescrição do resultado líquido começa a correr desde que seja feito o seu apuramento por acordo ou sentença passada em julgado.
[7] Artigo 323.º (Interrupção promovida pelo titular):
1. A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.
2. Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.
3. A anulação da citação ou notificação não impede o efeito interruptivo previsto nos números anteriores.
4. É equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido.
[8] Júlio Gomes, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pág. 713.
[9] No mesmo sentido pode ser consultada Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, págs. 129-150.
[10] Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. II, Lisboa, 1988, págs. 90-91.
[11] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil – Parte Geral: Legitimidade, representação, prescrição, abuso de direito, colisão de direitos, tutela privada e provas, vol. V, Almedina, Coimbra, 2005, págs. 195-198.
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/045/1987, BMJ, n.º 367, pág. 483.
[13] Sobre o conceito de “causa não imputável ao requerente” a decisão recorrida faz apelo aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30/04/1996, BMJ, n.º 456, pág. 381, de 09/07/1998, BMJ, n.º 479, pág. 572, do Tribunal da Relação de Évora de 12/07/1990, BMJ, n.º 399, pág. 603, do Tribunal da Relação do Porto de 14/03/1995, C.J., II, pág. 193 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/03/1995, C.J., II, pág. 172, concluindo que a conduta do requerente só exclui a prescrição quando tenha infringido objectivamente a lei em qualquer termo processual até à verificação da citação.
[14] Marco Carvalho Gonçalves, Atos processuais e prazos no âmbito da Doença Covid-19, in https:// repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/65830/1/Atos%20processuais%20e%20prazos%20no%20âmbito%20da%20pandemia%20da%20doença%20Covid-9%20%28Marco%20Gonçalves%29.pdf
[15] Paulo Pimenta, Prazos, diligências, processos e procedimentos em época de emergência de saúde pública (DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e Lei n.º 4-A/2020, de 6 Abril), in https://www.direitoemdia.pt/magazine/show/68.
[16] Luís Menezes Leitão, E-book do Centro de Estudos Judiciários, “Estado de Emergência – COVID 19 – Implicações na Justiça”, 2.ª edição, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19_2Edicao.pdf.
[17] O artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, publicada no Diário da República n.º 56/2020, 3º Suplemento, Série I, de 2020-03-19 tem a seguinte redacção:
(Prazos e diligências)
1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública.
2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.
3 - A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.
5 - Nos processos urgentes os prazos suspendem-se, salvo nas circunstâncias previstas nos nºs 8 e 9.
6 - O disposto no presente artigo aplica-se ainda, com as necessárias adaptações, a:
a) Procedimentos que corram termos em cartórios notariais e conservatórias;
b) Procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares, e respetivos atos e diligências que corram termos em serviços da administração direta, indireta, regional e autárquica, e demais entidades administrativas, designadamente entidades administrativas independentes, incluindo o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários;
c) Prazos administrativos e tributários que corram a favor de particulares.
7 - Os prazos tributários a que se refere a alínea c) do número anterior dizem respeito apenas aos atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como aos prazos para a prática de atos no âmbito dos mesmos procedimentos tributários.
8 - Sempre que tecnicamente viável, é admitida a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente por teleconferência ou videochamada.
9 - No âmbito do presente artigo, realizam-se apenas presencialmente os atos e diligências urgentes em que estejam em causa direitos fundamentais, nomeadamente diligências processuais relativas a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente, diligências e julgamentos de arguidos presos, desde que a sua realização não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes.
10 - São suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria.
11 - Após a data da cessação da situação excecional referida no n.º 1, a Assembleia da República procede à adaptação, em diploma próprio, dos períodos de férias judiciais a vigorar em 2020.
[18] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/03/2021, disponibilizado em www.dgsi.pt.
[19] No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/03/2022, publicitado em www.dgsi.pt, conclui-se que: «O regime de suspensão dos prazos de caducidade relativos a processos que corram termos nos tribunais judiciais, nos termos dos n.ºs. 1 e 3 do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março – lei que aprovou diversas medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-COV-2, agente causador da doença COVID-19 –, aditado pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, procurando evitar deslocações de pessoas aos tribunais com o consequente risco de contágio e difusão do vírus, prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar tal suspensão».
[20] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/12/2021, pesquisável em www.dgsi.pt, assinala que: «O regime legal do referido artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 vigorou até 03-06-2020, data da entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, que revogou o referido artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 (artigos 8.º e 10.º), colocando termo à suspensão generalizada dos prazos processuais, retomando-se a contagem dos prazos judiciais a partir de 03-06-2020 (inclusive), considerando-se, em cada prazo, o tempo decorrido até à declaração da sua suspensão».