Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
342/16.3GBPSR.E2
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: DESPACHO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
FIXAÇÃO OFICIOSA DE INDEMNIZAÇÃO
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 04/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - A falta de fundamentação dos atos decisórios, quando não tenha tratamento específico previsto na lei, constitui irregularidade, submetida ao regime do artigo 123º do Código de Processo Penal (caso de tratamento específico é o de falta de fundamentação da sentença, que, nos termos do artigo 379º/1/a), importa nulidade).

2 - Tratando-se de uma fixação oficiosa de indemnização por parte do tribunal, não dependente de prévio pedido deduzido pelas ofendidas, sempre estará a mesma sujeita a critérios de equidade e conformada pelos factos constantes da acusação, em relação aos quais incide a produção de prova na audiência de discussão e julgamento, como, aliás, o foi oportunamente.
Os factos concretos de que o arguido tinha, pois, de se defender, eram, necessariamente, os constantes da acusação e sobre eles incidiu oportunamente produção de prova.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em audiência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2020 foi decidido “1.Declarar inválida a decisão recorrida na parte atinente à não observância do contraditório, imposta pelo número 2 do artigo 82º-A, do Código de Processo Penal, para, oportunamente, no Tribunal de 1ª Instância e se possível pelos mesmos juízes, se proceder ao suprimento do vício apontado, proferindo-se, em sequência, quanto a essa parte, autónoma em relação ao demais, uma nova decisão que, devidamente fundamentada e tendo em conta o que o arguido vier porventura a dizer, ajuíze em conformidade quanto á atribuição às ofendidas dos montantes fixados a título de reparação;

2. Condenar, em cúmulo jurídico, o arguido (...) na pena conjunta de 11 (onze) anos de prisão.

Cúmulo jurídico que engloba duas penas de 4 (quatro) e 6 (seis) meses de prisão cada, duas penas de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão cada, duas penas de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses prisão cada, uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, e uma pena de 2 (dois) anos de prisão;

3. Manter no mais a decisão recorrida.”

Remetidos os autos à 1ª instância:

-Por despacho proferido em 4 de setembro de 2020, foi determinada a notificação do arguido para “ (…) querendo, em dez dias, exercer o direito do contraditório quanto ao arbitramento de quantia para reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas (art. 82º-A, nº 2, do Código de Processo Penal)”.

- Por requerimento com a referencia 1674454, datado de 21-09-2021, o arguido veio requerer que lhe fosse “comunicada a factualidade concernente a eventuais danos e o valor da correspondente indemnização, com a concessão de prazo para se pronunciar e indicar prova,” negando a prática dos factos que lhe são imputados e arrolando testemunhas.

-Em 24 de setembro de 2020 foi proferido despacho com o seguinte teor (transcrição):

“Requerimento com referência 1674454:

O arguido não pode ignorar que foi condenado como autor material de quatro crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos arts. 30º, nº 1, 172º, nº 1, e 177º, nº 1, al. a), por referência ao art. 171º, nºs 1, e 2, todos do Código Penal, nas penas de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão); 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão; 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão; e 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão, respetivamente; como autor material de dois crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos arts. 30º, nº 1, 172º, nº 1, e 177º, nº 1, al. a), por referência ao art. 171º, nº 1, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dos) meses de prisão relativamente a cada um deles; como autor material de um crime de coação agravado, p. e p. pelos arts. 154º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; como autor material de um crime de violação, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23, 73º, nº 1, alíneas a), e b), e 164º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, e que, efetuado o cúmulo jurídico das penas parcelares, foi condenado na pena única de 11 (onze anos de prisão, condenação que assenta na factualidade fixada na audiência de julgamento, inteiramente corroborada pelos tribunais superiores.

O requerimento ora apresentado ignora, por completo, o que foi decidido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça.

O arguido não pode ignorar que não pode voltar a discutir os factos fixados definitivamente e com base nos quais está condenado.

O tribunal em cumprimento do superiormente ordenado fez cumprir o exercício do direito do contraditório relativamente ao arbitramento de reparação às vítimas, nos termos previstos no art. 82º-A, do Código de Processo Penal.

O arguido, no exercício do contraditório veio invocar a sua inocência e alegar factos que são exatamente aqueles que invocou oportunamente, que foram objeto de apreciação e decisão, e que não podem mais voltar a ser discutidos.

Por isso, não se admite a produção de prova relativamente aos factos agora novamente invocados.

A decisão a proferir ao abrigo do sobredito regime legal assentará nos factos provados em audiência, confirmados pelos Tribunais Superiores.

Para realização do julgamento, para produção de alegações finais, designo o próximo dia 19 de novembro, às 10H, neste tribunal (e não antes por impossibilidade de agenda).

Notifique.”

*

Inconformado com esta decisão o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1º Verifica-se o vício de omissão de pronúncia, pois o despacho recorrido nada decide quanto à pretensão aduzida pelo arguido de que lhe fosse comunicada a factualidade concernente a eventuais danos e o valor da correspondente indemnização, com a concessão de prazo para o arguido se pronunciar e indicar prova.

2º O despacho recorrido não determina a convocação do arguido, o que significa o afastamento do direito de ele estar presente e prestar últimas declarações.

3º O despacho recorrido nega a produção de prova indicada pelo arguido, o que se traduz em desrespeito pelo princípio do contraditório no arbitramento de quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos pela vítima.

4ºNão se mostram observados os direitos humanos, conforme imposto pelo artigo 6º da respetiva convenção europeia e pelo artigo 10º da competente declaração universal, que integra o direito internacional geral ou comum, vigorando na ordem jurídica portuguesa.

5º O nº 4 do artigo 20º e os nº 1 e 5 do artigo 32º da constituição colidem com as normas ínsitas nos nºs 1 e 2 do artigo 82º-A do CPP.

6ºNormas jurídicas violadas:

do código de processo penal alínea a) do nº 1 do artigo 61º nºs 1 e 2 do artigo 82º-A nº 5 do artigo 97º artigo 125º artigo 127º artigo 140º alínea a) do artigo 341º nº 1 do artigo 343º nº 1 do artigo 361º nº 2 do artigo 374º alínea c) do nº 1 do artigo 379º

da constituição nº 1 do artigo 8º nº 4 do artigo 20º nºs 1 e 5 do artigo 32º

da convenção europeia dos direitos humanos artigo 6º da declaração universal dos direitos humanos artigo 10º.

7º O tribunal recorrido deveria ter aplicado o nº 5 do artigo 97º e a alínea c) do nº 1 do artigo 379º do CPP, pronunciando-se fundamentadamente sobre a pretensão de o arguido de que lhe fosse comunicada a factualidade concernente a eventuais danos e o valor da correspondente indemnização, com a concessão de prazo para o arguido se pronunciar e indicar prova.

8ºErradamente o tribunal recorrido interpretou o nº 2 do artigo 82º-A do CPP como não conferindo ao arguido o direito a ver produzida prova e prestar declarações quando deveria ter interpretado a norma no sentido de que a mesma assegura-lhe a produção de prova e a faculdade de prestar declarações.

9ºTermos em que deve ser revogado o despacho recorrido, ordenando-se a produção de prova indicada pelo arguido, devendo ele ser convocado para a audiência no decurso da qual lhe será assegurado o direito a últimas declarações.

*

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:

1.Dos elementos dos autos constata-se que foram respeitados todos os direitos fundamentais do arguido, inexistindo, no douto despacho recorrido, qualquer invalidade por omissão de pronúncia ou por falta de fundamentação.

2.A decisão ora recorrida não violou qualquer norma legal ou constitucional e foi correctamente aplicada face aos elementos constantes dos autos.

3.O despacho ora posto em crise não enferma de qualquer irregularidade, pois é bem explícito quanto aos fundamentos que estiveram na sua base.

4. O tribunal em cumprimento do ordenado pelo STJ fez cumprir o exercício do direito do contraditório relativamente ao arbitramento de reparação às vítimas, nos termos previstos no art. 82º-A, do Código de Processo Penal.

5.O arguido exerceu o seu direito ao contraditório.

6. O arguido foi oportunamente notificado da data designada para julgamento e foi requisitada ao Estabelecimento Prisional a sua comparência em julgamento, tendo, efectivamente comparecido e prestado declarações.

Louvando-nos, pois, no bem fundado do douto despacho recorrido somos de parecer que o recurso dele interposto não merece provimento.

V. Ex.as, porém, com superior apreciação e critério, farão, certamente, Justiça.

*

Após realização da audiência de discussão e julgamento, por Acórdão de 19 de novembro de 2020, o Tribunal decidiu:

“Considerando tudo quanto se deixou exposto e no âmbito do quadro legal traçado, acordam os juízes que constituem este tribunal coletivo:

A) Arbitrar a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos por (...), a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), e condenar o arguido a pagar-lhe tal valor indemnizatório, nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 483º, nº 1, 494º, 496º, nºs 1, e 3, do Código Civil; arts. 1º, alíneas b), e j), 82º-A, do Código de Processo Penal, e art. 16º, nºs 1, e 2, da Lei nº 130/2015, de 4/09;

B) Arbitrar a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos por (...), a quantia de € 3.000,00 (três mil euros), e condenar o arguido a pagar- lhe tal valor indemnizatório, nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 483º, nº 1, 494º, 496º, nºs 1, e 3, do Código Civil; arts. 1º, alíneas b), e j), 82º-A, do Código de Processo Penal, e art. 16º, nºs 1, e 2, da Lei nº 130/2015, de 4/09.”

*

Inconformado com esta decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1º A sentença condena o arguido, mas omite as indicações tendentes à sua identificação.

2º É incorreto dizer que o arguido negou a prática dos factos por que foi condenado, nos exatos termos feitos anteriormente em sede de contestação.

3º O arguido não gozou do “direito de dizer o que entendesse por conveniente em sua defesa”.

4ºA sentença não transitou em julgado.

5º Não foi assegurado o contraditório.

6ºPara fundamentar a decisão, a sentença diz que (...) sofreu “dor e medo”, tendo sentido “profunda insegurança, desproteção, impotência para resistir” e “vivenciou sentimentos de forte vergonha e humilhação”, acrescentando que (...) “sentiu-se indiscutivelmente humilhada e envergonhada”. Ora nada disso consta dos factos provados. Verifica-se insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação.

7º O tribunal erradamente aplicou o nº 1 do artigo 70º do código civil, quando este prevê a proteção e o que está em causa é a reparação assegurada pelo artigo 483º e pelo nº 4 do artigo 496º do mesmo compêndio normativo.

8ºPor ofender o nº 4 do artigo 20º e o nº 5 do artigo 32º da constituição, não pode ser aplicado o nº 2 do artigo 16º do regime aprovado pela Lei nº 130/2015, de 4 de setembro.

9ºNormas jurídicas violadas

Do código civil nº 1 do artigo 70º artigo 483º

nº 4 do artigo 496º

Do código de processo penal nº 2 do artigo 82º-A

alínea a) do nº 1 e nº 2 do artigo 374º alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 410º

Da constituição nº 4 do artigo 20º nº 5 do artigo 32º

Da convenção europeia dos direitos humanos artigo 6º.

10º Termos em que deve a decisão ser declarada inválida ou, caso assim não se entenda, ser a mesma revogada.

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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:

1.Compulsados os autos, e vista a legislação citada pelo recorrente, não observamos qualquer violação dos direitos do arguido, ora recorrente;

2. O arguido (único neste processo) está devidamente identificado na decisão ora recorrida, sendo certo que esta decisão ocorre na sequência do douto acórdão do colendo Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2020, tendo a Exma. Juiz Presidente procedido, em audiência de julgamento, à identificação do arguido (...);

3. Por douto acórdão proferido pelo colendo Supremo Tribunal de Justiça em 18/06/2020, o arguido recorrente foi condenado na pena conjunta de 11 (onze) anos de prisão, acórdão que, nesta parte, transitou em julgado (cf. referências 9302655 e 9371399);

4. O arguido/recorrente não podia pronunciar-se, nesta fase, sobre a sua responsabilidade penal, que se encontra definitivamente julgada, aliás como era do seu conhecimento;

5. No que concerne à matéria em causa no acórdão agora em recurso o arguido gozou do direito de dizer o que entendesse por conveniente em sua defesa tendo-lhe sido assegurado o direito ao contraditório;

6. A douta decisão ora recorrida respeitou integralmente o determinado no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça;

7.O recorrente limita-se a qualificar como vícios do acórdão as suas discordâncias com o que foi decidido sendo que não se indicia a existência de erro na apreciação da matéria de facto provada;

8.O Tribunal “a quo” apreciou e ponderou toda a prova relevante carreada aos autos, enumerando os factos provados e não provados, expondo, de forma completa, os motivos, de facto e de direito, que fundamentaram a decisão e indicando e examinando criticamente as provas que serviram para formar a convicção do tribunal, cumprindo, assim, o disposto no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal;

9. Ao arbitrar a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos por (...), a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), e condenar o arguido a pagar-lhe tal valor indemnizatório, bem como ao arbitrar a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos por (...), a quantia de € 3.000,00 (três mil euros), e condenar o arguido a pagar-lhe tal valor indemnizatório, o tribunal “a quo” decidiu de forma justa e equitativa, ancorando-se na matéria de facto provada e no estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 483º, nº 1, 494º, 496º, nºs 1, e 3, do Código Civil; arts. 1º, alíneas b), e j), 82º-A, do Código de Processo Penal, e art. 16º, nºs 1, e 2, da Lei nº 130/2015, de 4/09;

10. Louvando-nos, pois, no bem fundado do douto acórdão recorrido somos de parecer que o recurso dele interposto não merece provimento.

No Tribunal da Relação, o Exmº Sr. Procuradoa-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência dos recursos.

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Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo sido apresentada resposta.

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Procedeu-se a audiência.

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no art.410º, nº2, do C.P.P., mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso dos autos, face às conclusões da motivação dos recursos, são as seguintes as questões submetidas à apreciação:

A) – No recurso interlocutório interposto pelo arguido do despacho proferido em 24 de setembro de 2020 (em cuja apreciação o arguido/recorrente declarou manter interesse):

- falta de fundamentação do despacho por omissão de pronúncia;

- falta de convocação do arguido para audiência;

- violação do princípio do contraditório.

B) - No recurso do acórdão:

- falta de identificação do arguido;

- violação do princípio do contraditório;

- inexistência de trânsito em julgado;

- insuficiência da matéria de facto provada;

- contradição insanável da fundamentação;

- errada aplicação do art.70º do CC e do nº2 do art.16º da Lei nº130/2015, de 4/9.

*

É do seguinte teor o Acórdão recorrido (transcrição)

“Relatório

Em conformidade e em obediência ao acórdão do colendo Supremo Tribunal de

Justiça de 18/06/2020, já transitado, que julgando inválida a decisão proferida nos autos quanto à não observância do contraditório imposta pelo nº 2, do art. 82º-A, do Código de Processo Penal, mandou proceder ao suprimento do vício apontado, e em consequência, de preferência pelos mesmos juízes, proferida nova decisão, autónoma em relação ao demais, e que ajuizasse quanto à atribuição às ofendidas dos montantes fixados a título de indemnização, procedeu-se do seguinte modo, nos termos evidenciados pelos autos:

- Por despacho proferido em 4 de setembro de 2020, foi determinada a notificação do arguido para exercer o direito ao contraditório quanto ao arbitramento de quantia para reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas (art. 82º-A, nº 2, do Código de Processo Penal).

- Por requerimento com referencia 1674454, datado de 21/09, o arguido veio exercer direito ao contraditório, negando a prática dos factos por que foi condenado, nos exatos termos feitos anteriormente em sede de contestação, tendo requerido a inquirição de testemunhas com vista a demonstrar a sua inocência. A par desta defesa, veio pedir que lhe fossem comunicados os factos concernentes a eventuais danos e o valor da correspondente indemnização, com a consequente atribuição de novo prazo para se pronunciar e indicar prova.

- Por despacho proferido em 24 de setembro de 2020, o tribunal não admitiu a prova apresentada pelo arguido face à sua intenção de, com ela, afastar a sua responsabilidade penal, que se encontra definitivamente julgada como não pode ignorar.

Não foi também concedido novo prazo para se pronunciar sobre o arbitramento de indemnização em virtude do arguido conhecer o teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, e estar, por isso, à data em que foi notificado nos termos e para os fins contidos no despacho proferido em 4 de setembro de 2020 na posse de todos os elementos para poder exercer o seu direito ao contraditório.


*

Suprido o vício apontado pelo Supremo Tribunal de Justiça, procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo, no âmbito do qual foram proferidas alegações e se concedeu ao arguido o direito de dizer o que entendesse por conveniente em sua defesa.

*

A instância mostra-se válida e regular, inexistindo nulidades ou outras questões que cumpra conhecer e obstem à decisão de mérito

Fundamentação de Facto

Estão definitivamente assentes os seguintes factos:

1- (...) nasceu a 20 de outubro de (…) e é filha do arguido (...) e de (...).

2- (...) e (...) passaram a viver um com outro, em condições idênticas às dos cônjuges a partir daquela data.

3- Interromperam essa vivência por tempo e em período de tempo não concretamente apurado, mas seguramente antes do dia 4 de setembro de 2005, data de nascimento da segunda filha de ambos, (…), tendo a partir de então vivido ininterruptamente, em condições idênticas às dos cônjuges, até ao dia 28 de setembro de 2016, data em que (…) saiu de casa onde residia o agregado, sita na Rua (…), conjuntamente com as filhas (…), nascida a (…), e também filha do arguido.

4- A habitação onde o arguido residia com (...), e as filhas de ambos, era composta por um rés-do-chão, um primeiro andar, onde se situava o quarto de (...) e por um sótão.

5- No período temporal compreendido entre o mês de abril de 2016 e o dia 27 de setembro de 2016, em datas não concretamente determinadas, coincidentes com períodos de fins de semana, na sobredita residência e pelo menos por cinco vezes, o arguido acedeu ao quarto onde dormia (...), fechou a porta do mesmo à chave e disse à filha para se despir e deitar na cama, o que esta fez.

6- Em cada uma dessas ocasiões, estando (...) deitada de barriga para cima, o arguido, usando uma gilete, depilou a zona genital daquela, ali tocando com os seus dedos, nomeadamente, nos lábios vaginais.

7- Em pelo menos três dessas ocasiões, o arguido introduziu os seus dedos na vagina de (...).

8- Em pelo menos duas dessas situações, o arguido tentou introduzir um dos seus dedos na vagina de (...), o que só não conseguiu por motivos alheios à sua vontade, designadamente, por ter sido chamado por outra das filhas, irmã de (...), a quem aquando da entrada no quarto de (...) havia dito para dali saírem para a sala, situada no rés-do-chão da habitação, o que aquelas fizeram.

9- Numa daquelas ocasiões, o arguido disse à filha (...) que se contasse a alguém o que se tinha passado, iria ser pior, tendo aquela temido pela sua integridade física e que o arguido praticasse consigo relações sexuais.

10- Em pelo menos duas das descritas situações, o arguido entregou o telemóvel a (...) para que a mesma jogasse jogos enquanto levava a cabo os descritos comportamentos.

11- No período temporal compreendido entre abril de 2016 e o dia 27 de setembro de 2016, em datas não concretamente determinadas, coincidentes com períodos de fins de semana, na sobredita residência e pelo menos por duas vezes, o arguido acedeu ao quarto onde dormia (...), fechou a porta do mesmo à chave e disse à filha para se despir e deitar na cama, o que esta fez.

12- De seguida, o arguido baixou as calças e os boxers até ao joelho e introduziu o seu pénis ereto no ânus de (...), provocando-lhe dores.

13- (...) encontrava-se à guarda e cuidados do arguido e da progenitora, incumbindo-lhes prover ao sustento e educação da filha, o que era do conhecimento do arguido.

14- Ao atuar da forma descrita o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que (...) era sua filha, que tinha 14 anos de idade, que coabitava consigo, e que sobre si recaíam os deveres de prover ao seu sustento e educação, bem como o especial dever de a respeitar.

15- O arguido sabia que, atenta a idade da sua filha, e a ascendência que tinha sobre ela, a mesma não tinha o necessário discernimento para livremente consentir na prática de quaisquer atos sexuais, bem como sabia que os atos supra descritos são de cariz sexual e, não obstante, quis praticá-los com intenção de satisfazer o seu desejo e caprichos sexuais, o que conseguiu.

16- O arguido decidiu praticar tais atos com a filha, sabendo que cada uma das ditas condutas, atenta a idade dela, prejudicava o seu normal desenvolvimento físico e psicológico, influía negativamente na formação da respetiva personalidade na esfera sexual e ofendia os seus sentimentos de pudor e vergonha.

17- O arguido ao proferir as expressões descritas em 9), agiu de modo a provocar medo na filha quanto à prática futura de agressões físicas e/ou de relações sexuais, com intenção concretizada de a intimidar e dessa forma determiná-la a comportar-se de acordo com as suas determinações de não relatar a outras pessoas os factos ocorridos, o que conseguiu, permitindo-lhe manter durante o citado período a prática dos factos atrás descritos, tendo (...) denunciado os factos após sair da habitação do arguido juntamente com a sua mãe e as suas irmãs.

18- Anteriormente aos factos descritos (...) nunca tinha tido relações sexuais de qualquer natureza com outra pessoa.

19- Desde 16 de fevereiro de 2017, (...) vive numa instituição, em consequência da aplicação de medida de promoção e proteção de acolhimento residencial no âmbito do processo de promoção e proteção nº 394/17.9T8STR (medida também aplicada às suas irmãs).

20- O arguido é tio de (...), nascida a (…).

21- Em dezembro de 2016, em dia não concretamente apurado, o arguido contatou telefonicamente (...) e disse-lhe para se deslocar à sua habitação sita na Rua (…), pois tinha uma bicicleta para lhe entregar.

22- Nesse mesmo dia, (...), juntamente com o seu irmão,(…), nascido a (…), deslocaram-se à referida habitação do arguido.

23- Aí chegados, o arguido abriu a porta da dita habitação, onde entraram (...) e o seu irmão, tendo o arguido fechado a porta à chave.

24- De seguida, o arguido beijou (...) na face e apalpou-lhe o rabo.

25- Após, o arguido ligou a televisão da sala, disse ao menor (…) para ver desenhos animados, e disse a (...) que a bicicleta estava no sótão pelo que a mesma tinha de o acompanhar àquela divisão da casa, ao que aquela acedeu.

26- Chegados ao sótão, no qual estava estendido um pequeno colchão, o arguido encostou a porta, agarrou (...) colocando os seus braços à volta do seu tronco, puxou o corpo dela contra o seu e beijou-a no pescoço, apalpou-lhe o rabo e os seios, tendo aquela tentado libertar-se do arguido, empurrando-o.

27- O arguido disse a (...) que as suas nádegas já estavam mais rijas do que quando a tinha apalpado da primeira vez e disse-lhe para se deitar no colchão ao que aquela disse que não.

28- O arguido desapertou o cinto das suas calças, desabotoou o botão das suas calças, desabotoou o botão das calças de (...) e puxou as calças para baixo, tentando tirar- lhas, com vista a ter relações de cópula com ela, não tendo conseguido baixá-las uma vez que aquela agarrou nas suas calças e apertou o botão das mesmas.

29- O arguido disse-lhe: “Não queres ter sexo com o tio?” ao que (...) respondeu: “Não”, tentando sempre libertar-se daquele, empurrando-o, mas sem sucesso, continuando aquele a agarrar (…), com muita força, tendo-lhe aquela dito: “Estás a aleijar- me” ao que o mesmo respondeu: “Não quero saber”.

30- (...) tentava fugir por baixo dos braços do arguido, não tendo conseguido e a determinada altura aquele disse-lhe: “Ah, estás com calor, eu vou-te abrir uma janela para apanhares ar”, abriu a janela e tornou a fechar a janela.

31- O arguido agarrou-lhe os braços, encostou-a contra uma parede, encostou o seu corpo ao corpo dela e beijou-a no pescoço.

32- O arguido continuou a agarrar (...) e a encostar o seu corpo ao corpo dela, e deu-lhe um beijo na boca, tendo aquela empurrado o arguido.

33- Ainda naquele local, e no mesmo circunstancialismo, o arguido enfiou uma das suas mãos no interior da blusa de (...) e apalpou-lhe os seios, tendo esta logrado agarrar a mão do arguido, retirando-a do interior da sua blusa.

34- Após, o arguido largou (...) e disse-lhe para escolher uma das bicicletas que se encontravam no sótão.

35- (...) escolheu uma bicicleta e o arguido disse-lhe que não podia ser a que tinha escolhido, após o que deixaram o sótão e desceram as escadas até ao primeiro andar.

36- Quando se encontravam naquele piso, o arguido disse a (...) para ir com ele ao quarto que queria falar com ela ao que aquela acedeu.

37- Entretanto, (...) recebeu uma chamada no seu telemóvel da sua avó e o arguido disse-lhe: “Diz à tua avó que já vais”, o que aquela fez.

38- Após, o arguido disse a (...) para colocar o telemóvel num móvel, o que aquela fez.

39- De seguida o arguido pediu a (...) para lhe dar um beijo na boca, o que esta recusou.

40- No mesmo local, o arguido pediu a (...) que se deitasse na cama, o que ela recusou.

41- Também no interior do quarto, o arguido disse a (...), “Ah, não precisas de ter medo, não te vou fazer mal, se for preciso até vou dizer à tua mãe, vou contar à tua mãe o que se está a passar aqui. Eu não te quero fazer mal”.

42- Entretanto, um indivíduo conhecido do arguido tocou à campainha da habitação, o que levou aquele a sair do quarto, tendo dito a (...): “Vá, anda. Não contes isto a ninguém. Fica só em segredo, porque senão eu posso ter problemas e tu não queres isso, por isso não contes a ninguém”.

43- Após, o arguido e (...) desceram para a sala e o arguido disse que lhe entregava a bicicleta.

44- De seguida, o arguido abriu a porta, e falou com o citado indivíduo, tendo este entrado na habitação.

45- Após, o arguido desceu à arrecadação, enquanto (...) juntamente com o seu irmão ficaram na cozinha da residência.

46- O arguido pegou em duas bicicletas que se encontravam na arrecadação e entregou-as a (...), tendo-lhe dito que a mais pequena era para a irmã dela.

47- Após, (...) juntamente com o irmão abandonaram a residência do arguido.

48- O arguido sabia que (...) tinha dezasseis anos de idade, sabia que a mesma não queria ter relações consigo e não obstante, decidiu tentar fazê-lo contra a vontade dela, utilizando a sua força superior, de forma a satisfazer os seus instintos sexuais e a sua lascívia, ciente da reprovabilidade da sua conduta e do carácter sexual da mesma, violando o direito daquela menor à determinação e autodeterminação sexual e à integridade da formação e desenvolvimento da sua personalidade, não tendo logrado concretizar a sua intenção de manter relações sexuais de cópula completa com (...) pela descrita ação desta (factos 25 a 32).

49- O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

50- Em data não apurada, mas posterior a 28 de setembro de 2016, (...), mãe de (...), manteve relacionamento amoroso com indivíduo conhecido pela alcunha de (…), com quem viveu durante período temporal não apurado.

51- O dito indivíduo tinha tido um acidente de trabalho e aguardava receber quantia monetária por parte de companhia de seguros.

52- O arguido (...) é filho de um casal de humilde condição socioeconómica. O progenitor abandonou o agregado quando aquele tinha seis meses de idade e nessa fase ambos os progenitores eram trabalhadores rurais.

53- O arguido tem dois irmãos uterinos, mais novos, e a sua progenitora é atualmente funcionária no CRIP’S, em (…).

54- (...) cresceu em meio rural. O ambiente familiar era pouco estruturado e caracterizado por alguma violência exercida pelos dois padrastos que teve, ambos alcoólicos e protagonistas de maus tratos à progenitora.

55- A escolaridade foi iniciada em idade adequada, até ao 4º ano, que não concluiu, uma vez que o padrasto o retirou da escola para iniciar atividade laboral, a guardar gado, atividade que iniciou aos 10 anos de idade. Manteve atividade na área agrícola até cerca dos 18/19 anos, período a partir do qual passou a trabalhar na construção civil, como servente e marteleiro. Desde este período que tem vindo a trabalhar na mesma empresa frequentando várias ações de formação profissional, na área da eletricidade, “alta e baixa tensão”, pagas pela entidade patronal, atividade que passou a desenvolver até à sua detenção.

56- O arguido iniciou o consumo de bebidas alcoólicas aos 16 anos, consumindo, com excesso, nos períodos de fins de semana; e consumiu haxixe com o grupo de pares que frequentava o mesmo espaço de lazer – cafés -, consumo que entretanto abandonou.

57- A companheira do arguido dedicava-se à casa e à educação dos filhos.

58- Após a separação dum e doutro, as filhas, todas menores de idade, ficaram aos cuidados da progenitora até que foram institucionalizadas, encontrando-se atualmente em Santarém.

59- O arguido auferia salário de cerca de € 630,00 e contava com o apoio da progenitora.

60- No meio social o arguido detém uma imagem neutra.

61- O arguido não tem antecedentes criminais.

Mais se provou que:

62- Durante o período de nove anos, entre 2006 a 2014, o arguido trabalhou como eletricista por conta da sociedade (…), executando trabalhos em diversas localidades do país, auferindo o salário base de € 900,00, a que acresciam ajudas de custo (alimentação e habitação).

63- O seu salário constituía a fonte de rendimentos do agregado familiar.


**

Não se provaram os seguintes factos.

A) Que em cada uma das situações descritas em 10), o arguido, depois de introduzir o seu pénis ereto no ânus da filha (...), ali o tenha friccionado.

B) Que um dos atos de introdução do pénis do arguido no ânus de (...) tenha coincidido com uma das situações em que aquele introduziu o dedo na vagina daquela.

C) Que o arguido soubesse que a filha (...) não tinha tido relações sexuais com outros indivíduos.

D) Que no interior do quarto o arguido tenha agarrado (...), colocando os seus braços à volta do tronco, que a tenha puxado contra o seu corpo e que a tenha beijado no pescoço.

E) Que no interior do quarto (...) tenha empurrou o arguido, não conseguindo libertar-se dele.

F) Que (...) tenha terminado o relacionamento amoroso com o indivíduo conhecido pela alcunha de (…), por ter entendido que este mantinha um relacionamento impróprio com a filha (...) e que por isso uma e outra tenham apresentado na GNR uma queixa criminal contra aquele.

Motivação da decisão de facto

A matéria de facto provada e não provada, sob os nºs 1, a 61; e A), F), respetivamente, está definitivamente assente por força do trânsito em julgado do acórdão proferido nos autos em matéria penal.

A matéria de facto apurada sob os nºs 62 e 63 funda-se nas declarações prestadas pelo arguido na audiência de julgamento hoje realizada, na parte que versaram sobre as suas condições e modo de vida. No demais, as suas declarações revelaram-se inócuas e sem credibilidade face aos factos por que se encontra definitivamente condenado, na medida em que não reconhece a existência de qualquer dano, desde logo na esfera da filha (...).

Fundamentação de Direito

Tendo por base a matéria de facto apurada nos autos o arguido (...) foi condenado como autor material de quatro crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos arts. 30º, nº 1, 172º, nº 1, e 177º, nº 1, al. a), por referência ao art. 171º, nºs 1, e 2, todos do Código Penal, nas penas de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão); 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão; 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão; e 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão, respetivamente; como autor material de dois crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos arts. 30º, nº 1, 172º, nº 1, e 177º, nº 1, al. a), por referência ao art. 171º, nº 1, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dos) meses de prisão relativamente a cada um deles; como autor material de um crime de coação agravado, p. e p. pelos arts. 154º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; como autor material de um crime de violação, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23, 73º, nº 1, alíneas a), e b), e 164º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.

Efetuado o cúmulo jurídico das penas parcelares, foi condenado na pena única de 11 (onze) de prisão que se encontra a cumprir.

Foi também condenado, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 69º-C, nº 3, do Código Penal, na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 5 (cinco) anos; nos termos e ao abrigo do disposto no art. 69º-C, nº 2, do Código Penal, na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 15 (quinze) anos.

Cumpre, tão só, decidir sobre o arbitramento de indemnização às vítimas.

Nos termos do disposto no art. 67º-A, nº 3, por referência à al. b), do art. 1º, do Código Processo Penal, as vítimas de criminalidade violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis.

O conceito de criminalidade violenta está contido na al. j), do art. 1º, do Código de Processo Penal. Assim, para efeitos deste código, consideram-se criminalidade violenta as condutas que dolosamente se dirigirem contra, entre outros bens, a liberdade e autodeterminação sexual, puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a cinco anos.

Em face da decisão sobre o enquadramento jurídico-penal das condutas do arguido, resta afirmar que em face das citadas normas legais, (...) e (...) assumem o estatuto de vítimas especialmente vulneráveis.

A Lei nº 130/2015, de 4/09, que além do mais, aprovou o Estatuto da Vítima, dispõe no seu art. 16º:

“1- À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2- Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.

O nº 2, da citada norma legal, não deixa dúvidas quanto à obrigatoriedade de arbitramento de indemnização a favor de vítima especialmente vulnerável, constituindo única exceção a tal arbitramento a oposição da vítima.

No caso dos autos as menores (...) e (...) não manifestaram qualquer oposição ao arbitramento de indemnização.

O princípio da generalidade da tutela da personalidade está enunciado no art. 70º, nº 1, do Código Civil: “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.

Está provado, com relevância para a decisão, que:

- Na casa de morada de família e nos períodos temporais acima assinalados, pelo menos por cinco vezes, o arguido acedeu ao quarto onde dormia a filha (...) (então com 14 anos), fechou a porta à chave e disse-lhe para se despir e deitar na cama, o que esta fez; em cada uma dessas ocasiões, estando (...) deitada de barriga para cima, o arguido, usando uma gilete, depilou a zona genital daquela, ali tocando com os seus dedos, nomeadamente, nos lábios vaginais; em pelo menos três dessas ocasiões, o arguido introduziu os seus dedos na vagina de (...); em pelo menos duas dessas situações, o arguido tentou introduzir um dos seus dedos na vagina de (...), o que só não conseguiu por motivos alheios à sua vontade; numa daquelas ocasiões, o arguido disse à filha que se contasse a alguém o que se tinha passado, iria ser pior, tendo aquela temido pela sua integridade física e que o arguido praticasse consigo relações sexuais; em pelo menos duas das descritas situações, o arguido entregou o telemóvel a (...) para que a mesma jogasse jogos enquanto levava a cabo os descritos comportamentos; no período temporal compreendido entre abril de 2016 e o dia 27 de setembro de 2016, em datas não concretamente determinadas, coincidentes com períodos de fins de semana, na sobredita residência e pelo menos por duas vezes, o arguido acedeu ao quarto onde dormia (...), fechou a porta do mesmo à chave e disse à filha para se despir e deitar na cama, o que esta fez; de seguida, o arguido baixou as calças e os boxers até ao joelho e introduziu o seu pénis ereto no ânus de (...), provocando-lhe dores.

Estamos perante condutas graves, reiteradas, que causaram dor e medo a (...), filha do arguido, que perante o descrito comportamento do pai teve de sentir profunda insegurança, desproteção, impotência para resistir, acrescendo que em face da natureza dos atos descritos e alicerçados nas regras da lógica e da experiência, temos por adquirido que a mesma vivenciou sentimentos de forte vergonha e humilhação.

O arguido agiu sempre de forma livre e consciente, com dolo intenso, sabendo que ao agir da forma descrita e atenta a idade da filha, prejudicava o seu normal desenvolvimento físico e psicológico, influía negativamente na formação da respetiva personalidade na esfera sexual e ofendia os seus sentimentos de pudor e vergonha, pelo que dúvidas não existem que ocorreu uma violação grave da personalidade da ofendida, e nessa medida, merecedora da tutela do direito, em conformidade com o disposto nos arts. 483º, nº 1 e 496º, nº 1, do Código Civil.

O arguido é tio de (...), nascida a (…).

No circunstancialismo de tempo, modo e lugar acima indicados, o arguido beijou (...) na face e apalpou-lhe o rabo; pediu-lhe para o acompanhar ao sótão, onde a agarrou, colocando os seus braços à volta do seu tronco, puxou o corpo dela contra o seu e beijou-a no pescoço, apalpou-lhe o rabo e os seios, tendo aquela tentado libertar-se do arguido, empurrando-o; o arguido disse-lhe que as suas nádegas já estavam mais rijas do que quando a tinha apalpado da primeira vez e disse-lhe para se deitar no colchão ao que aquela disse que não; então, o arguido desapertou o cinto das suas calças, desabotoou o botão das suas calças, desabotoou o botão das calças de (...) e puxou as calças para baixo, tentando tirar-lhas, com vista a ter relações de cópula com ela, não tendo conseguido baixá-las uma vez que aquela agarrou nas suas calças e apertou o botão das mesmas; o arguido disse-lhe: “Não queres ter sexo com o tio?” ao que (...) respondeu: “Não”, tentando sempre libertar-se daquele, empurrando-o, mas sem sucesso, continuando aquele a agarrar (...), com muita força, tendo- lhe aquela dito: “Estás a aleijar-me” ao que o mesmo respondeu: “Não quero saber”; (...) tentava fugir por baixo dos braços do arguido, não tendo conseguido e a determinada altura aquele agarrou-lhe os braços, encostou-a contra uma parede, encostou o seu corpo ao corpo dela e beijou-a no pescoço; continuando a agarrá-la, encostou o seu corpo ao corpo dela, e deu-lhe um beijo na boca, tendo aquela empurrado o arguido; anda naquele local, e no mesmo circunstancialismo, o arguido enfiou uma das suas mãos no interior da blusa de (...) e apalpou-lhe os seios, tendo esta logrado agarrar a mão do arguido, retirando-a do interior da sua blusa.

O arguido agiu de forma livre e voluntária, com dolo intenso (dolo direto), ciente que violava o direito daquela menor à determinação e autodeterminação sexual e à integridade da formação e desenvolvimento da sua personalidade.

O arguido magoou (...), que em face da reação que manteve perante o arguido – de quem teve dificuldade em se defender – sentiu-se indiscutivelmente humilhada e envergonhada, emergindo assim o direito à indemnização devida a esta última, à semelhança do que se verifica relativamente à menor (...), de ofensa ilícita contra a personalidade daquela, que pela gravidade emergente dos factos apurados é merecedora da tutela do direito, nos termos daquele mesmo art. 496º.

O Código Civil consagra a ressarcibilidade deste tipo de danos, de natureza não patrimonial, dispondo aquele preceito legal, no seu nº 3, que “O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º (…)”, isto é, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, sendo que o valor indemnizatório deve ser proporcionado à gravidade do dano e na sua fixação devem ser tomadas em conta todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades das vida.

Neste contexto, cabe ponderar, essencialmente, a fragilidade das vítimas, a gravidade dos danos sofridos em consequência dos factos que respetivamente vivenciaram, assumindo necessariamente maior relevo e intensidade os danos sofridos por (...), considerando a natureza dos atos que contra si foram praticados e o período de tempo ao longo do qual se desenrolou a ação do arguido; o dolo intenso deste; a forte reprovabilidade da sua conduta, principalmente em relação à filha, a quem cabia educar, respeitar e proteger; e finalmente, as condições económicas e financeiras do arguido, que têm de ter-se como modestas, face à factualidade apurada.

Deste modo, a título compensatório dos danos não patrimoniais sofridos, ao abrigo das disposições legais invocadas, e reavaliando a situação económica e financeira do arguido,

privado de rendimentos por força da reclusão, decide este tribunal coletivo condená-lo no pagamento da quantia indemnizatória de € 10.000,00 à filha (...); e no pagamento da indemnização de € 3.000,00 a (...).

Dispositivo

Considerando tudo quanto se deixou exposto e no âmbito do quadro legal traçado, acordam os juízes que constituem este tribunal coletivo:

A) Arbitrar a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos por (...), a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), e condenar o arguido a pagar-lhe tal valor indemnizatório, nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 483º, nº 1, 494º, 496º, nºs 1, e 3, do Código Civil; arts. 1º, alíneas b), e j), 82º-A, do Código de Processo Penal, e art. 16º, nºs 1, e 2, da Lei nº 130/2015, de 4/09;

B) Arbitrar a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos por (...), a quantia de € 3.000,00 (três mil euros), e condenar o arguido a pagar- lhe tal valor indemnizatório, nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 483º, nº 1, 494º, 496º, nºs 1, e 3, do Código Civil; arts. 1º, alíneas b), e j), 82º-A, do Código de Processo Penal, e art. 16º, nºs 1, e 2, da Lei nº 130/2015, de 4/09.

Sem tributação.”

*

Apreciando

- Da invocada nulidade da decisão proferida em 24 de setembro de 2020 por falta de fundamentação

O recorrente alega falta de fundamentação da decisão recorrida proferida em 24 de setembro de 2020 invocando o disposto no art.379º do CPP, esquecendo, porém, desde logo, que o normativo invocado (art.379º do CPP) se reporta, em exclusivo, às nulidades que se verifiquem em sentenças, e não também em decisões, como no caso sub judice, que se configuram como despachos, nos termos do art.97º, nº.1, alínea b), do CPP.

Não obstante a não aplicabilidade, assim, desse art.379º, tratando-se de ato decisório, terá de ser sempre fundamentado, especificando os motivos de facto e de direito que suportam o decidido (art.97º, nº.5, do CPP), cuja inobservância é legalmente cominada com irregularidade, a cujo regime respeita o art.123º do CPP (cfr. arts.118º, nºs.1 e 2, 119º e 120º do mesmo Código).

De qualquer modo, a existir irregularidade, esta deverá ser arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado (art.123º, nº.1, do CPP), sob pena de ficar sanada, com exceção da possibilidade oficiosa de reparação nos termos do nº.2 do mesmo preceito, sendo que, para ambas as situações, esse vício, para ser relevante, terá, em concreto, de afetar o valor do ato a cuja prática respeita.

A necessidade de fundamentação das decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente, tem consagração no art.205º, nº1, da C.R.P. e insere-se nas garantias de defesa de processo criminal a que alude o art.32º, nº1, do mesmo diploma.

Este princípio constitucional é extensivo a todos os ramos do direito, designadamente ao processo criminal.

No âmbito deste princípio, o art.97º, nº5, do C.P.P. estabelece que os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

O objetivo de tal dever de fundamentação é permitir "a sindicância da legalidade do ato, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, atuando, por isso como meio de autodisciplina" (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág.294).

O dever genérico de fundamentação dos atos decisórios expresso no artigo 97º, nº 5 do CPP, encontra particular explicitação e desenvolvimento no artigo 374º, nº 2 do mesmo diploma legal, o que se percebe dada a natureza da peça processual a que se reporta.

Qualquer despacho, por imperativo constitucional [artigo 205º da CRP], tem de ser fundamentado, cumprindo-se, por seu intermédio, simultaneamente, uma função de carácter objetivo – pacificação social, legitimidade e autocontrolo das decisões – e uma função de carácter subjetivo – garantia do direito ao recurso, controlo da correção material e formal das decisões pelos seus destinatários – [cf. Jorge de Miranda e Rui de Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, pág. 71].

Ora, o tribunal recorrido fundamentou o despacho nos seguintes termos:

““Requerimento com referência 1674454:

O arguido não pode ignorar que foi condenado como autor material de quatro crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos arts. 30º, nº 1, 172º, nº 1, e 177º, nº 1, al. a), por referência ao art. 171º, nºs 1, e 2, todos do Código Penal, nas penas de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão); 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão; 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão; e 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão, respetivamente; como autor material de dois crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos arts. 30º, nº 1, 172º, nº 1, e 177º, nº 1, al. a), por referência ao art. 171º, nº 1, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dos) meses de prisão relativamente a cada um deles; como autor material de um crime de coação agravado, p. e p. pelos arts. 154º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; como autor material de um crime de violação, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23, 73º, nº 1, alíneas a), e b), e 164º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, e que, efetuado o cúmulo jurídico das penas parcelares, foi condenado na pena única de 11 (onze anos de prisão, condenação que assenta na factualidade fixada na audiência de julgamento, inteiramente corroborada pelos tribunais superiores.

O requerimento ora apresentado ignora, por completo, o que foi decidido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça.

O arguido não pode ignorar que não pode voltar a discutir os factos fixados definitivamente e com base nos quais está condenado.

O tribunal em cumprimento do superiormente ordenado fez cumprir o exercício do direito do contraditório relativamente ao arbitramento de reparação às vítimas, nos termos previstos no art. 82º-A, do Código de Processo Penal.

O arguido, no exercício do contraditório veio invocar a sua inocência e alegar factos que são exatamente aqueles que invocou oportunamente, que foram objeto de apreciação e decisão, e que não podem mais voltar a ser discutidos.

Por isso, não se admite a produção de prova relativamente aos factos agora novamente invocados.

A decisão a proferir ao abrigo do sobredito regime legal assentará nos factos provados em audiência, confirmados pelos Tribunais Superiores.”

Assim, ao invés do que defende o recorrente, não ocorre, no caso, a omissão do dever de fundamentação porquanto o despacho em crise contém as razões de facto e de direito que suportam a decisão, que é fundamentada, legal e faticamente, e esclarecedora das premissas da mesma, explicitando em termos lógicos a razão pela qual o Tribunal decidiu nos termos plasmados no despacho recorrido, cumprindo, cabalmente, tal dever, o qual, tratando-se de decisão interlocutória, não tem paralelo com o que é exigível na sentença, que a final conhece do mérito.

Acresce que a omissão do dever de fundamentação - onde se inclui a insuficiente fundamentação - não sendo cominada com a nulidade – posto que de sentença se não trata -, apenas acarretaria, como já supra dito, uma irregularidade, a arguir nos termos e prazos previsto no artigo 123º do CPP, o que não sucedeu.

Com efeito, mesmo que tal vício formal existisse, entende-se, na esteira de doutrina vária, que a falta de fundamentação dos atos decisórios, quando não tenha tratamento específico previsto na lei, constitui irregularidade, submetida ao regime do artigo 123º do Código de Processo Penal (caso de tratamento específico é o de falta de fundamentação da sentença, que, nos termos do artigo 379º/1/a), importa nulidade).

Assim, sempre se dirá que a falta de fundamentação, se existisse, constituiria irregularidade que, para ser conhecida, tinha de ser arguida nos termos do art.123.º, n.º 1, do CPP, sob pena de sanação do vício o que, no, caso, não sucedeu, pelo que o ato sempre se teria convalidado (cfr., neste sentido, Acórdãos do TRL de 2003/07/17 – proc. n.º 5669/03; de 2004/06/30 – proc. n.º 5405/04; e de 2006/05/31 – proc. n.º 4309/06).

Ora, o arguido só suscitou este vício formal quando interpôs o recurso, muito para além dos três dias previstos no nº 1 do artigo 123º do citado diploma.

Deste modo, não tendo sido arguida tempestivamente, no mencionado prazo, a irregularidade correspondente à alegada insuficiência de fundamentação, este vício formal, ainda que existisse, mostrava-se sanado .

Não se verificam, assim, as invocadas nulidades e inconstitucionalidades.

Termos em que, neste particular improcede o recurso.

*

Alega, também, o recorrente que o despacho recorrido proferido em 24 de setembro de 2020 não determina a convocação do arguido, o que significa o afastamento do direito de ele estar presente e prestar últimas declarações.

Compulsados os autos, como resulta do expediente datado de 29-09-2020 e 6-10-2020 verifica-se que o arguido foi oportunamente notificado da data designada para julgamento e foi requisitada ao Estabelecimento Prisional a sua comparência em julgamento, tendo, efetivamente comparecido e prestado declarações, como resulta da ata de Audiência de Discussão e Julgamento de 19 de Novembro de 2020.

Deste modo, inexiste fundamento no alegado pelo arguido neste particular, não se verificando qualquer violação da Lei Processual Penal, da Constituição da República Portuguesa, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e/ou da Declaração Universal Dos Direitos Humanos.

*

- Da invocada violação do princípio do contraditório

No tocante ao alegado pelo arguido de que lhe foi negado o direito a exercer o contraditório nos termos e para os efeitos do art.º 82.º-A, n.º 2, por desconhecer o montante indemnizatório de que se tinha de defender, bem como de quais eram os factos concretos invocados para suportar a sua concessão, tal questão, posta quer no recurso interlocutório quer no recurso do Acórdão, por comodidade de exposição será conhecida em conjunto.

Ora, as considerações inerentes à especificidade do estatuto do arguido estão presentes em vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional no que concerne ao conjunto de direitos que a este assiste, entre os quais avulta o de exercício do contraditório.

Inquestionável na sua dignidade constitucional - artigo 20º da Constituição da República - o principio do contraditório está diretamente relacionado com o princípio da audiência, a oportunidade que é conferida a todo o participante no processo de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo.

O arguido, como qualquer outro sujeito processual, é um sujeito ativo, é um sujeito participativo em todo o processo. Por conseguinte, deve ser ouvido porque através das suas declarações ele contribui para a decisão do caso concreto.

Mas, no que concerne ao âmbito da incidência do princípio o mesmo terá uma maior ou menor amplitude de acordo com a própria fase processual em que se insere, isto é, a dimensão do princípio terá uma dimensão variável de acordo com a necessidade concreta de salvaguarda do direito de audição do interveniente processual.

Vejamos:

Como bem referido no Acórdão recorrido “Tendo por base a matéria de facto apurada nos autos o arguido (...) foi condenado como autor material de quatro crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos arts. 30º, nº 1, 172º, nº 1, e 177º, nº 1, al. a), por referência ao art. 171º, nºs 1, e 2, todos do Código Penal, nas penas de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão); 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão; 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão; e 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão, respetivamente; como autor material de dois crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos arts. 30º, nº 1, 172º, nº 1, e 177º, nº 1, al. a), por referência ao art. 171º, nº 1, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dos) meses de prisão relativamente a cada um deles; como autor material de um crime de coação agravado, p. e p. pelos arts. 154º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; como autor material de um crime de violação, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23, 73º, nº 1, alíneas a), e b), e 164º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.

Efetuado o cúmulo jurídico das penas parcelares, foi condenado na pena única de 11 (onze) de prisão que se encontra a cumprir.

Foi também condenado, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 69º-C, nº 3, do Código Penal, na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 5 (cinco) anos; nos termos e ao abrigo do disposto no art. 69º-C, nº 2, do Código Penal, na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 15 (quinze) anos. Cumpre, tão só, decidir sobre o arbitramento de indemnização às vítimas. Nos termos do disposto no art. 67º-A, nº 3, por referência à al. b), do art. 1º, do Código Processo Penal, as vítimas de criminalidade violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis. O conceito de criminalidade violenta está contido na al. j), do art. 1º, do Código de Processo Penal. Assim, para efeitos deste código, consideram-se criminalidade violenta as condutas que dolosamente se dirigirem contra, entre outros bens, a liberdade e autodeterminação sexual, puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a cinco anos. Em face da decisão sobre o enquadramento jurídico-penal das condutas do arguido, resta afirmar que em face das citadas normas legais, (...) e (...) assumem o estatuto de vítimas especialmente vulneráveis. A Lei nº 130/2015, de 4/09, que além do mais, aprovou o Estatuto da Vítima, dispõe no seu art. 16º: “1- À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável. 2- Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.

O nº 2, da citada norma legal, não deixa dúvidas quanto à obrigatoriedade de arbitramento de indemnização a favor de vítima especialmente vulnerável, constituindo única exceção a tal arbitramento a oposição da vítima.

No caso dos autos as menores (...) e (...) não manifestaram qualquer oposição ao arbitramento de indemnização.”

Ou seja, o legislador entendeu aplicar este regime em qualquer caso, ressalvando as situações em que a vítima a tal expressamente se opuser – oposição que não existiu no caso dos autos.

Do que resulta que o arbitramento desta compensação é obrigatório, a não ser que a vítima o não queira receber. E, com tal tinha o arguido de contar.

E não tendo as vítimas rejeitado a compensação, a partir daí o arguido estava apto a pronunciar-se, exercendo o contraditório que entendesse, nomeadamente quanto aos seus rendimentos e despesas fixas.

Ora, o tribunal "a quo", no estrito cumprimento do determinado no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, notificou o arguido para exercer o direito do contraditório quanto ao arbitramento de quantia para reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas (artigo 82º-A, nº2, do Código de Processo Penal) , pelo que forçoso é concluir que foi assegurada a tutela dos direitos do arguido, o qual os exerceu como entendeu, sendo certo porém que tal exercício teria que ocorrer com respeito pelos limites impostos no Acórdão do STJ de 18 de junho de 2020 e sem subversão do sentido deste, e que foram objeto de decisão nos termos plasmados nos autos, balizada pelos termos definidos no mesmo Acórdão do STJ.

Tratando-se de uma fixação oficiosa de indemnização por parte do tribunal, não dependente de prévio pedido deduzido pelas ofendidas, sempre estará a mesma sujeita a critérios de equidade e conformada pelos factos constantes da acusação, em relação aos quais incide a produção de prova na audiência de discussão e julgamento, como, aliás, o foi oportunamente.

Os factos concretos de que o arguido tinha, pois, de se defender, eram, necessariamente, os constantes da acusação e sobre eles incidiu oportunamente produção de prova.

Improcedem, por conseguinte, as apontadas objeções, inexistindo também neste particular qualquer violação da Lei Processual Penal, da Constituição da República Portuguesa, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e/ou da Declaração Universal Dos Direitos Humanos.

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- Da invocada falta de identificação do arguido no Acórdão

A razão de ser da exigência legal de as peças processuais, nomeadamente acusação e sentença, conterem a identificação mais completa possível do arguido, incluindo, para além do seu nome, outros elementos identificativos essenciais, como os que são referidos no art. 141º, n.º 3, do CPP, prende-se com as garantias constitucionais dos seus direitos de defesa, de modo a não deixar dúvidas sobre a pessoa concreta que é acusada e sujeita a julgamento. O que se pretende é uma identificação que garanta que a pessoa acusada e julgada é precisamente aquela que o devia ser e não qualquer outra.

Ora, no caso, é indesmentível que a imposição legal de identificar o arguido no Acórdão não se mostra cumprida na perfeição.

Contudo, nos autos existe um único arguido, como tal constituído e interrogado, devidamente identificado em várias peças processuais, nomeadamente na audiência de julgamento de 19 de novembro de 2020, como resulta da respetiva ata, com indicação de todos os seus elementos de identificação, tendo oportunamente prestado termo de identidade e residência.

Em face dos elementos constantes dos autos, não pode restar a mínima dúvida, tanto mais que só a ele se faz referência como autor dos factos em apreço, sobre a identidade do arguido.

Assim, é de concluir que o arguido está suficientemente identificado pelos elementos identificativos constantes dos autos, ao ponto de afastar qualquer dúvida que pudesse surgir, pois os autos correram sempre contra uma única pessoa, determinada e identificada, cuja identificação completa resulta dos autos de constituição e de interrogatório de arguido e do respetivo termo de identidade e residência.

Face ao explanado, não subsiste qualquer dúvida sobre quem é a concreta pessoa física acusada e submetida a julgamento, por existirem nos autos elementos suficientes que, além do nome, permitem atribuir essa identidade concreta e individualizar a pessoa do arguido.

É assim inequívoco não se verificar a ausência total de identificação do arguido ou indicação insuficiente de sinais tendentes ao reconhecimento inequívoco do arguido no processo.

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- Da alegada inexistência de caso julgado

A questão que se perfila prende-se com a problemática da imodificabilidade das decisões, isto é, com a problemática inerente ao caso julgado.

As questões que emergem nos recursos apresentados pelo arguido assentam no pressuposto de que o acórdão do STJ ainda não transitou em julgado, prendendo-se, como se disse, com a problemática da imodificabilidade das decisões.

Ora, «A sentença converte-se em caso julgado quando os tribunais já a não podem modificar.

Para que tal conversão se opere, é necessário que a decisão transite em julgado. E a decisão transita ou passa em julgado, nos termos do artigo 677º, logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação por nulidades ou obscuridades ou para reforma quanto a custas e multa» ( v. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in “Manual de Processo Civil”, 1984, págs. 683 e 684 ).

O acórdão do STJ foi proferido em 18 de junho de 2020.

Tal acórdão não é suscetível de recurso ordinário, tendo transitado em julgado em 2 de julho de 2020, como resulta da certidão junta aos autos sob a referência 9371399.

E, como decidido no Ac. da Relação do Porto, de 19-03-97, in Col. Jur., Ano XXII, T2, pág. 226 e ss, ‘A decisão judicial com trânsito em julgado não se anula, como não se declara a invalidade de actos de um processo que findou com decisão irrevogável’.

De facto, a não ser assim entendido, estar-se-ia a permitir a utilização aos arguidos a destempo e à medida das suas conveniências de arguições e recursos como meios meramente dilatórios.

Termos em que, também neste particular, improcede o recurso.


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- Dos alegados vícios do art.410º, nº2, als.a) e b) do CPP

De acordo com o art.428, nº1, do Código de Processo Penal, “as relações conhecem de facto e de direito”.

Com a reforma do processo penal, introduzida pela Lei 59/98, de 25-08, passou a ser possível impugnar a matéria de facto de duas formas: a já existente revista ampliada, através da invocação dos vícios decisórios do art.410º do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias emergentes do texto de decisão, e uma outra mais ampla e abrangente, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efetivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo a observância de certas formalidades.

Estes condicionamentos ou imposições no caso de recurso de facto (nºs 3 e 4 do art.412º, do CPP) constituem mera regulamentação, disciplina e adaptação aos objetivos do recurso, já que a Relação não fará um segundo julgamento de facto, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzida, mas tão-só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos no recurso e das provas, indicadas pelo recorrente, que imponham (e não apenas sugiram ou permitam outra decisão) decisão diversa; é uma reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às razões de discordância.

No caso, o recorrente não impugna a matéria de facto, visando a modificabilidade dos seus termos, pela Relação, ao abrigo do art.431º, do CPP.

Além de não afirmar de forma expressa a sua intenção de impugnar a matéria de facto, não cumpre o ónus de impugnação, previsto no art.412º, nºs 3 e 4, daquele diploma, através da indicação especificada dos concretos pontos de facto reputados como incorretamente julgados e indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, limitando-se a invocar vícios do art.410º, nº2, CPP.

Com efeito invoca os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provado e de contradição insanável, a que se referem as alíneas a e b do citado art.410, nº2, CPP.

O disposto neste art.º 410.º, n.º 2, refere-se aos vícios da matéria de facto fixada na sentença, o que não se deve confundir com os vícios do processo de formação da convicção do tribunal no apuramento e fixação da matéria de facto fixada na sentença.

É por isso que esses vícios têm de resultar da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos à sentença, ainda que constem do processo.

São, pois, vícios decisórios, de conhecimento oficioso, que têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e cuja verificação há de necessariamente ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma (cfr., Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16ª ed., pág.873, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol.III, 2ª Ed., pág.339).

Alega o recorrente verificar-se insuficiência de matéria de facto provada para a decisão e contradição insanável da fundamentação.

Vejamos:

Relativamente ao vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, previsto na alínea a), do nº2, do art. 410º, do CPP.

O vício a que alude, a al. a), do nº2, do art. 410º, do CPP, é a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol III, pp. 339, «É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida».

Assim, um tal vício só pode ter-se como evidente quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida.

Conforme constitui Jurisprudência pacífica do STJ, a insuficiência a que se refere o art. 410º, nº 2, al. a), do CPP, é a que decorre da omissão de pronúncia pelo tribunal, sobre facto (s) alegado (s) ou resultante (s) da discussão da causa que sejam relevante (s) para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão. (…).A insuficiência da matéria de facto provada existe quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o Tribunal recorrido podendo fazê-lo deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido à apreciação do Tribunal, ou seja, no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, que lhe é imposto pelo normativo do art. 340º, do CPP, o Tribunal podia e devia ter ido mais longe e, não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais cujo apuramento permitira alcançar a solução legal e justa.

No caso sub judice, a matéria de facto dada como provada, é suficiente para justificar a aplicação do direito ao caso submetido à apreciação do Tribunal. Por outro lado, resulta da matéria de facto assente, que o Tribunal se pronunciou sobre os factos alegados, resultante da discussão da causa que foram relevantes para a decisão, que deu como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, foram alegados pela acusação e pela defesa e que resultaram da discussão, sendo que não resulta do texto da decisão recorrida, por si só, e conjugadas com as regras da experiência comum, que ficaram por investigar factos essenciais cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa.

E uma coisa é a forma como o tribunal aprecia e interpreta a prova produzida em audiência, outra coisa é a insuficiência para a decisão de facto considerada provada, ou seja, quando os factos provados são insuficientes para fundamentar a decisão tomada.

Pelo exposto, no caso sub judice, do texto da decisão recorrida por si só e conjugada com as regras da experiência, não se verifica o mencionado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

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Relativamente ao vício de contradição insanável, dir-se-á que existe tal vício quando há oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Ocorre ainda quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou quando, segundo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados.

A contradição de que fala o art.410º, nº2, al.b) do CPP é, pois, uma contradição entre os fundamentos da decisão ou entre estes e a própria decisão, nunca entre os meios probatórios em si mesmo considerados, ou entre a convicção formada pelo tribunal e aquela que, segundo o recorrente, devia prevalecer face às provas produzidas, e verifica-se quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.

Consiste, pois, na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão, e, como tem esclarecido o Supremo Tribunal «só se verifica quando, de acordo com um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação, não só não justifica como impõe uma decisão contrária ou, quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se concluir que a decisão não resulta suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados» (cfr. Ac. do STJ de 17-12-2014 (Processo 937/12.4JAPRT.P1.S1 - Isabel São Marcos).

Ou, como se decidiu no acórdão do mesmo Tribunal de 20/04/2006, (no Processo 06P363 - Rodrigues da Costa) «O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão».

Este vício, como resulta da letra da alínea b) do nº2 do art. 410º, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou seja, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é suscetível de o integrar, mas apenas a que incida sobre elementos relevantes do caso e se mostre insanável ou irredutível, isto é, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.

Ora, analisando o Acórdão recorrido, não se deteta qualquer contradição insanável na matéria de facto considerada assente na decisão recorrida, entre factos provados e não provados, na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Improcede por isso a invocação do arguido/recorrente.

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- Da indemnização oficiosamente arbitrada

Insurge-se o arguido recorrente contra o arbitramento da reparação oficiosa, alegando errada aplicação do art.70º do CC e do nº2 do art.16º da Lei nº130/2015, de 4/9.

É a seguinte a redacção do art. 82º-A do C.P.P., que versa sobre a reparação da vítima em casos especiais:

«1 – Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.

2 – No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3 – A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização».

Por seu turno, o nº 2 do art. 16º da Lei nº 130/2015, de 04.09, dispõe que “ Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82ºA do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser. "

Da conjugação dos preceitos legais supracitados decorre que, não tendo sido deduzido, pela vítima especialmente vulnerável, pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, o Tribunal em caso de condenação, deve arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.

De acordo com o art. 67º-A, nº 1, aI. b), do CPP, na redação dada pela Lei 130/2015, de 4/12, considera-se "vítima especialmente vulnerável", a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social.

No caso sub judice é inquestionável serem as ofendidas vítimas especialmente vulneráveis, sendo certo que não se opuseram expressamente a que lhes fosse arbitrada quantia reparadora.

Das normas supra expostas resulta, como já se disse, que em caso de condenação e não tendo sido deduzido pedido de indemnização o tribunal pode arbitrar uma quantia à vítima a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção desta o imponham.

Concluindo que há lugar à atribuição de indemnização à vítima, mesmo não tendo sido pedida, na fixação desta indemnização segue-se a regra geral, à falta de lei especial para o efeito.

Nos termos do disposto no artigo 129.º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.

Preceitua o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Em termos sintéticos, diremos que nos direitos de outrem, cuja violação determina responsabilidade civil, incluem-se, principalmente os direitos absolutos e os chamados direitos de personalidade.

No âmbito dos direitos de personalidade, o art.25.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que a integridade moral e física das pessoas é inviolável e que ninguém pode ser submetido, designadamente a tratos cruéis e degradantes ou desumanos.

Também o art.70.º , n.º1 do Código Civil , estatui que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, inferindo-se desta referência genérica à tutela geral da personalidade, designadamente, o direito à vida, à integridade física, à liberdade, à honra, ao bom nome e à saúde.

Assim, para que haja obrigação de indemnizar é necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

1) Facto voluntário – no sentido de controlável pela vontade humana;

2) Ilicitude – reprovação da conduta do agente no plano geral e abstrato da lei, em contraposição à culpa que se reporta a um comportamento concreto;

3) Culpa – imputação do facto ao lesante, a título de dolo ou negligência, em qualquer das suas modalidades.

4) Dano – pode ser real (lesão causada no interesse juridicamente tutelado), patrimonial (reflexo do dano real na situação patrimonial do lesado, englobando danos emergentes e lucros cessantes), ou não patrimonial (o que é insuscetível de avaliação pecuniária, podendo apenas ser compensado).

5) O nexo de causalidade – só há responsabilidade relativamente aos danos que o lesado provavelmente não sofreria se não fosse aquela conduta, estando entre nós consagrada a teoria da causalidade adequada.

Por sua vez, dispõe o art.496º, nº1, do CC que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

Os danos podem, pois, ser classificados em patrimoniais e não patrimoniais, incidindo os primeiros sobre interesses de natureza material ou económica, refletindo-se no património do lesado, e reportando-se os segundos a valores de ordem espiritual, ideal ou moral.

Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art.562º do CC), sendo que a obrigação só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art.563º do CC), consagrando este art.563º a teoria da causalidade adequada

O montante indemnizatório deverá equivaler ao dano efetivo, com a avaliação concreta do prejuízo sofrido, que deverá prevalecer sobre a avaliação abstrata (cfr. Calvão da Silva, RLJ, 134º, pág.114).

E o art.564º, nº1, do CC dispõe que o dever de indemnizar compreende o prejuízo causado e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (danos emergentes e lucros cessantes).

Dentro dos danos indemnizáveis estão, então, os danos não patrimoniais.

De acordo com o disposto no art.496º, nº3, do CC o montante da indemnização por danos não patrimoniais é fixado equitativamente pelo Tribunal. A indemnização por tais danos não se destina a reconstituir a situação que ocorreria se não tivesse sido o evento, mas principalmente a compensar o lesado na medida do possível, devendo, na fixação desta indemnização, ser atendido o grau de culpabilidade dos agentes, a situação económica destes e dos lesados e demais circunstâncias do caso que o justifiquem – arts.496º, nº3, 1ª parte, e 494º do CC.

Da equidade, dir-se-á que não é sinónimo de arbitrariedade, mas sim um critério para a correção do Direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as consequências do caso concreto, devendo ter-se em conta as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida.

Relativamente aos danos não patrimoniais, dúvidas não há que, no caso “sub judice”, os danos não patrimoniais resultantes da violação de direitos de personalidade, direitos estes tutelados pelo art.70º, nº1, do CC, não podem deixar de ser havidos como graves e, portanto, indemnizáveis.

A este propósito, será útil ter presente o que escreveu o Prof. Vaz Serra, in BMJ, nº83, pág.83: “(…) Satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido de um equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão. Trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo de origem moral, não é suscetível de equivalente.”

Daí resulta que é difícil e extremamente delicada a operação de quantificação dos danos de carácter não patrimonial, pois o sofrimento não tem expressão numérica direta. Por isso mesmo, haverá que recorrer à equidade e, apesar das múltiplas e diversas situações ter em vista os padrões usuais das indemnizações fixadas pela jurisprudência, com as correções impostas por outros fatores, nomeadamente a data em que os factos ocorreram, desvalorização da moeda e situação patrimonial do lesante e do lesado.

«No que tange aos critérios de indemnização por danos morais importa consignar que relativamente a um critério orientador, em termos jurisprudenciais, deve anotar-se que "em matéria de danos não patrimoniais, a compensação por tais danos …deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico"- acórdão do STJ de 25/1/02, in CJ/STJ, 2002, 1-62 –ou, noutra redação, “em sede de responsabilidade extracontratual as indemnizações não podem ser miserabilistas ou simbólicas"- acórdão da Relação do Porto, de 15/572001, in CJ, 2001, 3º, 187 -ou ainda “o montante da indemnização por danos não patrimoniais deve ser proporcionado à gravidade dos danos, apreciados objetivamente, sem consideração de critérios meramente subjetivos, não sendo de acolher pretensões manifestamente excessivas, mas também excluindo tendências banalizadoras dos valores e interesses morais, como a saúde, a integridade física, o bem estar, etc., que se pretende defender”- cfr. Acórdão da Relação do Porto de 17/09/2009 in www.dgsi.pt.

E segundo este mesmo aresto “na fixação da compensação por danos não patrimoniais impera o critério da equidade (artigo 496º/3 do CC), condicionada pelos parâmetros previstos no artigo 494º desse diploma. O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso, segundo critérios de equidade, atendendo nomeadamente ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e do lesado e titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, e deve ser proporcionada à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. Embora o julgador não esteja limitado por critérios normativos fixados na lei e sobrelevem razões de conveniência e justiça, a decisão do julgador não pode reconduzir-se ao arbítrio, não obstante a relevância que a componente subjetiva tem no julgamento segundo a equidade. Com o apelo à equidade pretende-se encontrar a solução mais justa para o caso concreto. E, neste domínio, qualquer solução deve participar de bom senso, equilíbrio e da noção da justa medida das coisas.

A compensação não tem apenas uma natureza exclusivamente ressarcitiva, assumindo também uma função sancionatória, estabelecida no interesse da vítima, como forma de desagravá-la do comportamento do lesante, pelo que deve ser proporcionada à gravidade do dano e que o montante da reparação deve, de algum modo, compensar esse dano pelas possibilidades que pode proporcionar ao lesado em termos de realização de interesses seus, materiais ou ideais.”

Com efeito, como é consabido, a indemnização por danos não patrimoniais deve ser, em termos de quantum, não irrelevante ou simbólica, mas significativa, visando propiciar compensação adequada quanto ao dano sofrido, com fixação equilibrada e ponderada, de acordo com critérios de equidade, direcionados para as circunstâncias do caso, sem esquecer os padrões jurisprudenciais indemnizatórios atualizados.

Assim sendo, reitera-se também que o Tribunal de recurso, devendo adotar um critério que apenas considere suscetível de revogação, por inadequada, uma solução que, de forma manifesta, exceda certa margem de liberdade decisória do Tribunal a quo, haverá, para tanto, de sindicar o critério de equidade aplicado no caso concreto.

E, na hipótese de a indemnização arbitrada ainda se conter no âmbito de um exercício razoável do juízo de equidade, mormente à luz da prática jurisprudencial atual, vistas ainda as circunstâncias pessoais das vítimas, não será caso então de revogar a decisão recorrida.

No caso concreto não há dúvidas, face à factualidade provada, que o arguido/recorrente praticou factos ilícitos e culposos contra as ofendidas, e que lhes causou danos não patrimoniais, danos esses que resultaram direta e necessariamente da sua conduta.

Donde, estão verificados todos os pressupostos da obrigação de reparação.

E, tudo ponderado, tendo presente o conjunto dos factos, a sua natureza, gravidade e consequências para as ofendidas, já acima evidenciadas, e tendo presente que a finalidade da indemnização por danos não patrimoniais é, não só compensar o lesado pelas dores e humilhação, mas também sancionar a conduta do lesante, entendemos apresentar-se o montante fixado como adequado, com justificação expressa e detetável desde logo em face da concreta gravidade dos danos provados e dos critérios que vêm sendo seguidos na prática jurisprudencial, não merecendo qualquer censura o Acórdão recorrido, que fez correta aplicação do direito.

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Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- julgar improcedentes os recursos interpostos pelo arguido/recorrente, e, em consequência, confirmar o despacho e o acórdão recorridos.

- Condenar o recorrente no pagamento de custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 27 de abril de 2021

Laura Goulart Maurício

Maria Filomena Soares

Gilberto da Cunha