Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1295/22.4T8FAR.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO DA SEGURANÇA SOCIAL
FACTO DURADOURO
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CONTRA-ORDENACIONAL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – O prazo da prescrição relativa a contraordenações que se reportem a factos duradouros ou permanentes apenas se inicia quando tais factos cessarem, pois só nesse momento se verifica a sua consumação, nos termos do disposto no art. 119.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, aplicável por força dos arts. 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, e 32.º do Regime Geral das Contraordenações.
II – Não se inclui no erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c) do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal, o modo como o tribunal a quo valorou a prova produzida em audiência de julgamento, quer por depoimentos, quer por documentos, valoração que aquele tribunal é livre de efetuar de acordo com o disposto no art. 127.º do Código de Processo Penal.
III – O princípio in dubio pro reo atua na fase de apreciação da matéria de facto, competindo ao julgador, em caso de dúvida sobre a verificação de determinado facto, decidir a favor do arguido.
IV – É, assim, uma situação diversa daquela em que, apesar de o arguido entender que determinado facto é duvidoso, para o julgador, em face da prova existente e com a qual fundamentou a sua convicção, inexiste qualquer dúvida sobre a existência desse facto.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
A recorrente AA (arguida) veio impugnar judicialmente a decisão do Instituto de Segurança Social que lhe aplicou uma coima única no valor de €15.125,00, correspondendo às seguintes contraordenações:
- a contraordenação p. e p. pelos arts. 11.º, n.º 1, al. a), 39.º-B e 39.º-E, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, alterado e republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03[2], atenuada por força do disposto nos arts. 72.º, n.º 1 e 73.º, n.º 2, al. d), do Código Penal e art. 18.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações[3], cuja coima aplicada foi no montante de €15.000,00; e
- a contraordenação p. p. pelos arts. 3.º, n.º 1, al. a), 4.º, n.º 1, al. a) e 9.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15-09, alterado e republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 371/2007, de 06-11[4], atenuada por força do disposto nos arts. 72.º, n.º 1 e 73.º, n.º 2, al. d), do Código Penal e art. 18.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações, cuja coima aplicada foi no montante de €125,00.
O Tribunal de 1.ª instância, realizada a audiência de julgamento, por sentença proferida em 14-07-2022, decidiu nos seguintes termos:
Em face do exposto julgo improcedente a presente impugnação judicial e, em consequência, mantenho a decisão administrativa.
Custas pela recorrente fixando-se a taxa de justiça, em face do número e complexidade das questões suscitadas, em 2 UCs (cfr. art. 8º nº 7 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa ao mesmo).
Notifique, comunicando a decisão à autoridade administrativa.
Deposite.
Inconformada, veio a arguida AA interpor recurso da sentença, apresentando as seguintes conclusões:
I - O presente recurso de apelação vem interposto da sentença proferida nos autos, doravante designada, apenas, por sentença recorrida que julgou improcedente a impugnação judicial e, em consequência, manteve a decisão administrativa que consiste numa condenação em coimas no valor global de €15.250,00
II – Conforme resulta provado na decisão recorrida os factos consumaram-se em 2012, data em que a suposta “ERPI”, teria entrado em funcionamento, assim sendo, já passaram mais de dez anos desde a data da consumação, sendo que, deverá ter-se o processo por prescrito, nos termos do alegado nos arts. 3.º a 10.º das presentes alegações.
III – Face ao alegado nos arts. 11.º a 24.º desta apelação, terá sempre de decidir-se absolver a Recorrida das coimas que lhe foram aplicadas, mais que não seja, porque pela prova produzida existe uma dúvida insanável acerca da prática das contra-ordenações pelas quais vem condenada.
IV - Em processo contra-ordenacional, vale o princípio de in dubio pro reo quanto à prova do tipo de culpa- como, de resto, o mesmo princípio vale em relação à prova de qualquer outro facto relevante para a decisão de aplicação e de graduação das coimas.
V - Concluindo, há um erro notório na apreciação da prova e violação do princípio in dúbio pro reo existindo fundamento para a absolvição total da Recorrente.
Nestes termos, e nos demais de Direito, cujo douto suprimento expressamente se requer, deve ser concedido integral provimento ao presente recurso de apelação, revogando-se a decisão recorrida. substituindo-se a mesma por outra que absolva totalmente a Recorrente das contra-ordenações e coimas pelas quais foi anteriormente condenada.
O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando, a final, pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
A. A sem razão da recorrente vem largamente demonstrada na sentença.
B. Esta merece total confirmação.
Porem, Vossas Excelências melhor decidirão como for de lei e justiça.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso, devendo ser mantida a sentença recorrida.
A recorrente não veio responder a tal parecer.
Admitido o recurso neste tribunal apenas quanto à contraordenação p. e p. pelos arts. 11.º, n.º 1, al. a), 39.º-B e 39.º-E, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, alterado e republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03, e colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
II – Objeto do recurso
Nos termos dos arts. 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do art. 41.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10 (RGCO) e arts. 50.º, n.º 4 e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 410.º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo Penal).
Consigna-se que apenas iremos apreciar a contraordenação p. e p. pelos arts. 11.º, n.º 1, al. a), 39.º-B e 39.º-E, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, alterado e republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03.
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Prescrição;
2) Erro notório na apreciação da prova.
III. Matéria de Facto
A matéria de facto mostra-se fixada pela 1.ª instância, uma vez que o tribunal da relação, em sede contraordenacional laboral, apenas conhece da matéria de direito (art. 51.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14-09), com exceção das situações previstas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
A decisão da 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
A) Em 04 de Maio de 2016, a arguida, no primeiro andar de uma vivenda destinada também à sua habitação, sita em (…),Olhão, possuía em funcionamento a resposta social com cinco camas instaladas e aptas para receber idosos, encontrando-se no local presentes 3 idosas com idades compreendidas entre 73 e 94 anos de idade e existindo uma quarta idosa com 72 anos de idade que não estava presente por ter ido a uma consulta médica, não dispondo a arguida de licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento legalmente exigida para o efeito e sendo cobradas mensalidades entre os € 200 e os € 500, funcionamento que se mantinha desde 2012;
B) Não existia neste estabelecimento livro de reclamações;
C) O estabelecimento da arguida estava a funcionar em deficientes condições de higiene e segurança, falta de afixação em local bem visível do horário de funcionamento do estabelecimento, inexistência de processo individual dos utentes, falta de afixação do preçário com os valores mínimos e máximos praticados no estabelecimento, a não celebração por escrito de contratos de alojamento e/ou de prestação de serviços com os utentes ou seus representantes familiares, inexistência de regulamento interno do estabelecimento actualizado, aprovado e afixado, inexistência de pessoal com categoria profissional e afectação adequadas à actividade desenvolvida no estabelecimento e indicação do respectivo mapa, inexistência de director técnico do estabelecimento;
D) A arguida bem sabia que não estava a cumprir as obrigações que lhe incumbiam, em prejuízo dos seus utentes;
E) Na data referida em A) estavam acolhidas na arguida, BB, CC, DD e EE;
F) Desde 2012 o Centro Distrital de Segurança Social de Faro vem realizando visitas ao estabelecimento explorado pela arguida;
E considerou não provados os seguintes factos:
A) A arguida desempenhou a actividade social de uma estrutura de acolhimento familiar para pessoas idosas desde 2011, nunca tendo tido a seu cargo mais de 3 idosos;
B) EE é prima da arguida e pediu para ficar, por diversas ocasiões, em regime de maior proximidade com a sua progenitora e a pernoitar no local ocasionalmente;
C) A arguida deixou de se dedicar a qualquer actividade de acolhimento familiar a pessoas idosas.
IV – Enquadramento jurídico
1) Prescrição
Considera a recorrente que deve ser declarada a prescrição dos factos que lhe são imputados, uma vez que os mesmos se consumaram em 2012, data em que a suposta “ERPI” teria entrado em funcionamento, pelo que decorreram mais de dez anos desde a data da sua consumação.
Dispõe o art. 52.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, que:
Sem prejuízo das causas de suspensão e interrupção da prescrição previstas no regime geral das contra-ordenações, o procedimento extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação hajam decorrido cinco anos.

Dispõe ainda o art. 53.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, que:
1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:
a) Não possa legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;
b) Não possa prosseguir por inviabilidade de notificar o arguido por carta registada com aviso de recepção;
c) Esteja pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa competente, nos termos previstos no regime geral das contra-ordenações.
d) Esteja pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa competente, até à decisão final do recurso.
2 - Nos casos previstos nas alíneas b), c) e d) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.

Dispõe, por fim, o art. 54.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, que:
1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:
a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
d) Com a decisão da autoridade administrativa competente que procede à aplicação da coima.
2 - Nos casos de concurso de infracções, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação.
3 - A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tenha decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.

Deste modo, nos termos conjugados dos arts. 52.º, 53.º, n.º 2 e 54.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14-09, a prescrição ocorre sempre, independentemente de terem, ou não, ocorrido causas de interrupção e de suspensão[5], decorridos oito anos desde a data do facto contraordenacional.
Apreciemos, então, a situação concreta.
Ora, basta atentar no facto provado A) para compreendermos que os factos que são imputados à arguida neste processo contraordenacional ocorreram em 04-05-2016 e não, como defende a arguida, em 2012. Na realidade, apenas os factos ocorridos em 04-05-2016 se mostram descritos e permitem imputar à arguida a prática de contraordenações. A circunstância de desde 2012 o Centro Distrital de Segurança Social de Faro ter realizado visitas ao estabelecimento explorado pela arguida (facto provado F)), não nos permite sequer apurar em que datas essas visitas foram realizadas, se nessas visitas se encontravam efetivamente idosos ao cuidado da arguida e se foram ou não instaurados os competentes processos contraordenacionais. Apesar de através do facto provado F) parecer resultar que a arguida possui em funcionamento um estabelecimento para acolhimento de idosos desde 2012, desconhece-se, por tal não ter sido dado como provado, se o mesmo tem vindo a funcionar ininterruptamente ou não.
Na realidade, o auto contraordenacional é levantado perante a constatação de uma prática contraordenacional e se a pessoa que o comete reincidir nessa prática terá de ser levantado um novo auto quando se constatar uma nova prática.
Dir-se-á, de qualquer modo, que mesmo na fundamentação apresentada pela arguida, se apenas se aplicasse uma contraordenação a esta desde o momento em que o estabelecimento tivesse sido aberto e até ao seu encerramento, partindo do pressuposto que o mesmo funcionaria ininterruptamente, sempre estaríamos perante um facto duradouro ou permanente, cuja consumação apenas terminaria aquando do seu encerramento, só começando, por isso, a contar o prazo de prescrição quando esse encerramento ocorresse, em face do disposto no art. 119.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, aplicável por força dos arts. 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, e 32.º do Regime Geral das Contraordenações.
Tendo, assim, os factos imputados à arguida ocorrido em 04-05-2016, importa apurar se ocorreram, entretanto, causas suspensivas e/ou interruptivas.
Decorre da análise do processo contraordenacional designadamente que:
- prestação de declarações pela arguida em 04-05-2016, 28-02-2022 e 05-07-2022;
- notificação da arguida para contestar o processo contraordenacional em 16-02-2017;
- realização de diligência de inquirição da testemunha (…) em 20-09-2018;
- realização de diligência de visita à habitação da arguida, onde esta geria o referido estabelecimento, em 14-04-2021, a fim de constatar se o mesmo ainda se encontrava em funcionamento;
- solicitação do Instituto da Segurança Social de Faro, em 20-01-2022, a outro departamento da Segurança Social, de informação sobre a existência de licenciamento do estabelecimento explorado pela arguida;
- prolação pelo Instituto de Segurança Social da decisão contraordenacional em 10-03-2022;
- notificação da arguida do despacho que procedeu ao exame preliminar do recurso da decisão do Instituto da Segurança Social em 21-04-2022, do qual ainda não houve decisão final.
E, a ser assim, mostram-se verificadas as causas de interrupção da prescrição previstas no art. 54.º, n.º 1, als. a), c) e d), da Lei n.º 107/2009, de 14-09, e de suspensão da prescrição prevista no art. 53.º, n.º 1, al. d), da mesma Lei, o que impediu o decurso do prazo prescricional de cinco anos.
De salientar ainda que ao prazo normal de prescrição de cinco anos é acrescentado o prazo de 86 dias[6], nos termos dos arts. 7.º, nºs. 3 e 4 e 10.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03[7], 37.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13-03, 5.º da Lei n.º4-A/2020, de 06-04, e 6.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29-05, e o prazo de 74 dias[8], nos termos dos arts. 6.º B, nºs. 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, na versão da Lei n.º 13-B/2021, de 05-04, e 5.º e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05-04, ou seja, no total é acrescentado um prazo de 160 dias.
Deste modo, apenas nos resta concluir pela não verificação da prescrição da contraordenação p. e p. pelos arts. 11.º, n.º 1, al. a), 39.º-B e 39.º-E, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, alterado e republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03, razão pela qual improcede, nesta parte, a pretensão da recorrente.

2) Erro notório na apreciação da prova
Considera a recorrente que existe um erro notório na apreciação da prova, visto que, em face das declarações prestadas pela arguida e pela testemunha (…), não poderia ter sido dado como provado que a idosa EE também se encontrasse, no seu estabelecimento, a cargo da arguida, uma vez que perante o princípio in dúbio pro reo, existindo dúvidas, tal facto não poderia ter sido dado como provado.
Decidamos.
Conforme já referimos supra, em face do art. 51.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14-09, ao tribunal da relação mostra-se vedada a apreciação da matéria de facto, com exceção do disposto no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Dispõe o art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que:
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.

Atente-se que para que o art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, possa operar, os mencionados vícios da matéria de facto têm de resultar de forma expressa do texto da sentença recorrida, não sendo, por isso, admissível o recurso a declarações ou depoimentos ou mesmo a documentos constantes do processo.
Sobre esta matéria, cita-se o sumário do acórdão do STJ, proferido em 13-02-1992[9]:
II - Como resulta do artigo 410 do Codigo de Processo Penal, os vicios nele referidos, nomeadamente o erro notorio na apreciação da prova, tem de resultar da propria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo de inquerito ou na instrução ou ate mesmo no julgamento.

No caso concreto, a recorrente invoca expressamente o erro notório na apreciação da prova.
Veja-se sobre esta matéria o sumário do acórdão do STJ, proferido em 30-11-1993[10]:
II - Não pode ser considerado notório, pelo menos para quem não assistiu ao julgamento e leia o texto da decisão recorrida, o erro na apreciação que o Tribunal Colectivo fez da prova produzida em julgamento.

Cita-se ainda pela sua relevância o acórdão do TRC, proferido em 10-07-2018[11]:
I – O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
II - Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

Por fim transcreve-se parte do acórdão proferido pelo TRL, em 22-09-2020[12]:
Por sua vez, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994).
[…]
Por outro lado, na perspectiva do “erro notório”, entendemos que o recorrente incorre num equívoco ao invocar o artigo 410.º, n.º2, alínea c), já que o “erro” que imputa à decisão de facto não se evidencia pela análise da própria decisão, antes depende da diferente valoração da prova efectuada pelo recorrente em relação à que foi efectuada pelo tribunal.
Ora, o vício do “erro notório” não se reconduz à discordância sobre a factualidade que o tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., entendeu dar como provada: essa é matéria que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova e só é sindicável caso seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.

O erro notório na apreciação da prova decorre, portanto, quando, resultante do teor da própria sentença recorrida, se verifique uma falha grosseira e evidente na análise da prova, percetível a qualquer homem médio, nomeadamente, quando se deram como provados factos inconciliáveis entre si, ou como provados e não provados factos igualmente inconciliáveis entre si ou quando se decide em oposição ao que se provou. Porém, já não se inclui no erro notório na apreciação da prova o modo como o tribunal a quo valorou a prova produzida em audiência de julgamento, quer por depoimentos, quer por documentos, valoração que aquele tribunal é livre de efetuar de acordo com o disposto no art. 127.º do Código de Processo Penal.
Defende ainda a recorrente que o erro notório na apreciação da prova decorre da violação do princípio in dúbio pro reo, uma vez que deu como provado factos duvidosos.
O princípio in dubio pro reo atua na fase de apreciação da matéria de facto, competindo ao julgador, em caso de dúvida sobre a verificação de determinado facto, decidir a favor do arguido.
É, assim, uma situação diversa daquela em que, apesar de o arguido entender que determinado facto é duvidoso, para o julgador, em face da prova existente e com a qual fundamentou a sua convicção, inexiste qualquer dúvida sobre a existência desse facto.
Veja-se sobre esta matéria, o sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 14-12-2010, no âmbito do processo n.º 518/08.7PLLSB.L1-5, consultável em www.dgsi.pt:
II - O “in dubio pro reo” só vale para dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos (objectivos ou subjectivos) relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa.
III - Não se trata porém de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio…” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio “in dúbio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.

Daí que para que se possa verificar se houve ou não violação deste princípio se tenha necessariamente de atender à fundamentação da matéria de facto expendida na sentença recorrida, para apurar se, apesar da dúvida aí evidenciada, o julgador deu determinado facto como provado.
Ora, resulta da leitura de tal fundamentação que não perpassou pelo espírito do julgador qualquer dúvida relativamente à matéria de facto que deu como assente, tendo também procedido à indicação dos respetivos meios de prova que a sustentaram.
Sobre a situação que a arguida invoca consta da referida fundamentação da matéria de facto expressamente que:
De toda a documentação junta se retirou a actividade a que a arguida se dedicava, número de idosos que se encontravam no estabelecimento, montantes pagos pelos mesmos e sua identificação, condições do estabelecimento em causa.
Mais foi objecto de valoração o depoimento de (…), técnica superior do Núcleo de Apoio Jurídico do Centro Distrital de Faro da Segurança Social, que confirmou a fiscalização efectuada e datas da mesma, infracções verificadas, insuficiências em causa.
Explicou a testemunha, em concreto, o que foi verificado relativamente a cada uma das contraordenações em causa, sendo que descreveu o local preparado com 5 camas para idosos, estando 4 ocupadas ou pelos próprios idosos ou pelos seus pertences, o que lhe foi confirmada, aquando da visita inspectiva, pela própria arguida.
Importa referir que esta testemunha frisou bem o que verificou no local, que não se baseou apenas nas declarações da arguida.
No entanto, importa dizer que esta foi notificada, e tal resulta da documentação junta a que já se aludiu, para identificar os idosos e comprovar os pagamentos efectuados pelos mesmos, na sequência do que identificou 4 idosos, tal como consta das notas manuscritas pela arguida e que se mostram juntas a fls. 166 a 167 dos autos.

Ora, desta fundamentação, resulta não só que não perpassou qualquer dúvida sobre o julgador quanto ao facto de a idosa EE se encontrar no referido estabelecimento a cargo da arguida, em igual circunstâncias à das restantes três idosas, pelo que não é de atuar o princípio in dubio pro reo, como também que não resultou do teor do texto da sentença qualquer falha grosseira e evidente na análise da prova, percetível de acordo com as regras da experiência comum, designadamente não se deram como provados factos inconciliáveis entre si, ou como provados e não provados factos igualmente inconciliáveis entre si, nem se decidiu em oposição ao que se provou.
Pelo exposto, também nesta questão improcede a pretensão da arguida.
V - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art. 8.º, n.º 7 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
Notifique.
Évora, 10 de novembro de 2022
Emília Ramos Costa (relatora)
Mário Branco Coelho
Paula do Paço
__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Mário Branco Coelho; 2.ª Adjunta: Paula do Paço.
[2] Apesar de, certamente por lapso, constar da sentença recorrida os artigos referentes a legislação já revogada.
[3] DL n.º 433/82, de 27-10, atualizado.
[4] Apesar de, certamente por lapso, constar da sentença recorrida os artigos referentes a legislação já revogada.
[5] Com exceção da causa de suspensão prevista na al. a) do n.º 1 do art. 53.º da mesma Lei.
[6] Entre 09-03-2020 e 02-06-2020.
[7] 1.ª versão.
[8] Entre 22-01-2021 e 05-04-2021.
[9] No âmbito do processo n.º 042419, consultável em www.dgsi.pt.
[10] No âmbito do processo n.º 045854, consultável em www.dgsi.pt.
[11] No âmbito do processo n.º 26/16.2GESRT.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[12] No âmbito do processo n.º 3773/12.4TDLSB.L1-5, consultável em www.dgsi.pt.