Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
329/20.1T9ODM.E1
Relator: ANA BACELAR
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
INJÚRIA
QUEIXA
Data do Acordão: 09/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Tendo o arguido sido acusado de um crime de violência doméstica e concluindo-se que o mesmo praticou apenas um crime de injúria, não pode ser condenado pela prática deste último crime em virtude de não ter existido queixa.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora


I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 329/20.1T9ODM, do Juízo de Competência Genérica de Odemira [Juiz 1] da Comarca de Beja, o Ministério Público acusou
(…),
pela prática, em autoria material e na sua forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelos artigos 14.º, 26.º e 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), e n.ºs 4 e 5 Código Penal.

O Arguido apresentou contestação escrita, oferecendo o merecimento dos autos.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida e depositada em 14 de julho de 2021, foi, entre o mais, decidido:
«(…) julgo procedente, por provada, a acusação do Ministério Público e, em consequência:
1. Condeno o arguido (...), pela prática, em autoria material e na sua forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punível, pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, a qual nos termos e para os efeitos do disposto nos arts.º 50.º do Código Penal, suspendo na sua execução por igual período.
2. O arguido vai ainda condenado no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC’s, sendo que, os honorários devidos à sua Ilustre defensora serão pagos nos termos e de acordo com a legislação em vigor e determino, desde já, o pagamento da fatura de fls. 287-verso dos autos.
3. Fixo em 500,00 (quinhentos euros) a indemnização devida à vítima (...) (conf. artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas)), por cujo pagamento é responsável o aqui arguido (...) no prazo de 30 dias após o trânsito em jugado da presente sentença.»

Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
I. O arguido, ora Recorrente, foi condenado pela prática, em autoria material e na sua forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º nº. 1, b) e nº. 2, a) do Código Penal, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
II. Ainda que o recorrente tenha admitido a prática de parte dos factos descritos na acusação, não se podiam ter dado como provados alguns dos factos descritos na acusação e nos moldes aí descritos.
III. Com o devido respeito, que é muitíssimo, a sentença recorrida julgou incorretamente os pontos 4, 9 e 11 da matéria de facto dada como provada.
IV. Quanto à motivação da matéria fáctica o Tribunal a quo formou a sua convicção “nas declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento pelo arguido (...), o qual admitiu a prática dos factos que se deixaram narrados em 2.1, negando os restantes que lhe eram imputados na acusação.” e fundamentando ainda que “facilmente se conclui que o depoimento da ofendida (...) (solteira, com 50 anos de idade) apenas relevou, para este tribunal, na parte em que o arguido, igualmente a prática dos factos. (sublinhado nosso)
V. No que toca aos factos constantes no ponto 4 da matéria de facto dada como provada, o Recorrente começou por dizer, quanto aos mesmos, cf. gravação nº 20210707105828_1054264_2870371, a partir do minuto 00:23:
Meritíssimo Juiz: O senhor sabe que está aqui acusado de violência doméstica não sabe?
Arguido: “infelizmente é verdade”
Meritíssimo Juiz: Pronto e diz-se aqui outras coisas que não foi só… olhe esta parte até bate certo, diz aqui que a situação piorou nos últimos 5 anos. Mas por exemplo no número 5 diz que quando ela estava grávida de dois meses da filha (…) quando se fosse embora ia levar a carrinha que era sua e que este respondeu não levas não e que (impercetível) só não tendo a mesma caído porque conseguiu agarrar-se à roupa que estava a estender.
Arguido: não, não, isso é mentira. Chatices haviam muitas.
E, ao minuto 1:01…
Meritíssimo Juiz: Mas alguma vez lhe bateu?
Arguido: dei-lhe unicamente uma vez um toquezinho na cara e não me orgulho nada disso. (sublinhado nosso)
Meritíssimo Juiz: um toquezinho na cara? Oh senhor, oh senhor (…), isto pode demorar muito ou pode demorar pouco, deu-lhe um toquezinho na cara… deu-lhe uma bofetada ou deu-lhe um murro, não lhe fez uma festinha na cara?
Arguido: porque a senhora empurrou-me,
Meritíssimo Juiz: Já vou saber porquê, agora quero saber o que é que aconteceu, deu-lhe um murro ou deu-lhe uma bofetada?
Arguido: dei-lhe assim um toquezinho na cara
Meritíssimo Juiz: uma chapada de mão aberta pronto foi o gesto que o senhor fez
Arguido: sim. (sublinhados nossos)
Meritíssimo Juiz: e ela caiu não caiu?
Arguido: não, não caiu. Porque ela estava-me a empurrar e estávamos a discutir
Meritíssimo Juiz: Por causa de quê?
Arguido: epa, era quase sempre por causa de dinheiro
Meritíssimo Juiz: olhe e essa chapada, quem é que viu isso?
Arguido: viram os filhos que estavam lá em casa
Meritíssimo Juiz: isso não é bonito
Arguido: não, não me orgulho nada disso porque eu sei bem o que é que isso é porque eu sofri isso em miúdo com o meu pai e com a minha mãe. E não me orgulho nada disso, nada nada.
Meritíssimo Juiz: mais uma razão, então o senhor viu o seu pai bater na sua mãe o senhor vai repetir a mesma coisa
Arguido: repeti não sei porquê, quando vi já tinha feito, a senhora estava-me a empurrar e pronto, para ela ver que ela não me fazia mal, que eu tinha mais força que ela e a ver se ela estava sossegada.
Meritíssimo Juiz: mas ela não é nenhum cão, nenhum animal
Arguido: pois não, mas não valia a pena ela estar a empurrar, podia discutir comigo e não me empurrar
Meritíssimo Juiz: mas o senhor tinha uma solução, sabe qual era?
Arguido: era ir-me embora, como eu fiz muita vez, e aquilo passado duas horas depois a ver se ela estava mais calma. Mas dessa vez não consegui.
(…)
VI. O Recorrente admitiu a prática de parte dos factos pelos quais vinha acusado: confessou, sem qualquer reserva, – e mostrou, de resto, arrependimento – que havia desferido uma chapada de mão aberta à ofendida.
VII. No entanto foi dado como provado: No dia 19.11.2017, tinha a filha (…) cerca de um mês e meio, na sequência de uma discussão entre ambos acerca da necessidade de compra de uma cómoda para guardar a roupa da filha e a que o arguido se recusou, o arguido levantou-se da cadeira e desferiu com a mão aberta uma chapada na face esquerda da ofendida, fazendo com que esta quase perdesse os sentidos e ficasse com o lábio inchado, sem que contudo, tivesse recebido assistência médica. (facto 4 da matéria de facto provado). (sublinhado nosso)
VIII. O Recorrente não referiu que a ofendida quase tivesse perdido os sentidos e tivesse ficado com o lábio inchado.
IX. Tal apenas resulta do depoimento da ofendida, no qual a mesma referiu que não chegou a cair, conforme gravação n.º 20210707112911_1054264_2870371 ao minuto 8:49.
X. O Tribunal a quo, ao fundamentar a sua decisão quanto à formação da convicção da matéria de facto provado, referiu que não levou em consideração os factos alegados pela ofendida no seu depoimento quando não corroborados pelo arguido / Recorrente.
XI. Pelo que não se entende que possa ter dado como provado que, no seguimento da chapada desferida pelo arguido / Recorrente à ofendida esta quase perdeu os sentidos e ficou com o lábio inchado.
XII. Pelo que, no entender do recorrente, apenas deveria ter sido dado como provado, em resultado da confissão do arguido / recorrente, que, quando a filha (...) tinha cerca de um mês e meio, na sequência de uma discussão entre ambos, o arguido desferiu com a mão aberta uma chapada na face esquerda da ofendida.
XIII. Por outro lado, se o recorrente admitiu ter chamado à ofendida “puta dum cabrão” ou dizer-lhe “levas um soco nos cornos”, conforme matéria de facto vertida no ponto 5 da matéria de facto provado, e conforme resulta da gravação 20210707105828_1054264_2870371 ao minuto 3:42, negou ter dito à ofendida “não vales nada, fazes-me passar e qualquer dia levas um tiro nos cornos” (cf. matéria de facto dada como provada no ponto 9).
XIV. Se não, vejamos, em julgamento, confrontado com tais factos, cf. gravação nº 20210707105828_1054264_2870371, ao minuto 10:26, disse o recorrente:
Meritíssimo Juiz: o senhor disse “não vales nada, fazes-me passar e qualquer dia levas um tiro nos cornos”?
Arguido: isso nunca disse. (sublinhado nosso)
Juiz: tem alguma caçadeira consigo?
Arguido: tenho sim senhor, sou caçador há muitos anos. Nunca lhe disse isso
Juiz: não?
Arguido: não, de certeza absoluta.
XV. No entanto, foi dado como provado que A situação entre ambos esteve calma cerca de quinze dias, mas depois voltaram as discussões por causa do dinheiro, sendo frequente o arguido chamar à ofendida “puta dum cabrão” ou dizer-lhe “cala-te senão levas um soco” “não vales nada, fazes-me passar e qualquer dia levas um tiro nos cornos”, situação que se manteve até ao dia 19.09.2020, dia em que a ofendida saiu de casa com os seus filhos. (sublinhado nosso)
XVI. O Tribunal a quo não deveria ter dado como provados na íntegra os factos supra mencionados (e elencados no ponto 9 da matéria de facto provada), por terem os mesmos sido negados firmemente pelo recorrente.
XVII. Pelo que desde já se impugnam.
XVIII. O Tribunal a quo deu ainda como provado que ao agir do modo supra descrito, o arguido quis maltratar física e psicologicamente a ofendida (…), como efetivamente maltratou, como pretendeu, com tais expressões e condutas amedrontá-la, o que conseguiu, originando-lhe medo constante das suas reações, como medo daquilo que o Arguido pudesse vir a fazer no futuro, contra a sua integridade física ou a sua vida, bem como humilhando-a na sua honra e consideração. (cf. ponto 11 dos factos dados como provados)
XIX. O recorrente prestou declarações de forma coerente, apresentando um discurso claro, fluído e objetivo.
XX. As suas declarações foram, e bem, atendidas pelo tribunal a quo¸ que considerou o arguido / recorrente credível.
XXI. Das declarações prestadas pelo arguido / recorrente, pode concluir-se que o arguido e a ofendida discutiam bastante, e que mantiveram durante largos anos uma relação conflituosa, pautada essencialmente por questões conexas com dinheiro.
XXII. No entanto, das declarações prestadas, e de toda a prova produzida, não resulta que o conflito existente fosse imputável unicamente ao recorrente.
XXIII. Mais, parece poder concluir-se que o recorrente e a ofendida tinham uma relação desgastada, onde, às vezes, em discussões conjugais, ambos se excediam, ofendendo-se mutuamente.
XXIV. Não resulta da prova produzida, por seu lado, que a ofendida vivesse amedrontada, oprimida, vexada ou, de alguma forma, maltratada pelo arguido / recorrente.
XXV. Aliás, resulta das declarações de ambas as partes que foi a ofendida que decidiu unilateralmente deixar o arguido, saindo um dia de casa, sem o avisar, levando consigo os filhos e todos os pertencentes comuns.
XXVI. Ademais, resulta da fundamentação da sentença que a ofendida referiu ainda nunca ter temido pela sua segurança ou dos seus filhos. (sublinhado nosso)
XXVII. Pelo que não deveriam ter sido dados como provados os factos constantes o ponto 11 da sentença, o que também se impugna.
XXVIII. Nestes termos, impõe-se decisão diversa, dando-se como parcialmente não provados os factos constantes dos pontos 4 e 9 e como não provado o facto constante do ponto 11.
XXIX. Mesmo não sendo operada a alteração da factualidade constante dos factos provados sob os n.ºs 4, 9 e 11, a factualidade provada não é adequada a revelar uma conduta maltratante do arguido / recorrente (relativamente à pessoa da ofendida), de tal modo que, materialmente, se possa considerar a atuação do arguido como integradora da prática de um crime de violência doméstica, ou seja, tais factos não preenchem os elementos objetivos e subjetivos desse mesmo tipo legal de crime.
XXX. Não estão verificados os requisitos (objetivos e subjetivos) do crime de violência doméstica.
XXXI. O crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º do C. Penal, implica que o agente inflija maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais.
XXXII. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação do artigo 152.º do C. Penal.
XXXIII. Não foi intenção do legislador transformar qualquer disputa, desacordo ou desentendimento entre um casal ou ex-casal, numa situação de violência doméstica.
XXXIV. No crime de violência doméstica estão em causa atos que, pelo seu carácter violento, sejam idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima, para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão.
XXXV. A sentença não explicita o seu raciocínio logico-dedutivo, não se concluindo de forma clara de toda a fundamentação, e não obstante o vasto discorrer sobre o crime de violência doméstica, a decisão de considerar os factos dados como provados suficientes para preencher o tipo de crime em causa.
XXXVI. Dos factos dados como provados não se retira um comportamento do arguido para com a ofendida particularmente violento, que se possa ter refletido negativamente sobre a sua saúde física e psíquica.
XXXVII. Não houve um tratamento desumano, cruel, humilhante…
XXXVIII. A ofendida nunca temeu pela sua segurança ou dos seus filhos.
XXXIX. Tal como tem sido decidido na jurisprudência, Nem toda a ofensa que ocorre na unidade familiar é um crime de violência doméstica, pela simples razão de os maus-tratos pressuporem um atentado à integridade física ou psíquica da vítima que seja especialmente gravoso e censurável. O crime de violência doméstica não tutela bagatelas penais. Não nos devemos esquecer que há outros tipos legais de crime que podem tutelar outras situações, caso não se esteja efetivamente na presença de maus-tratos físicos ou psíquicos que lesam o bem jurídico tutelado, pois nem toda a agressão pode ser qualificada como maus-tratos. Impõe-se ponderar cada situação isoladamente e à luz do princípio da proporcionalidade nos termos do art.18.º, n.º 2 da CRP. Deste modo, para que um ato isolado possa, eventualmente, preencher o tipo incriminador do art.152.º, tem necessariamente de ser gravoso.
XL. E, concluindo, quanto ao caso concreto diga-se que a existência de discussões frequentes entre o ex-casal, em que ambos os interlocutores se envolviam, um com o outro, altercando-se, trocando impropérios e insultos vários, como, de facto, vem descrito na matéria de facto constante na sentença recorrida, e que foi explicada de forma totalmente credível pelo próprio arguido / recorrente e confirmada pela ofendida, não corresponde ao chamado “ciclo da violência doméstica”, nem tem especial ilicitude ou censurabilidade para a tornar subsumível ao artigo 152.º do Código Penal, fora do âmbito da incriminação por outros tipos legais de crime.
XLI. É óbvio que o uso de nomes como “puta dum cabrão” (ainda que seja uma expressão comumente usada na região onde o arguido reside e não seja propriamente uma ofensa direta à ofendida, no verdadeiro sentido da palavra…) ou expressões como “levas um soco nos cornos”, por parte do arguido para se dirigir à ofendida não é aceitável e, mais do que isso, tem tutela penal, como crime de injúria ou, no limite, de ameaça.
XLII. O mesmo poderia dizer-se daqueles que a própria ofendida reconhece ter dirigido ao arguido, depreendendo-se da audição do seu depoimento que eram igualmente insultuosos para aquele.
XLIII. Não é também (obviamente) aceitável que, no âmbito de uma discussão, o recorrente tenha perdido as estribeiras e dado uma chapada à ofendida, conforme já referido, mas, mais do que isso, tal conduta tem tutela penal, como crime de ofensas à integridade física.
XLIV. No entanto, tais factos não constituem, por si só, a prática de um crime de violência doméstica, e assim não se entendendo, encontra-se o Tribunal a quo em clara violação do princípio constitucional da proporcionalidade, previsto no artigo18.º, n.º 2 da CRP.
XLV. Considera o recorrente que o Tribunal a quo errou quanto à determinação da norma aplicável aos factos praticados pelo arguido / recorrente, não sendo aplicável o artigo 152.º do C. Penal, nem sendo a sua atuação qualificada como crime de violência doméstica mas, quanto muito, como crimes de injúrias, ameaça e/ou ofensas à integridade física, previstos e punidos pelos artigos 181.º, 153.º e 143.º do C. Penal.
XLVI. Pelo que deve ser alterada a qualificação jurídico-criminal da conduta do arguido e revista a pena aplicável ao arguido / recorrente.
XLVII. O arguido / recorrente foi ainda condenado a pagar à ofendida uma indemnização no valor de 500,00€, nos termos da Lei 112/2009.
XLVIII. Alterada a qualificação jurídico-criminal da conduta do arguido / recorrente, deve ainda este ser absolvido quanto à condenação ao pagamento da referida indemnização.

TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER APRECIADO, MERECENDO PROVIMENTO, COM A CONSEQUENTE REVOGAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA, DEVENDO O ARGUIDO SER ABSOLVIDO DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, P. E P. PELO ARTIGO 152º, Nº. 1 B) E Nº. 2, A) DO CÓDIGO PENAL, E ABSOLVIDO DO PAGAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO NO VALOR DE 500,00€ À OFENDIDA.
COM O QUE SE FARÁ INTEIRA JUSTIÇA!»

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1) Da douta sentença recorrida resulta que o Tribunal a quo ponderou tudo aquilo que lhe cabia ponderar.
2) A decisão recorrida não revelou erros quanto à apreensão e à perceção da prova produzida em sede de audiência de julgamento.
3) Não existe contradição entre a prova produzida e o que foi dado como provado.
4) O Tribunal a quo valorou a prova produzida como lhe era exigido.
5) A conduta do recorrente consubstancia a prática de um crime de violência doméstica, tendo o tribunal recorrido fundamentado convenientemente a sua decisão condenatória.
6) O Ministério Público conclui que Tribunal recorrido fez uma correta apreciação da matéria de facto fundamentando a sua convicção, aplicando a lei de forma correta, condenando o recorrente pelo crime pelo qual vinha acusado e que, por conseguinte, deverá o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, negando-se-lhe provimento e confirmando-se integralmente a douta sentença recorrida.

Contudo, V.ªs Ex.ªs, farão como sempre
JUSTIÇA»
û
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer com o seguinte teor [transcrição]:

«É sabido que, os recursos são delimitados pelas conclusões apresentadas (art.º 403.º n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal e, jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça.
Na Motivação do recurso decorre, entre o mais, que o recorrente pretende:
- IMPUGNAR A MATÉRIA DE FACTO
- IMPUGNAR A MATÉRIA DE DIREITO
Ora, quanto ao mérito do recurso respondeu o Mº Público junto do tribunal da 1ª Instância, sintetizando as questões colocadas no recurso, e apresentando a pertinente resposta, com base nos elementos de facto de prova constantes dos autos, sendo que, nelas nos louvamos, por serem completas e bem fundamentadas, e que aqui são dadas por inteiramente reproduzidas, nada mais se nos oferecendo aditar.
Nesta conformidade, e concordando-se com o nosso Ex.mo. colega, entende-se que, o recurso não pode proceder, já que foi bem apreciada a Matéria de Facto e, não foi violada qualquer norma, antes, tendo sido bem fundamentada a decisão ora sob recurso, pelo que, deve o recurso ser considerado improcedente e mantida na íntegra a decisão recorrida.»

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[[2]]


Posto isto, e vistas as conclusões dos recursos, a esta Instância são colocadas as questões:
- da incorreta valoração da prova produzida em julgamento;
- do erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito.
û
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:
«1. O arguido (...) e (...) mantiveram uma relação amorosa desde há cerca de 10 anos e até 19.09.2020, período durante o qual viveram maritalmente em (…).
2. De tal relacionamento nasceram dois filhos, (…), nascido a (…) e (...), nascida a (…), sendo que a ofendida tinha já uma filha de outra relação, (…), nascida a (…), fazendo todos parte do mesmo agregado familiar.
3. Durante o relacionamento a ofendida tomava conta dos filhos, sendo o arguido quem trabalhava, em virtude de tal e por via da falta de dinheiro eram frequentes as discussões entre ambos, sendo que, tal situação piorou substancialmente nos últimos cinco anos.
4. No dia 19.11.2017, tinha a filha (...) cerca de um mês e meio, na sequência de uma discussão entre ambos acerca da necessidade de compra de uma cómoda para guardar a roupa da filha e a que o arguido se recusou, o arguido levantou-se da cadeira e desferiu com a mão aberta uma chapada na face esquerda da ofendida, fazendo com que esta quase perdesse os sentidos e ficasse com o lábio inchado, sem que, contudo, tivesse recebido assistência médica.
5. No decurso das discussões, quase sempre motivadas pelo dinheiro ou pela sua falta, o arguido dizia à ofendida “puta dum cabrão, levas um soco nos cornos”, sendo que, algumas das vezes, a ofendida retorquia apelidando o arguido de “cabrão”, “filho da puta” e “ranhoso”.
6. Em março de 2020, após mais uma discussão e quando eram cerca das 21h30/22h00, o arguido agarrou a ofendida pelo braço e meteu-a na rua.
7. Ao verem a mãe ser posta na rua, (…), (...) e (…) foram atrás dela, acabando todos por se dirigirem para casa da comadre da ofendida, de nome (...), madrinha da filha (...), onde ficaram quatro dias.
8. Findos esses quatro dias, (...) disse à ofendida que não os podia ter lá mais tempo e, não tendo mais para onde ir, a ofendida viu-se obrigada a pedir ao arguido para voltar para casa com os filhos, ao que aquele acedeu.
9. A situação entre ambos esteve calma cerca de quinze dias, mas depois voltaram as discussões por causa do dinheiro, sendo frequente o arguido chamar à ofendida “puta dum cabrão” ou dizer-lhe “cala-te senão levas um soco” “não vales nada, fazes-me passar e qualquer dia levas um tiro nos cornos”, situação que se manteve até ao dia 19.09.2020, dia em que a ofendida saiu de casa com os seus filhos.
10. Todas as situações descritas ocorreram no interior da casa de família de ambos sita em (…) e tendo como testemunhas apenas os filhos.
11. Ao agir do modo supra descrito, o arguido quis maltratar física e psicologicamente a ofendida (...), como efetivamente maltratou, bem como pretendeu, com tais expressões e condutas amedrontá-la, o que conseguiu, originando-lhe medo constante das suas reações, como medo daquilo que o Arguido pudesse vir a fazer no futuro, contra a sua integridade física ou a sua vida, bem como humilhando-a na sua honra e consideração.
12. O arguido agiu consciente, voluntaria, livre e deliberadamente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Mais se apurou que:
13. O arguido (…), com 50 anos de idade, é solteiro, aquando dos factos aqui em discussão, residia com a companheira, a enteada, de 14 anos de idade e os filhos do casal, um rapaz com 6 anos e uma rapariga com 3 anos de idade, em casa de renda, na morada dos autos, (…), nas imediações da vila de (…).
A família subsistia do vencimento do arguido, dedicado a trabalhos sazonais na área da agricultura e extração e recolha de cortiça e dos subsídios dos menores e, desde há cerca de dois anos, também do resultado do vencimento da ofendida, que passou a desenvolver atividade laboral numa empresa de criação de bambus.
Natural de (…), local de residência da família, integrado numa fratria de oito elementos, sendo o mais velho por ordem de nascimento, a vida do arguido tem decorrido no local de nascimento e zonas limítrofes, pelas quais se desloca em razão das necessidades profissionais.
Os pais trabalhavam na área dos serviços agrícolas e a situação económica da família apresentava enorme fragilidade, raiando, no limite, a quase/fome. A exploração de uma horta e a criação de animais para consumo asseguravam, em grande parte, as carências alimentares.
A relação entre os progenitores foi-nos referida como de grande conflituosidade, tendo o arguido, desde os 2 anos de idade, assistido a situações de violência do pai relativamente à mãe.
O arguido (...) frequentou o ensino em idade própria, abandonando a sua frequência com cerca de 13/14 anos, concluído o 2.º ano de escolaridade. Referiu-nos ter reprovado por diversas vezes, em resultado de apresentar problemas de aprendizagem.
Terminada a frequência letiva iniciou atividade laboral na apanha de tacos/pedaços/desperdício de cortiça resultante da extração e na marcação de árvores/sobreiras, atividades a que se tem dedicado ao longo da vida, à exceção de um período de três anos em que trabalhou na empresa (…) e um período de seis anos em que trabalhou para um agricultor da zona, tendo saído com vencimentos em atraso nunca regularizados.
Iniciou relação de união de facto com 20 anos de idade, que decorreu ao longo de dezasseis anos, fruto da qual tem um filho com 25 anos de idade, independente. A separação do casal terá resultado, segundo o arguido, por prática de infidelidade por parte da companheira.
Finda a relação atrás referida, decorrido cerca de um ano, iniciou nova relação marital com a presumível vitima no âmbito do presente processo, terminada em setembro de 2020, e fruto da qual tem dois filhos menores, um rapaz com 6 anos de idade e uma rapariga com 3 anos de idade.
Manteve residência na habitação anteriormente partilhada pelo casal e os filhos, assegura as lides domésticas, cuida da sua roupa e da horta e animais que cria para consumo.
Ao nível da ocupação dos tempos livres não tem por hábito frequentar cafés ou restaurantes ou consumir bebidas alcoólicas, convive com os filhos menores e dedica-se à pesca.
No OPC local, GNR de (…), não existem registos para além dos relativos ao presente processo.
A ofendida abandonou a habitação familiar, com os filhos, em setembro de 2020, indo residir para (…), para habitação previamente arrendada, onde até ao momento permanece e levou consigo todos os bens do casal, inclusive as lâmpadas e o cortinado da casa de banho, deixando-lhe uma colher.
A ofendida (...) confirma que o arguido não lhe presta o apoio económico que deveria e poderia, a fim de fazer face às necessidades dos respetivos filhos, mantendo-se os conflitos sobre este assunto quando comunicam. Refere a existência/manutenção de violência verbal por parte de (...) para com a sua pessoa, mas não teme agressões físicas ou outro tipo de violência por parte do mesmo.
Paralelamente referiu-nos nunca ter temido pela sua segurança ou dos seus filhos, e que estes, sobretudo o mais velho, de 6 anos de idade, gosta muito de estar com o pai na antiga habitação do casal, habituado ao contexto rural, com os animais e na horta.
O arguido não tem antecedentes criminais registados contra si.»

Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]:
«Para além dos que ficaram descritos não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente, não se provou que:
1. Em outubro de 2016, estava a ofendida grávida de dois meses da filha (...), no âmbito de uma discussão entre ambos, a ofendida tivesse dito ao arguido que quando se fosse embora ia levar a carrinha que era sua, e/ou que este tivesse respondido dizendo “não levas não” e/ou que ato contínuo a tivesse empurrado, desequilibrando-a, só não tendo a mesma caído porque conseguiu agarra-se à roupa que estava a estender.
2. Ao longo dos últimos cinco anos do relacionamento, na sequência das discussões entre ambos, era frequente o arguido, tomado pela raiva, partir objetos e atirar loiça para o chão, algumas dessas vezes na presença dos filhos.
3. Em março de 2020, por altura do primeiro confinamento, na sequência de uma discussão, o arguido se tivesse dirigido à ofendida e lhe tivesse desferido vários pontapés nas pernas e/ou que a tivesse agarrado pelo pescoço com uma das mãos e, fazendo força a tivesse empurrado contra um móvel da sala fazendo com que as molduras que ali se encontrassem caíssem no chão e se partissem.
Os factos não compreendidos em 2.1. (factos provados) ou 2.2 (factos não provados) ou são conclusivos e/ou mostram-se prejudicados pelos ali expendidos e/ou não revelam qualquer interesse para a boa decisão da causa criminal ou cível.»

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:
«No apuramento da factualidade julgada provada, o Tribunal formou a sua convicção nas declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento pelo arguido (...), o qual admitiu a prática dos factos que se deixaram narrados em 2.1, negando os restantes que lhe eram imputados na acusação.
Tais declarações foram relevantes, ainda, para apurar da sua atual situação familiar e socioeconómica cotejadas que foram com o teor do relatório da DGRSP que se mostra junto a fls. 285 a 286-verso dos autos; com o teor da cópia atualizada do certificado de registo criminal do arguido junta a fls. 284 e da qual nada consta contra o mesmo e com o depoimento da testemunha (…) (com 33 anos de idade, trabalhador agrícola e irmão do arguido), o que foi determinante, igualmente, para os factos que se deram como provados em 2.1.13º supra.
Aqui chegados, facilmente se conclui que o depoimento da ofendida (...) (solteira, com 50 anos de idade) apenas relevou, para este Tribunal, na parte em que o arguido, igualmente, a prática dos factos em questão.
Relativamente aos demais factos narrados pela referida ofendida, já os mesmos não foram confirmados por qualquer prova (pericial, documental ou testemunhal), pelo que, esta versão dos factos trazida aos autos pela ofendida não mereceu credibilidade para este Tribunal.
Quanto ao que se deixou provado em 2.1 supra (elemento subjetivo do tipo de ilícito), importa trazer à colação o que se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/02/1993, in, BMJ, 324º-620, onde se refere que “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infração. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência.” (nosso o destaque a negrito)
Na verdade, “o ânimo ou intenção, embora seja um ato interno revela-se pelos factos externos que precedem ou acompanham o facto criminoso” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/1988, citado pelo Prof. Carlos Lopes, in, Guia de Perícias Médico-Legais, pág. 294.
*
Os factos não provados assim foram considerados por não ter sido produzida qualquer prova (pericial, documental ou testemunhal) que permitisse concluir em sentido contrário evitando-se aqui repetir o por nós atrás expendido.
*
Relativamente à fundamentação de facto entendemos que o que se deixa dito basta para dar cumprimento integral ao disposto no art.º 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, já que como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/1997, in, CJSTJ, tomo I, pág. 172 e segs. “o artº 372.º do Código de Processo Penal não exige a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão-só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas serviram para formar a convicção do Tribunal, não impondo a lei a menção das inferências injuntivas levadas a cabo pelo Tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contra provas”, o que ainda assim foi feito por este Tribunal e quanto ao núcleo essencial dos factos em apreciação.»
û
Conhecendo.
Na análise das questões que acima se deixaram enunciadas, importa fazer anteceder as considerações de facto sobre as de direito e, no domínio destas últimas, dar prioridade aos aspetos da previsão jurídica sobre aqueles outros que dependem da sua verificação.

(i) A prova produzida em julgamento
A sua valoração
Os vícios prevenidos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal
Insurge-se o Recorrente contra a factualidade considerada como provada nos pontos 4, 9 e 11.
Porque vão contra o explicitado na motivação da decisão de facto – apenas terem sido considerados como provados os factos que se mostram coincidentes nas declarações do Arguido e no depoimento da Ofendida.

Vejamos se lhe assiste razão.
Com o propósito de bem expressar o nosso entendimento, impõe-se se precisem conceitos.
Em causa está o modo como pode sindicar-se a valoração da prova feita em 1.ª Instância, determinante para a fixação dos factos que aí se consideraram como provados e não provados – sindicância que pode fazer-se num primeiro momento fora e, depois, no âmbito dos vícios que devem ser aferidos perante o texto da decisão em causa [dito de outra forma, e respetivamente, no domínio da impugnação ampla da matéria de facto e no domínio da impugnação restrita da matéria de facto].

A impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto [ou aquela que se encontra fora do âmbito da previsão do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal], depende da observância dos requisitos consagrados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, ou seja:
«(...)
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(...)»
E ocorrendo impugnação da matéria de facto, com observância das regras acabadas de mencionar, o Tribunal, conforme se dispõe no n.º 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, «procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta de verdade e a boa decisão da causa
Encontramo-nos no domínio dos vícios do julgamento. No domínio do erro na “aquisição” da prova, que ocorre quando o Julgador perceciona mal a prova – porque o conteúdo dos depoimentos não corresponde ao que, efetivamente, foi dito por quem os prestou.
Erro do Julgador, no momento em que perceciona a prova, em que toma contacto com ela, e não no momento em que a avalia. Erro que pode viciar a avaliação da prova, mas que a antecede e dela se distingue.
Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, página 1131, em anotação ao artigo 412.º do Código de Processo Penal, afirma que «a especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (...)»; «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (...) mais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento».
«(...) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei nº 48/2007, de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado (...).».[[3]]
De onde é lícito concluir que «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».[[4]]
Ou seja, a gravação das provas funciona como “válvula de segurança” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações limite de erros de julgamento sobre a matéria de facto.

A sindicância da matéria de facto pode, ainda, obter-se pela via da invocação dos vícios da decisão [e não do julgamento] – impugnação restrita da matéria de facto –, de conhecimento oficioso, que podem constituir fundamento de recurso, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito [n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal].
Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, reportando-se aos fundamentos do recurso:
«1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
(...)»
Tais vícios, que se encontram taxativamente enumerados no preceito legal acabado de mencionar, terão de ser evidentes e passíveis de deteção através do mero exame do texto da decisão recorrida [sem possibilidade de recurso a outros elementos constantes do processo], por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher.
Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorreta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”[[5]]
A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão ocorre quando se deteta «incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.» [[6]]
O erro notório na apreciação da prova constitui «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.» [[7]]

Não pode incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efetuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência – valoração que aquele Tribunal é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código Penal.
Mas tal valoração é, também, sindicável.
O que equivale a dizer que a matéria de facto pode ainda sindicar-se por via da violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Neste preceito legal consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante[[8]], pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas exceções decorrentes da “prova vinculada” [artigos 84.º (caso julgado), 163.º (valor da prova pericial), 169.º (valor probatório dos documentos autênticos e autenticados) e 344.º (confissão) do Código de Processo Penal] e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova [artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, e artigos 125.º e 126.º do Código de Processo Penal] e o do “in dubio pro reo” [artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa].[[9]]
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e quem se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevante para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
«O ato de julgar é do Tribunal, e tal ato tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objetivos para uma formação lógico-intuitiva.
Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objetivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz refletir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objetivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objetiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a perceção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objetiváveis atinentes com a valoração da prova.
A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos atos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extratos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.
A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma perceção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjetivo, que se vincula o juiz à perceção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão [[10]]
E, seguindo tais ensinamentos, não resta senão concluir que não basta defender que a leitura feita pelo Tribunal da prova produzida não é a mais adequada, o que supõe que a mesma é possível, sendo, antes, necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e em sentido diverso, não consentiam semelhante leitura.

Posto isto, e de regresso ao processo, adiantamos, desde já, ter o Recorrente razão quanto à discrepância entre o raciocínio de quem julgou e a factualidade descrita como provada nos pontos 4, 9 e 11.
Disse e repetiu o Senhor Juiz, na parte da sentença destinada à motivação de facto, que o depoimento da Ofendida (...) da Luz apenas foi considerado na parte coincidente com as declarações do Arguido.
E acrescentou, para que dúvidas não restassem, que «Relativamente aos demais factos narrados pela referida ofendida, já os mesmos não foram confirmados por qualquer prova (pericial, documental ou testemunhal), pelo que, esta versão dos factos trazida aos autos pela ofendida não mereceu credibilidade
Todavia, o critério assim anunciado não foi respeitado aquando da fixação dos factos que constam como provados nos pontos 4 e 9.
Das declarações do Arguido – a cuja audição procedemos através do suporte informático onde constam – não decorre que o mesmo tenha, em ocasião alguma, referido que desferiu pancada na face da Ofendida que lhe provocasse a perda de sentidos ou a tumefação de um lábio.
Das declarações do Arguido também não decorre que o mesmo tenha, em ocasião alguma, referido que disse à Ofendida “não vales nada, fazes-me passar e qualquer dia levas um tiro nos cornos”.

E porque assim é, aceitando o critério de valoração da prova produzida em julgamento adotado por quem o realizou – perante a ausência que qualquer outro elemento probatório para além das declarações do Arguido e do depoimento da Ofendida –, não resta senão eliminar do elenco dos factos provados os aspetos acabados de mencionar.

Do ponto 11 dos factos provados consta que «Ao agir do modo supra descrito, o arguido quis maltratar física e psicologicamente a ofendida (...), como efetivamente maltratou, bem como pretendeu com tais expressões e condutas amedrontá-la, o que conseguiu, originando-lhe medo constante das suas reações, como medo daquilo que o arguido pudesse vir a fazer no futuro, contra a sua integridade física e a sua vida, bem como humilhando-a na sua honra e consideração.»
Mas provado foi também considerado, no ponto 13, que
- a Ofendida não teme agressões físicas ou de outro tipo de violência por parte do Arguido [parágrafo 15.º];
- a Ofendida nunca temeu pela sua segurança ou dos seus filhos [parágrafo 16.º].

Ou seja, deu-se simultaneamente como provado uma coisa e o seu contrário – (i) que a Ofendida, em consequência do comportamento do Arguido tinha constantemente medo das reações deste, bem como do que o mesmo lhe pudesse fazer no futuro, contra a sua integridade física e vida e que (ii) que a Ofendida não teme qualquer tipo de violência por parte do Arguido e que nunca temeu pela sua segurança ou pela segurança dos seus filhos em virtude do comportamento do Arguido.
A contradição é manifesta entre estes factos.
E sanável, face ao conteúdo das declarações da Ofendida – de onde não decorre o temor em causa – e do seu comportamento perante o Arguido – insultando-o no decurso das discussões que mantinham e deixando-lhe apenas uma colher na casa onde ambos residiram e após dela sair, com os filhos.
Prevalecerá, pois, a falta de medo da Ofendida e o ponto 11 dos factos provados deve ser alterado em conformidade.

Mas não ficam por aqui os reparos à matéria de facto.
O crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal, na sua vertente de ofensas dirigidas ao cônjuge, visa prevenir e reprimir a violência no seio da família, que se considera – e bem – inadequada, grave e perniciosa em termos individuais e coletivos.
O recato tradicionalmente associado à família não pode, nem deve, constituir um obstáculo à tutela do direito penal, desde logo por ser menos gravosa que a violência praticada fora dessa esfera – entre familiares e, nomeadamente, entre cônjuges, existe dever acentuado de respeito cuja violação, pelas consequências que acarreta, exige intervenção.
A ratio do indicado tipo de crime não se encontra, no entanto, na proteção da comunidade familiar ou conjugal, mas na proteção da pessoa humana, enquanto membro de um concreto e determinado agregado familiar.
E o tipo de crime em questão abarca todos os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a dignidade da pessoa humana, que se revelam em maus-tratos físicos ou psíquicos, abrangendo, as ofensas corporais, os castigos corporais, as ameaças, as humilhações, as provocações, as pequenas privações de liberdade e de movimentos e as ofensas de cariz sexual.
O bem jurídico protegido é plural e complexo, visando essencialmente a saúde – física e psíquica e/ou mental –, mas não deixando de incluir a proteção da dignidade humana, no âmbito de uma específica relação interpessoal.

A reiteração de comportamentos que podem integrar a prática do crime de violência doméstica coloca a questão – comum a outros tipos legais (v.g. crimes sexuais, de tráfico de droga, de lenocínio) –, difícil e quase arbitrária, de proceder à contagem do número de crimes.
«A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.
Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual “diminuição da culpa pelo facto”, um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável”]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.
O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma “unidade resolutiva”, realidade que se não deve confundir com “uma única resolução”, pois que, “para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação” (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal Anotado” de P. P. Albuquerque).
Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma[[11]]
De forma pacífica, o crime de violência doméstica tem sido doutrinalmente definido como crime habitual.
«
Crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual».[[12]]
«O crime habitual, no sentido que à expressão confere a atual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de atos “reiterados". Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só ato, mas de uma multiplicidade deles - eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os atos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados - eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo. O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por "atos reiterados". (...) Apenas se pode admitir a "consumação por atos reiterados" (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime. (...) Como a doutrina indica, os crimes "habituais" (seja qual for o entendimento a dar à "habitualidade" do crime, o mesmo é dizer, à "reiteração" dos atos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de atos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles[[13]]
A tutela do direito penal, face ao disposto no n.º 1 do artigo 30.º do respetivo compêndio, reporta-se, por regra, a atos isolados, dando origem a que cada ato configure um crime autónomo.
Situações ocorrem, no entanto, em que se impõe prevenir acontecimentos distintos. Para o que se configuraram, doutrinariamente, construções tendentes a punir num mesmo crime variados atos de execução de um ou de distintos tipos consagrados na lei.
No artigo 119.º do Código Penal, que se reporta ao início do prazo de prescrição do procedimento criminal, acolheram-se algumas das referidas construções – as do crime permanente [na alínea a) do seu n.º 2], do crime continuado [na alínea b) do seu n.º 2], do crime habitual [na alínea b) do seu n.º 2]. E no n.º 3 do artigo 19.º do Código de Processo Penal reconhecem-se os crimes que se consumam por atos sucessivos ou reiterados, também designados por crimes prolongados, de trato sucessivo ou exauridos.
Os crimes habituais não podem deixar de se considerar como “modalidade” dos crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo.
E em crimes desta natureza, a incidência do tempo na unidade resolutiva que os caracteriza «não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas (…).
É decisiva a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente e que funda o critério de definição da unidade ou pluralidade de infrações , escreve o Prof. Eduardo Correia , in Unidade e Pluralidade de Infrações , pág.96 .
A pluralidade de atos, prossegue aquele penalista , in op. cit. , pág. 97 , só não determina uma pluralidade de ações típicas na medida em que cada uma delas exprime um puro explodir ou “ déclancher “ , mais ou menos automático , da carga volitiva correspondente ao projeto criminoso inicial , ensinando as regras da psicologia que se entre os factos medeia um largo espaço de tempo os últimos da cadeia respetiva já não são a mera descarga dos primeiros, exigindo um novo processo deliberativo
[[14]]
Neste mesmo sentido, e mais recentemente se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça – acórdão citado na nota de rodapé 11 –, ao considerar que «a interrupção dos atos criminosos durante um ano não autoriza a sua unificação».

Posto isto, e quanto aos crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo,
- é seu requisito processual que o tipo incriminador suponha ou preveja a reiteração e que esta revele uma persistência da resolução criminosa, encerrando uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respetiva ilicitude;
- são seus requisitos substantivos positivos a homogeneidade da conduta do agente, a sua repetição no tempo, a violação do mesmo tipo de crime ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico e, em caso de crimes contra as pessoas, a identidade da vítima;
- é seu requisito substantivo negativo a ocorrência de hiato ou hiatos significativos de tempo entre as diversas condutas, de tal forma que coloquem em crise, no âmbito da apreciação dos factos, que a repetição das condutas se deva a uma efetiva tendência ou hábito de vontade criminosa do agente.

E quanto ao crime de violência doméstica – na sua vertente de ofensas dirigidas ao cônjuge –, não resta senão concluir que, enquanto crime de reiteração, abrange a prática de uma multiplicidade de condutas, reiteradas (e não sucessivas) ao longo de determinado período de tempo (sem hiatos significativos), que se praticaram na pessoa do cônjuge, ainda que de natureza diversa, desde que todas elas se tenham reportado a maus-tratos, físicos ou psíquicos.
Com o que se pretende acentuar, convocando as palavras de Plácido Conde Fernandes que «É o estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante.»[[15]]

De regresso ao processo constatamos que durante cerca de 10 (dez) em que o Arguido e a Ofendida viveram maritalmente ocorreram discussões entre ambos. E que tais desentendimentos se acentuaram nos últimos 5 (cinco) anos de vivência em comum – a separação do casal ocorreu no dia 19 de setembro de 2020.
No decurso dessas discussões, o Arguido dizia à Ofendida “puta dum cabrão” e “levas um soco nos cornos” e esta apelidava-o de “cabrão”, “filho da puta” e “ranhoso” – pontos 1, 3 e 5 dos factos provados.

Semelhante descrição de acontecimentos, dada a indefinição temporal que encerra, não consente qualificação jurídica – conforme resulta do que acima se disse, sem a certeza de que entre estas brigas não ocorreram hiatos temporais superiores a 1 (um) ano, não é possível a certeza indispensável a afirmar o crime de violência doméstica ou, em alternativa, os crimes de injúria e de ameaça.
Semelhante descrição factual também não permite o contraditório, assim impossibilitando qualquer defesa.

E considerando a previsão do artigo 152.º do Código Penal, «a exigência de uma delimitação factual que permita a subsunção àqueles conceitos genéricos é uma preocupação quotidiana de quem acusa, defende e julga, que não pode ser desvirtuada por abusivas e, portanto, inaceitáveis, generalizações.
(…) em termos práticos, maus-tratos significa o exercício de violência. Mas o conceito necessita de ser escalpelizado e tem sido intensamente objeto de análise na jurisprudência e doutrina, considerando os problemas que suscita em termos de definição do tipo e repetição de atos de violência praticados.
“O tipo apresenta-se assim deliberadamente fragmentário, no que respeita à definição das condutas penalmente relevantes, pois prescreve na realidade que não são todos os maus tratos que são passíveis de ativar a reação penal, mas tão só aqueles infligidos de modo intenso ou reiterado. “… a comissão de crime de maus tratos a cônjuge implica a prática reiterada ou minimamente repetida de atos de violência, ou a prática de uma conduta violenta singular, desde que a mesma se revista de específicos foros de gravidade”.[[16]]
Assim, neste tipo de crimes onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (maus-tratos, violência doméstica, tráfico de droga), a precisa indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento. E é, na sequência, o cerne do direito de defesa.
Se a alegação factual – em qualquer imputação penal - não pode ser facilitada pelo uso de formas gerais, imprecisas, sem individualização de cada um dos factos, com utilização de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras”, neste tipo de crime a exigência é muito maior dada a amplitude do tipo penal.

Aliás, a jurisprudência do STJ neste campo é clara e insofismável, quer a propósito do crime de tráfico de droga, quer a propósito de crimes de maus-tratos e violência doméstica, sempre onde se pretende ultrapassar a dificuldade de prova de múltiplos factos pela imputação genérica e, logo, por presunção. Porque a isso se resume esta prática: acusa-se por presunção factual, pretendendo-se a condenação por presunção factual.

Assim, só de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de STJ:
5 - Não são "factos" suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado ("procediam à venda de produtos estupefacientes", "essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos", "a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína", "utilizavam também "correios", "utilizavam também crianças", etc.).
6 - As afirmações genéricas, contidas no elenco desses "factos" provados do acórdão recorrido, não são suscetíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efetivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como "factos" inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-05-2004 - Proc. 04P908, Rel. Cons. Santos Carvalho);
I - O princípio ou cláusula geral estabelecido no n.º 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objeto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2007 - Proc. 06P4341, rel. Cons. Oliveira Mendes);
VI – Não se podem considerar como “factos” as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são “factos” suscetíveis de sustentar uma condenação penal - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Acórdão do STJ de 15-11-2007 - Proc. 07P3236, rel. Cons. Santos Carvalho);
III - Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.
IV - Por isso, será de ter por não escrita aquela imputação genérica (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-04-2008 (Proc. 07P4197, rel. Cons. Raul Borges);

XX - Resultando da matéria de facto apurada apenas que (aqui se excluindo factualidade abrangida por anterior condenação judicial), após 03-11-2003, o arguido, que havia estado preso e voltara a viver com a mulher e as filhas, «continuou a consumir bebidas alcoólicas e, por algumas ocasiões, em datas não apuradas», agrediu aquela «com bofetadas» e que com «frequência era chamada a Polícia àquela residência», impõe-se concluir que a descrição da conduta do arguido considerada provada se mostra algo indefinida, vaga e genérica, tanto em relação ao tempo e ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das agressões e respetivas motivação e consequências, não se encontrando esclarecido o número de ocasiões em que tal ocorreu, a quantidade de bofetadas em causa ou qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidas, ao local do corpo da ofendida atingido e às suas consequências, em termos de lesões corporais ou de efeitos psíquicos, também se desconhecendo, além do contexto de consumo de álcool, a motivação da conduta em causa, sendo certo que não se encontra assente qualquer facto integrador do elemento subjetivo constitutivo do tipo legal.
XXI - Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insuscetível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. De 06-05-2004, Proc. N.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. N.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. N.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. N.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. N.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. N.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. N.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. N.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. N.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. N.º 4197/07 - 3.ª. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-07-2008 - Proc. 07P3861, Rel. Cons. Raul Borges)[[17]]

Isto posto, e não obstante ter o Arguido confessado as discussões supra mencionadas, no decurso das quais dizia à Ofendida “puta dum cabrão” e “levas um soco nos cornos”, a impossibilidade de as localizar temporalmente no período compreendido entre 19 de setembro de 2010 e 19 de setembro de 2020, impede que se levem em conta para se definir a conduta em questão nos presentes autos.
Pelo que hão-de considerar-se como não escritos os factos dados como provados no ponto 5.

Depurada a matéria de facto nos termos acabados de explicitar, temos como provado:
«1. O arguido (...) e (...) mantiveram uma relação amorosa desde há cerca de 10 anos e até 19.09.2020, período durante o qual viveram maritalmente em (…).
2. De tal relacionamento nasceram dois filhos, (...), sendo que a ofendida tinha já uma filha de outra relação, (…), fazendo todos parte do mesmo agregado familiar.
3. Durante o relacionamento a ofendida tomava conta dos filhos, sendo o arguido quem trabalhava, em virtude de tal e por via da falta de dinheiro eram frequentes as discussões entre ambos, sendo que, tal situação piorou substancialmente nos últimos cinco anos.
4. No dia 19.11.2017, tinha a filha (...) cerca de um mês e meio, na sequência de uma discussão entre ambos acerca da necessidade de compra de uma cómoda para guardar a roupa da filha e a que o arguido se recusou, o arguido levantou-se da cadeira e desferiu com a mão aberta uma chapada na face esquerda da ofendida.
6. Em março de 2020, após mais uma discussão e quando eram cerca das 21h30/22h00, o arguido agarrou a ofendida pelo braço e meteu-a na rua.
7. Ao verem a mãe ser posta na rua, (…), (...) e (…) foram atrás dela, acabando todos por se dirigirem para casa da comadre da ofendida, de nome (...), madrinha da filha (...), onde ficaram quatro dias.
8. Findos esses quatro dias, (...) disse à ofendida que não os podia ter lá mais tempo e, não tendo mais para onde ir, a ofendida viu-se obrigada a pedir ao arguido para voltar para casa com os filhos, ao que aquele acedeu.
9. A situação entre ambos esteve calma cerca de quinze dias, mas depois voltaram as discussões por causa do dinheiro, sendo frequente o arguido chamar à ofendida “puta dum cabrão” ou dizer-lhe “cala-te senão levas um soco”, situação que se manteve até ao dia 19.09.2020, dia em que a ofendida saiu de casa com os seus filhos.
10. Todas as situações descritas ocorreram no interior da casa de família de ambos sita em (…) e tendo como testemunhas apenas os filhos.
11. Ao agir do modo supra descrito, o arguido quis maltratar física e psicologicamente a ofendida (...), como efetivamente maltratou, bem como humilhá-la na sua honra e consideração.
12. O arguido agiu consciente, voluntaria, livre e deliberadamente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Mais se apurou que:
13. (…)»

Por fim, e esgotando a cognição deste Tribunal em relação à matéria de facto, impõe-se deixar expresso que do exame da sentença recorrida – do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo – não se deteta a existência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410.º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Efetivamente, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal “a quo”, sendo o texto da decisão em crise revelador de coerência e de respeito pelas regras da experiência comum e da prova produzida.
E do texto da decisão recorrida decorre, ainda, que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e que nele não se deteta incompatibilidade entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – artigo 410.º, nº 3, do Código de Processo Penal.

(ii) Da subsunção dos factos ao direito
Perante os factos agora considerados como provados, no contexto de um relacionamento com a longevidade já assinalada, e de conflito que encontra a sua génese nas dificuldades económicas sentidas por uma família com cinco elementos onde apenas um deles providencia pelo suporte económico de si próprio e dos restantes, não vislumbramos a persistência e a gravidade indispensáveis a afirmar a culpa agravada exigida pelo crime de violência doméstica.
Não vislumbramos, também, que o comportamento do Arguido tenha surgido e se haja concretizado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade.
Dito de outra forma, a conduta do Arguido que se apurou nos presentes autos não revela situação de superioridade decorrente de vivência conjugal, nem aproveitamento dela, nem é apta a ofender a saúde física, psíquica, emocional ou moral da Ofendida, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.

E assim sendo, os comportamentos do Arguido que ficaram provados são suscetíveis de integrar a prática de um crime de ofensa à integridade física, um crime de ameaça e um crime de injúria, respetivamente previstos e punidos pelos artigos 143.º, n.º 1, 153.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, todos do Código Penal.

1. Quanto ao crime de ofensa à integridade física
Trata-se de ilícito previsto e punível pelo artigo 143.º do Código Penal.
Considerando o disposto no artigo 49.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e que no n.º 2 do artigo 143.º do Código Penal se consagra que o procedimento criminal depende de queixa, o crime de ofensa à integridade física simples tem natureza semipública.
O que significa que o Ministério Público só tem legitimidade para promover o processo penal se e quando a vítima do crime ou quem a represente apresentar queixa – é o que resulta do disposto no n.º 1 do artigo 49.º do Código de Processo Penal.
E para esse efeito, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.

Diz-nos o Professor Figueiredo Dias [[18]] que a «queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (…)».
E ainda que «No que toca à forma da queixa, tanto o CP como o CPP são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto …
Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona[[19]]
Convirá, ainda, ter presente ser entendimento dominante que «o conhecimento do facto e dos seus autores, referido no artigo 115.º do C.P., é, manifestamente, um simples conhecimento naturalístico, e não judicial, pois estas disposições legais reportam-se a um momento em que não existe ainda ação penal pendente.».[[20]]
Daí que a jurisprudência afirme que o que releva no exercício do direito de queixa, para que o Ministério Público instaure o respetivo inquérito e exerça a ação penal, no caso dos crimes semipúblicos, é o facto suscetível de integrar um crime, sendo este naturalístico, e não judicial.[[21]]

Os factos que o indiciam o crime de ofensa à integridade física simples ocorreram no dia 19 de novembro de 2017.
Da compulsa dos autos constatamos não ter sido apresentada queixa nos seis meses posteriores a esta data – a queixa que lhes deu origem foi formulada no dia 14 de dezembro de 2020.
Mostrando-se extinto o direito de queixa, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 115.º do Código Penal, não resta senão concluir pela ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal – artigos 48.º e 49.º do Código de Processo penal e artigo 143.º, n.º 2 do Código Penal.

Circunstância que impede o prosseguimento dos autos para o conhecimento do crime em questão.

2. Quanto ao crime de ameaça
Diz-nos o artigo 153.º do Código Penal, no seu n.º 1 que «Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até cento e vinte dias

São elementos constitutivos do crime de ameaça: (i) o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro, dependente da sua vontade, (ii) que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor (iii) e que esse anúncio seja adequado a provocar na pessoa a quem se dirige medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
Tratando-se de um crime de perigo concreto e não de um crime de resultado, o crime de ameaças apenas supõe que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação, não exigindo a prova de que o resultado se tenha verificado no concreto ameaçado.

Segundo o Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Tomo I, páginas 343 e seguintes, são três as características essenciais do conceito de ameaça: o anúncio de um mal, o carácter futuro do mesmo e a sua ocorrência dependente da vontade do agente.
Olhando para a expressão que o Arguido dirigiu à sua companheira, surge como evidente que o soco que lhe prometeu seria para desferir no momento e se esta não se calasse.
Não se projetando no futuro o soco prometido pelo Arguido, nem dependendo de si próprio desferi-lo, não se verifica a totalidade dos elementos constitutivos do crime de ameaça.
Pelo que não pode o Arguido ser punido pela sua prática.

2. Quanto ao crime de injúria
Este crime, que encontra previsão e punição no artigo 181.º do Código Penal, tem natureza particular.
O seu procedimento depende de queixa – artigos 113.º, n.º 1 e 117.º do Código de Processo Penal –, de constituição de assistente [artigo 68.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal] e de acusação particular [artigos 50.º, n.º 1 e 285.º, n.º 1 do Código de Processo Penal].
Esta tramitação não foi observada nos autos.

Pelo que também aqui teremos que concluir pela ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal – artigos 48.º e 49.º do Código de Processo penal e artigo 143.º, n.º 2 do Código Penal.

Circunstância que impede o prosseguimento dos autos para o conhecimento do crime em questão.

Aqui chegados, e porque sabemos da existência de jurisprudência que conhece dos crimes em que se decompõe a violência doméstica, quando não procede, independentemente da apresentação de queixa, impõe-se deixar expresso que rejeitamos a subversão das regras processuais em vigor em prol da afirmação de uma justiça centrada apenas na vítima do crime.

Por fim, resta-nos uma palavra para a indemnização imposta ao Arguido, ao abrigo do disposto no artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.
Não pode manter-se, porque não foi cometido o crime de violência doméstica que a justificava.

III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se
1. relativamente à matéria de facto considerada como provada,
- alterar ponto 4, por forma a que dele passe a constar «No dia 19 de novembro de 2011, tinha a filha (...) cerca de um mês e meio, na sequência de uma discussão entre ambos acerca da necessidade de compra de uma cómoda para guardar a roupa da filha e a que o Arguido se recusou, este levantou-se da cadeira e desferiu com a mão aberta uma chapada na face esquerda da Ofendida.»
- alterar ponto 9, por forma a que dele passe a constar «A situação entre ambos esteve calma cerca de quinze dias, mas depois voltaram as discussões por causa do dinheiro, sendo frequente o Arguido chamar à Ofendida “puta dum cabrão” ou dizer-lhe “cala-te senão levas um soco”, situação que se manteve até ao dia 19 de setembro de 2020, dia em que a Ofendida saiu de casa com os seus filhos.»
- alterar o ponto 11, por forma a que dele passe a constar «Ao agir do modo supra descrito, o Arguido quis maltratar física e psicologicamente a Ofendida (...), como efetivamente maltratou, bem como humilha-la na sua honra e consideração
- eliminar o ponto 5;
2. absolver o Arguido (...) da prática do crime de violência doméstica que lhe é imputado nos presentes autos
3. não condenar o Arguido (...) ao pagamento de indemnização à Ofendida (...) da Luz.

Sem tributação.
û
Évora, 2021 setembro 21
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)


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(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)


______________________________________________
(Renato Amorim Damas Barroso)
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[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.

[2] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].

[3] No mesmo sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 17.ª Edição, páginas 965 e 966.

[4] Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de dezembro de 2005 e de 9 de março de 2006, processos n.º 2951/05 e n.º 461/06, respetivamente, acessíveis in www.dgsi.pt.

[5] Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª Edição – 2008, Editora Reis dos Livros, página 72 e seguintes.

[6] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 75.

[7] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 77.

[8] O julgamento surge, na estrutura do processo penal, como o momento de comprovação judicial de uma acusação – é o momento do processo onde confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa.

[9] O princípio in dubio pro reo, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido, constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal.

Dito de outra forma, o princípio in dubio pro reo constitui imposição dirigida ao Juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.

[10] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, relatado pelo Senhor Conselheiro Rui Moura Ramos – acessível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.

[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de novembro de 2012 – Relator: Santos Carvalho – processo n.º 862/11.6TAPFR.S1 – acessível em www.dgsi.pt/jstj

[12] Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, página 314.

[13] Lobo Moutinho, in “Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português”, página 620, nota 1854.

[14] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de julho de 2006 – processo 06P1709, acessível em www.dgsi.pt/jstj

[15] In “Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal” – Revista do CEJ, n.º 8, 1.º semestre, página 307.

[16] Ricardo Bragança de Matos, in “Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo na tutela da vítima”, RMP, ano 27, Julho-Setembro 2006, n.º 107, págs.100-101).

[17] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17 de setembro de 2013, proferido no processo n.º 97/11.8PFSTB.E1 – acessível em www.dgsi.pt/jtre

[18] “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 3.ª Reimpressão, páginas 665 e 675.

[19] Neste sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 28 de junho de 2011, proferido no processo n.º 1269/07.5GDSTB.E1, do Tribunal da Relação do Porto, de 20 de janeiro de 2010 e de 23 de setembro de 2015, proferidos, respetivamente, nos processos n.º 445/08.8PHVNG.P1 e n.º 448/12.8GEGDM.P1, e do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10 de julho de 2014, proferido no processo n.º 525/2.5GAAMR.G1 – todos acessíveis em www.dgsi.pt

[20] Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado e Comentado, 13ª Edição, página 391.

[21] Cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 7 de junho de 2000, proferido no processo nº 40233, e do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25 de outubro de 2004, proferido no processo nº 1679/04, e acessíveis em www.dgsi.pt