Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
159/19.3T9FAR-C.E3
Relator: JOÃO LUÍS NUNES
Descritores: REJEIÇÃO DO RECURSO
DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 12/21/2021
Votação: PRESIDÊNCIA
Texto Integral: S
Sumário: Tendo em conta a confirmação da ilustre mandatária dos arguidos de que tinha disponibilidade para as datas agendadas para as diligências, o despacho em causa em nada afetou os direitos dos arguidos, limitando-se a regular o andamento dos autos e, nessa medida, haverá que ser qualificado como despacho de mero expediente, pelo que do mesmo não é admissível recurso.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 159/19.3T9FAR-C.E3
Reclamação: artigo 405.º do Código de Processo Penal
Reclamantes: (…), (…), (…) e (…)

I. Relatório
No âmbito do processo n.º 159/19.3T9FAR, a correr termos no Juízo de Instrução Criminal de Portimão-Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, no qual são arguidos (…), (…), (…) e (…), foi proferido o seguinte despacho (os reclamantes aludem a que o despacho foi proferido em 14 de outubro de 2021, mas no despacho que não admitiu o recurso refere-se que foi proferido em 13 de outubro de 2021: no entanto, face à transcrição do despacho feito pelos reclamantes não parece oferecer dúvidas que está em causa o despacho infra):
“Do agendamento das diligências judiciais
Para inquirição da testemunha (…), audição dos arguidos e realização de debate instrutório (sendo esta a ordem dos actos a realizar) decido designar os dias 12 de Novembro de 2021, pelas 10:00 horas, com possibilidade de continuação no dia 19 de Novembro, pelas 10:00 horas, ficando desde já agendadas as duas datas para o efeito”.

Os arguidos interpuseram recurso do transcrito despacho.
Porém, por despacho de 12 de novembro de 2021 o recurso não foi admitido.
É do seguinte teor este despacho:
“Vieram os arguidos apresentar recurso do despacho que procedeu ao agendamento das diligências instrutórias e do debate instrutório.
*
Cumpre decidir da admissibilidade do presente recurso.
*
De harmonia com o disposto no artigo 400.º, n.º 1, a), do C.P.P., não é admissível a interposição de recursos que incidam sobre despachos de mero expediente, sendo que a jurisprudência e a doutrina entendem que tal norma é aplicável a todos os despachos que não decidam ou não bulam com direitos, liberdades ou garantias dos sujeitos processuais.
O critério prático é assim saber se o despacho em causa coloca em crise o exercício, por banda dos arguidos, de algum direito material ou processual.
No segmento do despacho em causa procedeu-se ao agendamento das diligências instrutórias e do debate instrutório.
Em momento anterior a Ilustre Advogada dos arguidos veio indicar datas nas quais estaria, alegadamente impedida, não tendo logrado juntar despacho judicial a comprovar qualquer marcação.
Em momento posterior não veio a Ilustre Advogada juntar qualquer despacho judicial a comprovar o agendamento de qualquer diligência para os dias designados pelo Tribunal.
Acresce que veio posteriormente a Ilustre Advogada confirmar que tem disponibilidade para ambas as datas, não tendo qualquer impedimento para o efeito.
Ou seja, vêm os arguidos recorrer de um despacho que agendou diligências para datas em que todos os intervenientes podem estar presentes. É notório que não há lugar à aceitação do recurso pois nem tão pouco o despacho é de algum modo desfavorável aos arguidos, não existindo qualquer decisão proferida contra os arguidos. Ou seja, não estamos sequer perante um despacho que subsuma à norma de legitimidade do disposto no artigo 401.º, n.º 1, b), do C.P.P..
Acresce que a questão suscitada pela Defesa se afigura inútil na medida que face à greve dos Srs. Oficiais de Justiça e perante a inexistência de serviços mínimos não foi possível realizar qualquer diligência no dia de hoje.
Pelo exposto, decido indeferir, por inadmissibilidade legal, o recurso apresentado”.

Notificados deste despacho, dele vieram os arguidos reclamar, nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal.
Concluíram assim a reclamação (transcrição):
“1- Os arguidos deram entrada de recurso que consta de fls. 13045 e seguintes dos autos.
2-Por despacho, que abaixo se transcreve veio o Mmo. Senhor Juiz de Instrução Criminal rejeitar o recurso interposto.
3- Ora com tal indeferimento não se conformam os aqui Recorrentes. Atenta a inconformidade dão entrada da presente reclamação.
4-Entendem os Recorrentes que o recurso objecto do presente despacho não é de mero expediente não se aplicando, assim, o disposto na alínea a), nº. 1, do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
5-Tal resulta da evidência de serem colocados em crise direitos liberdades e garantias e, nessa medida as mais elementares garantias de defesa dos arguidos.
6- O despacho em apreço colide directamente com o Direito ao recurso – direito constitucionalmente consagrado.
7 -Colide, ainda, com o Direito do arguido a escolher o seu defensor.
8- Implica directamente com uma defesa efectiva e plena.
9-As questões apontadas para a não admissão de recurso não servem para fundamentar a decisão de não admitir o recurso, tudo nos termos constantes das alegações e conclusões de recurso apresentadas.
10 - Os arguidos agiram em tempo e para tal têm legitimidade.
11-Resulta evidente a incorrecta interpretação do disposto nos artigos 400.º e 401.º do CPP.
12-Colide com o artigo 61.º do CPP.
13-Viola o Princípio da legalidade e de uma defesa plena e efectiva.
14-Menospreza o direito ao recurso, que atenta a sua relevância tem consagração Constitucional.
15-Atenta contra o disposto nos artigos 18.º, 20.º e 32.º da CRP.
16-Assim, e sem necessidade de mais é de revogar o despacho proferido, admitindo-se a presente reclamação, com e para todos os efeitos legais.
Termos em que, sempre com o melhor e mais douto suprimento de Vª. Exª. deverá a presente reclamação ser admitida, com todos os efeitos legais”.

II. Cumpre apreciar e decidir
A matéria a atender é a que resulta do relato supra, que aqui se tem por reproduzida.
E dessa matéria resulta desde logo que por despacho do exmo. juiz de instrução criminal foram designadas determinadas datas para a inquirição de uma testemunha, audição dos arguidos, aqui reclamantes e realização do debate instrutório.
Os arguidos interpuseram recurso desse despacho, mas o recurso não foi admitido.
Para tanto, o exmo. juiz de instrução criminal arrimou-se em dois fundamentos essenciais:
(i) por um lado, está em causa um despacho de mero expediente, pelo que do mesmo não é admissível a interposição de recurso;
(ii) por outro, a ilustre mandatária dos arguidos, aqui reclamantes, confirmou que tinha disponibilidade para as datas indicadas, não tendo qualquer impedimento para o efeito, pelo que o despacho não é desfavorável aos arguidos.
Em relação a este segundo fundamento – ao fim e ao resto que a ilustre mandatária dos arguidos confirmou que tinha disponibilidade para as datas agendadas para as diligências – cabe salientar não se retira da leitura da reclamação qualquer discordância quanto a esta afirmação fáctica.
Além disso, dos elementos constantes do processo eletrónico, com base nos quais é proferida a presente decisão, também nada se retira que contrarie a referida afirmação fáctica, pelo que a temos que ter por assente.
Analisemos então, de per si, cada um dos fundamentos.

1. Quanto à invocação de que se trata de um despacho de mero expediente
Como é consabido, como princípio geral é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não esteja prevista na lei (artigo 399.º do Código de Processo Penal).
Contudo, no artigo 400.º do referido compêndio legal excecionam-se várias decisões que não admitem recurso.
Entre tais decisões encontram-se os despachos de mero expediente [artigo 400.º, n.º 1, alínea a)].
E quanto à definição destes estabelece o artigo 152.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal, que «[o]s despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo sem interferir no conflito de interesses entre as partes».
Estão, pois, em causa despachos que não decidem de qualquer questão de forma ou de fundo, limitando-se a regular o andamento do processo.
Como fazem notar Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 3.ª Edição, Coimbra Editora, página 302), os despachos de mero expediente compreendem:
“a) os despachos internos, proferidos no âmbito das relações hierárquicas estabelecidas com a secretaria, de que são exemplo as ordens que o juiz a esta dirija (cfr. Artigo 157-2);
b) os despachos que digam respeito à mera tramitação do processo, não tocando em direitos das partes ou de terceiros, de que são exemplo os que se limitam a fixar datas para a prática de atos processuais (artigos 151.º, n.ºs 1 e 3, 591.º-2, 478.º-1 e 507.º-1)”.
Neste mesmo entendimento se parece mover Paulo Pinto de Albuquerque, quando escreve (Comentário do Código de Processo Penal à Luz da CRP e da CEDH, 3.ª Edição, Universidade Católica Portuguesa, pág. 1013): [o]s despachos de mero expediente são actos processuais do juiz pelos quais ele regula o andamento normal do processo, sem que se pronuncie sobre o mérito da causa ou de quaisquer incidentes ou questões interlocutórias suscitadas pelos outros sujeitos processuais. Contudo, se os despachos de mero expediente afectarem os direitos dos sujeitos processuais, eles são recorríveis, por força dos artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da CRP”.
Ou ainda, como de modo assertivo escreve Pereira Madeira (Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição, Almedina, 1197), [o]s despachos de mero expediente, porque se limitam, em regra, a ordenar os termos do processo, deixando intocados os direitos dos sujeitos processos a que respeitam, são irrecorríveis: Não faria sentido, e falharia, mesmo, interesse em agir, para poder ser atacada, em recurso, uma decisão inócua para com os direitos dos intervenientes processuais.
Tais despachos, tanto podem ser de caráter meramente interno por dizerem respeito às relações hierárquicas entre o juiz e a secretaria, (como será o caso, por exemplo, do despacho que ordena a conclusão do processo ao juiz), como dizerem respeito apenas à tramitação, em qualquer caso, sem afectação alguma dos direitos ou deveres processuais das partes, (por exemplo, o despacho que designa o dia para julgamento ou o que manda prestar informação inócua sobre um acto constante do processo, como por exemplo de que determinada pessoa esteve ou não, presente em audiência”.

No caso, como se deixou assinalado, está em causa o despacho em que foram designadas determinadas datas para a inquirição de uma testemunha, audição dos arguidos, aqui reclamantes, e realização do debate instrutório.
E como também se deixou assinalado, no despacho reclamado consta, além do mais, que a ilustre mandatária confirmou, posteriormente, “(…) que tem disponibilidade para ambas as datas, não tendo qualquer impedimento para o efeito”, sem que tal afirmação fáctica seja posta em causa na reclamação.
Ora, se assim é, como se entende, no concreto circunstancialismo fáctico o despacho em nada belisca quaisquer direitos dos arguidos já que o mesmo se destina unicamente a regular o normal andamento do processo, ou, dito de outro modo, no dizer do n.º 4 do artigo 142.º do Código de Processo Civil, o despacho em causa destina-se a “prover ao andamento regular do processo sem interferir no conflito de interesses entre as partes».
Por isso se conclui, mais uma vez, que tendo em conta a confirmação da ilustre mandatária dos arguidos de que tinha disponibilidade para as datas agendadas para as diligências, o despacho em causa em nada afetou os direitos dos arguidos, limitando-se a regular o andamento dos autos e, nessa medida, haverá que se qualificado como despacho de mero expediente, pelo que do mesmo não é admissível recurso.
Porém, ainda que assim se não entendesse, com outro fundamento, que se analisará seguidamente, o recurso também não podia ser admitido.

2. Do fundamento da legitimidade e interesse em agir para a interposição do recurso
Sob a epígrafe “Legitimidade e interesse em agir”, dispõe o artigo 401.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, que têm legitimidade para recorrer o arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas; e de acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.
Como assinala Pereira Madeira (obra citada, pág. 1214), o preceito enfatiza(…) dois pressupostos processuais em matéria de recursos penais: a legitimidade e o interesse em agir. Trata-se, em suma, de, por esta via, assegurar uma ligação do recorrente ao objecto do processo por forma a permitir que o desfecho do litígio satisfaça um interesse concreto assente ou relacionado directamente com o concreto objecto da causa. No fundo, uma garantia de economia processual de modo a impedir, nomeadamente, que o tribunal seja chamado a pronunciar-se sobre questões académicas (…).
E mais adiante (pág. 1215): “O arguido e o assistente, ao invés do que acontece com o Ministério Público, têm a sua legitimidade para o recurso confinada às decisões «contra eles proferidas». Só quanto a essas terão legitimidade para o recurso, embora devendo ainda preencher outros requisitos, nomeadamente (…) o pressuposto processual de interesse em agir”.
Ora, no caso em apreço, se a ilustre mandatária dos arguidos acabou por confirmar que tinha disponibilidade para as datas agendadas para as diligências, tal significa que a decisão não foi proferida contra eles e, por consequência, não têm legitimidade para interpor recurso.

E de igual modo não têm interesse em agir.
Este tem sido definido na doutrina e na jurisprudência como o interesse em recorrer ao processo porque o direito do requerente foi afetado e necessita de tutela (vide, por todos, acórdão do STJ de 17-02-2005, Processo 05P058, disponível em www.dgsi.pt).
Nas palavras de Antunes Varela (et alii, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 179), o interesse em agir (ou, noutra denominação, o interesse processual) (…) consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”.
E mais adiante (pág. 181) afirma o mesmo autor que por força de tal interesse, exige-se que se verifique uma (…) necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção (…)”.
Ora, se a ilustre mandatária dos arguidos acabou por confirmar que tinha disponibilidade para as datas agendadas para as diligências – matéria sobre que versou o despacho de que interpôs o recurso não admitido –, isso significa que não tinha interesse em recorrer do despacho, porque com ele os direitos dos arguidos não foram afetados e, por isso, não necessitam de tutela.
Assim, também com este fundamento o recurso não podia ser admitido.

Nesta sequência, e em síntese: quer porque, tendo em conta o concreto circunstancialismo fáctico, o despacho é de qualificar como de mero expediente, quer porque o mesmo não consubstancia uma decisão proferida contra os arguidos, quer ainda porque os direitos destes não foram afetados por tal despacho, do mesmo não era(é) admissível recurso.
Aqui chegados, sem necessidade de mais considerandos, impõe-se concluir que nenhuma censura merece o despacho que não admitiu o recurso, pelo que se mantém.

III. Decisão
Face ao exposto, indefere-se a reclamação apresentada pelos arguidos (…), (…), (…) e (…), assim confirmando o despacho reclamado.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas), devida por cada um deles (artigo 513.º do Código de Processo Penal e artigos 1.º e 8.º, n.º 3, do RCP, com referência à Tabela III anexa).

21 de dezembro de 2021
João Luís Nunes
(Presidente do Tribunal da Relação de Évora)