Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2949/17.2T8FAR.E2
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I- Estabelecido um acordo de pré-reforma nos termos do qual o empregador assumiu o compromisso de pagamento de uma prestação mensal pecuniária correspondente a 80% da retribuição mensal do trabalhador até que este que complete a idade mínima legal de reforma, e se, não obstante se completar a referida idade, o empregador continuar a pagar aquela prestação, este pagamento constitui um enriquecimento sem causa.
II- O prazo de prescrição é o indicado no artigo 482.º do Código Civil.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2949/17.2T8FAR.E2

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

Meo – Serviços de Comunicações e Multimédia S.A., NIPC (…), com sede da Av. Fontes Pereira de Melo, 40, Lisboa, intentou contra (…), NIF (…), residente na Rua (…), n.º 67, R/c esq., Faro, acção declarativa de condenação de processo comum, pedindo a condenação do Réu no pagamento de € 10.421,86 (dez mil, quatrocentos e vinte e um euros e oitenta e seis cêntimos), acrescido dos juros vincendos desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou para tanto ter celebrado com o Réu, que foi seu trabalhador, acordo denominado de pré-reforma, no âmbito do qual se obrigou a pagar determinada quantia até o Réu atingir a idade de reforma, momento em que este se vinculou a requerê-la, cessando a obrigação da Autora.
Mais alegou ter instituído um benefício parassocial, no âmbito do próprio contrato de trabalho, que consistia num adiantamento correspondente à estimativa da pensão de pré-reforma, a ser calculada e paga pelo Centro Nacional de Pensões. Sucede, porém, que o Réu atingiu a idade da reforma, não a tendo requerido de imediato, como se havia obrigado, continuando a receber o benefício parassocial até Janeiro de 2005, data em que o Centro Nacional de Pensões lhe deferiu o pedido de reforma. Por via de tal incumprimento contratual a Autora viu-se privada das quantias abonadas entre Setembro de 2004 e Janeiro de 2005, no montante peticionado.
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Citado, o Réu contestou, arguindo excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria, defendendo como competente o Tribunal de Trabalho; invocando a prescrição do crédito alegado pela Autora, enquanto crédito laboral que é, ou, se assim não se entender, enquanto crédito proveniente do enriquecimento sem causa do Réu. No mais, impugnou a versão apresentada pelo A..
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O Tribunal da Relação julgou competente o tribunal comum.
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Depois de realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu o R. do pedido.
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Desta sentença recorre a A. que andou mal o Tribunal a quo ao decidir pela aplicação, ao presente caso, do instituto do enriquecimento sem causa e o respectivo tempo de prescrição.
Invocou também a nulidade da sentença.
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O recorrente defende que a sentença é nula por contradição entre a fundamentação e a decisão. Isto porque os factos provados levavam a decisão contrária: o tribunal não podia «vir posteriormente construir uma narrativa alternativa, através da qual elimina a causa justificativa para as transferências patrimoniais em causa, que anteriormente reconhece».
A nulidade indicada na al. c) do n.º 1, do art.º 651.º, Cód. Proc. Civil, não se confunde com o erro de julgamento. O que a lei exige é que a sentença não padeça de qualquer contradição lógica: «se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença» (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Cód. Proc. Civil Anotado, vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 736). O erro na subsunção dos factos à norma jurídica não torna a sentença nula, mas sim errada (idem, ibidem).
No nosso caso, não vemos na sentença desvio lógico no percurso intelectual seguido. O tribunal entendeu, mal ou bem, que a situação se integrava na figura do enriquecimento sem causa (p. 9) e entendeu também que a obrigação de restituir estava prescrita. Repare-se que a sentença reconhece que foram feitos pagamentos indevidos; não contesta esta realidade. Acontece, porém, que, aplicando o regime do enriquecimento sem causa, aplicou também, como era devido, o art.º 482.º, Cód. Civil.
Foi esta a decisão e, repetimos, não vemos nela, pelo contrário, qualquer contradição.
Assim, improcede a arguição.
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A matéria de facto é a seguinte:
1. A Autora celebrou com um número significativo dos seus trabalhadores Acordos de Pré-Reforma, no âmbito dos quais se obrigava a pagar aos trabalhadores outorgantes uma prestação mensal, designada de Prestação de Pré-Reforma.
2. O Réu era trabalhador da Autora, oriundo da empresa telefones de Lisboa e Porto (TLP), S.A..
3. Em 01 de Outubro de 1997, por escrito denominado “Acordo de Pré-Reforma”, firmado entre Portugal Telecom, S.A., na qualidade de primeira outorgante, e o Réu, na qualidade de segundo outorgante ou trabalhador, foi acordado que o contrato de trabalho do segundo outorgante se considerava suspenso, ficando o trabalhador dispensado da prestação de trabalho – cfr. cl. 1.ª do Acordo junto a fls. 9-11.
4. No âmbito do Acordo aludido em 3., a Autora, à data denominada Portugal Telecom, S.A., assumiu o compromisso de pagamento de uma prestação mensal pecuniária correspondente a 80% da retribuição mensal ilíquida do réu, equivalente a € 2.065,70 – cfr. cl. 2.ª do Acordo junto a fls. 9-11.
5. Do Acordo aludido em 3., na sua cláusula nona, constava: “O trabalhador é considerado requerente da pensão de velhice logo que complete a idade mínima legal de reforma, data em que cessará o contrato de trabalho que o vincula à 1.ª outorgante, garantindo-lhe, então, a Empresa condições idênticas às que usufruiria se se mantivesse no activo até essa altura, no que concerne à pensão de reforma garantida e ao “prémio de aposentação”.
6. O Réu perfez 65 anos de idade em 3 de Setembro de 2004.
7. Foi, porém, em 30 de Dezembro de 2004, que o Réu requereu junto do Centro Nacional de Pensões (CNP) pensão de reforma.
8. O requerimento aludido em 7. foi deferido pelo CNP em 05 de Abril de 2005, com o primeiro pagamento ocorrido em Maio de 2005, com retroactivos desde 30 de Dezembro de 2004.
9. Entre 20 Setembro de 2004 e 20 de Dezembro de 2004, a Autora pagou ao Réu, a título de “Adiantamento de Pensão”, o montante total de € 10.421,86 (dez mil, quatrocentos e vinte e um euros, oitenta e seis euros).
10. Com efeito, à data dos factos, a Autora extraía mensalmente informação que permitia ver que trabalhadores reuniam condições de passagem à reforma, i.e., quem naquele mês havia atingido a idade legal para o efeito, ou seja, os 65 anos.
11. Considerando que em 03 de Setembro de 2004 o Réu completou 65 anos, foi passado automaticamente à categoria de pensionista, passando a receber o respectivo adiantamento de pensão, sendo que nesse mês de Setembro de 2004 recebeu proporcionais de prestação de pré-reforma e adiantamento de pensão.
12. A partir de Janeiro de 2005, até Maio de 2005, a Autora procedeu sem interrupção ao adiantamento de pensão ao Réu, adiantamento que cessou nesse mês, passando o Réu, a partir de Junho de 2005, a receber a sua pensão de reforma pelo CNP.
13. O Réu fez seu o montante aludido em 9. sabendo que não tinha requerido a reforma uma vez atingida a idade mínima legal para o efeito.
14. No recibo emitido pela Autora e referente a 20.05.2005, a título de descontos, foram efectuados todos os acertos devidos desde Maio de 2005 (mês do deferimento da reforma pelo CNP) até Janeiro de 2005 (data início de efeitos da mesma).
15. A Autora, por carta de 02 de Setembro de 2016, interpelou o Réu, no sentido de obter a restituição das quantias pagas por si, conforme descrito em 9., sem que tenha obtido qualquer ressarcimento.
16. A Autora tomava a iniciativa de avisar os seus trabalhadores, mediante aviso de carta, acompanhada do modelo de requerimento em uso no Centro Nacional de Pensões, para o pedido de acesso à reforma.
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Em relação à matéria de direito, o recorrente alega, no essencial, o seguinte:
Contrariamente ao que resulta da sentença proferida, não se encontram preenchidos os requisitos para a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa;
O benefício parassocial instituído e no qual a recorrente assenta as suas pretensões não decorre, quer da relação de trabalho ou mesmo do acordo propriamente dito, mas sim da manifestação de vontade da empresa, em consequência da relação de trabalho, de pretender instituir um mecanismo de solidariedade nestes casos;
É notório que os pagamentos feitos a esse título não decorriam do acordo pois estes designavam-se de prestação de pré-reforma e estavam contratualmente previstos, ao invés, aqueles efectuados já no decurso do benefício parassocial designavam-se adiantamento de pensão;
Trata-se de prestações emergentes de facto póstumo ou posterior ao fim do contrato de trabalho/suspensão de contrato de trabalho, que cessou pela reforma do trabalhador, conforme dispõe o artigo 322.º do Código do Trabalho;
Permanecendo em dívida os valores de adiantamento de pensão relativos aos meses anteriores de Setembro de 2004 (no qual foi adiantado o montante de € 1.971,70), Outubro de 2004 (no qual foi adiantado o montante de € 2.112,54), Novembro de 2004 (no qual foi adiantado o montante de € 2.112,54), Dezembro de 2004 (no qual foi adiantado o montante de € 2.112,54) e Janeiro de 2005 (no qual foi adiantado o montante de € 2.112,54), num total de € 10.421,86.
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Ou seja, o recorrente entende que a figura do enriquecimento sem causa não tem aqui aplicação.
A falta de causa da prestação é a falta de fundamento jurídico para a realizar. São estes os casos previstos na lei a respeito do cumprimento de uma obrigação inexistente (artigo 476.º), o cumprimento de uma obrigação existente mas alheia ao que cumpre (artigo 477.º) e o cumprimento com erro sobre a obrigação de prestar (artigo 478.º). Em termos gerais, pode-se falar em falta de causa nas situações em que algo foi indevidamente recebido, ou foi recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (artigo 473.º, n.º 2) (cfr. Menezes Leitão, O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, CCTF, Lisboa, 1996, p. 457; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, vol. II, t. III, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 211-213).
No caso presente, temos um acordo de pré-reforma nos termos do qual o recorrente assumiu o compromisso de pagamento de uma prestação mensal pecuniária correspondente a 80% da retribuição mensal do recorrido. Ficou ainda estabelecido que o A. «é considerado requerente da pensão de velhice logo que complete a idade mínima legal de reforma», data em que cessará o contrato de trabalho. Esta cláusula define um limite temporal.
Não se estabeleceu no contrato que alguma das partes estivesse obrigada a prestar informação sobre a situação do trabalhador ou que este se tivesse obrigado a requerer a reforma que atingida a idade mínima legal para o efeito.
Não obstante o recorrido ter atingido a idade de reforma em Setembro de 2004, a recorrente continuou a pagar-lhe o complemento até Dezembro de 2004, altura em que (a 30 deste mês) o R. apresentou o seu pedido de reforma.
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Cremos que a sentença fez o enquadramento jurídico certo, isto é, que estamos perante uma situação de enriquecimento sem causa.
O recorrente defende que «não existem dúvidas quanto à verificação e existência de causa justificativa para os pagamentos que foram feitos a título de adiantamento de pensão nos meses de Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2004 e o Tribunal a quo (…) reconheceu-o dando por provada a matéria constante, entre outros, no artigo 13.º da matéria dada por provada concatenado com a motivação de facto precisamente para esse mesmo artigo».
Mas o citado n.º 13 (o Réu fez seu o montante aludido em 9. sabendo que não tinha requerido a reforma uma vez atingida a idade mínima legal para o efeito), a apontar para alguma conclusão (o que não é certo), será para a conclusão a que chegou a sentença.
E menos ainda pode dizer que é «inequívoco que a causa justificativa para os pagamentos residia desde logo nessa obrigação que impendia sobre os trabalhadores signatários de tais acordos em pedir a reforma logo que atingissem a idade legal para o efeito»; pelo contrário, o que é inequívoco é que essa dita obrigação não existia.
Por isso podemos dizer, ao invés do alegado pela recorrente, que a causa da realização da prestação não está no contrato.
Trata-se, outrossim, de uma prestação que foi feita sem que o «devedor» a ela estivesse obrigado, e a esta situação se refere expressamente o art.º 476.º: perante um pagamento indevido, o que fez tal pagamento pode exigi-lo de volta. Como escreve Menezes Leitão, em «termos estruturais, podemos considerar como pressupostos comuns em todas as hipóteses legais da condictio indebiti a realização de uma prestação com intenção de cumprir uma obrigação (animo solvendi), sem que exista uma obrigação subjacente a essa prestação (indevido objectivo) ou sem que esta tenha lugar entre silvens e accipiens (indevido subjectivo) ou deva ser realizada naquele momento» (ob. cit., p. 483).
É, precisamente o primeiro, o nosso caso.
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O princípio da subsidiariedade (art.º 474.º) mais inculca a ideia que a sentença está certa. Não se vê outro remédio jurídico de que se pudesse aproveitar o recorrente (o contrato não, porque o cumprimento em questão está fora do seu âmbito).
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Sendo esta a figura aplicável, temos que todo o seu regime legal também lhe é aplicável, sob pena de absoluta contradição nos seus termos.
Por isso, e dentro do referido regime, a sentença entendeu prescrita a obrigação de restituição, conforme o disposto no art.º 482.º, Cód. Civil.
O recorrente nada alega sobre isto; queremos dizer, não fundamenta a sua discordância na aplicação da prescrição, mas exclusivamente na aplicação da figura do enriquecimento sem causa.
Assim, nada há a alterar.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas pelo recorrente.
Évora, 14 de Janeiro de 2021
Paulo Amaral
Rosa Barroso
Francisco Matos

Sumário: (…)