Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
39/19.2T8RMZ.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: ACTIVIDADES PERIGOSAS
RESPONSABILIDADE DO UTILIZADOR
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1-É de rotular como “perigosa” no âmbito da previsão constante do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, não só pela própria natureza tóxica dos produtos utilizados, como também pela natureza dos meios empregues na aplicação dos mesmos, a actividade traduzida na aplicação de fungicidas através de pulverizadores de tractor com turbina;
2-O mencionado n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil contempla ainda uma presunção legal de culpa (presunção iuris tantum), que não foi ilidida no caso vertente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 39/19.2T8RMZ.E1
Comarca de Évora
Juízo de Competência Genérica de Reguengos de Monsaraz
Apelante: Sociedade Agrícola “(…), Lda.”
Apelada: “(…), Lda.”
***
Sumário do Acórdão
(Da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)

*
Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO
(…), Lda., com sede em Reguengos de Monsaraz, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra a Sociedade Agrícola (…), Lda., com sede em Montoito, Redondo, peticionando a condenação da Ré no pagamento de uma quantia de € 49.211,76 acrescida de juros moratórios à taxa legal até efectivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que a Ré fez tratamentos fitossanitários em 2018 numa vinha contígua a um terreno onde a Autora produzia ervas aromáticas em Modo de Produção Biológico, facto que era do conhecimento da Ré.
Acrescentou que os tratamentos consistiram na aplicação de produtos fitofarmacêuticos através de um pulverizador acoplado ao tractor, sem utilizar bicos de pulverização anti-deriva e sem que a Autora tivesse sido avisada previamente das pulverizações, esclarecendo que estas últimas ocorreram quando os ventos sopravam na direcção do seu terreno, arrastando a nuvem de pulverização para as suas plantações de tomilho-limão.
Mais adiantou terem sido detectados fungicidas num lote de 200 quilos de tomilho-limão colhido após as pulverizações e bem assim que o cliente estrangeiro com quem tinha celebrado um contrato de compra e venda de tomilho-limão biológico não quis receber as quantidades acordadas por recear que as colheitas subsequentes também estivessem contaminadas com fungicidas.
Disse, por fim, que do valor total do contrato – € 64.500,00 –, faturou apenas € 25.191,03, significando um prejuízo de € 39.398,70 em lucros cessantes, tendo ainda acrescido danos no valor de € 4.903,06 € a título de danos emergentes e € 5.000,00 para compensação dos prejuízos causados à sua imagem e bom nome.
A Ré contestou a acção, impugnando os factos alegados pela Autora e defendendo ter cumprido todas as regras de segurança e de boas práticas aplicáveis aos tratamentos fitossanitários que fez na vinha, entendendo não estar obrigada a pagar qualquer indemnização à Autora, cujos prejuízos alegados na petição inicial também impugnou, terminando a pedir a sua absolvição dos pedidos.
Findos os articulados, elaborou-se despacho saneador com a enunciação do objecto do litígio e dos temas da prova, e julgou-se a instância válida e regular.
No mais, foram admitidos os requerimentos de prova e foi designada data para a audiência final, a que se seguiu a prolação da sentença que contêm o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decide o Tribunal julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
A – Condenar a Ré Sociedade Agrícola (…), Lda. a pagar à Autora (…), Lda. a quantia de € 39.308,97 (trinta e nove mil, trezentos e oito euros e noventa e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais, acrescido de juros de mora à taxa de 4%, contados desde a data da citação (26/02/2019) até efectivo e integral pagamento;
B – Absolver a Ré Sociedade Agrícola (…), Lda. dos demais pedidos;
C – Condenar a Autora (…), Lda. e a Ré Sociedade Agrícola (…), Lda. nas custas do processo, na proporção de 20% pela Autora e 80% pela Ré.
Notifique e registe.”
*
Inconformada, veio a Ré apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação de Évora, alinhando as seguintes conclusões:
“VII- CONCLUSÕES
I. Factos há que o tribunal a quo deu como provados mas cuja prova existente impõe sentido diverso, alterando a sua redação ou nalguns casos eliminando-os, assim:
a) A redação do ponto 2 deverá ser alterada, sugerindo-se:
2. Desde 04.10.2018 a Autora está certificada como operador para a produção biológica de azeitona, alecrim, equinácea, erva do caril, erva cidreira, erva príncipe, hortelã vulgar, lúcia lima, manjericão, manjerona, perpétua-roxa, rosmaninho, salvia, segurelha, tomilho bela luz, tomilho limão, tomilho vulgar e plantas aromáticas e medicinais.
b) Deverá alterar-se a redação do ponto 5, sugerindo-se a seguinte redação:
5. A Ré desenvolve a sua atividade de viticultura, entre outros, no prédio rústico, denominado (…), composto por cultura arvense, sito em Reguengos de Monsaraz, com a área matricial total de 1,625 hectares, inscrita na matriz predial rústica da freguesia de Reguengos de Monsaraz sob o artigo (…), Secção (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz a favor de (…), sócio gerente da Ré, sob a descrição número (…), apresentando as seguintes confrontações: do norte com (…); do sul com (…); do nascente com (…); do poente com Estrada Municipal.
c) Deverá ser alterado o ponto 6, sugerindo redação diversa:
6. O prédio referido no ponto 3 confina a sul com (…), (…) e (…).
d) O tribunal errou ao considerar o factualismo do ponto 7 provado, impondo-se que o mesmo seja eliminado.
e) Deverá ser eliminada a referência a “modo de produção biológico” que integra o ponto 8, passando o mesmo a ter a seguinte redação:
8. Em Junho de 2017 a Autora iniciou a plantação das ervas aromáticas.
f) Os pontos 11 e 12 deverão ser eliminados.
g) O ponto 13 deverá ter uma redação diversa, que se sugere:
13. A primeira tela plantada pela A. ficou a uma distância de cerca de 7 metros da primeira carreira de videiras do terreno da Ré.
h) Em consequência, deverá também ser outra a redacção do ponto 14, que se sugere:
14. A única separação existente entre os dois terrenos em toda a sua extensão é uma vedação composta por postes de madeira e rede ovelheira que a Autora implantou no início da sua atividade para a proteger impedindo a entrada de animais.
i) Os pontos 15 a 20 deverão ser eliminados.
j) Os pontos 22, 23, 25, 26, 29 e 30 deverão ser alterados, sugerindo-se que tenham outra redação:
22. Em 24 de Abril de 2018, a Ré, por intermédio do aplicador (…), fez o tratamento fitossanitário da sua vinha, aplicando produtos fitofarmacêuticos para a prevenção do míldio carreira sim carreira não.
23. Nesse tratamento, a Ré aplicou 0,75 quilos por hectare do produto com o nome comercial “Vitipec Gold WG”, diluídos num volume de calda de 400 litros por hectare.
25. Em 22 de Maio de 2018 a Ré, por intermédio do aplicador (…), fez o tratamento fitossanitário da sua vinha, aplicando produtos fitofarmacêuticos para a prevenção do míldio e do oídio, carreira sim carreira não.
26. Nesse tratamento, a Ré aplicou 0,33 quilos por hectare e 40 mililitros dos produtos com os nomes comerciais “Profilux (BELCHIM)” e “Eminent 125 (ISAGRO)”, respetivamente, diluídos num volume de calda de 600 litros por hectare”.
29. Em 8 de Junho de 2018 a Ré, por intermédio do aplicador (…), fez o tratamento fitossanitário da sua vinha, aplicando produtos fitofarmacêuticos para a prevenção do míldio e do oídio.
30. Nesse tratamento a Ré, por intermédio do aplicador (…), aplicou 0,33 quilos por hectare e 58 mililitros dos produtos com os nomes comerciais “Sidecar F (ISAGRO)” e “Douro (SAPEC)”, respectivamente, diluídos num volume de calda de 600 litros por hectare.
31. O produto “Sidecar F (ISAGRO)” é um fungicida para uso agrícola, anti-míldio sistémico, composto por benalaxil-M e folpete, homologado pela DGAV para a cultura da vinha.
32. O produto “Douro (SAPEC)” é um fungicida para uso agrícola, anti-oídio sistémico à base de penconazol, homologado pela DGAV para as culturas da vinha, macieira, marmeleiro, pessegueiro, nectarina, damasqueiro, meloeiro, melancia, abóbora, pepino,
courgette, tomate.
k) Deverá ser diversa a redação dos pontos 33, 34 e 35, que se sugere passe a ser a seguinte:
34. As aplicações de produtos fitofarmacêuticos foram feitas com um pulverizador que a R. adquirira recentemente em estado de novo, rebocado ao trator, com a turbina desligada, percorrendo carreira sim carreira não da vinha, tendo na última carreira junto ao prédio descrito em ponto 3 projetado a calda apenas para o interior da sua vinha.
35. Nesse pulverizador a Ré utilizou bicos de pulverização anti-deriva, adequados a esses tratamentos fitossanitários.
l) Deverão os pontos 36 a 47 ser eliminados.
m) Os pontos 49 a 53 merecem censura devendo, consequentemente, ser eliminados.
n) Não tendo ficado demonstrado o respetivo factualismo deve o ponto 54 ser eliminado.
o) Quanto ao ponto 55, terá o mesmo que ser devidamente retificado, sugerindo-se redação que se mostra mais consentânea com a realidade:
55. Em final de 2019, a (…) Portugal, entidade de controlo e certificação da actividade agrícola em Modo de Produção Biológico da Autora, suspendeu a certificação da Autora durante um curto período de tempo não concretamente apurado.
p) Deverá ser eliminado o ponto 56 ou, se assim não se entender, ser alterada a sua redação, que se sugere:
56. A (…) emitiu desclassificação de produção de tomilho limão em 27.08.2020, estando, em 14.10.2020, apenas a cultura de tomilho limão desclassificada.
II. Por outro lado, a prova produzida permite verificar que há factualismo relevante que deverá ser julgado provado, requerendo-se o seu aditamento:
1) Pelo menos desde 1988 que o prédio descrito no ponto 5 tem plantada a cultura de vinha em área, localização e orientação idêntica à que se verifica presentemente.
2) Após a aquisição do prédio descrito no ponto 3 por (…) e (…) foram cortadas e arrancadas várias oliveiras adultas, de porte elevado e em bom estado sanitário, espaçadas entre si cerca de 5 metros e que se situavam na extrema com o prédio descrito em 5.
3) Além da vinha do prédio descrito em 5, existem na região e em concreto no local muitas outras parcelas de vinha, em torno das largas centenas.
4) Nas suas parcelas de vinha, incluindo a dos autos, a Ré adota uma política de proteção fitossanitária preventiva direcionada para uma prática baseada no modo de produção integrada, sobressaindo a utilização cuidadosa dos produtos fitofarmacêuticos estritamente necessários para o combate às doenças, em número e quantidade reduzida.
5) Produtos fitofarmacêuticos aplicados de modo preventivo pela Ré, com recurso a equipamento apropriado, calibrado, certificado e com respeito pelas boas práticas agrícolas, nomeadamente: a aplicação em conformidade com as condições meteorológicas existentes; a escolha do produto mais adequado; o cumprimento das condições de aplicação, nomeadamente doses, concentrações, época, número e intervalo de tratamentos; preparação de um volume de calda adequado à dimensão da área a tratar; de modo a impedir o escoamento, projeção e arrastamento de calda para o solo e para os espaços vizinhos limítrofes.
6) As aplicações de produtos fitossanitários efetuadas pela Ré em 2018 foram realizadas por pessoa com título de autorização de aplicação, emitido pela Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Alentejo.
7) Para a cultura da vinha a R. tem-se apoiado na associação técnica dos viticultores do Alentejo (ATEVA), de que é associada desde a sua fundação, nomeadamente, desde 1991 no engenheiro agrónomo (…), que lhe presta apoio técnico ao nível dos tratamentos fitossanitários, determinando as datas, os produtos fitofarmacêuticos e as quantidades a aplicar.
8) Tratamentos fitossanitários que a Ré fez por serem indispensáveis para o combate às duas principais doenças que anualmente a atingem: o míldio e o oídio.
9) Em 31.03.2016 a Autora declarou junto do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas IP aceitar a decisão de aprovação e executar a operação referente ao apoio financeiro que lhe foi concedido no âmbito da operação (…), do programa PDR 2020, na medida ‘valorização da produção agrícola’, submedida/ação ‘investimento na exploração agrícola’, intervenção ‘investimento na exploração agrícola’, no valor de € 344.24,56.
10) Do plano financeiro/investimento dessa operação consta, além do mais, a rúbrica “cerca de arame”, no valor de € 10.525,42, não reembolsável.
11) Essa “cerca de arame” foi implantada pela A. na estrema entre o prédio identificado no ponto 3 e o prédio identificado no ponto 5.
12) O benefício económico alcançado pela Ré em 2018 na exploração do prédio descrito em 5 cifrou-se entre os € 700,00 e os € 1.000,00.
13) As plantas aromáticas, como o tomilho limão, não são comercializadas apenas se produzidas em modo de produção biológico.
III. Com a instalação da sua atividade no modo de produção biológico, a Autora não considerou correta e adequadamente as regras específicas desse modo de produção, nomeadamente quanto à necessidade de aferir previamente os riscos de contaminação derivados da sua situação geográfica.
IV. Só quando se verifique o cumprimento das regras aplicáveis ao modo de produção, o produto, resultado do processo de produção, pode ser comercializado como biológico, isto é ser “certificado” como produto biológico.
V. Os produtos que a autora submeteu à apreciação do tribunal – integrantes da sua causa de pedir – não podiam ter sido considerados pelo tribunal recorrido como sendo produtos de origem biológica, isto é, produzidos em modo biológico, nem como tal legitimadores da pretensão da Autora.
VI. O Decreto-lei n.º 256/2009, de 24 de setembro, fixou o regime das normas técnicas aplicáveis ao modo de produção biológico.
VII. Nos termos da alínea d) do seu artigo 2.º, designa-se modo de produção biológico “a utilização do modo de produção conforme as regras estabelecidas no Regulamento (CE) n.º 834/2007, do Conselho, de 28 de junho, e sua regulamentação”.
VIII. Sendo competência da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR) – em articulação com a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) – estabelecer as normas técnicas necessárias a esse modo de produção biológico – cfr. artigo 3.º, n.º 1.
IX. Nos termos do artigo 10.º, n.º 1, o modo de produção biológico rege-se pelo disposto:
“a) no Regulamento (CE) n.º 834/2007, do Conselho, de 28 de junho; b) no Regulamento (CE) n.º 889/2008, da Comissão, de 5 de setembro; c) nas regras nacionais de execução complementares.
X. A Lei número 26/2013, de 11 de Abril regula a atividade de aplicação de produtos fitofarmacêuticos para uso profissional, que a Ré cumpriu.
XI. O Regulamento (CE) n.º 834/2007 do Conselho, de 28 de Junho de 2007, relativo à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos, estabelece os objetivos e princípios sobre os quais assenta a agricultura praticada em modo de produção biológico.
XII. Se é certo que a Autora tomou uma medida de precaução para impedir o acesso às suas culturas de pessoas estranhas e de animais, o que fez implantando uma vedação composta por paus e arame na extrema do prédio, nada fez quanto à adoção de medidas de precaução para impedir contaminações por produtos fitofarmacêuticos, a que estava legalmente adstrita – cfr. legislação aplicável ao modo de produção biológico.
XIII. O Regulamento (CE) n.º 1107/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Outubro de 2009, estabelece as regras aplicáveis à autorização dos produtos fitofarmacêuticos sob forma comercial, bem como à sua colocação no mercado, utilização e controlo, que a Ré respeitou.
XIV. O laboratório independente que alegadamente efetuou as análises dos autos não está habilitado pela DGADR.
XV. A pretensão indemnizatória da Autora situa-se no âmbito da responsabilidade civil extra-contratual, tendo-a a douta sentença recorrida enquadrado na cláusula geral do artigo 483.º do Código Civil, fundamentando a procedência da ação na errada verificação dos respetivos requisitos.
XVI. Acrescendo que o n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil estabelece uma presunção legal de culpa (presunção iuris tantum) por parte de quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade perigosa, assim tendo considerado a actividade da Ré, raciocínio de que se discorda.
XVII. Dos autos decorre a falta de verificação desses requisitos, nomeadamente do facto ilícito, da culpa, do dano e de um nexo de causalidade.
XVIII. Ora, são pressupostos indispensáveis da obrigação de indemnização, o facto ilícito ligado à conduta da Ré por nexo de imputação subjectiva (a culpa) e a existência de danos causados adequadamente por esse mesmo facto – artigo 483.º e seguintes do Código Civil.
XIX. Como regra geral, incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa – artigo 487.º, n.º 1, do Código Civil.
XX. Havendo uma presunção legal, a prova do facto que serve de base à presunção equivale a provar o facto presumido – artigo 344.º, n.º 1 e 350.º, n.º 1, do Código Civil –, pelo que, desde que o lesado alegue e prove que os danos foram causados no exercício de uma actividade perigosa, a lei presume, a partir desse facto, que o dano foi devido a culpa do agente.
XXI. O n.º 2 do artigo 493.º determinar a inversão do ónus da prova (artigo 344.º, n.º 1, do Código Civil).
XXII. Não define a lei conceitualmente em que consiste a atividade perigosa, admitindo-se apenas genericamente que a perigosidade derive da própria natureza da atividade ou da natureza dos meios utilizados, e assim, só casuisticamente, em face das circunstâncias concretas, se poderá aquilatar do carácter perigoso do facto lesivo.
XXIII. Por isso mesmo, a qualificação de uma atividade perigosa, para efeitos do n.º 2 do
artigo 493.º do Código Civil, não se compadece com uma construção apriorística, emergindo antes do facto concreto, como elemento da própria compreensão do direito.
XXIV. Nesta perspetiva, as concretas aplicações efetuadas pela Ré de produtos fitofarmacêuticos, de baixa toxicidade, através de pulverizador com a turbina desligada e bicos de pulverização anti deriva não consubstanciam uma atividade perigosa, sendo por isso inaplicável a norma do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil.
XXV. Porém, uma coisa é a culpa, outra o nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano, como pressuposto autónomo do direito da responsabilidade civil, situado a montante daquele.
XXVI. A lei civil – cfr. artigo 563.º do Código Civil – adotou a teoria da causalidade adequada, ao estabelecer que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
XXVII. Assim, para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, que,
no plano naturalístico, ele seja condição sem o qual o dano não se teria verificado e depois que, em abstrato ou em geral, seja causa adequada do mesmo (nexo de adequação).
XXVIII. O nexo de causalidade entre o facto e o dano coloca, portanto, uma questão que
constitui matéria de facto, a de estabelecer a realidade do evento naturalístico que foi condição do dano, e uma questão de direito, a da demonstração da adequação desse evento, em abstrato ou em geral, a causar o dano.
XXIX. Sempre competiria à Autora a prova do facto, bem como do dano e por último do nexo de causalidade, como elementos constitutivos do seu direito – artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil –, não lhe incumbido já a demonstração da culpabilidade, mas somente se se entender que esta se mostrava presumida – n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil – o que não se concebe.
XXX. Assim, mesmo que porventura se considere que à situação é aplicável a norma do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, tal como entendeu o MM Juiz, é incontestável que a imputação objetiva constitui um facto constitutivo do direito à indemnização.
XXXI. Daí que, no que respeita à prova do requisito da imputação da autoria dos factos
à Ré, tal ónus pertencia à Autora, como pressuposto autónomo do dever de indemnizar e facto constitutivo do direito que se arroga, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.
XXXII. Pois bem, não logrou a Autora provar o facto ilícito ligado à conduta da Ré, nem
a existência de danos causados adequadamente por esse mesmo facto, já que não demonstrou que a Ré tivesse aplicado incorretamente produtos fitofarmacêuticos, e por outro, que as suas culturas tivessem sido contaminadas devido à aplicação de produtos fitofarmacêuticos pela Ré.
XXXIII. Entendendo-se diversamente, sempre se dirá que, nos termos do disposto no n.º
1 do artigo 570.º, “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas
de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser
totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
XXXIV. Impendendo sobre a Autora um “dever de precaução”, que em respeito pelas regras previstas para o modo de produção biológico a levavam a ter que adotar um comportamento diferente do comportamento que adotou, contribuiu decisiva e determinantemente para a ocorrência do dano, que presumivelmente não ocorreria se a Autora tivesse respeitado as normas fixadas para o concreto modo de produção agrícola.
XXXV. Essa atuação da Autora seria bastante para, caso se sufragasse o raciocínio do tribunal na parte em que entendeu basear a responsabilidade da Ré numa simples presunção de culpa por aplicação do artigo 493.º, excluir o dever de indemnizar da Ré – ex vi do artigo 570.º do Código Civil.
XXXVI. Sem condescender, mas por dever de patrocínio, mesmo que se entenda que os
requisitos que integram a responsabilidade civil extracontratual se mostram preenchidos, ainda assim, a responsabilidade da Ré funda-se na mera culpa e não no dolo, pelo que a indemnização sempre terá que ser fixada “equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados” – ex vi do artigo 494.º.
XXXVII. Porque a sentença recorrida violou as normas legais indicadas nas conclusões do recurso, deverá ser julgado procedente o recurso.”

*
A Autora apresentou resposta ao requerimento de recurso, concluindo do seguinte modo:
“VI - CONCLUSÕES
A) Todas as alterações que a recorrente pretende que sejam feitas à matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida não têm fundamento.
B) A sentença apelada fez correta e fundamentada apreciação da prova produzida e deve ser quanto a essa matéria inteiramente confirmada.
C) Verificam-se no caso todos os requisitos da responsabilidade civil exigidos pelo artigo 483.º do Código Civil: o facto ilícito, a culpa do seu autor, o nexo de causalidade, a violação do direito do lesado, e os danos resultantes dessa violação.
Com efeito,
D) A Ré fez, no seu terreno, pulverizações de produtos fitofarmacêuticos sem tomar os cuidados necessários para impedir que os produtos pulverizados, por arrastamento ou deriva, atingissem as plantações existentes no terreno da A., danificando essas plantações.
E) Tal procedimento da Ré é ilícito, por violar as disposições legais do Regulamento (CE) n.º 1107/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Outubro de 2009, relativo à colocação dos produtos fitofarmacêuticos no mercado, da Lei n.º 26/2013, de 11 de Abril, com as alterações do Decreto-Lei n.º 35/2017, de 24 de Março, que regula as atividades de distribuição, venda e aplicação de produtos fitofarmacêuticos para uso profissional.
F) Esse procedimento é culposo porque a Ré podia e devia ter dado cumprimento às referidas disposições legais.
G) Existe pois manifesto nexo de causalidade entre o procedimento da Ré e a danificação das plantações da Autora.
H) Dessa danificação resultou que ao contrato de compra e venda de produtos produzidos celebrado pela Autora, foi posto termo pela outra parte contratante por motivo da contaminação desses produtos, pelas pulverizações efectuadas pela Ré.
I) Está, pois, a Ré obrigada a indemnizar a Autora dos prejuízos resultantes da cessação do contrato de fornecimento por motivo das referidas pulverizações, conforme decidiu a douta sentença.
J) Acresce, que a pulverização de produtos fitofarmacêuticos é uma atividade perigosa pela natureza dos meios utilizados, pelo que, nos termos do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, a Ré sempre seria obrigada a reparar os danos resultantes das pulverizações que efectuou, dado que não provou ter tomado todas as providencias exigidas pelas circunstâncias para os prevenir.
K) Improcedem todas as conclusões das alegações da Ré, pelo que deve ser negado provimento ao recurso, como se espera e é de Justiça.
Julgando de harmonia com estas conclusões e, consequentemente, negando provimento ao recurso, Vossas Excelências farão JUSTIÇA.”
*
O recurso foi admitido na 1ª Instância como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
*
O recurso é o próprio e foi adequadamente recebido quanto ao modo de subida e ao efeito fixado.
*
Colheram-se os Vistos pelo que cumpre, agora, decidir.
*
II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que as questões a apreciar e decidir traduzem-se objectivamente no seguinte:
1- Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
2 - Reapreciação de mérito, centrada na verificação dos pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual e cômputo do dano patrimonial verificado.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Decorre da sentença recorrida a seguinte matéria de facto:
A) Factos Provados:
1. A Autora “(…), Lda.” dedica-se à actividade de produção e comercialização de plantas aromáticas e medicinais, bem como de produtos hortícolas e frutícolas; cultura e comercialização de azeitona, entre outras.
2. Desde 2018 que a Autora está classificada pela Direcção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural como operador em modo de produção biológico.
3. A Autora desenvolve a sua actividade no prédio misto, denominado (…), composto por olival, cultura arvense, armazém destinado a actividade industrial e edifício destinado a habitação, sito em Reguengos de Monsaraz, com a área matricial total de 11,1037 hectares, encontrando-se a parte rústica inscrita na matriz predial da freguesia de Reguengos de Monsaraz sob o artigo (…), Secção (…), e a parte urbana inscrita na matriz predial da freguesia de Reguengos de Monsaraz sob o artigo (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz a favor de (…), sócio gerente da Autora, sob a descrição n.º (…), apresentando as seguintes confrontações: do norte com (…), (…) e (…); do sul com (…), (…) e (…); do nascente com Herdade da (…); do poente com Ribeira da (…).
4. A Ré “Sociedade Agrícola (…), Lda.” dedica-se à actividade de olivicultura, viticultura, criação de gado, prestação de serviços agrícolas, cerealicultura, cinegética, turismo rural, venda de pastagens.
5. A Ré desenvolve a sua actividade no prédio rústico, denominado (...), composto por cultura arvense, sito em Reguengos de Monsaraz, com a área matricial total de 1,625 hectares, inscrita na matriz predial rústica da freguesia de Reguengos de Monsaraz sob o artigo (…), Secção (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz a favor de (…), sócio gerente da Ré, sob a descrição número (…), apresentando as seguintes confrontações: do norte com (…); do sul com (…); do nascente com (…) da (…); do poente com Estrada Municipal.
6. O prédio referido no ponto 3 confina a Sul com o prédio referido no ponto 5, em toda a sua extensão.
7. Em data não concretamente apurada do ano de 2015, os legais representantes da Autora, (…) e (…), comunicaram ao legal representante da Ré, (…), e ao seu filho (…), que estavam a desenvolver um projecto de exploração agrícola no terreno identificado no ponto 3, dirigido para a produção e comercialização de ervas aromáticas e exploração de olival em Modo de Produção Biológico.
8. Em Junho de 2017 a Autora iniciou a plantação das ervas aromáticas em Modo de Produção Biológico.
9. Nessa altura, o terreno explorado pela Ré era composto por vinha.
10. As carreiras de videiras estão alinhadas na horizontal, paralelamente à estrema com o terreno da Autora.
11. A Autora plantou as ervas aromáticas por sectores: os sectores 1, 2, 5, 6, e 7 eram de tomilho-limão; o sector 3 era de equinácea; o sector 4 estava destinado para tomilho bela-luz (plantado após o primeiro semestre de 2018); e o sector 8 estava destinado a tomilho-limão (plantado após o primeiro semestre de 2018).
12. Os sectores 1 e 2 de tomilho-limão são contíguos à vinha da Ré.
13. A primeira tela de tomilho-limão plantada nos sectores 1 e 2 ficou a uma distância de cerca de 7 metros da primeira carreira de videiras do terreno da Ré.
14. A única separação existente entre os dois terrenos em toda a sua extensão é uma vedação composta por postes de madeira e rede ovelheira destinada a impedir a entrada de animais.
15. Em data não concretamente apurada do primeiro semestre do ano de 2018, a Autora celebrou um contrato de compra e venda com uma empresa alemã obrigando-se a produzir e a entregar as seguintes quantidades de ervas aromáticas:
- 2000 quilos de tomilho-limão biológico pelo preço de 13,00 €/quilo;
- 2000 quilos de tomilho-limão biológico pelo preço de 11,00 €/quilo;
- 1500 quilos de tomilho-limão biológico pelo preço de 11,00 €/quilo.
16. O preço total acordado foi de € 64.500,00.
17. Mais acordaram que a entrega das ervas seria feita de forma faseada ao longo do período de um ano.
18. Os custos com a expedição das ervas ficavam a cargo do comprador.
19. O preço seria pago no valor correspondente à quantidade de ervas recebida pelo comprador em cada expedição.
20. O pagamento do preço ficava dependente do resultado de análises laboratoriais a amostras recolhidas de cada lote de ervas enviado, comprovando a ausência de resíduos de produtos fitofarmacêuticos na sua composição química.
21. A Autora tinha certificado válido para o exercício da actividade em Modo de Produção Biológico para o período de 04/10/2018 a 30/06/2019.
22. Em 24 de Abril de 2018, a Ré fez o tratamento fitossanitário da sua vinha, aplicando produtos fitofarmacêuticos para a prevenção do míldio.
23. Neste tratamento, a Ré aplicou o produto com o nome comercial “Vitipec Gold WG”.
24. O produto “Vitipec Gold WG” é um fungicida anti-míldio sistémico, composto por folpete (grupo das ftalimidas), cimoxanil, e fosetil-alumínio. 25. Em 22 de Maio de 2018, a Ré fez o tratamento fitossanitário da sua vinha, aplicando produtos fitofarmacêuticos para a prevenção do míldio e do oídio.
26. Neste tratamento, a Ré aplicou os produtos com os nomes comerciais “Profilux (BELCHIM)” e “Eminent F (ISAGRO)”.
27. O produto “Profilux (BELCHIM)” é um fungicida anti-míldio, composto por cimoxanil e mancozebe.
28. O produto “Eminent F (ISAGRO)” é um fungicida anti-oídio sistémico, composto por tetraconazol.
29. Em 8 de Junho de 2018, a Ré fez o tratamento fitossanitário da sua vinha, aplicando produtos fitofarmacêuticos para a prevenção do míldio e do oídio.
30. Neste tratamento, a Ré aplicou os produtos com os nomes comerciais “Sidecar F (ISAGRO)” e “Douro (SAPEC)”.
31. O produto “Sidecar F (ISAGRO)” é um fungicida anti-míldio sistémico, do grupo das fenilamidas, composto por benalaxil-M e folpete.
32. O produto “Douro (SAPEC)” é um fungicida anti-oídio sistémico à base de penconazol.
33. A Ré aplicou os produtos fitofarmacêuticos acima referidos através de pulverizadores de tractor com turbina.
34. A pulverização foi feita com a turbina ligada.
35. Os bicos de pulverização utilizados não eram adequados a evitar a deriva da nuvem de pulverização que se formava com os jactos da calda. 36. A Ré iniciava a pulverização pela primeira carreira de videiras situada mais a norte da vinha (a mais próxima do terreno da Autora) até terminar na carreira mais a sul (a mais afastada do terreno da Autora).
37. Os ventos que sopravam de sul, sudeste, e sudoeste arrastavam a nuvem de pulverização para as plantações de tomilho-limão nos sectores 1 e 2 do terreno da Autora.
38. A Ré nunca avisou previamente a Autora de quando ia fazer as pulverizações.
39. Após as primeiras pulverizações, os legais representantes da Autora alertaram o legal representante da Ré e o seu filho para o risco de contaminação das suas plantações em modo biológico causada pela deriva da pulverização da vinha, exortando-os a observarem certos cuidados para reduzir o risco de deriva, tais como a velocidade e a direcção do vento, a utilização de bicos de pulverização anti-deriva, e porventura a utilização de fitofármacos com menor toxicidade.
40. Nesse sentido, também requereram uma reunião com o técnico da ATEVA – Associação Técnica dos Viticultores do Alentejo que prestava assistência técnica à Ré na utilização, preparação, e aplicação dos produtos fitofarmacêuticos.
41. Na pulverização do dia 08 de Junho de 2018 (v. pontos 29 a 32), a Ré começou a pulverizar a vinha pelas 15:40 horas, a partir da carreira de videiras mais próxima do terreno da Autora.
42. Pelas 15:42 horas, o tractor encontrava-se a pulverizar as videiras próximas das plantações de tomilho-limão dos sectores 1 e 2 do terreno da Autora.
43. A turbina estava ligada e os jactos da calda que saíam dos bicos pulverizadores formavam uma nuvem de pulverização que se elevava acima da altura das videiras.
44. A essa hora o vento soprava de sudoeste a uma velocidade de 16 km/hora.
45. O vento empurrou a nuvem de pulverização na direcção das plantações de tomilho-limão da Autora nos sectores 1 e 2.
46. O tomilho-limão plantado nesses sectores 1 e 2 foi colhido no Verão de 2018.
47. E foi expedido para o cliente alemão em Outubro de 2018 no âmbito da execução do contrato referido nos pontos 15 a 20.
48. O cliente não aceitou um lote de 200 quilos de tomilho-limão por conter resíduos de pesticidas em medida superior ao legalmente permitido em agricultura biológica.
49. Com efeito, nas análises laboratoriais efectuadas em Novembro de 2018 a uma amostra desse lote detectaram-se os seguintes fungicidas:
- Tetrahidroftalimidas (THPI): 0,012 mg/kg;
- Captana/THPI, total: 0,023 mg/kg;
- Folpete: 0,017 mg/kg;
- Ftalimidas: 0,055 mg/kg;
- Folpete/Ftalimidas, total: 0,13 mg/kg;
- Metalaxil/Metalaxil-M: 0,062 mg/kg.
50. O lote de 200 quilos de tomilho-limão com resíduos de fungicidas não foi facturado nem pago à Autora.
51. O lote em causa foi colhido nos sectores 1 e 2 da plantação da Autora.
52. A Autora explicou ao seu cliente alemão que a contaminação do tomilho-limão com pesticidas tinha sido causada pelo tratamento fitossanitário que o vizinho tinha feito na vinha sem acautelar os perigos de deriva da pulverização.
53. Até ao termo da duração do contrato, o comprador não quis mais receber tomilho-limão da Autora por recear que as colheitas subsequentes também estariam contaminadas com fungicidas.
54. Do valor total do contrato celebrado em 2018 com a empresa alemã, a Autora só facturou o valor de € 25.191,03.
55. Devido à contaminação verificada, a (…) Portugal, entidade certificadora da actividade agrícola em Modo de Produção Biológico, suspendeu a certificação da Autora durante os meses de Novembro e Dezembro de 2019.
56. Em Agosto de 2020 foi retirada a certificação à Autora de produtor em modo biológico.
*
B) Factos Não Provados
Com interesse para a presente causa, não se provou que:
1. Que o preço do lote de tomilho-limão não aceite pelo cliente alemão por resíduos de fungicidas fosse de € 2.451,08.
2. Que a colheita de Outono de tomilho-limão não tivesse sido comercializada.
3. Que a conduta da Ré tivesse atentado contra a imagem e o bom nome da Autora.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Iniciemos este segmento com a análise da primeira questão definida no objecto do recurso em 1.
A Apelante pretende que se proceda a alterações à matéria de facto considerada como provada na sentença recorrida, entendendo a Apelada que nenhuma delas tem fundamento.
Resulta do artigo 640.º do CPC, que se debruça sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o seguinte:
“1-Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b), do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
[…]”.
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª ed., a páginas 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, “esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas no mencionado n.º 1 e 2, alínea a), do artigo 640.º do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor”.
A Apelante ataca a quase totalidade da matéria de facto descriminada na sentença recorrida sendo que, como veremos infra, não o logrou fazer em cumprimento dos requisitos legais constantes do artigo 640.º do CPC, acima transcritos.
Com efeito, do exposto na motivação e conclusões recursivas, verifica-se que relativamente aos factos que integram o subsegmento dos factos provados constante do segmento dedicado à “Fundamentação de Facto” da sentença recorrida, vertidos sob os pontos 2, 5, 6, 8, 13, 14, 22, 23, 25, 26, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 55 e 56, a Apelante limita-se a sugerir alterações na redacção dos ditos factos, não colocando expressamente em causa, como teria que ter feito, a incorrecção do julgamento feito quanto a eles pelo Tribunal a quo.
Por outras palavras, percebendo-se que a Apelante entende relativamente aos censurados pontos de facto da sentença recorrida acima identificados, cuja redacção apenas sugere seja alterada, que o Tribunal a quo considerou como provados factos que de acordo com a prova produzida impunham “sentido diverso” e bem assim que não incluiu noutros pontos factos que teriam resultado provados de acordo com a prova produzida, impunha-se-lhe que na decisão indicada ao Tribunal de recurso sobre tais questões não se limitasse apenas a apresentar uma sugestão de alteração quanto à redacção de cada ponto de facto censurado considerado como provado na sentença recorrida, mas antes que especificasse relativamente a cada um daqueles pontos de factos impugnados acima identificados quer a decisão respeitante ao facto considerado por si como provado, quer a decisão atinente ao facto considerado por si como não provado, a ser incluído, este último, no subsegmento dos factos considerados como não provados da sentença recorrida.
Ao não ter procedido desse modo a Apelante não cumpriu devidamente e com o necessário rigor o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, impondo-se a rejeição da impugnação no tocante aos pontos de facto identificados.
Na motivação e conclusões recursivas verifica-se que a Apelante pugna pela eliminação dos pontos de facto considerados como provados na sentença recorrida vertidos sob os n.ºs 7, 11, 12, 15 a 20, 36 a 47 e 49 a 54.
Embora o diga expressamente nas conclusões recursivas apenas quantos aos pontos de facto n.ºs 7 e 54, certo é que se percebe do segmento motivatório que a Apelante pugna pela dita eliminação de todos os pontos mencionados no parágrafo anterior por em seu entender não terem os factos constantes dos identificados pontos resultado demonstrados.
Ora também aqui se verifica que a Apelante não cumpriu devidamente o ónus de impugnação especificada previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, na medida em que estando em causa factos considerados como provados na sentença recorrida a eventual incorrecção de julgamento feito pelo Tribunal recorrido quanto a eles exigia não a pura e simples eliminação dos mesmos do subsegmento dos factos considerados como provados, mas também a especificação da decisão atinente a eles a reconduzir ao subsegmento dos factos considerados como não provados da sentença recorrida.
Não tendo essa especificação sido apresentada impõe-se rejeitar, também quanto aos pontos de facto em apreço, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Nas conclusões recursivas da Apelante verifica-se ainda que a mesma entende existirem factos que deveriam ter sido considerados como provados, que especifica nos seguintes 13 pontos de facto (!), que ora passamos a transcrever:
“1 – Pelo menos desde 1988 que o prédio descrito no ponto 5 tem plantada a cultura de vinha em área, localização e orientação idêntica à que se verifica presentemente.
2 – Após a aquisição do prédio descrito no ponto 3 por (…) e (…), foram cortadas e arrancadas várias oliveiras adultas, de porte elevado e em bom estado sanitário, espaçadas entre si cerca de 5 metros e que se situavam na extrema com o prédio descrito em 5.
3 – Em 2017-08-04 a Autora efectuou a “notificação n.º 1” das “notificações (…) – Produtores” junto da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, tendo declarado que o seu organismo de controlo é a “(…) Portugal”, de acordo com o contrato que assinou em 6/07/2017 e que esta entidade lhe efetuou o “1º controlo” em 04/08/2017”.
4 – Além de na vinha do prédio descrito supra em 5, existem na região e em concreto no local muitas outras parcelas de vinha, em torno das largas centenas.
5 – Nas suas parcelas de vinha, incluindo a dos autos, a Ré adota uma política de proteção fitossanitária preventiva direcionada para uma prática baseada no modo de produção integrada, sobressaindo a utilização cuidadosa de produtos fitofarmacêuticos estritamente necessários para o combate às doenças, em número e quantidade reduzida.
6 – Produtos fitofarmacêuticos aplicados de modo preventivo pela Ré, com recurso a equipamento apropriado, calibrado, certificado e com respeito pelas boas práticas agrícolas nomeadamente: a aplicação em conformidade com as condições meteorológicas existentes; a escolha do produto mais adequado; o cumprimento das condições de aplicação-doses, concentrações, época, número e intervalo de tratamentos; preparação de um volume de calda adequado à dimensão da área a tratar; de modo a impedir o escoamento, projeção e arrastamento de calda para o solo e para os espaços vizinhos limítrofes.
7 – As aplicações de produtos fitossanitários efetuadas pela Ré em 2018 foram realizadas por pessoa com título de autorização de aplicação, emitido pela Direção-Regional de Agricultura e Pescas do Alentejo.
8 – Para a cultura da vinha a Ré tem-se apoiado na associação técnica dos viticultores do Alentejo (ATEVA), de que é associada desde a sua fundação, nomeadamente desde 1991 no engenheiro agrónomo (…), que lhe presta apoio técnico ao nível dos tratamentos fitossanitários, determinando as datas, produtos fitofarmacêuticos e quantidades a aplicar.
9 – Tratamentos fitossanitários que a Ré fez por serem indispensáveis para o combate às duas principais doenças que anualmente a atingem: o míldio e o oídio.
10 – Em 31.03.2016 a Autora declarou junto do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, IP, aceitar a decisão de aprovação e executar a operação referente ao apoio financeiro que lhe foi concedido no âmbito da operação (…), do programa PDR 2020, na medida da ‘valorização da produção agrícola’, submedida/ação ‘investimento na exploração agrícola’, intervenção “investimento na exploração agrícola”, no valor de € 344,824.56.
11 – Do plano financeiro/investimento dessa operação consta, além do mais a rubrica “cerca de arame”, no valor de € 10.525,42, não reembolsável.
12 – Essa “cerca de arame” foi implantada pela A. na estrema entre o prédio identificado supra no ponto 3 e o prédio identificado supra no ponto 5.
13 – O benefício económico alcançado pela Ré em 2018 na exploração do prédio descrito supra em 5, cifrou-se entre os € 700,00 e os € 1.000,00”.
Desde já impõe-se dizer que não tendo o conteúdo de qualquer um dos pontos de facto ora pretendidos alterar sido julgado pelo Tribunal recorrido como não provado não pode considerar-se tal matéria ao abrigo da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, visto que, como já sabemos, o artigo 640.º do Código de Processo Civil, atinente ao ónus a cargo do Recorrente, exige a especificação dos concretos pontos de facto “incorretamente julgados”.
Como tal, o pretendido aditamento da matéria só poderá ser equacionado no âmbito da ampliação da matéria de facto, nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), parte final, do Código de Processo Civil.
Sem embargo, diga-se, todavia, que o conteúdo dos pontos 4, 6 e 8 se traduz eminentemente em juízos valorativos e conclusivos sobre factos concretos e naturalísticos, não revelando propriamente, na sua essência, factos deste último jaez, razão pela qual carece de fundamento o pretendido aditamento no tocante a eles.
Com efeito, no ponto 4 deparamos com expressões patentemente conclusivas tais como “política de proteção fitossanitária preventiva”, “produção integrada”, “utilização cuidadosa”, “estritamente necessários” e “quantidade reduzida”.
No ponto 6 a Apelante utiliza outra expressão valorativa/conclusiva como “pessoa com título de autorização de aplicação”.
Já no ponto 8 menciona-se mais uma expressão conclusiva, qual seja “serem indispensáveis”, sendo certo ainda que da leitura dos factos considerados como provados vertidos sob os pontos 22, 25 e 29, resulta assente o tratamento fitossanitário por parte da Apelante da sua vinha para prevenção do míldio e do oídio em três datas distintas.
Por sua vez, da análise dos articulados endereçados aos autos percebemos que os factos pretendidos aditar ao subsegmento dos factos considerados como provados na sentença recorrida identificados sob os pontos 9, 10, 11, 12 e 13 não foram expressamente alegados por qualquer das partes pelo que também quanto a eles carece de fundamento o pretendido.
Já quanto à matéria factual vertida nos pontos 1, 2, 3 e 7, alegada pela Ré, ora Apelante, nos artigos 8º, 10º, 12º e 28º, respectivamente, da sua contestação, resulta manifesto em face do objecto da causa de pedir e do peticionado na acção não revestir interesse para a boa decisão da causa não tendo, como tal, sido (e bem), encaminhada para o subsegmento dos factos provados, ou dos não provados, da sentença recorrida.
Por fim, no tocante à matéria vertida no ponto 5, alegada pela Apelante no artigo 25º da sua contestação, impõe-se dizer que para além de ser invocada num contexto generalista, ou seja sem qualquer concretização temporal mormente no tocante às datas trazidas à colação na presente causa, acaba por ser, no essencial, contrariada pela matéria que foi dada como provada vertida designadamente nos pontos 22 a 37, 41 a 45 e 49 do subsegmento da sentença recorrida destinado aos factos provados.
Pelo exposto, é de considerar improcedente na totalidade o pretendido aditamento de matéria de facto ao acervo dos factos considerados como provados na sentença recorrida.
Destarte, mantém-se inalterada a matéria de facto considerada como provada e como não provada na sentença recorrida.

2 – Reapreciação de mérito
Segue-se a abordagem da segunda e última questão objecto do recurso atinente à reapreciação de mérito.
Do acervo das conclusões recursivas delineadas pela Apelante decorre que a mesma entende que não se provaram factos suficientes para considerar verificados os pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, sustentando, ainda, não ter incorrido no exercício de uma actividade perigosa não sendo, como tal, correcto presumir que os danos sofridos pela Apelada foram causados por tal actividade, mais argumentando que sempre seria de considerar in casu uma situação de concorrência de culpas, por virtude de a Apelada ter desrespeitado o “dever de precaução” que sobre si impendia decorrente das regras previstas para o modo de produção biológico, terminando a sustentar que ainda que se mostrem preenchidos os requisitos integrantes da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos sempre será de fundar a sua responsabilidade na mera culpa e não no dolo fixando-se a indemnização à Apelada equitativamente em montante inferior ao correspondente aos danos causados.
Por seu turno, entende a Apelada, na sua resposta ao recurso, que se mostram preenchidos todos os requisitos atinentes à responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito decorrente do exercício de actividade perigosa pela natureza dos meios utilizados, devendo improceder todas as conclusões recursivas da Apelante.
O argumentário apresentado pela Apelante assenta em boa medida nas alterações por si pretendidas à matéria de facto considerada como provada na sentença recorrida, as quais, a procederem, conduziriam, no seu entendimento, a uma solução jurídica da questão atinente à sua responsabilização por danos causados à Apelada, pela prática censurável de factos ilícitos, diversa da adoptada na sentença recorrida.
É o que se verifica designadamente quanto ao modo de aplicação pela Apelante dos produtos fitofarmacêuticos no seu prédio misto, que confina com o prédio misto da Apelada, bem como no tocante aos danos sofridos por esta, traduzidos na contaminação das respectivas culturas e ausência de recebimento do preço de venda a cliente de parte do cultivo contaminado (200 quilos de tomilho-limão), bem como da relação entre a superveniência dos ditos danos e o modus operandi adoptado pela Apelante nos tratamentos fitossanitários que levou a cabo no seu prédio.
Sucede que tendo sido rejeitadas tais alterações (como todas as outras pretendidas) à matéria de facto provada na sentença recorrida, tornou-se definitivo o elenco de factos provados e não provados da mesma, não tendo a Apelante apresentado uma solução jurídica diversa da tomada na dita sentença para a hipótese de se manter, como se manteve, demonstrada a factualidade descrita designadamente sob os pontos de facto com os números 33 a 38 e 41 a 51, constantes do subsegmento dos factos considerados como provados.
Por outro lado, o argumento, igualmente apresentado no seu recurso pela Apelante, de que a erva aromática tomilho-limão não poderia ter sido considerada como produto de origem biológica, ou concebido em modo biológico, também falece uma vez que do cotejo dos factos vertidos sob os pontos de facto nºs 2, 8, 11 e 21 do subsegmento atinente aos factos considerados como provados na sentença recorrida resulta que a Apelada podia operar, como operou, a plantação de tal erva aromática, a par de outras, em modo de produção biológico, estando certificada para tal desde 2018.
Dito isto, impõe-se, porém, saber se a actividade prosseguida pela Apelante no seu prédio em 24/04/2018, 22/05/2018 e 08/06/2018, de aplicação de produtos fitofarmacêuticos para a prevenção do míldio e do oídio, em vista do tratamento fitossanitário da vinha plantada no seu prédio misto, consubstancia, ou não, uma actividade perigosa e bem assim se no caso concreto seria, ou não, de considerar um cenário de concorrência de culpas entre Apelante e Apelada, por esta não ter observado um “dever de precaução”.
Debrucemo-nos, então, sobre a primeira das apontadas questões.
Prevê o artigo 487.º do Código Civil, epigrafado “Culpa”, o seguinte:
1-É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa. […]”
Dispõe, por seu turno, o artigo 493.º do mesmo Código, epigrafado “Danos causados por coisas, animais ou actividades”, que:
“[…] 2-Quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.”
Refere a propósito desta norma Mário Júlio de Almeida Costa (“Direito da Obrigações”, Almedina, 12ª edição revista e actualizada, 2018, páginas 587-588), o seguinte:
“A estatuição alarga-se aos danos decorrentes do exercício de uma actividade perigosa, «por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados» (ex: fabrico de explosivos, navegação aérea, transporte de matérias inflamáveis, aplicação médica de raios X, ondas curtas). Deve tratar-se, pois, de actividade que, mercê de qualquer dessas razões, tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral. Apenas é excluída a responsabilidade derivada de tais danos, se o agente «mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir».
Como se apura, o legislador limitou-se a fornecer ao intérprete uma directriz genérica para identificação das actividades perigosas”.
A presunção de culpa reconhecida no transcrito n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, implica necessariamente uma inversão do ónus da prova (artigo 350.º, n.º 1, do CC), sendo aquela ilidível mediante prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, do CC), ou seja, exige-se fazer prova da falta de culpa, ou de que os danos se teriam igualmente verificado, o que tem que resultar do acervo da factualidade considerada como demonstrada.
Na sentença recorrida considerou-se que a actividade levada a cabo pela Apelante traduzida na aplicação de fungicidas através de pulverizadores de tractor com turbina deve ser rotulada de actividade perigosa, sujeita, como tal, ao regime do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil.
Tal actividade ficou, como sabemos, demonstrada nos autos através dos factos considerados como provados na sentença recorrida vertidos nos pontos de facto 22 a 33.
No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, acessível para consulta in www.dgsi.pt, proferido em 21/09/2004, no âmbito do processo n.º 620/04JTRC, referenciado na douta sentença recorrida, decidiu-se, conforme expresso no respectivo sumário, que:
A aplicação de herbicida pelo Réu, através de aspersão, consubstancia uma “actividade perigosa” dada a natureza tóxica do produto, sendo, por isso, aplicável a norma do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, que estabelece uma presunção legal de culpa (presunção juris tantum).
Vejamos como argumentou o Tribunal a quo na sentença recorrida a propósito da questão que vimos abordando:
“[…]
Ora, se a aplicação de herbicidas por aspersão constitui uma actividade perigosa, a aplicação de fungicidas através de pulverizadores de tractor com turbina constitui, em si mesma, uma fonte de perigo muito superior à que resulta da aplicação de herbicidas por aspersores. Com efeito, ao passo que a aplicação de herbicidas visa prevenir o crescimento de ervas daninhas, sendo o jacto da calda projectado para o solo para ser por ele absorvida e devendo ser utilizada uma pala para impedir a subida das gotículas que saem dos bicos pulverizadores, já a aplicação de pesticidas e fungicidas visa prevenir o aparecimento de doenças e fungos nas folhas e frutos pelo que o jacto da calda é projectado para toda a cobertura vegetal da planta, o que só por si já faz aumentar o perigo de deriva da pulverização para os terrenos contíguos, exponenciando-se ainda mais esse perigo se não forem usados bicos pulverizadores anti-deriva, se não se ajustar correctamente a saída do fluxo de ar de acordo com a densidade da cobertura vegetal das videiras, e se não forem observadas as condições atmosféricas e do vento recomendadas. Não só pela própria natureza tóxica dos produtos utilizados (pesticidas e fungicidas), como também pela natureza dos meios adoptados na aplicação desses produtos (pulverização dos produtos para a cobertura vegetal), a aplicação de fungicidas através de pulverizadores de tractor com turbina deve ser considerada uma actividade perigosa.
O legislador europeu e nacional reconheceu a especial perigosidade da actividade de aplicação de produtos fitofarmacêuticos ao estabelecer a obrigação de os utilizadores profissionais de produtos fitofarmacêuticos tomarem as providências necessárias à prevenção de consumação de perigos para terceiros.
O Regulamento (CE) n.º 1107/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Outubro de 2009, relativo à colocação dos produtos fitofarmacêuticos no mercado, tem por objectivo garantir um elevado nível de protecção da saúde humana e animal e do ambiente, preservando simultaneamente a competitividade da agricultura da Comunidade (Considerando 8).
A Lei n.º 26/2013, de 11 de Abril, com as alterações do Decreto-Lei n.º 35/2017, de 24 de Março, regula as atividades de distribuição, venda e aplicação de produtos fitofarmacêuticos para uso profissional e de adjuvantes de produtos fitofarmacêuticos e define os procedimentos de monitorização da utilização dos produtos fitofarmacêuticos, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2009/128/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro, que estabelece um quadro de ação a nível comunitário para uma utilização sustentável dos pesticidas, através da redução dos riscos e efeitos da sua utilização na saúde humana e no ambiente, promovendo o recurso à proteção integrada e a abordagens ou técnicas alternativas, tais como as alternativas não químicas aos produtos fitofarmacêuticos (artigo 1.º, n.º 1).
Damos, assim, por assente que a aplicação de fungicidas através de pulverizadores de tractor com turbina é uma actividade perigosa, sujeita ao regime do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil. […]”
Concordamos com a apreciação feita pelo Tribunal recorrido pelo que também no nosso entendimento é de catalogar a actividade desenvolvida pela Apelante como actividade perigosa para efeitos do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil.
Porém, impõe-se saber se a Apelante logrou empregar todas as providências exigidas pelas circunstâncias do caso concreto com o fim de prevenir a produção de danos para a Apelada.
Uma resposta positiva para tal, sublinha-se, apenas pode decorrer da matéria de facto dada como assente na sentença recorrida.
Sucede que, do cotejo dos factos elencados no subsegmento dos factos considerados como provados na sentença recorrida vertidos sob os pontos 34, 35, 37, 41, 42, 43, 44 e 45, percebemos, com relativa clareza, que a Apelante não empregou todos os procedimentos que lhe eram exigidos no contexto factual concreto dos autos por forma a prevenir a ocorrência de danos para a Apelada, designadamente na plantação de tomilho-limão desta última.
Na verdade, a expressão legal “todas as providências” não só não afasta o critério geral da diligência de um bom pai de família como aponta no sentido de o adaptar ao caso das actividades perigosas que exigem particulares cautelas, que não foram tomadas pela Apelante, violando a mesma, desse modo, deveres de prevenção do perigo inerente à actividade prosseguida.
Por outro lado, dúvidas não temos quanto ao carácter ilícito da actividade prosseguida pela Apelante, bastando-nos, no tocante a este pressuposto, remeter para a correcta exposição de motivos reproduzida pelo Mmº Juiz a quo na sentença recorrida, mormente no subsegmento intitulado “B) Ilicitude”, enquadrado no segmento dedicado à “Fundamentação Jurídica”.
E quanto ao pressuposto atinente ao nexo de causalidade a estabelecer entre a actividade prosseguida pela Apelante e a produção de danos na esfera da lesada, ora Apelada, assente no critério da adequação decorrente do artigo 563.º do CC, é nosso entendimento que a matéria de facto descrita no subsegmento dos factos considerados como provados sob os pontos 33 a 38 e 41 a 51 permite, sem margem para rebuços, considerar que a descuidada pulverização efectuada pela Apelante aquando dos tratamentos fitossanitários da sua vinha com fungicidas para combater o míldio e o oídio realizados, pelo menos, em 24/04/2018, 22/05/208 e 08/06/2018 foi causa adequada da contaminação da cultura de tomilho-limão desenvolvida pela Apelada no seu prédio nos sectores 1 e 2 levando um cliente alemão desta última a recusar receber e pagar uma parte da encomenda que fizera daquela erva aromática (num total de 4500 quilos a entregar faseadamente durante o período de um ano), traduzida num lote de 200 quilos, por virtude deste último conter comprovadamente resíduos de pesticidas (usados pela Apelante nos ditos tratamentos da sua vinha) em medida superior ao permitido por lei na agricultura biológica, negando-se até ao termo do contrato outorgado com a Apelada a receber dela mais tomilho-limão por recear que as colheitas posteriores estivessem igualmente contaminadas com fungicidas.
Sustentou ainda a Apelante nas suas conclusões recursivas um eventual concurso de culpas envolvendo a sua pessoa e a Apelada, por esta última não ter observado um “dever de precaução” que se lhe impunha em virtude de estar a plantar/cultivar em modo de produção biológico, sujeito a regras especificas.
Estatui o artigo 570.º do Código Civil, epigrafado “Culpa do lesado”, o seguinte:
1-Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
2-Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.”
Ora, a nosso ver, também não assiste razão à Apelante quanto a este aspecto.
Na verdade, do acervo da matéria de facto constante do subsegmento dos factos considerados como provados na sentença recorrida não vislumbramos qualquer conduta prosseguida pela Apelada que tenha concorrido para a produção ou agravamento da contaminação sofrida na plantação de tomilho-limão com pesticida em medida superior ao legalmente admissível em agricultura biológica e consequente recusa do cliente alemão em aceitar e pagar o preço acordado para a aquisição à Apelada de certa quantidade de tal erva aromática (200 quilos).
Nem sequer por omissão, pois considerando, designadamente, os factos descritos no subsegmento dos factos provados vertidos sob os pontos 34, 35, 37, 43, 44 e 45, é caso para questionar que procedimento com intuito cautelar e com um mínimo de eficácia poderia a Apelada ter tomado em vista a evitar a contaminação sofrida na sua plantação prosseguida em modo de produção biológico?
Salvo melhor opinião não o vislumbramos!
Resta aludir, por fim, à questão levantada pela Apelante na parte derradeira das suas conclusões recursivas atinente à aplicabilidade no caso concreto do disposto no artigo 494.º do Código Civil.
Prevê-se no artigo em apreço, epigrafado “Limitação da indemnização no caso de mera culpa”, o seguinte:
Quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifique.”
Ora, bastará uma simples leitura do articulado da contestação apresentado pela ora Apelante para percebermos que antes de o ter feito na peça recursiva dirigida contra a sentença recorrida a Apelante não invocou, para a eventualidade de vir a ser condenada em indemnização à Apelada, como veio a suceder, a redução do montante indemnizatório baseado na mera culpa, pois limitou-se a peticionar a sua absolvição dos pedidos contra si dirigidos pela ora Apelada, o que equivale a dizer que a Apelante suscitou em sede de recurso perante este Tribunal ad quem, ou seja em primeira mão, uma questão não debatida anteriormente no Tribunal a quo, por nem sequer suscitada perante o mesmo.
Sucede que, como sabemos, exceptuando questões de conhecimento oficioso o Tribunal de recurso limita-se a conhecer, reapreciando, de questões anteriormente apreciadas pelo Tribunal recorrido.
É o que se extrai com relativa clareza dos normativos plasmados nos n.ºs 2 e 3 do artigo 635.º do Código de Processo Civil.
No entanto, mesmo que se entendesse que a questão em apreço entroncava no domínio da mera indagação, interpretação e aplicação do direito o certo é que não resultaram provados factos na sentença recorrida que permitissem uma correcta aplicação do artigo 494.º do Código Civil ao caso vertente, por duas razões:
Em primeiro lugar porque o facto vertido sob o ponto 40 do subsegmento dos factos considerados como provados na sentença recorrida apresenta-se, em nosso entendimento, como apto a afastar a hipótese de simples descuido, desleixo e inaptidão (que caracteriza o conceito jurídico-civil da “mera culpa”), na pulverização realizada pela Apelante, pelo menos no tocante àquela que efectuou em 08/06/2018, apontando para acto cometido, pelo menos, com dolo eventual.
Em segundo lugar porque, mesmo descartando a possibilidade de actuação dolosa, não decorre do acervo dos factos considerados como provados na sentença recorrida factualidade ilustrativa da situação económica de Apelante e Apelada, que se traduz num dos requisitos a considerar cumulativamente para a aplicação do artigo 494.º do CC.
Conclui-se, assim, pela improcedência das conclusões recursivas igualmente quanto a esta última questão abordada, de que resulta improceder na totalidade o presente recurso.
*
V- Decisão
Termos em que, face a todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao presente recurso de Apelação interposto por Sociedade Agrícola “(…), Lda.” e, em consequência, decidir o seguinte:
1-Confirmar a sentença recorrida;
2-Fixar as custas a cargo da Apelante (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).
Notifique.
Évora, 16 de Dezembro de 2021
José António Moita (Relator)
Silva Rato (1º Adjunto)
Mata Ribeiro (2º Adjunto)