Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
26/19.0T9STC.E2
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: DIFAMAÇÃO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
ADVOGADO
MANDATO FORENSE
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O direito penal reveste natureza fragmentária, de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, não abarcando as meras insignificâncias.
II. Em sede de criação artística ou de debate político, há agressões típicas da honra que, não obstante, se tornam irrelevantes por força da liberdade de expressão. E por maioria de razão quando tal liberdade é exercida no âmbito do mandato forense.
III. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem vigora na ordem jurídica portuguesa com valor infraconstitucional mas superior ao direito ordinário.
IV. A CEDH faz uma clara opção na definição da maior relevância do valor “liberdade de expressão” sobre o valor “honra”. Ou seja, a “ponderação de valores” é normativa e já foi feita pela Convenção com uma clara preferência pelo valor “liberdade de expressão”.
V. A liberdade de expressão só pode ser sujeita a restrições nos termos excecionais previstos no art.º 10.º, n.º 2 da Convenção, pelo que as “formalidades, condições, restrições e sanções” à liberdade de expressão, devem ser convenientemente estabelecidas, corresponderem a uma necessidade imperiosa e interpretadas restritivamente.
VI. A jurisprudência do TEDH, a observar pelo Estado Português no cumprimento do art.º 10.° da CEDH, tem entendido que a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um, sendo válida não só para as informações ou ideias acolhidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam ou ofendem, já que assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há “sociedade democrática”.
VII. Mais, tem considerado o TEDH que a liberdade de expressão também se aplica aos advogados. Onde, além da substância das ideias e informações expressas, abrange o seu modo de expressão conexa com a independência da profissão de advogado, que é crucial para o funcionamento eficaz da administração de uma justiça que se pretende justa.
VIII. Daí que só excecionalmente possa numa sociedade democrática ser admissível a aplicação de qualquer sanção penal (por mais leve que seja) a um advogado no exercício do respetivo mandato forense, enquanto limite que afete a respetiva liberdade de expressão.
IX. Como regra tem entendido o TEDH que as razões apresentadas pelos tribunais nacionais para justificar as condenações de advogados no exercício de mandato forense não podiam ser consideradas pertinentes e suficientes e não correspondiam a nenhuma necessidade social premente. Tratando-se de interferências no exercício do seu direito à liberdade de expressão, desproporcionadas e desnecessárias numa sociedade democrática.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora

I- Relatório

Foi proferida decisão instrutória de não pronúncia da arguida AA pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º do Código Penal, que lhe vinha imputado em acusação particular do assistente BB.

Inconformado recorre este último, suscitando, em síntese, a seguinte questão:

- saber se as expressões proferidas pela arguida, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar apuradas, revestem dignidade penal, consubstanciando o tipo de crime de difamação imputado na acusação particular.


*

O MP e a arguida responderam ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência.

Nesta Relação o Exº PGA pronunciou-se no mesmo sentido.

*

II- Fundamentação

Despacho recorrido (parte relevante)

“BB constituiu-se assistente nestes autos.

Na qualidade de assistente, BB veio deduzir acusação particular, no qual imputa à arguida AA a prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal – fls. 123 a 125, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.

O Ministério Público não acompanhou a acusação particular – fls. 130 e 131.

Não se conformando com a acusação particular, AA requereu a abertura de instrução, nos termos melhor constantes do respetivo requerimento, constante de fls. 156 e seguintes. Termina peticionando despacho de não pronúncia.

Foi proferido despacho de admissão da instrução.

No inquérito foi produzida prova testemunhal e documental. Na instrução, não se procedeu à produção de prova.

Não se vislumbrando qualquer outro ato instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade material, realizou-se o debate instrutório, mediante a observância dos formalismos legais, nos termos dos artigos 298.º, 301.º e 302.º, todos do CPP, cumprindo agora, nos termos do artigo 308.º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória…

Da fundamentação de facto

Factos suficientemente indiciados constantes da acusação particular do assistente:

- Dão-se como indiciados os factos elencados de 1 a 4 da acusação particular constante de fls. 123 e seguintes.

Não resultam indiciados quaisquer outros factos relevantes para o que cumpre apreciar, ou os mesmos não assumem qualquer relevância no âmbito do objeto destes autos.

Em sede de inquérito, foram realizadas as diligências que se afiguraram úteis para apurar os factos ocorridos, determinar os seus agentes e sua responsabilidade, bem como recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação. De tudo, não restam dúvidas da utilização de tal expressão pela arguida, em conformidade com a prova documental carreada para os autos.

Efetivamente, nestes autos não existe efetiva factualidade controvertida porquanto o essencial que cumpre decidir é se as palavras proferidas pela arguida são suscetíveis ou não de constituírem ilícito criminal. Ou seja, do que se trata nestes autos é tão-só se averiguar se a expressão utilizada pela arguida configura a prática de qualquer ilícito de natureza criminal. Ora, face à prova documental carreada para os autos não restam dúvidas da utilização de tais expressões pela mesma. Da análise da prova carreada para os autos – devidamente articulada e conjugada entre si – dão-se as expressões reproduzidas na acuação particular como suficientemente indiciadas. A questão dos autos é, pois, e acima de tudo, uma questão de Direito.

Da fundamentação de direito

BB veio deduzir acusação particular, no qual imputa à arguida AA a prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal.

O crime de difamação está previsto nos artigos 180.º e 181.º do Código Penal, resultando a agravação do artigo 184.º e a equiparação está preceituada no artigo 182.º do mesmo Código, que se transcrevem:

Artigo 180.º Difamação

1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2 - A conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.

4 - A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.

São elementos do tipo objetivo do crime de difamação que o agente (I) se dirija a outra pessoa e (II) impute um facto, formule ou reproduza um juízo de valor ofensivo da honra ou da dignidade de terceiro. Esta imputação basta-se com factos desonrosos ou com juízo de valor de carácter desonroso ou ofensivo, admitindo o dolo em qualquer das suas modalidades. Afasta-se a punibilidade quando o facto imputado for verdadeiro a sua divulgação prosseguir interesses legítimos.

Com estas incriminações, a nossa lei procura tutelar o bem jurídico honra e consideração, entendido como um “bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior” – cfr. Faria Costa, “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, página 607. A honra e consideração pessoal têm assento constitucional nos artigos 25.º (direito à integridade pessoal) e 26.º (direito à protecção do bom nome) da Constituição da República Portuguesa.

Nas palavras de Augusto Silva Dias, sobre o conteúdo do artigo 26.º da C.R.P. “Como explicitação directa do princípio da dignidade humana integra este núcleo essencial representativo da dimensão existencial do homem, pelo que, sem a sua proteção perante certas agressões, não é concebível o desenvolvimento social da pessoa. O seu conteúdo é constituído, basicamente, por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros. Sem a observância social desta condição, não é possível à pessoa realizar os seus planos de vida e os seus ideais de excelência na multiplicidade de contextos e relações sociais em que intervém.” (cfr. “Alguns Aspectos do Regime Jurídico dos Crimes de Difamação e de Injúrias”, A.D.F.D.L., 1989, pg. 17).

E quanto à noção de honra e consideração, é expressiva a definição dada por Beleza dos Santos, “a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale. A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração e ao desprezo público” (in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 92.°, págs. 161 e 168).

O preenchimento deste tipo legal de crime implica que sejam feitas imputações directas de 1) factos (ainda que meramente sob a forma de suspeita) que constituem algo objectivo, um acontecimento da vida real, um fenómeno da natureza ou manifestação concreta dos seres vivos, em particular os actos praticados pelas pessoas ou os seus comportamentos, podendo provar-se que aconteceram, uma vez que se tratam de realidades objectivas, ou de 2) juízos que constituem apreciações valorativas ou manifestações de uma opinião de quem os emite, produto de determinada reflexão e da sua perspectiva das coisas e do mundo.

Contudo, tais factos ou juízos devem ser objetivamente ofensivos da honra e consideração de uma pessoa.

De facto, da natureza subsidiária do direito penal, decorrente do princípio da necessidade enquanto matriz orientadora em matéria de direitos fundamentais e princípio jurídico-constitucional previsto no artigo 18.°, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, emerge o princípio da intervenção mínima do direito penal, por via do qual este não deverá intervir quando seja possível proteger o bem jurídico – com idêntica ou superior eficácia - através de distintas e menos onerosas intervenções tutelares (cfr. Faria Costa, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 683).

A conduta, para integrar o tipo legal de injúria e de difamação, deve ser, pois, adequada a produzir a ofensa nos bens jurídicos tutelados.

“A adequação das expressões para atingir o bem jurídico protegido deve ser feita, não de acordo com a susceptibilidade pessoal de quem quer que seja (o direito penal protege direitos fundamentais dos cidadãos e não particularidades deste ou daquele sujeito), mas sim tendo em conta a dignidade individual a que todos têm direito.” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 09.02.2011, no processo n.º 831/09.6TACBR.C1, acessível em www.dgsi.pt).

A par da sua valência subjectivo-individual, os direitos fundamentais têm uma dimensão marcadamente objectiva. Como defende Vieira de Andrade “os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares, antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade como valores ou fins que esta se propõe prosseguir” – cfr. Vieira de Andrade, in “Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976”, Almedina, pág. 144.

Ora, nem todo o facto ou juízo que envergonha, humilha e/ou perturba cabe na previsão objectiva do artigo 181.º do C.P.. Não é qualquer comportamento incorrecto ou indelicado que merece tutela penal, devendo distinguir-se as situações que integram um ilícito penal das demais condutas que serão indelicadas, grosseiras ou reveladoras de educação do agente, mas que, não obstante, não configuram qualquer ilícito (cfr. Beleza dos Santos, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92, pág. 167, Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 09.02.2011, no processo n.º 16/07.6S6LSB.L1-3, do Tribunal da Relação de Guimaraes, datado de 25.02.2008, no processo n.º 2180/07-2, in www.dgsi.pt).

Ao Direito Penal não cabe proteger as pessoas face a comportamentos indelicados ou mesmo boçais ou perante meras impertinências (cfr. Oliveira Mendes, “O Direito à Honra e a sua Tutela Penal”, Almedina, pág. 39).

Não podemos olvidar que “é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas”. Todavia “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 12.06.2002, no processo n.º 332/02, disponível em www.dgsi.pt).

Como também refere o Beleza dos Santos “nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível”, tanto mais que “pessoas com um amor próprio tal, com uma estima tão grande pelo seu eu, atribuindo um valor de tal maneira excessivo àquilo que possa tocá-los e ainda ao que dizem e pensam ou outros, que se consideram ofendidos por palavras ou actos que, para a generalidade das pessoas, não constituem ofensa alguma” (cfr. “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 92.º, pág. 165).

Para se determinar se a expressão, a imputação ou a formulação de juízos de valor têm relevância típica no âmbito dos crimes contra a honra deverá atender-se, assim, ao contexto em que o agente actuou, às razões que o levaram a agir como agiu, à maior ou menor adequação social do comportamento, tudo dependendo da “intensidade” da ofensa ou perigo de ofensa (cfr. Oliveira Mendes, “O Direito à Honra e a sua Tutela Penal”, Almedina, pág. 39).

Quanto ao elemento subjetivo, o crime de injúria e de difamação é um crime essencialmente doloso, podendo o dolo consubstanciar-se em qualquer das suas modalidades (artigo 14.º do Código Penal). A verificação do crime de difamação basta-se com a consciência de que o que se disse ofende a pessoa visada na sua honra e consideração, sem necessidade de qualquer dolo específico (animus injuriandi).

*

In casu, as expressões proferidas pela arguida - constantes do facto 3 da acusação particular - mostram-se vagas, muito abrangentes, ambíguas e, verdadeiramente, das mesmas não resulta a imputação de um facto concreto e preciso ao assistente.

A utilização de tais palavras não são, a nosso ver, típicas e ilícitas.

Em primeiro lugar, não foram usadas expressões que reputemos agressivas, ofensivas ou torpes, pelo que não se pode falar de uma imputação de factos ofensivos da honra e consideração do assistente. As expressões dirigidas pela arguida ao assistente, por si só, não se mostram adequadas a produzir qualquer lesão penalmente relevante na honra e consideração social do assistente.

Estamos, é certo, perante expressões que serão despropositadas, inconvenientes, desrespeitosas e inapropriadas. Mas as mesmas não atingem o patamar da esfera de proteção do direito penal. Ou seja, não atingem o núcleo essencial do bem jurídico da honra e do bom nome tutelado pelo crime imputado. Em síntese, não assumem tais expressões facto lesivo da honra e consideração do assistente.

Pese embora se aceite que o assistente tenha ficado incomodado, melindrado, indignado e perturbado com a utilização de tais expressões da arguida, não podemos deixar de concluir que tal apenas constitui uma mera ofensa subjetiva, isto é, uma ofensa sentida pelo assistente, atenta a sua posição social e familiar e a eventual sensibilidade do mesmo, mas apenas e tão isso e nada mais.

Não encontramos na imputação do facto em causa nos autos qualquer relevância injuriosa ou difamatória, não se inferindo da imputação feita pela arguida que a mesma colocasse em crise a respeitabilidade pessoal do assistente.

E, como tal, os factos descritos na acusação particular do assistente não são suficientes para despoletar a intervenção do Direito Penal, uma vez que tais factos não são socialmente relevantes, nem os mesmos são genericamente sentidos pela comunidade como ofensivos da honra e consideração.

Refira-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 19.12.2007, no processo n.º 0745811 (in www.dgsi.pt) onde se considerou que a expressão “és um palhaço”, ainda que proferida para manifestar desconsideração, não é ofensiva da honra ou consideração do visado”. Ora, do nosso ponto de vista, seria a expressão “és um palhaço”, bem mais gravosa para ofender a honra ou consideração do assistente do que as expressões utilizadas pela arguida.

Efetivamente, entendemos não revestirem as palavras ora em apreço, concretamente narradas no artigo 3 da acusação particular, natureza criminal - cfr., nesse sentido, a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.07.2017, acessível em www.dgsi.pt, onde se lê que “a jurisprudência dos tribunais superiores (respigando apenas a mais recente) tem acentuado o falado princípio da intervenção mínima, mesmo que sobre a sensibilidade (ou mesmo a susceptibilidade daquele visado com os epítetos ditos injuriosos), no entendimento de que não integram o tipo objectivo do ilícito em questão as expressões «palhaço» (…), «camelo» (…), «abutre» (…), «maluco» (…), «bêbado», «deficiente» (…), «chavalo» (…), «fascista», «ditador» (…)”.

É que o direito penal “não pune por motivos unicamente individuais, mas pela projeção social dos crimes” (cfr. Beleza dos Santos, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 92.º, pág. 165).

As expressões utilizadas pela arguida não colidem com o conteúdo ético da personalidade moral do assistente, nem atinge valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do Direito Penal, nem sequer afetando aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana, e tão-pouco atingem o conteúdo essencial do direito constitucional à honra e ao bom nome.

Entendemos que as palavras em causa expressam apenas uma opinião, dando-se aqui por integralmente reproduzidos os fundamentos expressos pelo Ministério Público a fls. 130 e seguintes quando decidiu não acompanhar a acusação particular aduzida pelo assistente. Neste contexto, poucas dúvidas se terão que sempre seria a arguida absolvida em sede de julgamento, pelo que cumpre determinar a não pronúncia da arguida pela factualidade e ilícito imputados em sede de acusação particular.

Atentas as considerações antecedentes, conclui-se que os factos imputados à arguida na acusação particular do assistente não integram a prática do crime que aí lhe é imputado, nem de qualquer outro, por não assumirem relevância criminal.

Decisão

Em face do exposto, ao abrigo do artigo 308, n.º 1, in fine, do CPP, decido não pronunciar a arguida AA pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º do Código Penal, que lhe é imputado em sede de acusação particular do assistente…”.

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Apreciando

Vejamos, antes de mais, os factos considerados indiciados (1 a 4 da acusação particular):

“1- A Arguida exerce profissionalmente e de forma remunerada a atividade de Advogada, nesta Comarca;

2- A Arguida foi constituída Mandatária no âmbito do Processo n.º …. GHSTC cujo inquérito correu termos na secção de Santiago do Cacém do Departamento de Investigação e Acção Penal;

3- A arguida, no exercício do seu mandato forense e no decorrer de uma diligência, no dia 04.04.18, dirigindo-se à Senhora Procuradora Adjunta, que presidia à diligência e na presença do Senhor funcionário do Ministério Publico e da sua constituinte, aquando das declarações complementares desta, proferiu a seguinte afirmação:

"Os pais da Cátia, são umas pessoas impecáveis e os pais do BB, também. Os avós paternos. E o senhor, se calhar, se não bebesse, é o que eu acho, porque eu também conheço a pessoa, pese embora eu esteja aqui como advogada, é uma pessoa cinco estrelas.

Porque ele até é bom pai, e até é uma pessoa agradável, quando não bebe. Este é que é o problema deste processo …/…».

4- Tais afirmações foram gravadas no dia 4.4.18 ao minuto 44.15 da diligência que estava a decorrer”.

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Entende o recorrente que “a arguida, no exercício da sua profissão era e é-lhe exigido, porque tem obrigação pessoal e processual de não emitir quaisquer juízos de valor sobre os intervenientes processuais, não só porque como refere nas declarações que prestou nos presentes autos, nunca presenciou nenhum dos factos que imputou ao Recorrente,

Mas sobretudo, porque alega ter o seu conhecimento advindo do que a sua cliente lhe transmitiu, pese embora esta o negue perentoriamente nas suas declarações em 16.09.2019, quando refere:" Quer que fique claro que nunca disse que ele não era bom pai quando bebia, ou quando não bebia. Sempre disse que ele era bom pai."

“A arguida utiliza expressões que são, em si, ofensivas e que ultrapassam, em muito, os limites da liberdade de expressão, pelo que o uso das mesmas configura, indiciariamente, a prática do crime que lhe é imputado na acusação. Neste sentido se pronunciaram já os nossos tribunais, Cf. Ac. TRL 11/12/19, Proc. 4695/15.2 T9PRT. L1-9”.

Por seu turno o MP entende que “a factualidade denunciada não integra a prática de tal crime, ou de qualquer outro, motivo pelo qual resta, pois, ao Ministério Público consignar o não acompanhamento da acusação particular ora deduzida pelo Assistente.

Na verdade, as expressões proferidas pela arguida, s.m.o., não se afiguram integrantes da prática de tal ilícito criminal, tratando-se apenas da expressão de uma opinião pessoal da mesma, a qual se mostra incluída no seu direito fundamental de liberdade de expressão. Trata-se, pois, de um mero juízo valorativo condicional e pessoal, emitido por parte da arguida, com base naquilo que lhe teria sido transmitido, e o qual, muito embora o momento do seu proferimento não tenha sido o mais adequado, não se constitui como ataque à honra ou à consideração do assistente, nem assume gravidade ou relevância para merecer a tutela do direito penal, nem mesmo se pode concluir que a arguida tenha actuado com a consciência, de que a sua conduta era de molde a produzir a ofensa da honra e consideração de alguém (sendo certo que tal tipo incriminador não admite a imputação a título negligente – cfr. artigo 13.º do Código Penal)”.

E a aqui arguida pugna, igualmente, pela improcedência do recurso, estribando-se para o efeito na jurisprudência do TEDH, em vinte Acórdãos de Tribunais Superiores, em vários Acórdãos do Conselho Superior e pelo menos em dois Pareceres do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, mais aduzindo o seguinte acerca do único acórdão trazido à liça pelo recorrente:

“Ademais, salienta-se que nem sequer o único aresto jurisprudencial invocado pelo recorrente em defesa da sua “tese” é minimamente aplicável ao caso ora em apreço;

assim, veja-se que no n.º 30 das alegações de recurso do assistente e no n.º 11 das Conclusões das mesmas, o assistente refere-se a um Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/12/2019 45 – mas não descortinamos com que finalidade... pois que, recordamos, tratou-se ali de um caso muitíssimo diferente do ora aqui em apreciação.

[Recordamos que aquele Acórdão respeita a uma situação em que o Advogado (já falecido) do Ex-Primeiro-Ministro CC, à saída de uma diligência no Supremo Tribunal de Justiça e perante dezenas de jornalistas que ali se encontravam, recusou-se a responder às perguntas da jornalista DD do Correio da Manhã e disse-lhe “A senhora devia tomar mais banho porque cheira mal”, sendo que esta frase foi imediatamente vista e ouvida, em direto, por milhões de portugueses e ainda hoje consta em centenas de entradas do GOOGLE].

Ou seja, temos para nós que – e com todo o respeito pelo recorrente o dizemos –, este, ao chamar agora à colação aquele Acórdão do TRL, está a “comparar alhos com bugalhos”... ou, quiçá, a tentar “tapar o sol com a peneira” e, manifestamente, a “atirar o barro à parede”.

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Vejamos, então, se as expressões proferidas pela arguida, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar apuradas, revestem dignidade penal, consubstanciando o tipo de crime de difamação imputado na acusação particular.

E analisando o caso, resulta evidente que o recurso não pode proceder, muito menos numa situação, como a presente, de intervenção da arguida, enquanto advogada, na defesa da sua cliente em plena diligência judicial.

Não é necessário qualquer esforço intelectual ou interpretativo para acompanhar o Tribunal a quo quando considera que:

“In casu, as expressões proferidas pela arguida - constantes do facto 3 da acusação particular - mostram-se vagas, muito abrangentes, ambíguas e, verdadeiramente, das mesmas não resulta a imputação de um facto concreto e preciso ao assistente.

A utilização de tais palavras não são, a nosso ver, típicas e ilícitas.

Em primeiro lugar, não foram usadas expressões que reputemos agressivas, ofensivas ou torpes, pelo que não se pode falar de uma imputação de factos ofensivos da honra e consideração do assistente. As expressões dirigidas pela arguida ao assistente, por si só, não se mostram adequadas a produzir qualquer lesão penalmente relevante na honra e consideração social do assistente”.

Daí que, acompanhando a jurisprudência indicada no Ac. TRE 26-4-2022, pr. 46/20.2 T9ADV.E1 e, conforme entendimento generalizado dos tribunais superiores, nomeadamente do STJ, um acórdão da Relação que confirma um despacho de não pronúncia da 1.ª instância é um acórdão absolutório.

Ora estabelece o art. 425º, nº5, do CPP, que os acórdãos absolutórios enunciados na alínea d) do n.º 1 do artigo 400.º, que confirmem decisão de 1.ª instância sem qualquer declaração de voto, podem limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada.

Pelo que, tudo visto e ponderado e nos termos do disposto no art. 425º, nº5, do CPP, nega-se provimento ao recurso, pelos fundamentos constantes dos pontos acabados de transcrever da decisão impugnada, para os quais nos remetemos, ao abrigo da disposição legal citada.

*

Não obstante, de forma necessariamente sintética, sempre se adiantarão mais alguns tópicos sobre o tema, até em face da forma como o recurso surge estruturado.

Cumprindo salientar, desde logo, que uma vez que foram dados como não indiciados todos os factos integrantes do elemento subjectivo do crime em causa, a fim de retirar algum proveito útil do recurso, sempre se imporia ao recorrente que impugnasse a matéria de facto, dando para o efeito adequado cumprimento ao disposto no art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP[1], o que não se mostra de todo efectuado e só por si sempre conduziria de igual forma ao decesso do recurso.

Acresce que o recorrente não tem qualquer razão, nem no apelo que faz ao afirmado pela cliente da arguida nas declarações de 16-9-2019, nem na referência ao Ac. TRL de 11-12-2019, pr. 4695/15.2 T9PRT.L1-9.

No tocante às primeiras porque se detecta que a alusão do recorrente às declarações da cliente da arguida em 16-9-2019 e as conclusões que das mesmas retira, se encontram muito aquém do que foi efectivamente ali declarado por esta.

Assim, a fls. 22 deste processo em auto de 4-4-2018 (relativo ao pr. 408/17.2) refere a cliente da aqui arguida o seguinte:

“A assistente declarou concordar com a aplicação da suspensão provisória do processo pelo prazo de 18 meses sob as condições cumulativas de o arguido:

- se submeter a tratamento debelativo da dependência do álcool no sistema nacional de saúde cumprindo a medicação e a terapêutica prescritas até alta clínica;

- proibição de contactos com a assistente….”.

E, nas declarações de 16-9-2019 (fls. 89 e 90 dos autos) foi dito pela mesma o seguinte:

“Nunca fez a afirmação tal como ela foi dita pela sua Advogada na altura, mas sempre lhe disse, no âmbito dos contactos que necessariamente mantiveram no processo 408/17.2 GHSTC (no qual era sua mandatária, muito embora agora já não seja) que o assistente, BB, nunca tratou mal os filhos, quer bêbado, quer não. Nunca disse à sua Advogada que o BB, quando não bebia, era bom pai, nem quando não bebia.

Disse-lhe que ele bebia, e fê-lo tanto à advogada com no inquérito supra referido, porque tal corresponde à verdade (embora actualmente não saiba se tal ainda se verifica), até porque aquele processo até foi iniciado em virtude de uma situação em que ele se encontrava muito alcoolizado.

Quer que fique claro que nunca disse que ele não era bom pai quando bebia, ou quando não bebia. Sempre disse que ele era bom pai”.

E perante tais declarações da cliente, as expressões que se encontram em causa neste processo (“E o senhor, se calhar, se não bebesse, é o que eu acho” e “até é uma pessoa agradável, quando não bebe”) são perfeitamente irrelevantes e inócuas, não permitindo por forma alguma as extrapolações empreendidas pelo recorrente, muito menos numa situação, como a presente, de intervenção da arguida, enquanto advogada, na defesa da sua cliente em plena diligência judicial (voltamos a reafirmá-lo).

E a referência ao Ac. TRL de 11-12-2019, pr. 4695/15.2 T9PRT.L1-9, em abono da respectiva tese, tão pouco pode colher, tal qual bem enunciou a própria arguida na respectiva resposta.

“Ademais, salienta-se que nem sequer o único aresto jurisprudencial invocado pelo recorrente em defesa da sua “tese” é minimamente aplicável ao caso ora em apreço;

assim, veja-se que no n.º 30 das alegações de recurso do assistente e no n.º 11 das Conclusões das mesmas, o assistente refere-se a um Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/12/2019 45 – mas não descortinamos com que finalidade... pois que, recordamos, tratou-se ali de um caso muitíssimo diferente do ora aqui em apreciação.

[Recordamos que aquele Acórdão respeita a uma situação em que o Advogado (já falecido) do Ex-Primeiro-Ministro CC, à saída de uma diligência no Supremo Tribunal de Justiça e perante dezenas de jornalistas que ali se encontravam, recusou-se a responder às perguntas da jornalista DD do Correio da Manhã e disse-lhe “A senhora devia tomar mais banho porque cheira mal”, sendo que esta frase foi imediatamente vista e ouvida, em direto, por milhões de portugueses e ainda hoje consta em centenas de entradas do GOOGLE].

Ou seja, temos para nós que – e com todo o respeito pelo recorrente o dizemos –, este, ao chamar agora à colação aquele Acórdão do TRL, está a “comparar alhos com bugalhos” ... ou, quiçá, a tentar “tapar o sol com a peneira” e, manifestamente, a “atirar o barro à parede”.

Sendo evidente a diferença entre as duas situações, a aqui arguida actuando no seu papel de advogada em plena diligência judicial, o que seguramente não ocorria com o falecido advogado, cuja boçal intervenção nada tinha, além do mais, fosse o que fosse a ver com o processo ou com os respectivos intervenientes.

Relembre-se, a propósito, o que afirma Costa Andrade in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Uma perspectiva jurídico-criminal, 293:

"Uma expressão degradante só assume o carácter de «difamação» quando nela não avulta em primeiro plano a discussão objectiva das questões mas antes o enxovalho das pessoas. Para além da crítica polémica e extremada tem de se visar o rebaixamento das pessoas (...). Só poderá falar-se de «difamação» quando o juízo de valor ou a crítica perdem todo o contacto com a obra, a prestação ou o problema que os motiva ou com a discussão das questões de interesse comunitário. E, em vez disso, passam a obedecer apenas ao propósito de rebaixamento de uma pessoa. Atingindo-a no sentimento de auto-estima ou ferindo-a na sua dignidade pessoal e consideração social".

*

Depois, sempre importaria ter presente que o direito penal reveste natureza fragmentária, “de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, não abarcando meras insignificâncias, como entende pacificamente a doutrina e vem sendo defendido em diversa jurisprudência desta Relação.

Assim, por exemplo, pode ler-se no Ac. TRE de 7-12-2012, pr. 488/09.4TASTB.E1, rel. Ana Brito:

“…o direito penal reveste natureza fragmentária, “de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena” (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 43).

Tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito.

Assim, nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético ou menos lícito, mesmo até quando formalmente pareça integrar-se num tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos.

No caso, a lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre. E tal valoração far-se-á de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural. Pois, voltando a Beleza dos Santos, “nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis” (Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria, RLJ 92, p.167).

Este princípio da insignificância intervém como uma máxima interpretativa do tipo, servindo para excluir condutas que formalmente ou externamente são típicas, mas que materialmente o não são.

A insignificância penal exclui, por isso, a tipicidade. E as condutas insignificantes não serão típicas porque o seu sentido social não é de ofensa do bem jurídico.

Figueiredo Dias atribui ao princípio da insignificância um carácter regulativo: ele não intervém só ao nível do tipo ou da culpabilidade, mas sim nas várias categorias da doutrina do crime – sem prejuízo de admitir que esta intervenção se dá sobretudo ao nível da tipicidade (Direito Penal, Parte Geral, I, 2004, 624-625).

Em face do exposto, de acordo com os princípios da fragmentariedade, da intervenção mínima e da proporcionalidade do direito penal, mas também os da insignificância e da adequação social, resulta claro que a conduta dos arguidos não contraria o sentido social de valor contido no tipo e, por isso, não preenche materialmente o crime de difamação do artigo 180º do Código Penal…”.

Ou no Ac. TRE de 13-9-2022, pr. 959/18.1T9ABF.E1, rel. João Amaro:

“Ora, nem todas as expressões que comportam uma apreciação negativa do exercício de funções… ou que comportem uma apreciação negativa de outrem, em geral, têm necessariamente carga ofensiva tal que justifiquem a mobilização do direito penal, que é sempre uma mobilização a fazer como ultima ratio, tributária da sua natureza subsidiária ou fragmentária, e quando a lesão a bens jurídicos se revela digna de pena; limites que encontram sustentação constitucional no artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa”.

*

Finalmente, importaria não descurar que estamos perante afirmações da ora arguida, no exercício da advocacia, em diligência judicial, e perante uma tal situação, haverá que relembrar, desde logo, os próprios Pareceres do Plenário do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, referidos pela aqui arguida:

Desde logo o Parecer, aprovado em 17/06/2005 pelo Plenário do Conselho Geral da Ordem dos Advogados onde, precisamente acerca da liberdade de expressão do advogado, se concluiu que:

«(…) 2. O “ambiente” próprio da administração da justiça pressupõe, por parte do juiz, a assunção da tolerância, humildade e disponibilidade aptas a afastar susceptibilidades exacerbadas face a comportamentos de advogados, aceitando deixar recuar os limites dentro dos quais a sua honra e consideração devem ser tuteladas pelo direito (penal ou disciplinar). Assim deve ser, em nome da liberdade de expressão e actuação no exercício do patrocínio e do mandato forense, a qual só pode ser garantida se for afastado o receio da perseguição sancionatória: sem isso, não há advocacia livre e independente nem administração da justiça adequada ao Estado de Direito Democrático.

3. Têm dignidade constitucional o direito ao patrocínio e ao acompanhamento por advogado (artigo 20.º, n.º2, da CRP), assim como a têm o próprio mandato e o patrocínio forenses (artigo 208.º), o que torna mais evidente e pressuposta a necessidade irrestrita de condições de actuação em inteira liberdade. Tanto a Constituição como a lei ordinária estipulam que a lei “assegura” aos advogados as imunidades necessárias ao exercício eficaz do mandato; imunidade que é “assegurada” pelo reconhecimento legal e garantia de efectivação do direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão (artigo 114.º, n.º 1 e 3.º, alínea b), da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro).

4. Nos termos do artigo 31.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída, nomeadamente, por tal facto ser praticado no exercício de um direito. Em terrenos como os da criação artística ou do debate político, há agressões típicas da honra que, não obstante, se tornam irrelevantes em nome da liberdade de expressão. Por maioria de razão e maior valor, o efeito justificativo tem de valer também em casos do domínio do exercício do mandato e do patrocínio forense, atentos os motivos referidos”.

Ou o Parecer de 23/09/2005, Plenário do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, onde então se concluiu, designadamente, que:

«(...) Igualmente vigorosa é a longa tradição da liberdade de expressão dos Advogados portugueses no exercício do patrocínio forense. A sua vitalidade não soçobrou mesmo durante as quatro décadas de vigência da Constituição de 1933, período em que a praxis política autoritária e as restrições aniquiladoras deram um sentido meramente declamatório à enunciação constitucional do direito à liberdade de expressão.

Os Tribunais reconheceram sempre este princípio da liberdade de expressão dos Advogados. São abundantes os registos dos arestos do Supremo Tribunal de Justiça e dos Tribunais das Relações que o proclamam.

O patrocínio judiciário, o acompanhamento por Advogado, o direito de defesa do arguido em processo criminal (cuja expressão prática é dada pelo Advogado) têm, agora, a dignidade e a imperatividade que resulta da sua consagração constitucional (artigos 20.º e 32.º da CRP). O patrocínio forense é reconhecido constitucionalmente como “elemento essencial à administração da justiça” (artigo 208.º da CRP). A livre actuação do Advogado no exercício do patrocínio forense é, pois, inquestionavelmente, uma exigência do Estado de Direito e uma instituição de interesse público.

Se o Advogado estivesse privado de “exprimir livremente o seu pensamento, de apreciar, discutir e criticar tudo quanto julgue conveniente ao bom desempenho do seu mandato e até onde lhe pareça necessário”, o direito de defesa seria esvaziado do seu conteúdo e perderia todo o sentido o conceito de tutela judicial efectiva - não seria possível a realização da justiça.

A intervenção do Advogado no exercício do patrocínio forense está onerada por deveres deontológicos. Entre outros, pelos consignados no n.º 2 do artigo 92.º, na alínea b) do n.º 1 do artigo 95.º e no artigo 85.º, todos do Estatuto da Ordem dos Advogados. Ele tem o dever “de agir de forma a defender os interesses legítimos do seu cliente”, “de estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e actividade”, de “defender os direitos, liberdades e garantias”, de “pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e instituições jurídicas” – tem [o Advogado] o dever de dizer tudo quanto julgue conveniente ao bom desempenho do seu mandato, ainda que arrisque afrontar o direito ao bom nome e reputação de outrem.

O discurso da defesa não é asséptico ou vazio de intenção, nem é um ensaio científico ou uma comunicação estritamente técnica. É construído para vir a prevalecer, convencendo o julgador. Usa uma linguagem, que para lá da sua dimensão intelectual, tem uma dimensão emocional. É produzido no seio de um debate contraditório, em ambiente carregado de conflitualidade e de que não está ausente a emoção trazida da contenda da vida real para o cenário judicial. Esta exigente e complexa missão do Advogado – indispensável à boa administração da justiça e, portanto, de interesse público – só pode ser cumprida em condições de plena liberdade.

O mandato forense não pode, pois, ser exercido em estado de constrangimento ou sob o perigo de, a cada passo, serem invocadas contra o Advogado reacções criminais ou disciplinares decorrentes da tutela da honra dos restantes intervenientes processuais.

(...) Este confronto entre o direito à liberdade de expressão do Advogado no exercício do patrocínio forense e a tutela do direito à honra das outras personagens processuais põe em risco o núcleo essencial daquele direito e faz perigar, por isso, de forma intolerável, a função pública que dele depende a administração da justiça.

Perante tal confronto, é necessário que a tutela da honra dos Juízes, dos representantes do Ministério Público, dos Advogados das contrapartes e dos demais intervenientes no processo recue para a fronteira que lhe é imposta pela necessidade de conservação do núcleo essencial do direito à liberdade de expressão do Advogado.

Na ponderação dos valores assim em conflito, a Constituição, no seu artigo 208.º, determinaque “alei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercíciodo mandato e regula opatrocínioforensecomoelementoessencial à administraçãodajustiça”.O programa destanorma constitucional foi regulado pelo artigo 114.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais) que, no seu n.º 3, dispõe: “A imunidade necessária ao desempenho eficaz do mandato forense é assegurada aos advogados pelo reconhecimento legal e pela garantia de efectivação, designadamente: (…) b) do direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão; (…)”. Ficou, assim, regulamentado o espaço de conflito entre o direito à liberdade de expressão e de crítica do Advogado no exercício do patrocínio forense e o direito à honra dos outros intervenientes no processo.

O Advogado tem “a palavra e a mão inteiramente livres” – como defendeu o Prof. Alberto dos Reis. E não pode ser perseguido pela sua conduta no exercício do patrocínio forense, salvo se violar os deveres consagrados no Estatuto da Ordem dos Advogados.

(...)

É assim também que responde o n.º 1 do artigo 105.º do E.O.A. de 2005, ao estatuir que “o advogado deve exercer o patrocínio dentro dos limites da lei e da urbanidade, sem prejuízo do dever de defender adequadamente os interesses do seu cliente”.

Para cumprir o “dever de defender adequadamente os interesses do seu cliente”, o Advogado tem, pois, o direito e, sobretudo, tem o dever de optar por exprimir livremente o seu pensamento e de “apreciar, discutir e criticar tudo quanto julgue conveniente ao bom desempenho do seu mandato e até onde lhe pareça necessário ao triunfo da causa que está a seu cargo”, como ensinava o Professor Alberto dos Reis, ou usando uma expressão do Conselheiro Osório de Castro de “dizer tudo quanto possa ser útil ao bom direito”. E deve fazê-lo ainda quando tal importe sacrifício da tutela da honra de outras pessoas, mesmo daquelas que interagem no quadro do processo Advogados, Magistrados, Árbitros ou outros.

A jurisprudência da Ordem, reiterada, firme e pacificamente, vem reconhecendo, há longas décadas, a legitimidade do emprego, pelo Advogado, de “expressões mais ou menos enérgicas, veementes, vibrantes, consoante a natureza do assunto e o temperamento emocional de quem as subscreve”. Da mesma forma, não merece censura disciplinar o uso de um estilo – que pode, porventura, não ser o mais desejável – irónico ou contundente, de menor elegância ou de menor moderação, mas que as circunstâncias do patrocínio justifiquem.

O Professor Barbosa de Magalhães, Bastonário da Ordem dos Advogados, deixou, na Gazeta da Relação de Lisboa, o seu próprio testemunho a este propósito, ao referir-se a um processo em que interviera: “sempre que, no exercício da minha nobre missão, vir decisões que mereçam uma crítica mais viva e mesmo violenta, tantas e tantas vezes precisa, não deixarei de a fazer”.

Também não é censurável o exercício do direito de crítica objectiva, quer elaincidasobreasposiçõesdaparteadversaou sobreosactosdos juízes ou dos magistrados do Ministério Público, quer incida sobre o funcionamento dos órgãos de administração da justiça ou de outras instituições, quer sobre modos de procedimento ou de aplicação de directivas, ordens e instruções hierárquicas, quer ainda sobre orientações na interpretação da lei.

Com frequência, a crítica objectiva feita pelo Advogado corresponde ao cumprimento, não só de um dever de patrocínio, mas também de um dever deontológico para com a comunidade (cfr. n.º 1 do artigo 85.º do EOA).

As regras de convivência democrática próprias do Estado de Direito arredaram daqui as derradeiras convicções renitentes,sustentadas, emépocas passadas, em modelos que excluíam da crítica os órgãos e os agentes do poder. A impunidade do direito de crítica objectiva mesmo quando exercido pelo homem da rua por mero exercício de cidadania – é defendida unanimemente pela Doutrina e pela Jurisprudência, com base na sua irrelevância penal, por atipicidade dos correspondentes sacrifícios da honra. Acresce que à sua legitimidade é indiferente a falta de pertinência ou de justeza técnica ou científica da crítica feita.

Quanto às imputações e às expressões ofensivas da honra das pessoas, o Advogado em exercício do patrocínio pode fazê-las ou usá-las, porque beneficia do regime especialmente qualificado de liberdade de expressão que decorre do artigo 208.º da CRP.

Mas, para tanto, têm elas de ser necessárias à defesa da causa. Compete exclusivamente ao Advogado a decisão acerca do que é necessário ao bom desempenho do mandato. É ele quem define a estratégia global e a táctica da defesa. É ele quem tem a responsabilidade de construir o discurso da defesa. ele pode, em seu juízo e consciência, escolher os temas a introduzir na discussão, as imputações a fazer e as expressões a utilizar, à luz do que for necessário à defesa adequada dos interesses do seu cliente.

Nem poderia ser de outro modo, sob pena de o Advogado ver postergada a sua independência. No desempenho de função de interesse público, maxime no exercício do patrocínio forense, pode afirmar-se uma presunção no sentido da liberdade de expressão. Há respeitados autores que o defendem.

Estando o Advogado no exercício do mandato forense, deve presumir-se-lhe o animus defendendi e, nessa medida, ter por necessárias à defesa da causa as expressões que utilize e as imputações que faça. (...)

O Advogado, no exercício do patrocínio forense, não está impedido de criticar objectivamente as posições assumidas no processo por qualquer dos seus intervenientes, nem de censurar os tipos de actuação processual de que discorde. A necessidade, que não esteja em concreto excluída, das expressões que utilize para a defesa da causa, legitima-as. (...)».

*

E, por último, dada a natureza da matéria em causa e o manifesto absurdo em que se constituiu o procedimento criminal aqui exercitado (em atropelo claro ao disposto no artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e à abundante jurisprudência do TEDH sobre o assunto), sempre se acrescentarão mais algumas breves considerações, tendentes a evidenciar que a decisão final deste caso nunca poderia ser diferente.

Numa análise da "dimensão da liberdade de expressão" em Portugal, Teixeira da Mota (in, "O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a Liberdade de Expressão, Os casos Portugueses", Coimbra Editora, 2009, p. 19) chama a atenção para o facto de a jurisprudência portuguesa sobre liberdade de expressão, nomeadamente no seu confronto com o direito à honra e ao bom nome, ser ainda, em muitos casos, subsidiária de um "entendimento redutor e minimalista daquele direito fundamental". "Assim", afirma, "os nossos tribunais, repetidamente, condenam os portugueses pelo crime de difamação ou injúria só por considerarem que poderiam ter sido utilizadas outras palavras ou expressões menos agressivas ou violentas e que serviriam igualmente para exprimir as ideias ou opiniões em causa, numa interpretação, muitas vezes hiperextensiva do pensamento de Figueiredo Dias. Tal entendimento", conclui o autor, "tem necessariamente de ser actualizado, nomeadamente no domínio da liberdade de opinião no debate público, em função da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (THDH)".[2]

Não se esqueça que até Outubro de 2011 Portugal já foi condenado 13 vezes por violação do art. 10º Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), sendo que a grande maioria de tais condenações se prendem com ofensas à honra e ao bom nome.

Também, na jurisprudência do STJ, já em 2007, máxime no acórdão de 7-3-2007[3] podia ler-se o seguinte:

“I- No conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático, o que justifica a assunção de uma nova perspectiva na resolução do conflito.

II- Neste contexto, temos vindo a defender, na esteira da orientação assumida por Costa Andrade, deverem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.

III- Mais entende aquele insigne Mestre que a atipicidade da crítica objectiva pode e deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias públicas, com destaque para os actos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do MP, as decisões e o desempenho político de órgãos de soberania como o Governo e o Parlamento.

IV- Por outro lado, segundo ele, a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva.

V- Costa Andrade defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto, esclarecendo, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignando expressamente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.

VI- Parte da jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem sufragando tal orientação, sendo que, de acordo com a mesma, entendemos que o direito de expressão, na sua vertente de direito de opinião e de crítica, quando se exerça e recaia nas concretas áreas atrás referidas e com o conteúdo e âmbito mencionados, caso redunde em ofensa à honra, se pode e deve ter por atípico, desde que o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor aos quais subjaz o exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar”.

E no Ac. STJ de 17-11-2010 - Proc. n.º 51/10.7 YFLSB.S1 - 5.ª Secção, relatora Isabel Pais Martins

“IX - Segundo o entendimento hoje dominante, os juízos de apreciação e valoração vertidos sobre realizações ou prestações, na medida em que não seja ultrapassado o âmbito da crítica objectiva, caem já fora da tipicidade de incriminações como a difamação – cf. Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, págs. 232 a 240.

X - E no sentido da atipicidade da crítica objectiva afastam-se, hoje, as exigências de proporcionalidade e da necessidade objectiva, do bem-fundado ou da “verdade”, bem como o pressuposto do meio menos gravoso.

XI - Ou seja, a tese da atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas. Por outro lado, o direito de crítica com este sentido não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas.

XII - É hoje igualmente pacífico o entendimento que submete a actuação das instâncias públicas ao escrutínio do direito de crítica objectiva.

XIII - São ainda de levar à conta da atipicidade os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do autor da obra ou prestação em exame: nesta linha, o crítico que estigmatizar uma acusação como “persecutória” ou “iníqua” pode igualmente assumir que o seu agente teve, naquele processo, uma conduta “persecutória” ou “iníqua” ou que ele foi, em concreto, “persecutório” ou “iníquo”. Aqui, está já presente uma irredutível afronta à exigência de consideração e respeito da pessoa, mas trata-se de sacrifício ainda coberto pela liberdade de crítica objectiva, não devendo ser levado à conta de lesão típica.

XIV - Já o mesmo não se poderá sustentar para os juízos que atingem a honra e consideração pessoal perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que, em princípio, legitimaria a crítica objectiva”.

Por seu turno, Henriques Gaspar, antigo presidente do STJ, in A influência da CEDH no diálogo interjurisdicional, Julgar, nº 7, 2009, pág. 39 e 40, já alertava que os juízes nacionais estão vinculados à CEDH e em diálogo e cooperação com o TEDH… porque, sobretudo em sistema monista, como é o português (artigo 8.º da Constituição), a CEDH, ratificada e publicada, constitui direito interno que deve, como tal, ser interpretada e aplicada, primando, nos termos constitucionais, sobre a lei interna. E… também porque, ao interpretarem e aplicarem a CEDH como primeiros juízes convencionais, devem considerar as referências metodológicas e interpretativas e a jurisprudência do TEDH, enquanto instância própria de regulação convencional… Os tribunais nacionais… são os órgãos de ajustamento do direito nacional à CEDH, tal como interpretada pelo TEDH; as decisões do TEDH têm, pois, e deve ser-lhes reconhecida uma autoridade interpretativa” (veja-se que essa relevância resulta até do art.º 696 al.ª f) do CPC, quando prevê a revisão de decisão transitada em julgado quando seja inconciliável com uma decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português).

Ora, o TEDH - como nos dá conta o mesmo Henriques Gaspar, in Liberdade de Expressão: artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Uma leitura da Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, 698 - “enunciou o seguinte princípio fundador: os limites da crítica admissível são mais amplos em relação a personalidades públicas visadas nessa qualidade do que em relação a um simples particular. Diferentemente destes, aqueles expõem-se, inevitável e conscientemente, a um controlo apertado dos seus comportamentos e opiniões… devendo, por isso, demonstrar muito maior tolerância…”.

Recorde-se ainda, a propósito, a decisão proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 26/04/2007, no caso "Colaço Mestre vs SIC", que refere que "o Tribunal lembra que, segundo a sua jurisprudência bem estabelecida, a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de toda a sociedade democrática, uma das condições essenciais do progresso e do desenvolvimento de cada um. Sob reserva do nº.2 do artigo 10º., a liberdade de expressão vale não somente para as "informações" ou "ideias" acolhidas em favor ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam, inquietam. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem os quais, não há "sociedade democrática", sendo que as excepções à liberdade de expressão devem ser interpretadas estritamente, devendo a necessidade de cada restrição ser estabelecida de maneira convincente, mormente aferindo se a ingerência litigiosa corresponde a uma necessidade social imperiosa".

E, em 2012, escrevia-se o seguinte no Ac. TRP de 20/6/2012, pr. 7132/09.8 TAVNG-A.P1, rel. Ernesto Nascimento “ Simplística e esquematicamente deparamos com 2 correntes: uma, tradicionalista que fez o seu percurso valorizando a honra, em detrimento da liberdade de informação e de expressão e, outra, que começa a fazer o seu caminho, na esteira das decisões, invariavelmente, unânimes do TEDH, que valoriza a liberdade de informação e de expressão.

Cada vez mais, de resto, o Estado Português vem sendo condenado naquela instância internacional, num afirmação inequívoca de valorização da liberdade de expressão como um direito de natureza pessoal e estruturante duma sociedade plenamente democrática.

Isto acontece nos casos em que a ordem jurídica interna vem violando a liberdade de expressão dos cidadãos acusados por tal delito, condenando-os pelo crime de abuso de liberdade de expressão, sem se atentar que a CEDH consagra tal direito em termos muito amplos.

Donde hoje e cada vez mais, na procura da solução para os conflitos que envolvam a liberdade de expressão não sejam analisados e decididos, somente através da aplicação das leis nacionais, ordinárias, civis ou criminais, mas ainda e, sobretudo através da CEDH”.

Finalmente, no excelente Ac. TRE de 1-7-2014, pr. 53/11.6TAEZ.E2, rel. Gomes de Sousa, disponível em www.dgsi.pt, sumariou-se o seguinte:

II- A Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (vulgarmente designada como Convenção Europeia dos Direitos do Homem) vigora na ordem jurídica portuguesa com valor infra-constitucional, isto é, com valor superior ao direito ordinário português.

III- Considerando a adesão de Portugal à Convenção e o teor do art. 8º da Constituição da República Portuguesa, a não aplicação da Convenção, enquanto direito interno português de origem convencional, é um claro erro de direito.

IV- A apreciação valorativa do confronto entre a liberdade de expressão e a honra é feita em sede infra-constitucional pela Convenção e pelo ordenamento penal português, e não no patamar constitucional, o que torna a Convenção um pilar essencial de onde se deve partir para a análise criminal em casos que exijam a sua aplicação.

V- A Convenção faz uma clara opção na definição da maior relevância do valor “liberdade de expressão” sobre o valor “honra”. Ou seja, a “ponderação de valores” é normativa, já foi feita pela Convenção com uma clara preferência pelo valor “liberdade de expressão”.

VI- A liberdade de expressão só pode ser sujeita a restrições nos termos claros e restritivos do n.º 2 do art. 10.º da Convenção, pelo que as “formalidades, condições, restrições e sanções” à liberdade de expressão devem ser convenientemente estabelecidas, corresponderem a uma necessidade imperiosa e interpretadas restritivamente (Decisão Sunday Times, 26-04-1979, § 65).

VII- A tutela da honra deve situar-se na análise dos tipos penais de difamação no momento lógico de análise do n.º 2 desse art. 10.º.

VIII- Esse art. 10.º é um pilar, não apenas de reconhecimento de direitos individuais, mas muito mais relevantemente de reconhecer que há direitos individuais que são o cimento de um determinado tipo de sociedade, a sociedade democrática, juridicamente Estado de Direito.

IX- Se no geral prevalece como direito maior a liberdade de expressão pela sua essencialidade democrática, no campo da luta politica e questões de “interesse geral” a tutela da honra é residual. É jurisprudência convencional constante a afirmação de que no campo da luta e discurso político ou em questões de interesse geral “pouco espaço há para as restrições à liberdade de expressão”.

X- Na análise do n.º 2 do art. 10º da Convenção é necessário saber se existem os requisitos de punibilidade ali contidos: se a restrição à liberdade de expressão está “prevista na lei” (aqui através do tipo penal de difamação) e prossegue um “objectivo legítimo” (aqui a tutela da honra) e se a condenação do arguido se justifica, se é uma “providência necessária numa sociedade democrática”.

XI- A expressão “providência necessária numa sociedade democrática” tem sido interpretada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem como a exigência de uma “necessidade social imperiosa” que justifique uma condenação.

XII- A natureza e a medida das penas infligidas pela prática de crimes de difamação são elementos a ter em consideração quando se trata de medir a proporcionalidade da ingerência na liberdade de expressão.

XIII- Neste sentido, a aplicação de penas de prisão não se justifica nos crimes de difamação, excepto em circunstâncias excepcionais, designadamente se outros direitos fundamentais foram gravemente atingidos, como nos casos de incitamento à violência, de discurso de violência contra pessoas ou grupos, de incitamento ao ódio e de apelo à intolerância.

XIV- O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem na recente decisão Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal (3 de Abril 2014, § 36) é claro em considerar que o ordenamento jurídico português contém um remédio específico para a protecção da honra e da reputação no art. 70.º do Código Civil, pelo que a penalização por difamação se deve entender hoje como residual.

E no mais recente Ac. TRE de 8-3-2018, pr. 238/15.6 T9LAG.E1, em que foi adjunto o relator do presente, escreveu-se:

“O improvimento em sede de subsunção no tipo de difamação decorre da circunstância de, face aos factos, a absolvição da arguida se impor por duas essenciais razões: olvidou-se o papel do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem na vida do crime de difamação da ordem jurídica portuguesa; a possibilidade de crítica concreta a um serviço público constitui o exercício de um direito, de carácter amplo, e a “ingerência de quaisquer autoridades” prevista no nº 1 do artigo 10º da convenção e explanada no seu nº 2 fica excluída se ocorre prova de que – como no caso ocorre – a crítica pode corresponder a factos realmente ocorridos.

Hoje, julgar (ou deduzir) acusação ou um pedido cível com origem num suposto crime de difamação, não se pode limitar à doutrina e jurisprudência clássicas portuguesas. A sistemática resultante do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem é hoje uma realidade inultrapassável para a integração no tipo penal de difamação.

A existência de um tipo penal de difamação (e a eventual condenação pelo mesmo) é uma “ingerência” do Estado na liberdade de expressão de qualquer cidadão. E essa ingerência só pode ser permitida nos termos parametrizados pelo nº 2 do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: «O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.

E, em plena consonância com o supra-exposto, cumpre dar nota da jurisprudência que vem sendo firmada a este respeito pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a observar pelo Estado Português no cumprimento do artigo 10.° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de acordo com a qual "a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um. Sem prejuízo do disposto no n°2 do artigo 10°, é válida não só para as «informações» ou «ideias» acolhidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam ou ofendem. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática»" (vd., inter alia, o Caso Almeida Azevedo contra Portugal, com decisão proferida a 03.01.2007 e o Caso Azevedo contra Portugal, tendo sido proferida decisão a 27.06.2008).

E, em particular acerca da liberdade de expressão dos advogados, atente-se nos recentes acórdãos TEDH de 12-2-2019 e 8-10-2019.

Ac. TEDH 12-2-2019, PAIS PIRES DE LIMA c. PORTUGAL

A Corte reitera que a liberdade de expressão também se aplica aos advogados. Além da substância das ideias e informações expressas, abrange o seu modo de expressão

A questão da liberdade de expressão está ligada à independência da profissão de advogado, que é crucial para o funcionamento eficaz da administração justa da justiça ( Sialkowska v. Polônia , nº 8932/05 , § 111, 22 de março de 2007 ). É, portanto, apenas excepcionalmente que um limite que afecte a liberdade de expressão do advogado de defesa – mesmo por meio de uma leve sanção penal – pode ser considerado necessário em uma sociedade democrática ( Nikula , citado acima, § 55, e Kyprianou c. Chipre [GC], n.º 73797/01 , § 174, CEDH 2005 - XIII).

61. No entanto, há que distinguir se o advogado fala no tribunal ou fora dele ( Morice , já referido, § 136). No que diz respeito, em primeiro lugar, aos "factos da audiência", quando a liberdade de expressão do advogado pode suscitar uma questão do ponto de vista do direito do seu cliente a um julgamento justo, a equidade também milita a favor de uma troca livre, mesmo enérgica, de pontos de vista entre as partes e o advogado tem o dever de "defender zelosamente os interesses dos seus clientes"…

Além disso, a Corte leva em consideração o fato de que as observações controvertidas não saem da sala do tribunal

O Tribunal considera que tal condenação também é suscetível de produzir um efeito dissuasor para a advocacia como um todo, em particular quando se trata de advogados que defendem os interesses de seus clientes (ver, mutatis mutandis , Nikula , já citado, § 55, Gouveia Gomes Fernandes e Freitas e Costa , já referidos, § 54, e Erdener c. Turquia , n.º 23497/05 , § 39, 2 de fevereiro de 2016).

iii. Conclusão

68. Tendo em conta as observações anteriores, o Tribunal considera que as indemnizações atribuídas no presente processo foram desproporcionadas em relação ao objetivo legítimo prosseguido. A interferência na liberdade de expressão do requerente não era, portanto, “necessária em uma sociedade democrática”. Assim, houve uma violação do artigo 10 da Convenção”.

Acórdão TEDH de 8-10-2019 Condenação Portugal por violação art. 10º da Convenção - liberdade de expressão (advogados)

“No que diz respeito à necessidade de ingerência «numa sociedade democrática», o Tribunal de Justiça remete para os princípios gerais reiteradamente reiterados desde o acórdão Handyside c . Reino Unido , 7 de Dezembro de 1976 (Série A nº 24 ), e que recordou em Morice v . França ([GC], n.º 29369/10 , §§ 124 a 127, CEDH 2015). Para os princípios relativos à liberdade de expressão dos advogados, refere-se também ao acórdão Morice . , (já citado, §§ 132 a 139) e nos acórdãos Gouveia Gomes Fernandes e Freitas e Costa v . Portugal (n.º 1529/08 , § 46, 29 de março de 2011)…

71. O Tribunal reitera que a natureza e a gravidade das penalidades impostas também são fatores a serem levados em consideração quando se trata de medir a proporcionalidade da interferência ( ver Morice , citado acima, § 176, e as referências nele citadas) . No caso em apreço , considera que, ainda que a coima aplicada ao primeiro requerente seja modesta e que tenha beneficiado do não registo da sua condenação no registo criminal, a aplicação de uma sanção penal apresenta por si só um efeito dissuasor o exercício da liberdade de expressão , que é tanto mais inaceitável no caso de um advogado chamado a assegurar a defesa eficaz dos seus clientes ( ibidem , e Mor c. França , n.º 28198/09 , § 61, 15 de dezembro de 2011). Além disso, nos dois processos em apreço, os recorrentes foram condenados a pagar aos juízes em causa quantias significativas de indemnização, a saber, 5.000 euros para o primeiro requerente e 10.000 euros para o segundo requerente (vn°s 20 e 38 supra). As penas aplicadas não encontraram, portanto, o justo equilíbrio entre a necessidade de proteger o direito à honra dos juízes em causa e a autoridade judiciária, por um lado, e a liberdade de expressão dos requerentes, por outro . São também susceptíveis de produzir um efeito dissuasor para o conjunto da advocacia , em particular quando se trata de advogados que defendem os interesses dos seus clientes (cf., mutatis mutandis , Gouveia Gomes Fernandes e Freitas e Costa , já referido, § 54, e Erdener c. Turquia , nº 23497/05 , § 39, 2 de fevereiro de 2016).

4. Conclusão

72. Tendo em conta as observações anteriores, o Tribunal considera que as razões apresentadas pelos tribunais nacionais para justificar as condenações dos requerentes não podiam ser consideradas pertinentes e suficientes e não correspondiam a nenhuma necessidade social premente. Considera que a interferência no exercício pelos requerentes do seu direito à liberdade de expressão foi, portanto, desproporcionada e desnecessária numa sociedade democrática.

73 . Assim, houve violação do artigo 10 da Convenção nos dois casos presentes”.

Em suma, ainda que alguma crítica excessiva ou menos estribada fosse conjecturável nas palavras da arguida, sempre importaria ter bem presente que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, parte da liberdade de expressão, enquanto um dos pilares basilares do Estado de Direito material e democrático, a coberto da qual sempre resultaria inadmissível qualquer condenação da aqui arguida, nas particulares circunstâncias do caso, no seu papel de advogada na defesa da sua cliente.

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III- Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente (assistente) fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

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Évora, 8/11/2022
António Condesso

Edgar Gouveia Valente

Laura Goulart Maurício


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[1] Tal qual se tem decidido nesta Relação, nomeadamente no Ac. de 24-5-2018, pr. 750/16.0 T9OLH.E1, no qual o relator do presente foi adjunto

[2] Vd. Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol I, Universidade Católica Editora, 2010, pág. 529

[3] Ac. STJ de 7-3-2007, pr.07P440 (relator Oliveira Mendes) in www.dgsi.pt/jstj