Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1157/21.2T8FAR-A.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: ARROLAMENTO
SOCIEDADE COMERCIAL
REQUISITOS
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Uma sociedade tem personalidade e identidade próprias, é uma pessoa jurídica distinta das pessoas dos seus sócios e o património social não é património dos sócios.
2 - Para que o arrolamento possa ser ordenado é necessário que o requerente alegue e faça uma prova sumária da titularidade de um direito sobre os bens que pretende arrolar.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1157/21.2T8FAR-A.E1
(1.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), requerente do procedimento cautelar de arrolamento como incidente do processo de inventário para partilha dos bens comuns do ex-casal constituído pela própria e por (…), interpôs recurso da decisão proferida pelo Tribunal de Família e Menores de Faro, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual indeferiu liminarmente o requerimento de providência cautelar de arrolamento.

A decisão sob recurso tem o seguinte teor:
«I- Relatório
(…), instaurou o presente procedimento cautelar contra (…), pedindo o arrolamento das contas bancárias e de um estabelecimento comercial explorado pela sociedade de que ambos são sócios e de contas bancárias em nomes do requerido.
Para o efeito alegou, em suma, que a sociedade “(…) – Mediação de Seguros, Lda.” de que são sócios a requerente e o requerido, é gerida pelo requerido e que o mesmo não presta contas à requerente desde o divórcio, não fornece informações e documentos da mesma e procedeu à aquisição de imóveis em nome pessoal com dinheiro da sociedade.
Diz, ainda, que o requerido tem uma conta particular para a qual foi transferido dinheiro da sociedade e que foi utilizado na aquisição de imóveis.
Concluindo, pede o decretamento da providência sem audição prévia do requerido.
Juntou documentos.
Cumpre apreciar e decidir.
Da sentença de divórcio junta a estes autos, bem como, das declarações do cabeça de casal nos autos de inventário, resulta que a Requerente e o Requerido contraíram casamento civil entre si, no dia 18 de setembro de 1984, sem convenção antenupcial, sob o regime da comunhão de adquiridos.
O casamento foi dissolvido por sentença de 19.12.2016 transitada em julgado em 31.01.2017 no âmbito dos autos n.º 2424/16.2 T8FAR que correu termos no J2 deste Tribunal de Família e de Menores.
A requerente intentou inventário para dissolução do património conjugal junto de Cartório Notarial e em 26.02.2020 foi requerida a remessa dos mesmos ao Tribunal competente, tendo sido distribuído a este J1.
Na sua essência o procedimento cautelar é destinado a garantir, a quem o invoca, a titularidade de um direito contra a ameaça ou um risco que sobre ele paira e que é tão iminente que a sua tutela não pode aguardar a decisão judicial.

São seus requisitos, antes de mais, a instrumentalidade (porquanto pressupõe uma ação definitiva instaurada, ou a instaurar), o periculum in mora (ou seja, que a demora na decisão a proferir na ação principal acarrete um prejuízo grave), e o fumus boni iuris (isto é, a aparência da realidade do direito invocado).
No caso específico do arrolamento dispõe o artigo 403.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que “Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles”.
O arrolamento será, assim, “dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas”, conforme decorre da parte final do n.º 2 do mencionado artigo 403.º.
E nos termos do artigo 401.º, n.º 1, do citado diploma, “O arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos”.
Dos normativos citados resulta, desde logo, que o arrolamento é um procedimento cautelar, preventivo ou conservatório, cujo decretamento depende da verificação simultânea de dois requisitos, aliás comuns à generalidade das providências, a saber:
a) a existência de um direito, ainda que aparente, aqui configurado como o interesse na conservação dos bens;
b) o perigo de insatisfação desse direito em consequência da demora da decisão definitiva caracterizado no artigo 421.º, n.º 2, como o “justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens”.
O requerente terá, assim, de fazer prova sumária do seu direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação (artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
Perante os factos alegados o Tribunal apreciará de forma, igualmente, sumária a verificação destes requisitos (summaria cognitio).
O “interesse na conservação dos bens” que o artigo 404.º, n.º 1, do Código de Processo Civil exige como condição ou título para se requerer esta providência pode assumir dois aspetos ou revestir dois graus:
a) ser consequência do direito aos bens, direito já existente e constituído;
b) ser resultado de uma pretensão jurídica que carece de ser apreciada e julgada, em ação já proposta ou a propor, caso em que o requerente terá igualmente de convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente (artigo 423.º, n.º 1, 2ª parte, in fine).
No primeiro caso estamos perante aquilo que o Prof. Alberto dos Reis, in "Código de
Processo Civil Anotado”, vol. II, p. 105/106, denomina de aparência de um “direito certo”, no segundo aquilo a que pode chamar-se a aparência de um “direito eventual” relativamente ao património que se quer acautelar.
No caso concreto, dos factos alegados resulta desse logo que a pretensão da requerente no que se refere ao arrolamento das contas bancárias da sociedade e do estabelecimento comercial por esta explorado não pode proceder, porque a sociedade comercial é uma pessoa coletiva, com personalidade jurídica distinta e ainda que requerente e requerido sejam dois dos sócios da sociedade, não podem arrolar bens que não lhes pertencem, ainda que façam parte do acervo da sociedade de que são sócios.
A requerente e o requerido apenas são titulares de quota da sociedade e é este o bem que se vai partilhar no inventário.
Um dos requisitos da providência é a existência de direito relativo aos bens, ou seja, o requerente deve alegar factos que justifiquem o seu interesse na conservação dos bens (aparência de direito), correspondente ao direito que pretende ver reconhecido na ação principal.
Ora, aquilo que a requerente pretende é tutelar o direito que decorre da sua posição societária, mas tal não vai ser reconhecido na ação principal (inventário), trata-se de matéria societária e que a requerente tem de resolver em sede própria e na ação respetiva, que não no inventário.
E o mesmo se diga quanto às contas indicadas no ponto b), as quais nem foram identificadas, nem se faz menção à dificuldade para o efeito, e a que é identificada é a própria requerente que diz tratar-se de conta particular do requerido.
Acresce que, compulsados os autos de inventário que estão na fase de audiência prévia, que aliás foi suspensa para eventual acordo somente quanto a despesas, não foram elencadas na relação de bens quaisquer contas bancárias, não sendo como tal objeto de partilha nos autos principais.
Deste modo, sem necessidade de maiores considerações, não se encontram reunidos os pressupostos essenciais para o decretamento da providência.
Por todo o exposto, em conformidade com as supra referidas disposições legais, indefiro liminarmente o presente requerimento de providência cautelar de arrolamento.
Registe e Notifique.»

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1. Por despacho proferido em 11/11/2021, foi indeferido liminarmente o requerimento de providência cautelar de arrolamento (refª citius 122122998).
2. Sustentou, o Tribunal a quo que, “No caso concreto, dos factos alegados resulta desse logo que a pretensão da requerente no que se refere ao arrolamento das contas bancárias da sociedade e do estabelecimento comercial por esta explorado não pode proceder, porque a sociedade comercial é uma pessoa coletiva, com personalidade jurídica distinta e ainda que requerente e requerido sejam dois dos sócios da sociedade, não podem arrolar bens que não lhes pertencem, ainda que façam parte do acervo da sociedade de que são sócios.
A requerente e o requerido apenas são titulares de quota da sociedade e é este o bem que se vai partilhar no inventário.
Um dos requisitos da providência é a existência de direito relativo aos bens, ou seja, o
requerente deve alegar factos que justifiquem o seu interesse na conservação dos bens (aparência de direito), correspondente ao direito que pretende ver reconhecido na ação principal.
Ora, aquilo que a requerente pretende é tutelar o direito que decorre da sua posição societária, mas tal não vai ser reconhecido na ação principal (inventário), trata-se de matéria societária e que a requerente tem de resolver em sede própria e na ação respetiva, que não no inventário.
E o mesmo se diga quanto às contas indicadas no ponto b), as quais nem foram identificadas, nem se faz menção à dificuldade para o efeito, e a que é identificada é a própria requerente que diz tratar-se de conta particular do requerido.”
3. A douta decisão recorrida enferma de um erro na apreciação da prova e no enquadramento jurídico aplicável.
4. A recorrente veio intentar ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 409.º do Código de Processo Civil providência cautelar de arrolamento de bens, na pendência de Inventário Judicial, instaurado pela mesma para partilha do património conjugal.
5. A recorrente, invocou no requerimento de providência cautelar de arrolamento uma série de factos, suportados em vinte documentos juntos, para prova sumária de que tem justo receio no extravio ou dissipação de bens móveis e o interesse na conservação destes, que no seu modesto entender e salvo o devido respeito, foram desconsiderados, ou pelo menos, erroneamente apreciados pela Meritíssima Juiz a quo.
6. A decisão recorrida parte simplesmente do pressuposto formal que a recorrente e requerido apenas são titulares de quotas da sociedade (…) – Mediação de Seguros, Lda., e são estes os bens a partilhar no inventário. 7. Analisando mais a fundo e substancialmente o tema e indo ao cerne da questão, se não deixa de ser verdade que, a recorrente e o requerido são sócios da referida sociedade, enquanto titulares de quotas sociais, não deixa de ser menos verdade que o facto da sociedade ser uma pessoa jurídica distinta dos seus sócios, em nada invalida ou contende com o facto de estes terem naturalmente interesse na conservação do património desta, na medida em que, toda e qualquer lesão deste se traduzirá também numa lesão efectiva do
património dos sócios e dos seus legítimos interesses e direitos.
8.No caso em apreço, resultam desde logo provados, pelo menos sumariamente, mas suficientemente, suportados pela prova documental junta, um conjunto de factos que pressupõem o justo receio da recorrente no extravio, dissipação ou ocultação de bens móveis da sociedade e o interesse direto na conservação destes, procurando evitar com o deferimento da presente providência danos de difícil reparação ou até irreparáveis e o esvaziamento do conteúdo útil do seu direito.
9. Recorrente e requerido são assim detentores da maioria do capital da sociedade (…) – Mediação de Seguros, Lda., representativo de 78% deste, e por isso, pode-se dizer que são os seus principais “donos ou proprietários”.
10. Ambas as quotas, são, à luz do regime de Direito Português, bens comuns do ex-casal, na proporção de metade para cada um deles, constando da relação de bens junta aos autos de Inventário.
11. A referida Sociedade explora desde Junho de 2001 um estabelecimento comercial de mediação de seguros, em Faro, na Av. (…), n.º 5, Loja, R/C-Dt.º, local onde aliás tem também a sua sede.
12. O aludido estabelecimento tem por objecto a mediação de seguros e possui uma vasta carteira de seguros, de várias seguradoras, movimentando mensalmente largos milhares de euros e auferindo elevados montantes em comissões de seguros, conforme documentos contabilísticos juntos ao requerimento de procedimento cautelar.
13. O requerido, desde o divórcio (Dezembro de 2016), gere a sociedade a seu “belo prazer”, como se fosse só sua, sem dar satisfações nem prestar contas à socia e ora recorrente, apesar das insistências desta.
14. Em 06/01/2020 o requerido adquiriu em seu nome pessoal a fração onde o estabelecimento está instalado, e ainda mais duas frações na cave do mesmo prédio, destinadas a lugares de estacionamento, pelo preço global de € 115.000,00.
15. Parte do preço, € 50.000,00, foi pago pelo requerido com fundos da própria sociedade, proveniente de um empréstimo que esta contraiu no mesmo montante.
16. O Requerido, apropriou-se desse dinheiro que pertencia à Sociedade, transferindo-o para a uma conta pessoal que detinha (e detém) com a recorrente e utilizou-o em seu proveito pessoal, na aludida compra das três frações.
17. O requerido, para além de não lhe ser licito apropriar-se de dinheiro que pertencia à sociedade, transferindo-o para a sua conta, atuou assim como se o dinheiro em causa lhe pertencesse única e exclusivamente; como se a recorrente nada tivesse a ver com esse dinheiro e utilizando-o em proveito próprio.
18. Para além de, se locupletar à custa da sociedade do valor das rendas pelo arrendamento do estabelecimento, valor que quase triplicou, onerando ainda mais a sociedade.
19. É notório que o requerido com a sua conduta pretende instrumentalizar a sociedade para retirar proveitos próprios atuando em desconformidade com as finalidades para as quais a sociedade foi criada e lesando a recorrente.
20. A recorrente receia, que o requerido venha a praticar atos que a prejudiquem ainda mais, agora de forma irreversível, ou dificilmente reversível.
21. E que, portanto, até à efetiva partilha dos bens, esvaziem o conteúdo útil do seu direito.
22. Nomeadamente, descapitalizando a Sociedade e dissipando o seu património, que ao fim ao cabo também é indiretamente da requerente.
23. Podendo facilmente transferir a titularidade do estabelecimento comercial para terceiros.
24. Ou até, transmitir a vasta e valiosa carteira de seguros que a sociedade detém, de valor bastante considerável e apetecível, que constitui o elemento / ativo mais valioso e mais importante daquele estabelecimento e da sociedade, esvaziando assim a mesma, e implicando em consequência, inevitavelmente também o esvaziamento do valor das quotas dos sócios.
25. Pois como justamente se compreenderá, o valor real das quotas da recorrente e do requerido para efeitos de partilha, dependerá essencialmente da conservação do património da sociedade e da “saúde” financeira desta.
26. Ou seja, tais quotas, bens a partilhar, só terão efetivamente valor se o património da sociedade se mantiver conservado e acautelado, pois caso contrário, poderá acontecer que as mesmas aquando da partilha efetiva com a decisão final a proferir nos autos de Inventário, já não possuam qualquer valor real, restando apenas o seu irrisório valor nominal.
27. Cabe, assim, um interesse direto ou ainda que reflexo ou indireto, merecedor da tutela jurídica à requerente e ora recorrente da providência de arrolamento, pelo que a decisão recorrida violou o princípio do acesso ao direito e à justiça, plasmado no artigo 20.º da C.R.P. e no artigo 2.º do Código de Processo Civil.
28. Padece, igualmente, a sentença recorrida, de erro de julgamento ao considerar que o procedimento cautelar especificado de Arrolamento não é o adequado para fazer valer os interesses da ora recorrente, por se tratar de matéria societária e que aquela tem que resolver em sede própria e na ação respetiva, que não no inventário.
29. A providência aqui em causa, pretende ver assegurado que o património da sociedade fique salvaguardado, até que seja proferida decisão final de partilha de bens no processo de Inventário, a fim de se acautelar o efeito útil deste.
30. No caso sub judice o procedimento cautelar de arrolamento é o procedimento adequado, dados os seus meios e fins, a prevenir a dissipação, extravio ou ocultação de bens de um interessado (e não de outro tipo, seja de caracter societário ou de outra espécie), tanto mais que, não se pretende interferir ou condicionar a vida normal da sociedade, mas tão só evitar o extravio, dissipação ou ocultação de bens móveis da sociedade.
31. O arrolamento justifica-se, no caso concreto, ademais, pelo facto de haver a necessidade no âmbito do processo de inventário, de se avaliar pericialmente as quotas a partilhar, descrevendo os bens móveis da sociedade, designadamente o mais importante - o seu estabelecimento comercial, com todos os seus elementos que o compõem, designadamente, móveis, carteira de seguros, direito ao arrendamento, e clientela, na defesa dos direitos e interesses da recorrente e de modo a se alcançar uma partilha o mais justa possível.
32. Ainda que no caso concreto, a recorrente tenha efetivamente receio de extravio ou dissipação, que é fundado e foi devidamente comprovado, para o decretamento da providência requerida, basta que a cessação da unidade conjugal seja real ou após a extinção da sociedade conjugal que é o caso – partilha de bens comuns de um ex-casal, na medida em que, entende a jurisprudência e a doutrina, por si só, tal circunstância justifica o fundado receio de extravio ou dissipação dos bens comuns do ex-casal.
33. O direito que a recorrente pretende acautelar com a instauração da presente providência de arrolamento é o direito à justa partilha do património comum.
34. Para o efeito, a recorrente necessitou de lançar mão deste instrumento – providência cautelar de arrolamento, por considerar ser a mais adequada e eficaz para acautelar o seu direito na conservação do património societário, enquanto sócia detentora em conjunto com o requerido da maioria do capital social, sob pena, de até à prolação da decisão final da partilha no processo de inventário, correr o risco de ver esvaziado de conteúdo útil o seu direito.
35. No que diz respeito às contas bancárias, quer do requerido (com a recorrente) quer da sociedade, objeto de arrolamento, ao invés do que consta na douta decisão recorrida, estão devidamente identificadas no requerimento.
36. A recorrente enquanto “titular” ou autorizada a movimentar aquela conta, assiste-lhe o direito de requerer o seu arrolamento, sob pena, de o requerido se apropriar de todos os valores existentes na mesma.
37. Também o mesmo acontece com as contas da sociedade, em relação as quais a recorrente conseguiu identificar pelo menos duas, conforme constam do requerimento de providência, ao contrário do que está plasmado na douta decisão recorrida.
38. Só recentemente é que a recorrente teve conhecimento das referidas contas, sendo que, o requerido não as relacionou conforme estava obrigado enquanto cabeça de casal.
39. Não colhe o argumento invocado pelo Tribunal a quo, quando refere que, “(…) não foram elencadas na relação de bens quaisquer contas bancárias, não sendo como tal objeto de partilha nos autos principais.”, na medida em que, a recorrente só recentemente é que teve conhecimento das contas e de qualquer modo, a relação pode ainda ser aditada ou alterada até à audiência preparatória.
40. Estão verificados os pressupostos essenciais para ser decretado o arrolamento: Probabilidade de existência do direito relativo aos bens; Justificado receio do seu extravio, ocultação ou dissipação.
41. A douta decisão recorrida enferma assim de erro no enquadramento jurídico aplicável ao caso concreto.
42. Para o caso de ser dado provimento ao presente recurso com a revogação da decisão recorrida e o consequente decretamento da providência de arrolamento, e para que não se frustre o efeito útil que se pretende com a mesma, requer-se a não audição do requerido, ou seja, que o requerido não seja notificado do presente recurso.
Nestes termos, e nos demais de direito que serão doutamente supridos por Vossas Excelências, deverá a presente Apelação ser admitida e julgada procedente, revogando-se a sentença a quo proferida e ora apelada.
Com o que se fará a vossa boa e costumada JUSTIÇA

I.3.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2, e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (arts. 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
Questão a decidir: acerto da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que indeferiu liminarmente o requerimento inicial de arrolamento dos bens ali identificados.

II.3.
Factos
Dão-se aqui por integralmente reproduzidos os factos constantes da decisão recorrida.

II.4.
Apreciação do mérito do recurso
Na decisão sob recurso o tribunal de primeira instância julgou «não se verificarem os pressupostos essenciais para o decretamento da providência cautelar de arrolamento». Concretamente, o tribunal a quo considerou que não se verifica a existência do direito invocado pela requerente relativo aos bens que a requerente pretende ver arrolados porquanto as contas bancárias da sociedade (…) – Mediação de Seguros, Lda. e o estabelecimento comercial explorado por aquela sociedade fazem parte do património daquela sociedade e as partes (requerente e requerido) são apenas sócios da mesma, sendo apenas as quotas que estes detêm naquela sociedade que vai ser partilhada no processo de inventário e ainda que quanto à outra conta bancária que a requerente pretende ver arrolada é a própria requerente que diz tratar-se de conta bancária do requerido, pelo que não integra o acervo de bens comuns.
A apelante, por sua vez, defende que estão verificados os pressupostos essenciais para ser decretado o arrolamento, concretamente, a probabilidade de existência do direito relativo aos bens e o justificado receio do seu extravio, ocultação ou dissipação.
Vejamos se lhe assiste razão.
Seguindo de perto o ensinamento de Abrantes Geraldes[1], diremos que o arrolamento é uma providência cautelar que «visa especificamente assegurar a permanência de bens que devam ser objeto de “especificação” no processo principal» ( como, de resto, resulta do disposto no artigo 403.º, n.º 2, do CPC).
Trata-se, por conseguinte, de uma providência de natureza conservatória, visando assegurar direitos sobre coisas ou obrigações de prestação de coisas, ou seja, acautelar um perigo atual de lesão de direitos. Ou, dito de outra forma, trata-se de uma providência cautelar que visa prevenir a ocorrência ou a produção de danos graves e irreparáveis ou de difícil reparação, acautelando, dessa forma, o efeito útil de reconhecimento ou da tutela efetiva de um direito.
Como medida destinada a assegurar a manutenção de bens cuja titularidade esteja em discussão na ação principal, ou seja, a eliminar o risco de extravio, de ocultação e dissipação desses bens, no arrolamento procede-se a uma descrição, avaliação e depósito desses bens, ficando estes sujeitos a um regime semelhante ao dos bens penhorados (cfr. artigo 406.º do CPC).
A lei processual prevê dois tipos de arrolamento: (i) o especial previsto no artigo 409.º do CPC que se aplica, preliminar ou incidentalmente, às ações de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento ou em caso de abandono de bens, não exigindo que se demonstre o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens; e (ii) o geral, a que aludem os artigos 403.º e seguintes do mesmo diploma legal, que se aplicará aos restantes casos em que alguém tem interesse na conservação dos bens e demonstre, além da sua legitimidade, o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens.
Relativamente aos respetivos requisitos para o seu decretamento, resulta do disposto no artigo 405.º do CPC que eles são:
a) A probabilidade da existência de um direito sobre os bens (ou documentos);
b) O justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens (ou de documentos).
Desta forma, para que o arrolamento possa ser ordenado é necessário que o requerente alegue e faça uma prova sumária da titularidade de um direito sobre os bens que pretende sejam arrolados, pelo que «o arrolamento deve ser indeferido liminarmente, porque injustificado, se o requerente não invocar qualquer direito sobre o bem que pretende arrolar, limitando-se a alegar o risco da sua dissipação» – Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 4.ª Edição, Almedina, 2019, p. 261.
Alberto dos Reis[2] ensinava que «se uma pessoa tem ou pretende ter direito a determinados bens e mostra que certos factos ou circunstâncias fazem nascer o justo receio de que o detentor ou possuidor deles os extravie ou dissipe antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito aos mesmos bens, estamos perante a ocorrência que justifica o uso da imposição de selos e do arrolamento»; e, em outro passo, o mesmo autor sustenta que o arrolamento, como incidente do processo de inventário, pode ser requerido em qualquer altura, designadamente, depois de o cabeça de casal ter apresentado a relação de bens desde que que se verifique o justo receio de extravio ou dissipação de bens.
Incumbe sobre o requerente do arrolamento o ónus de alegar e provar (indiciariamente) os respetivos requisitos, enquanto factos constitutivos do seu direito (art. 342.º, n.º 1, do CPC).
No caso sub judice, o arrolamento é dependência do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal (cfr. artigo 1082.º, alínea d), do CPC), isto é, dos bens que fazem parte do património coletivo do casal.
Na «comunhão de bens» o direito dos contitulares não incide diretamente sobre cada um dos elementos que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário, ou seja, aos membros da comunhão não pertencem direitos específicos, designadamente uma quota sobre cada um dos bens que integram o património global. Consequentemente, na partilha dos bens subsequente à dissolução da comunhão, os contitulares têm apenas direito a uma fração ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar – Ac. RL de 14-10-2008, processo n.º 7014/2008-7, consultável em www.dgsi.pt.
Não é posto em causa no presente recurso que do património comum da requerente e do requerido fazem parte duas quotas sociais que, no seu conjunto, são representativas de 78% do capital social da sociedade denominada “(…) – Mediação de Seguros, Lda.”, sociedade comercial que foi constituída na constância do matrimónio de ambos (entretanto dissolvido).
Uma quota social é uma participação no capital social que compreende um conjunto unitário de direitos e obrigações do(s) sócio(s). Escreveu-se no sumário do acórdão do TRP de 13-01-2020, processo n.º 6665/17.7T8VNG-B.P1, consultável em www.dgsi.pt. que «a titularidade ou contitularidade de uma quota é uma participação no capital social, mas não no património da sociedade e, por isso, não confere ao sócio qualquer direito sobre bens, móveis ou imóveis, da sociedade» e no Ac. TRE de 28-05-2009, processo n.º 629/09.1TBFAR.E1, igualmente consultável em www.dgsi.pt. que «os direitos e obrigações da sociedade não correspondem a direitos e obrigações dos sócios, sendo que estes não têm quaisquer direitos sobre os bens isolados da sociedade nem sobre o património da sociedade no seu todo. Ao terem personalidade jurídica, as sociedades têm também a titularidade do património social, podendo, em regra, aliená-lo ou onerá-lo» (negritos nossos).
Em suma, a sociedade tem personalidade e identidade próprias sendo uma pessoa jurídica distinta das pessoas dos seus sócios e o património social não é património dos sócios.
No caso sub judice, a requerente/apelante veio pedir que se procedesse ao arrolamento:
(1) dos valores depositados em todas e quaisquer contas bancárias, à ordem, a prazo ou em qualquer outro regime de aplicação de fundos, de aplicações financeiras/carteiras de títulos agregadas a tais contas, da titularidade da sociedade (…) – Mediação de Seguros, Lda.;
(2) do estabelecimento comercial onde aquela sociedade desenvolve a sua atividade;
(3) dos valores depositados em todas em todas e quaisquer contas bancárias, à ordem, a prazo ou em qualquer outro regime de aplicação de fundos, de aplicações financeiras/carteiras de títulos agregadas a tais contas, da titularidade/contitularidade do requerido.
Nenhum dos bens acima referidos pertence ao património comum do casal que foi composto pela requerente e pelo requerido e a requerente tinha o ónus de fazer prova (ainda que indiciária) do seu direito relativo aos bens cujo arrolamento requereu, não bastando a alegação da contitularidade de quotas sociais, nem do interesse dos sócios na preservação do património desta.
Repete-se: sociedade e sócios são entidades distintas e os bens da primeira não pertencem aos sócios: «(…) o ordenamento jurídico acolhe, a par das pessoas singulares, as pessoas coletivas. Comporta, assim, no seu seio, novos entes dotados de personalidade jurídica. Desta personalidade jurídica emerge a titularidade de direitos e obrigações autónomas e, inerentemente, além do mais, a distinção entre as pessoas singulares que são, ao mesmo tempo, membros da pessoa coletiva e esta. Os direitos e obrigações duns não se confundem com os direitos e obrigações dos outros» – Ac. STJ de 12.05.2011, processo n.º 280/07.0TBGVA.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
Resulta da alegação da requerente que os bens cujo arrolamento foi requerido integram a massa patrimonial de uma sociedade comercial da qual apelante e apelado são sócios. Com efeito, mesmo relativamente às contas de que o requerido é titular ou contitular e que a requerente pretende arrolar, a própria alegou que os valores nelas existentes pertencem à sociedade (cfr. artigos 61, 35 e 34 do requerimento inicial).
O que significa que não se mostra preenchido um dos requisitos legais do arrolamento pretendido pela requerente/apelante o que possibilita o indeferimento liminar do requerimento inicial, ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.º 1, do CPC; efetivamente, de acordo com aquele preceito legal, nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida designadamente quando o pedido seja manifestamente improcedente.
A apelante alega que o requerido, com a sua conduta – a qual descreve – «pretende instrumentalizar a sociedade para retirar proveitos próprios, atuando em desconformidade com as finalidades para as quais a sociedade foi criada e lesando a recorrente», receando que se venha a verificar «um esvaziamento do valor das quotas dos sócios» e que tem por isso um interesse direto ou reflexo ou indireto na conservação do património da sociedade que é merecedor da tutela jurídica, concluindo, consequentemente, que a decisão recorrida «violou o princípio do acesso ao direito e à justiça plasmado no artigo 20.º da CRP e no artigo 2.º do CPC».
Porém, a apelante não tem razão.
O princípio do acesso ao direito consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República é concretizado através do direito, conferido a todos, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas bem como ao patrocínio judiciário (cfr. artigo 20.º, n.º 2, da CRP) e o direito de acesso aos tribunais, corolário do direito à tutela jurisdicional efetiva, implica que todos – pessoas singulares e coletivas – tenham acesso à via judiciária para defenderem os seus direitos fundamentais, os demais direitos em geral e os seus interesses legalmente protegidos, abrangendo o seu âmbito: «(a) o direito de ação no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos pré-estabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas» – vide o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 440/94, in DR, II Série, n.º 202, de 01.09.
Salienta-se que a garantia judiciária não impede a existência de requisitos ou de pressupostos processuais, mas tão só que, no plano legal, se consagrem «condicionantes processuais desprovidas de fundamento racional e sem conteúdo útil ou excessivas» – assim, Ac. TC n.º 384/98, citado por Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, página 191 – e que, consequentemente, constituiriam uma simples denegação de justiça.
In casu, não se vislumbra de que forma a decisão recorrida viola o direito de acesso ao direito e aos tribunais, pois a requerente levou a sua pretensão ao conhecimento do tribunal, que a decidiu.
Perante todo o exposto, concluímos que não merece censura a decisão recorrida que, consequentemente, se confirma.

Sumário:
(…)


III.
DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas na presente instância recursiva, porquanto a apelante procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e não há lugar ao pagamento de custas de parte.
Notifique.
Évora, 13 de janeiro de 2022
Cristina Dá Mesquita (Relatora)
José António Moita (1.º Adjunto)
Silva Rato (2.º Adjunto)


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[1] Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, Almedina, 2001, p. 251.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 3.ª Edição, Reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pp. 105 e ss..