Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
909/19.8T8PTG-B.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: SEGUNDA PERÍCIA
DANO BIOLÓGICO
AVALIAÇÃO FISCAL
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I- Apresentando a parte requerimento com identificação clara das inexatidões a corrigir o juiz deve deferir a realização da segunda perícia, independentemente do seu entendimento quanto ao bem, ou mal, fundado das razões de discordância que fundamentam o requerimento.
II- Só o carácter impertinente ou dilatório ou a total ausência de fundamentação constitui causa de indeferimento do requerimento para realização de segunda perícia.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 909/19.8T8PTG-B.E1



Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. Na ação declarativa, com processo comum, instaurada por (…) contra (…)-Companhia de Seguros, S.A. e Gabinete Português de Carta Verde, realizada perícia de avaliação do dano corporal, veio o A. requerer a realização de segunda perícia.
Argumentou, em resumo, que a primeira perícia não valorizou a dismetria – encurtamento entre 1 a 3 cm – dos seus membros inferiores, nem tomou em consideração que as limitações que apresenta têm tendência para se agravar e defendeu que a sua incapacidade (…) se aproximará e deverá ser fixada em 36,85 pontos, assim visando a correção do valor de 26,14758 pontos, atribuído pela primeira perícia, a título de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica.

2. O requerimento mereceu o seguinte despacho:
(…) vem o A. (…) requerer segunda perícia, discordando da incapacidade atribuída e pelas diferenças que aponta relativamente a um outro relatório pericial elaborado por perito por solicitação do próprio A., junto a fls. 221 verso e ss.
Tendo em consideração a natureza diferente dos relatórios em causa quanto ao seu fim, e sendo um prova documental e outro prova pericial, não se nos afigura a mera divergência entre eles fundamento para a realização de segunda perícia, o que se indefere.
Sem prejuízo, nos termos do disposto no artigo 485.º, n.º 4, do C.P.C., determina-se a notificação do Ilustre Perito para de pronunciar, no prazo de 10 dias, quanto ao teor do requerimento do A. (…), na parte em que alude à falta de consideração das lesões dos membros inferiores.

2. O A. recorre do despacho e conclui assim a motivação do recurso:
“a) A primeira perícia médica realizada ao A. não teve em devida conta as graves lesões físicas sofridas por este nos membros inferiores, donde se poderá concluir que a incapacidade permanente parcial fixada ao A. na primeira perícia pecará por defeito;
b) O Sr. Perito médico que realizou a primeira perícia ao A. ao não levar em consideração a “dismetria dos membros inferiores do A., com encurtamento de 1 a 3 cm.”, causada pelo acidente dos autos terá subestimado necessariamente o nível de incapacidade permanente sofrido pelo A, contribuindo desta forma para que os resultados da perícia sejam inexatos, nomeadamente no que se refere à incapacidade permanente parcial que lhe foi fixada na primeira perícia médica.
c) Face à inexatidão dos resultados da primeira perícia, por força do disposto no artigo 487.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, justifica-se plenamente que seja ordenada uma segunda perícia que permite a sua correção.
Termos em que deverá este Tribunal Superior julgar procedente por provado o presente recurso, ordenando-se a realização de segunda perícia médica ao A., nos termos do artigo 478.º do Código de Processo Civil e seguindo-se os demais termos legais, para que, a final, se faça JUSTIÇA”.
Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.

II. Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), importa decidir se deve ser deferida a realização de segunda perícia.

III. Fundamentação
1. Relevam os factos constantes do relatório supra.

2. Direito
Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado e o tribunal pode ordená-la oficiosamente e a todo o tempo desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade” (artigo 487.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, doravante CPC).
A segunda perícia, com pelo menos o mesmo número de peritos da primeira (artigo 488.º-b) do CPC), tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta (artigo 487.º-3) e não invalida a primeira, sendo ambas livremente apreciadas pelo tribunal (artigo 489.º do CPC).
Pondo de parte os casos em que é oficiosamente ordenada, a realização da segunda perícia, a requerimento das partes, carece de motivação; as partes deverão alegar fundadamente as razões da sua discordância com o relatório pericial apresentado.
Antes das alterações introduzidas pelo D.L. 329-A/95, de 12/12 ao CPC de 1961 não era assim; a qualquer das partes era lícito requerer segundo exame vistoria ou avaliação (artigo 609.º, n.º 1, do CPC1961, sem a indicação de razões de discordância com a primeira perícia.
Explicava Alberto dos Reis: “O requerente do segundo arbitramento não precisa justificar o pedido; não carece de apontar defeitos ou vícios ocorridos no primeiro arbitramento; não tem de apontar as razões por que julga pouco satisfatório ou pouco convincente o resultado do primeiro arbitramento.”[1]
Foi o D.-L. n.º 329-A/95, de 12/12 que, visando uma remodelação, “em bases essencialmente inovadoras, [d]o processo de produção da prova pericial” veio anunciar que uma segunda perícia “se for requerida pelas partes, só terá lugar sob indicação de motivos concretos de discordância em relação aos resultados da primeira”[2] (cfr. preâmbulo do referido diploma).
Propósito legislativo que importa não perder de vista na interpretação da expressão “alegando fundadamente as razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado”, enquanto condição imposta à parte em vista da realização da segunda perícia, por forma a evitar um rigor de exegese formal que estorve o exercício de um direito fundamental, como é o direito à prova.
O direito à prova entronca, se bem vemos, no princípio constitucional de acesso aos tribunais ou a tutela jurisdicional, condensado no artigo 20.º, n.º 1, da Lei Fundamental, por implicar este, como implica, a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva[3], a qual não se vislumbra possível sem a concessão às partes de uma ampla liberdade de disposição dos meios de prova, respeitados que sejam os tempos e os modos exigidos para a sua produção ou formação. A prova, no dizer de H. Lévy-Bruhl[4], “(…) é inseparável da decisão judiciária: é a sua alma, a sentença não representa senão uma ratificação.”
A segunda perícia, com exceções para o caso irrelevantes, rege-se pelas disposições aplicáveis à primeira (artigo 488.º do CPC) e a primeira perícia só pode ser indeferida nos casos em que o juiz verifica que ela é impertinente ou dilatória (artigo 476.º, n.º 1, do CPC), ou seja, nos casos em que a perícia não respeita aos factos da causa ou respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe (artigo 388.º do Código Civil, ).[5]
A estas causas de indeferimento da primeira perícia acresce uma outra específica da segunda perícia, que respeita à falta de alegação fundada das razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
Alegação fundada das razões de discordância que lida à luz da exposição de motivos do diploma reformador, antes referida, corresponde à indicação de motivos concretos de discordância em relação aos resultados da primeira perícia, prescindindo de um juízo (de mérito) sobre a procedência de tais razões.
Emitir tal juízo significará tomar posição sobre a primeira perícia entrando assim na análise crítica da prova, tarefa a ter lugar na sentença (artigo 607.º, n.º 4, do CPC), depois de às partes haver sido concedido a faculdade de extraírem as suas conclusões sobre as provas produzidas (artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPC).
Razões fundadas de discordância não corresponde, para efeitos da norma, a razões procedentes mas tão só à indicação dos motivos concretos da discordância; trata-se de emitir um juízo sobre a admissibilidade do meio de prova (2ª perícia) e não de emitir um juízo de valor sobre a prova (1ª perícia).
Como superiormente já se escreveu, “a expressão adverbial «fundadamente», significa precisamente que as razões da dissonância tenham que ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia”[6].
Apresentando a parte requerimento com a identificação clara das inexatidões a corrigir o juiz deve deferir a realização da segunda perícia, não lhe sendo lícito tomar posição sobre o bem, ou mal, fundado das razões de discordância que fundamentam o requerimento.
Só o caráter impertinente ou dilatório ou a total ausência de fundamentação constitui causa de indeferimento do requerimento para realização de segunda perícia.[7]
“A parte tem que indicar os pontos de discordância (as inexatidões a corrigir) e justificar a possibilidade de uma distinta apreciação técnica. Não cabe ao tribunal aprofundar o bem ou o mal fundado da argumentação apresentada, sendo que só a total ausência de fundamentação constitui razão para o indeferimento do requerimento para a realização da segunda perícia. Fundamentando o requerente as razões da sua discordância face ao resultado da primeira perícia, a lei não permite ao juiz uma avaliação do mérito da argumentação apresentada como suporte da divergência, devendo o juiz determinar a realização da segunda perícia, desde que conclua que a mesma não tem carácter impertinente ou dilatório”[8].
No caso, o requerimento da segunda perícia indica os pontos de discordância com o relatório pericial; argumenta-se que primeira perícia não teve em devida conta as graves lesões físicas sofridas pelo A. nos membros inferiores - “dismetria dos membros inferiores com encurtamento de 1 a 3 cm” – e que estas sequelas foram desconsideradas na incapacidade permanente atribuída ao Autor.
O A. indica os concretos motivos de discordância com a primeira perícia e, assim, o requerimento com vista à realização da segunda perícia mostra-se fundamentado.
As razões de indeferimento – não justificar a prova documental invocada pelo A. a realização da segunda perícia – prendem-se com o mérito dos motivos de discordância documentadas do requerimento de segunda perícia e não com a sua total ausência de fundamentação, impertinência ou caráter dilatório (com o significado antes considerado) e, como tal, não justificam, a nosso ver, o indeferimento da segunda perícia.
Procede o recurso, restando revogar a decisão recorrida a qual deverá ser substituída por outra que ordene a realização da segunda perícia requerida pelo Autor.

3. Custas
Por falta de atuação do princípio da causalidade [o A. configura-se como parte vencedora, sem oposição da parte contrária] e não se evidenciando, por agora, quem do recurso tirou proveito [artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC], as custas do recurso deverão correr pelo vencido a final.

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC).
(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida e em determinar a sua substituição por outra que ordene a realização da segunda perícia.
Custas pelo vencido a final.
Évora, 10/11/2022
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho

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[1] Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. 4º, 1951, pág. 287.
[2] Cfr. preâmbulo do D.L. nº 329-A/95, de 12/12.
[3] Ac.TC de 29/11/91, com sumário disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cit. por Fernando Gil, Neutralidade do facto e ónus da prova, Sub Judice n.º 4, 1992, pág. 8.
[5] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, pág. 326.
[6] Ac. STJ de 25/11/2004 (proc. 04B3648), in www.dgsi.pt
[7] Neste sentido, Decisão singular da RE de 18-09-2012 (4162/09.3TBSTB-A.E1).
[8] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I., págs. 546 a 547.