Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
362/15.5T9SLV.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
NULIDADE DA SENTENÇA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PARA A DECISÃO
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - A reconsideração da personalidade do arguido não exige que os factos apurados, relativamente às condições pessoais do condenado e ao seu registo criminal, em cada sentença ou acórdão condenatórios parcelares, tenham de ser levados à matéria de facto da decisão cumulatória.

II -Tal inserção é de rejeitar, desde logo, porque pode dar origem a que o Tribunal faça incluir na matéria de facto assente realidades contraditórias entre si, pelo menos se não forem devidamente contextualizados, em termos temporais ou locais. A isto acresce que, em tese geral, a personalidade do arguido é uma só e não tantas como os processos, em que tenha sido condenado.

III - Na verdade, a personalidade individual é uma realidade dinâmica e não estática, que deve ser analisada tanto numa perspectiva diacrónica como sincrónica.

IV - Os factos descritos proporcionam uma panorâmica amplamente suficiente sobre o percurso pessoal do arguido, abrangendo, entre outros aspectos, relações familiares, enquadramento laboral, habilitações, problemáticas aditivas, com algum destaque para a situação em que presentemente se encontra, de cumprimento de pena de prisão em Estabelecimento Prisional, pelo que a sentença não enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
Por acórdão datado de 27/2/2019 e proferido no Processo Comum nº 362/15.5T9SLV, que correu termos no Juízo Central Criminal de Portimão do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, foi decidido:

Proceder ao cúmulo jurídico das penas aplicadas ao Arguido RR nos presentes autos nº ---/15.5T9SLV e nos Processos nºs ----/16.1T9PTM, ----/15.5PAPTM, ---/15.2PAPTM e ---/14.3PAPTM, condenando o mesmo nas penas únicas de:

- 10 (dez) anos de prisão; e
- 390 (trezentos e noventa) dias de multa, à taxa diária que se fixa em € 5,00 (cinco euros) – quantitativo diário que se afigura adequado atendendo às condições pessoais e financeiras do Arguido – o que perfaz o total de € 1.950,00 (mil novecentos e cinquenta euros), a que correspondem 260 dias de prisão subsidiária, nos termos do artigo 49º do Código Penal.

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

1. O Arguido sofreu as seguintes condenações:

ProcessoCrime/s/Data/sPena/sData da DecisãoData do Trânsito
362/15.5T9SLV
(estes autos)
- um crime de Furto – em 26.03.2015
- um crime de Condução Sem Habilitação Legal - em 27.03.2015
- um crime de Furto Qualificado – em 27.03.2015
Penas parcelares:
- 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão
- 7 (sete) meses de prisão
- 5 (cinco) anos de prisão
Pena única: 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses
22.02.201803.04.2018
----/16.1T9PTM- um crime de Ofensa à Integridade Física – em 12.04.2016
- um crime de Ameaça Agravada – em 12.04.2016
Penas parcelares
- 16 (dezasseis) meses de prisão
- 11 (onze) meses de prisão
Pena única: 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão
20.12.201701.02.2018
----/15.5PAPTMUm crime de Violência Doméstica Agravada– em 08.2012 4 (quatro) anos de prisão 28.09.201607.08.2017
----/15.2PAPTMUm crime de Detenção de Arma Proibida – em 18.11.2015- 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 5,0030.11.201502.05.2016
---/14.3PAPTMUm crime de Detenção de Arma Proibida – em 08.04.2014250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 5,0013.05.201409.04.2018

2. Foram aqui dados como provados, designadamente, os seguintes factos:

«1. Entre as 19h30m do dia 26.03.2015 e as 2 horas do dia 27.03.2015, o Arguido RR, de maneira não concretamente apurada, apoderou-se do veículo ligeiro de passageiros de marca OPEL, modelo CORSA, de matrícula -JA, da propriedade de MR, que estava estacionado em Coca Maravilhas, em Portimão e conduziu-o pelas ruas de Portimão.

2. Depois, foi ao encontro de PAA (adiante designado por PA por comodidade de expressão e de, LMA, adiante designado por LA) e acordaram num plano para assaltar o estabelecimento comercial de snack-bar Vitoria, sito em Silves.

3. Com efeito, para tal, no dia 27.03.2015, pelas 2 horas, deslocaram-se no veículo automóvel de matrícula -JA, de Portimão para Silves, conduzido pelo Arguido, RR.

4. O Arguido estacionou o referido veículo no Largo Mártires da Pátria, em Silves e dirigiram-se, apeados ao estabelecimento comercial Vitória, sito no número 13, da Rua Samora Barros, em Silves.

5. De acordo com o plano previamente elaborado entre si, o Arguido, PA e LA abriram a porta do referido estabelecimento, auxiliando-se de uma chave de fendas.

6. O Arguido, PA e LA calçaram luvas nas suas mãos e entraram no estabelecimento.

7. Daí retiraram um televisor LCD da marca LG e respectivo comando, no valor de €500,00; uma máquina de jogos com nove relógios de pulso e ainda retiraram, da caixa registadora, o montante de € 91,65, em moedas.

8. O Arguido foi buscar o veículo automóvel para transportar consigo todos estes objectos.

9. Assim, uma vez chegado o veículo automóvel junto do estabelecimento, o Arguido, PA e LA carregaram para o mesmo todos o objectos acima identificados e puseram-se em fuga.

(...)
15. Assim, o Arguido, PA e LA apropriaram-se dos objectos retirados do identificado estabelecimento comercial, no valor não concretamente apurado, mas superior a €600,00.
(…)»

3. No Processo Comum Singular nº ----/16.1T9PTM, foram dados como provados, entre outros, os seguintes factos:

«1.O arguido viveu com SF como se de marido e mulher se tratassem, entre data não apurada do ano de 2012 e data não concretamente apurada do ano de 2015, tendo o relacionamento ficado marcado por sucessivas separações e reconciliações.

2. Em Abril de 2016 o casal tinha voltado a reconciliar-se.

3. Na noite de 11 para 12 de Abril, depois de terem estado ambos a ingerir bebidas alcoólicas durante a noite, SF foi para sua casa, sita na Rua Direita, em Portimão.

4. Estava a mesma deitada, quando o arguido, já pela madrugada, entre as 6h00 e as 7h55m, entrou no seu quarto e dirigiu-se a si, tendo-a insultado e agredido, desferindo-lhe vários murros na cara e na cabeça, dando-lhe pontapés e puxado os seus cabelos.

5. Em seguida retirou um canivete do bolso e colocou-o transversalmente na boca de SF, com a lâmina virada para a boca e encostou-o junto ao pescoço, enquanto lhe dizia que a matava.

6. Em consequência directa e necessária do comportamento descrito, SF sofreu dores, hematomas na face e cabeça, e ferimentos na boca.
(…)»
4. No Processo Comum Singular nº ----/15.5PAPTM, resultaram provados, entre o mais, os seguintes factos:

«1. O arguido viveu com SF como se de marido e mulher se tratassem, entre data não concretamente apurada de 2012 e 2015, com sucessivas separações e reconciliações.

2. O arguido ingeria bebidas alcoólicas em excesso e consumia estupefacientes e, nessas ocasiões, ficava muito agressivo.

3. SF, por outro lado, também ingeria bebidas alcoólicas em excesso.

4. Em Agosto de 2012, pouco tempo depois de começarem a viver juntos, o arguido desferiu uma chapada na cara da companheira, provocando-lhe um hematoma no olho direito.

5. A partir dessa altura, por diversas vezes, quase todas as semanas quando se encontrava sob o efeito das bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, o arguido discuta com a sua companheira, e chamava-a de “puta”, “cabrona”, “filha da puta”, “vaca”, “cona da prima”, e acusava-a de andar com outros homens, dizendo-lhe que andava a “foder” com outros.

6. Nessas ocasiões atingiu a companheira com murros na cabeça, na cara e no peito.

7. Em data não determinada, o arguido encostou uma faca ao pescoço da sua companheira.

8. Por diversas vezes o arguido disse a SF que a matava.

9. Em Agosto de 2013, o arguido deu um soco no nariz de SF, fracturando-o.

10. No dia 05 de Julho de 2014, pelas 7h00, quando estavam em casa, sita na Rua Capitão Teófila Duarte, em Portimão, na sequência de uma discussão, o arguido desferiu uma chapada na cara da companheira.

11. No dia 01 de Outubro de 2015, pelas 7h00, o arguido agrediu SF provocando-lhe escoriações na boca e um hematoma no olho esquerdo.

12. No dia 29 de Outubro de 2015, pelas 9h30m, o arguido, que tinha em seu poder a chave da casa da SF, sita na Rua Direita…, em Portimão, entrou em casa desta e dirigiu-se ao seu quarto, atingindo-a com urros na cara, nos olhos e atingindo-a nas nádegas.

(…)»
5. No Processo Sumário nº ----/14.3PAPTM, resultou provado, designadamente, que:
«1. No dia 08 de Abril de 2014, pelas 15h42m, na Avenida Guanaré, em Portimão, o arguido ocultava na sua posse, na zona da cintura, uma faca “de mato”, com o comprimento total de trinta e um vírgula oito centímetros e comprimento de lâmina de vinte vírgula oito centímetros.
(…)»
6. No Processo nº ----/16.1T6PTM, por acórdão transitado em julgado em 06.02.2019, foi realizado cúmulo jurídico que englobou a pena aplicada nos presentes autos e as aplicadas nos processos nºs ----/15.5PAPTM e ---/15.2PAPTM, tendo-lhe sido aplicadas as penas únicas 5 anos e 2 meses de prisão e de 200 dias de multa à razão diária de € 5,00 (em cúmulo material).

Mais se apurou que
7. Antes de dar entrada no Estabelecimento Prisional de Silves no dia 7 de Julho de 2017 para cumprir pena de prisão pela prática de um crime de violência doméstica agravada à ordem do Processo no ---/15.5PAPTM, RR encontrava-se a residir e a trabalhar no sector da construção civil na freguesia de Odeceixe.

8.RR tem a profissão de armador de ferro, mas desenvolveu outras actividades na área da construção civil, embora nem sempre com regularidade. No plano escolar, RR concluiu apenas o 1º ciclo do ensino básico, embora esteja agora enquadrado no projecto educativo em meio prisional.

9. O Arguido é o mais velho de 2 irmãos, oriundo de um agregado de fracos recursos sociais e económicos, tendo crescido num ambiente familiar conflituoso, marcado pelos problemas de alcoolismo do progenitor. Ainda jovem associou-se a grupos de pares com comportamentos desviantes, procurando a autonomização face ao agregado familiar, tendo iniciado com 16 anos de idade o contacto com o sistema de justiça.

10. No seu percurso de vida, são referidas questões de natureza aditiva (sobretudo consumo excessivo de bebidas alcoólicas) que condicionaram o seu trajecto laboral e pessoal, sendo de salientar uma ligação marital instável e violenta entre 2012 e 2015, no decurso da qual assumiu comportamentos pelos quais foi condenado no processo supra mencionado.

11. RR é pai de uma filha de 14 anos (LF), fruto de uma união de facto que durou mais de 10 anos com AM, referida como a relação mais gratificante da sua vida. Ainda hoje, já separados, esta ex-companheira mantém laços de amizade com o Arguido. RR tem recebido apoio no exterior e visitas regulares na cadeia por parte da mãe, da sua filha e ainda de alguns amigos e familiares.

12. No estabelecimento prisional RR começou a trabalhar pouco tempo depois de ter iniciado o cumprimento da pena privativa de liberdade, primeiro como faxina e depois em obras de manutenção que decorrem em meio prisional. Frequentou um curso de informática e aulas de inglês, bem como a certificação RVCC. No momento presente integra a equipa de reclusos que vai trabalhar na oficina da Delta, recentemente instalada na prisão.

13. É acompanhado pelos Serviços Clínicos do EP, faz medicação e frequenta as sessões dinamizadas por um terapeuta do DICAD - ETET/Barlavento sobre a temática da alcoologia. Também beneficiou de acompanhamento na área da psicologia.

14. Não apresenta registos no seu percurso prisional, pautando-se por cumprir as normas e regras vigentes no Estabelecimento Prisional.

15. Apresenta uma postura motivada em termos de interesse e motivação escolar/profissional, com o propósito de desenvolver as qualificações académicas em meio prisional, tendo concluído o ensino secundário, no dia 05.12.2018. Tem a expectativa de obter colocação laboral quando em liberdade.

16. Para além das condenações acima referidas, do Certificado de Registo Criminal do Arguido constam ainda as seguintes condenações:

- no Processo nº ---/08.2PATM, por decisão de 04.07.2011, transitada em julgado em 20.09.2011, pela prática, em 30.03.2008, de um crime de Condução Sem Habilitação Legal, na pena de 180 dias de multa;

- no Processo nº ---/04.9GEPTM, por decisão de 19.03.2006, transitada em julgado em 04.05.2006, pela prática, em 06.08.2004, de dois crimes de Roubo e, em 07.08.2004, de um crime de Resistência e Coacção, na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão suspensa na sua execução;

- no Processo nº --/03.0PAPTM, por decisão de 21.10.2003, transitada em julgado em 12.01.2004, pela prática, em 31.12.2002, de um crime de Furto, na pena de 1 ano de prisão;

- no Processo nº ---/95.5TBPTM, por decisão de 21.05.2001, transitada em julgado em 05.06.2001, pela prática, em 21.09.1995, de um crime de Furto Qualificado, na pena de 26 meses de prisão suspensa na sua execução;

- no Processo nº ---/99.0TBPTM, por decisão de 28.01.1999, transitada em julgado em 12.02.1999, pela prática, em 16.10.1995, de um crime de Furto Qualificado, na pena de 2 anos e 1 mês de prisão suspensa na sua execução;

- no Processo nº ---/98, por decisão de 14.01.1999, pela prática, em 15.10.1995, de um crime de Furto Qualificado, na pena de 5 meses de prisão substituída por multa; e

- no Processo nº ---/96, por decisão de 26.06.1996, pela prática, em 28.01.1996, de um crime de Furto Qualificado, na pena de 20 meses de prisão suspensa na sua execução.

Do acórdão cumulatório proferido o arguido RR interpôs recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

1º Realizado o cúmulo jurídico das penas de prisão em que o arguido foi condenado, o Tribunal decidiu condenar o arguido ora recorrente numa pena única de 10 (dez) anos de prisão.

2º Realizado o cúmulo jurídico das penas de multa em que o arguido foi condenado, o Tribunal decidiu condenar o arguido ora recorrente numa pena única de 390 (trezentos e noventa) dias de multa à taxa diária de € 5.00

3º O presente cúmulo quadra-se na previsão dos artigos 77º e 78º, ambos do Cód. Penal.

4º Trata-se de um conhecimento superveniente do concurso de crimes que ocorre quando o Tribunal tem conhecimento, depois de ter transitado em julgado uma determinada condenação, que outro crime foi praticado pelo arguido antes desse trânsito, estando, por isso, esse ou esses crimes em concurso com o primeiro e devendo ser objecto, todos eles, de uma pena única.

5º Sendo transponíveis para este regime, as regras relativas à determinação da pena do concurso previstas no artigo 77º do C.P.

4º É manifesto que a decisão que resultou da realização do cúmulo jurídico se afirma extremamente gravosa para o arguido, o que colide frontalmente com o princípio de concretização da justiça que todas as decisões judiciais devem abraçar.

5º Uma vez que mesma se situa perto do limite máximo consubstanciado na soma material das diversas penas parcelares.

6º A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura abstracta aplicável, construída a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é também determinada em função da culpa e da prevenção, mas agora tomando em conta o critério específico da consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido, nos termos do disposto no art. 77.º, n.º 1 do CP.

7º Trata-se agora de observar os factos em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que ocorre entre os mesmos, no sentido de aferir a totalidade da actuação do arguido que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a culpa pelos factos numa perspectiva de relacionação.

8º Na avaliação desta personalidade unitária do agente, importa sobretudo a questão de saber se do conjunto dos factos por si praticados emana uma tendência criminosa, ou tão somente a prática ocasional de actos criminosos que não radica na personalidade do arguido.

9º Sendo que, caso se afira essa prática ocasional, será desapropriada a decisão cumulatória que consigne à pluralidade de crimes um efeito agravante.

10º Na decisão cumulatória importa ainda a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente, no âmbito das exigências de prevenção especial de socialização.

11º A decisão cumulátória carece ainda de uma fundamentação específica na qual se vertam as razões por que, em atenção aos referidos factores (em particular a propensão ou não do agente para a prática de crimes ou de determinado tipo de crimes), se aplicou uma determinada pena conjunta.

12º No caso concreto, a decisão ora recorrida, pese embora, indique as datas das condenações e do respectivo trânsito, as datas da prática dos crimes objecto dessas condenações e das penas que, por eles, foram aplicadas, a descrição dos factos que caracterizaram os crimes que foram objecto dessas condenações, é omissa quanto à caracterização da personalidade do arguido e as circunstâncias pessoais do mesmo à data da prática dos crimes, que permitam construir uma base de juízo e decisão sobre a personalidade, necessária para a determinação da pena do concurso.

13º A omissão de caracterizar a personalidade determina a impossibilidade de aferir se os crimes praticados resultam da uma tendência criminosa do arguido ou se, por outro lado, se trata apenas de actos criminosos ocasionais praticados numa linha temporal definida.

14º E também não se pronuncia quanto ao efeito da pena sobre a capacidade de ressocialização do arguido.

15º Considerando o tipo de crimes praticados pelo arguido e sobretudo o período temporal em que os mesmos ocorreram, deve concluir-se que os mesmos foram resultado de uma multiplicidade de circunstâncias casuais, meramente conjunturais na vida do arguido, cujo denominador comum terá que ver exclusivamente com questões de natureza aditiva, designadamente o excessivo consumo de bebidas alcoólicas por parte do arguido, não podendo inferir-se das mesmas um traço de personalidade.

16º Por outro lado a sentença nos pontos, em que de forma aleatória e sem qualquer referência ao contexto em que ocorreram os crimes praticados pelo arguido, refere aspectos relativos à vida e condições pessoais do arguido, não procede à devida análise crítica dos mesmos.

17º Desconsidera claramente, pese embora o refira, o percurso que o arguido tem vindo a trilhar no estabelecimento prisional onde se encontra.

18º Não incorpora na decisão cumulatória os aspectos positivos que resultam da mudança de comportamento do arguido, já que essa decisão traduz em termos práticos a soma material das penas parcelares.

19º Assim, em conformidade com os disposto no artigo 374.º, n.º 2 do CPP, o tribunal está obrigado a fundamentar a decisão em termos de facto e de direito, devendo indicar as circunstâncias em que foram cometidos os vários crimes que deram origem às várias condenações do arguido, para que se perceba qual a conexão que ocorre entre os vários factos, encarados numa perspectiva global, e a sua relacionação com a personalidade do arguido.

20º No sentido de aferir se esses factos são a expressão de um modo de ser, de uma opção por um determinado trajecto de vida, ou se são apenas resultado de um conjunto de circunstâncias casuais na vida do arguido.

21º Essa é a essência da própria fundamentação da medida da pena única, que não consiste numa simples adição de penas, mas na imposição da pena conjunta mais adequada a uma determinada avaliação do ilícito global e da culpa pelos factos inter relacionados.

22º Fundamentação que não se verifica na sentença recorrida, porquanto a mesma é omissa quanto às condições pessoais e quanto caracterização da personalidade do arguido aquando da prática dos crimes.

23º A que acresce o facto de em momento algum considerar a alteração positiva verificada no comportamento do arguido em sede da decisão a proferir.

24º Assim, deve o acórdão recorrido ser declarado nulo por omissão de pronúncia nos termos do estatuído no artigo 379º nº1 al. c) do C.P.P.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V.EXª(S) DOUTAMENTE SUPRIRÃO deve o acórdão recorrido ser declarado nulo por omissão de pronúncia nos termos do estatuído no artigo 379º nº1 al. c) do C.P.P. SENDO ASSIM FEITA JUSTIÇA

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito devolutivo.

O MP respondeu à motivação do recorrente, formulando, por sua vez, as seguintes conclusões:

O recurso interposto pelo recorrente é, em nosso entender, destituído de fundamento. Com efeito, o Tribunal fez uma correcta interpretação dos factos e uma adequada aplicação do direito.

A clareza da sentença dispensa quaisquer comentários.

Assim sendo, dá-se por reproduzido o teor da sentença, com cuja argumentação jurídica se concorda

Pelo que deverá ser mantida a douta decisão recorrida, considerando-se o recurso interposto pelo arguido improcedente.

Porém, V.as E.xas farão, como sempre, JUSTIÇA

O Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu parecer sobre o recurso em presença, no sentido da respectiva procedência, diminuindo-se para 7 anos a medida da pena única de prisão.

Tal parecer foi notificado ao recorrente, para sobre o mesmo se pronunciar, querendo, nada tendo ele respondido.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância do acórdão recorrido, expressa pelo arguido RR nas suas conclusões da motivação do recurso, centra-se na arguição da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379º nº 1 al. c) do CPP.

Em matéria de nulidades de sentença, dispõem os nºs 1 e 2 do art. 379º do CPP:

1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º -A e 391.º -F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

2 — As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.

A «omissão de pronúncia», que está prevista pela al. c) do nº 1 do art. 379º do CPP como causa de nulidade da sentença, ocorre quando o Tribunal deixe de tomar posição sobre alguma questão, que esteja vinculado a dirimir.

O recorrente baseia a arguição da identificada nulidade em não ter o Tribunal «a quo» considerado, no juízo que conduziu à determinação da pena única, em que foi condenado, os factos relativos à personalidade do arguido ao tempo da prática dos diferentes dos diferentes crimes em concurso, que motivaram a aplicação das penas parcelares que foram objecto de cúmulo jurídico.

O acórdão sob recurso condenou o arguido RR na pena única de 10 anos de prisão e de 390 dias de multa à taxa diária de € 5, em cúmulo jurídico das penas singulares cominadas nos presentes autos nº ---/15.5T9SLV e nos Processos nºs ----/16.1T9PTM, ----/15.5PAPTM, ----/15.2PAPTM e ---/14.3PAPTM.

Insurge-se o recorrente, no fim de contas, por não ter o Tribunal Colectivo feito consignar na matéria de facto provada os factos apurados nas decisões condenatórias englobadas no cúmulo, atinentes às condições pessoais do arguido e aos seus antecedentes criminais ou à falta deles, como fez, nos pontos 2 a 5, em relação aos factos integradores dos crimes que motivaram tais condenações.

O Colectivo de Juízes subscritor do presente acórdão tem vindo a entender que a falta de averiguação dos factos atinentes às chamadas condições pessoais do arguido, mormente, através da realização do relatório social previsto no art. 370º do CPP, não integra a nulidade invocada pelo recorrente, mas sim o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, a que se refere a al. a) do nº 2 do art. 410º do CPP – vd., nesse sentido, o Acórdão desta Relação de 25/2/14, proferido no processo nº 375/10.3GDPTM.E2 e disponível em www.dgsi.pt).

Tal raciocínio jurídico afigura-se-nos válido para a situação em apreço, em que está em causa decidir do cúmulo «a posteriori» de penas cominadas por sentenças transitadas em julgado, nos termos do art. 78º do CP.

O nº 2 do art. 410º do CPP, na parte que agora pode interessar, dispõe:
Mesmo nos casos em que a lei restringir a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) (…);
c) (…).

Segundo o Acórdão do STJ de 13/5/98 (CJ, Acs. do STJ, VI, tomo 2, pág. 199), a locução «decisão» inserida no texto da al. a) do nº do art. 410º do CPP, deve ser entendida como a decisão justa que ao caso deveria caber e não como a decisão concretamente proferida e objecto do recurso, sendo, portanto, com referência à primeira e não à segunda que deverá ajuizar-se da suficiência da matéria de facto provada.

Assim, e sintetizando, poderemos dizer que o referenciado vício de decisão verifica-se sempre o Tribunal deixe de emitir juízo probatório sobre um facto relevante para a justa decisão da causa.

Qualquer dos vícios tipificados no nº 2 do art. 410º do CPP terá de ser inferido do próprio texto da sentença, por si ou conjugado com as regras de experiência comum, não podendo ser tomados em consideração elementos exteriores, nomeadamente, meios de prova cujo conteúdo não esteja de alguma forma reflectido no texto da decisão.

Os termos da punição do concurso de crimes são definidos pelo art. 77º do CP:

1 – Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 – A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.

Conforme o recorrente invoca e é geralmente aceite pelos Tribunais, o cúmulo jurídico de penas não se reduz a uma operação aritmética, mas antes pressupõe a formulação pelo julgador de um juízo de valor assente na reconsideração conjunta dos factos e da personalidade do arguido, segundo o disposto no nº 1 «in fine» do normativo legal agora transcrito.

A questão que se coloca é a de saber se, como parece pressupor o recorrente, a reconsideração da personalidade do arguido exige que os factos apurados, relativamente às condições pessoais do condenado e ao seu registo criminal, em cada sentença ou acórdão condenatórios parcelares, tenham de ser levados à matéria de facto da decisão cumulatória.

Ora, tal solução afigura-se-nos ser de rejeitar, desde logo, porque pode dar origem a que o Tribunal faça incluir na matéria de facto assente realidades contraditórias entre si, pelo menos se não forem devidamente contextualizados, em termos temporais ou locais.

A isto acresce que, em tese geral, a personalidade do arguido é uma só e não tantas como os processos, em que tenha sido condenado.

Na verdade, a personalidade individual é uma realidade dinâmica e não estática, que deve ser analisada tanto numa perspectiva diacrónica como sincrónica.

Os factos descritos nos pontos 7 a 15 da matéria provada, a que se juntam os do ponto 16, referentes ao passado criminal do arguido (não incluindo as condenações abrangidas pelo cúmulo destes autos), proporcionam uma panorâmica amplamente suficiente sobre o percurso pessoal do arguido, abrangendo, entre outros aspectos, relações familiares, enquadramento laboral, habilitações, problemáticas aditivas, com algum destaque para a situação em que presentemente se encontra, de cumprimento de pena de prisão em Estabelecimento Prisional, à ordem de um dos processos englobados no cúmulo.

Nesta conformidade, teremos de concluir que a matéria de facto dado como provada pelo Tribunal Colectivo apetrecha-o adequadamente para levar a efeito a valoração global da personalidade do arguido que a determinação da pena emergente do cúmulo jurídico pressupõe.

Consequentemente, o acórdão não se mostra inquinado do vício da insuficiência da matéria de acto para a decisão, nos termos da al. a) do nº 1 do art. 410º do CPP.

Como tal, terá o recurso de improceder.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Notifique.

Évora, 11/7/2019 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)