Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2661/22.0T8FAR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: PROCESSO DE ADOPÇÃO
RELATÓRIO SOCIAL
INDEFERIMENTO LIMINAR DA PETIÇÃO
CASO JULGADO FORMAL
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Proferido despacho a dispensar a junção aos autos do relatório a que alude o nº 4 do art. 50º do RJPA, uma vez transitado em julgado, faz caso julgado formal, impedindo que posteriormente venha a ser proferido despacho de indeferimento liminar com fundamento na falta do pressuposto processual previsto no artigo 34.º, nº1, alínea c), do RJPA.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA e BB, casadas entre si, vieram requerer, para a primeira, a coadoção plena dos menores CC, nascido a .../.../2013, e DD, nascido a .../.../2015.
Alegaram, em síntese, que se uniram com o propósito de constituir família mediante uma plena comunhão de vida, vivendo em condições análogas às dos cônjuges desde 2006, tendo posteriormente contraído casamento civil em 08.03.2017. Dessa união decidiram gerar dois filhos, por inseminação, tendo a requerente BB gerado os dois filhas acima identificados, sendo que todas as decisões relativas à vida dos menores vêm sendo tomadas em conjunto pelo casal, cujos menores veem e reconhecem ambas como suas progenitoras.
Conclusos os autos à Sr.ª Juíza de turno, em 05.08.2022 foi por esta proferido o seguinte despacho:
«Compulsados os autos, verifica-se que a petição inicial não se mostra instruída com o relatório a que alude o art. 50º, nº 4 do RJPA (cfr. art. 53º, nº 2 do RJPA).
Assim sendo, notifique as autoras para, no prazo de 10 dias, juntarem aos autos o aludido relatório.»
Notificadas, vieram as autoras, por requerimento de 10.08.2022, expor que, «face às condições de vida dos menores, os quais são, para efeitos legais, filhos de pai incógnito e nascidos em ambiente familiar, criados e educados pelo casal, consideraram estar dispensado o Relatório referido no despacho que antecedeu.
Assim, não apresentaram processo de candidatura pelo que não poderão satisfazer a determinada apresentação daquele».
Nessa sequência, outra Sr.ª Juíza de turno proferiu despacho em 11.08.2022, no qual entendeu «que é possível e desejável que o processo avance de imediato para a fase dos consentimentos, sem necessidade do período de pré-adoção (que equivaleria a 3 ou 6 meses e teria como escopo avaliar, através de elaboração de relatórios de organismos da segurança social, das capacidades da candidata e as necessidade das criança), sendo no superior interesse das crianças CC e DD avaliar se estão preenchidos os requisitos gerais da adoção pretendida, sem submeter esta família a maiores escrutínios que apenas poderiam perturbar a sua harmonia, contribuindo-se para rápida consolidação (formal) deste núcleo familiar», tendo determinado que a autora AA viesse informar se tinha outros filhos biológicos ou afetivos, para posteriormente agendar as respetivas audições com vista a colher o consentimento pessoal das autoras e das crianças a adotar.
Em 15. 09.2022, o Sr. Juiz titular do processo proferiu decisão com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, e na medida em que faltando o pressuposto processual previsto no artigo 34º nº1 alínea c) do RJPA, decide o Tribunal indeferir liminarmente o requerimento inicial e consequentemente a acção judicial de adopção instaurada pela Requerente.
Sem custas (artigo 4º nº2 alínea f) do RCP).
Notifique.»
Inconformada, a autora AA apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das seguintes conclusões.
«A- Decidida questão jurídica nos autos, fica vedado ao juiz a sua posterior revogação, alteração ou avaliação.
B- Está vedado ao juiz, em decisão a proferir, contrariar decisão anteriormente proferida nos mesmos autos.
C- No caso, estava vedado ao juiz a quo proferir decisão que contrariasse o decidido pelo despacho de 11/08/2022.
D- A decisão recorrida contraria e revoga, tacita e claramente, o decidido pelo referido despacho de 11/08/2022 o qual, ademais, não foi objeto de qualquer reclamação ou recurso, pelo que transitou em julgado.
E- No caso dos autos, poderá e deverá ser dispensado o Relatório Social a que alude o art. 50º, nº 4 do RJPA.
Normas jurídicas violadas:
F- Com a douta decisão recorrida, terá o tribunal a quo violado as seguintes normas jurídicas:
Artº 613º, nºs 1 e 3 do CPC, 620º, nº 1, do CPC, artº 628º do CPC e artº 20º, nº 1, da Lei 32/2006, de 26 de julho, na versão da Lei 17/2016 de 20 de junho
Termos em que, deverá:
a) ser revogada a douta decisão recorrida na parte em que indeferiu liminarmente o requerimento inicial
b) substituída a decisão recorrida por outra que agende a prestação de consentimento e audição dos menores, conforme determinado pelo despacho de 11/08/2022 com vista a ser proferida decisão,
c) ser considerada a desnecessidade, no caso concreto e caso se prove a factualidade alegada, de junção do Relatório a que alude o art. 50º, nº 4 do RJPA.»

Contra-alegou o Ministério Público, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir consubstanciam-se em saber:
- se houve violação do caso julgado formal;
- se é desnecessária a junção aos autos do relatório a que alude o art. 50º, nº 4, do RJPA (Regime Jurídico do Processo de Adoção).

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos a considerar para a decisão do recurso são os que constam do antecedente relatório.

O DIREITO
Da violação do caso julgado formal
Resumidamente, dir-se-á que o caso julgado formal incide apenas e só sobre questões de carácter processual. Daí que a sua força obrigatória se limite ao próprio processo, já que apenas obsta a que o julgador possa, na mesma ação, alterar a decisão proferida. Mas já não impedindo que, noutra ação, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes, pelo mesmo ou por outro tribunal[1].
Como escreveu o Prof. Alberto dos Reis[2], «[ao] caso julgado, ou seja material ou seja simplesmente formal, anda inerente a ideia de imutabilidade. O trânsito em julgado imprime à decisão carácter definitivo; uma vez transitada em julgado, a decisão não pode ser alterada.
Não é, porém, absoluta esta característica. A imutabilidade do caso julgado é meramente relativa, pelo que, em vez de se falar em imutabilidade, será mais rigoroso empregar o termo estabilidade.
(…).
Por ser assim, é que a cada passo se faz coincidir o caso julgado formal com o fenómeno da simples preclusão. O caso julgado formal consiste precisamente em estar fechada a via dos recursos ordinários; este caso julgado forma-se quando a parte vencida perdeu o direito de lançar mão dos recursos ordinários para fazer alterar a decisão respectiva. A extinção do direito de impugnar a decisão por meio de recurso ordinário é consequência ou de a parte vencida deixar passar o prazo dentro do qual lhe era lícito recorrer, ou de ter esgotado o uso dos recursos ordinários admitidos por lei».
Diz a recorrente que estava vedado ao Sr. Juiz a quo proferir decisão que contrariasse o decidido pelo despacho de 11.08.2022, sendo que «[a] decisão recorrida contraria e revoga, tacita e claramente, o decidido pelo referido despacho de 11/08/2022 o qual, ademais, não foi objeto de qualquer reclamação ou recurso, pelo que transitou em julgado».
E entendemos que lhe assiste razão. Senão vejamos.
No despacho de 11.08.2016, afirmou-se de forma inequívoca a desnecessidade «do período de pré-adoção (que equivaleria a 3 ou 6 meses e teria como escopo avaliar, através de elaboração de relatórios de organismos da segurança social, das capacidades da candidata e as necessidade das criança), por se considerar ser «no superior interesse das crianças CC e DD avaliar se estão preenchidos os requisitos gerais da adoção pretendida, sem submeter esta família a maiores escrutínios que apenas poderiam perturbar a sua harmonia, contribuindo-se para rápida consolidação (formal) deste núcleo familiar».
E, por isso, determinou-se que autora/ recorrente viesse informar se tinha outros filhos biológicos ou afetivos, para posteriormente agendar as respetivas audições com vista a colher o consentimento pessoal das autoras e das crianças a adotar.
Ora, ainda que não se tenha mencionado expressamente naquele despacho a norma do art. 50º, nº 4,[3] do RJPA, não há a menor dúvida que esta norma não deixou de ser considerada, no sentido da sua não aplicação ao caso concreto, pois de outro modo não faria o menor sentido aludir à desnecessidade «do período de pré-adoção (que equivaleria a 3 ou 6 meses e teria como escopo avaliar, através de elaboração de relatórios de organismos da segurança social, das capacidades da candidata e as necessidade das criança), pelo que, ao invés do que se entendeu na decisão recorrida, em tal despacho julgou-se desnecessária a junção do relatório a que alude tal norma.
Contra este despacho não reagiram as partes, designadamente o Ministério Público, pelo que o mesmo transitou em julgado, formando-se assim caso julgado formal, com força obrigatória dentro do processo, sobre a decisão que julgou desnecessário o período de pré-adoção (art. 620º do CPC).
A força obrigatória do referido caso julgado formal obsta a que o posterior despacho de indeferimento liminar, ora recorrido, decidisse em sentido contrário, ou seja, que faltava o pressuposto processual previsto no artigo 34º, nº 1, al. c), do RJPA[4].
A aceitar-se a produção de efeitos da decisão recorrida estaríamos perante uma contradição de julgados, o que não pode aceitar-se, porque a tal obsta o artigo 625º, nº 2, do CPC, que expressamente aplica às decisões dentro do processo o princípio do seu nº 1, determinando que se cumpra a que passou em julgado em primeiro lugar.
O caso julgado formal que se constituiu e que é vinculativo dentro do processo impede, pois, a subsistência da decisão recorrida, impondo a sua revogação.
Nem se diga que o despacho de 11.08.2016 «contrariou o despacho de 5/8/2022, nos termos do qual o Tribunal havia solicitado a junção pela Requerente do relatório a que alude o art. 50º, nº 4 do RJPA (cfr. art. 53º, nº 2 do RJPA), o que precisamente foi feito no entendimento de que a Demandante teria de se ter candidatado à adopção nos serviços da Segurança Social e passado pelas fases supra-descritas no sentido de obter o referido relatório. Ou seja, o entendimento inicial do Tribunal foi precisamente o de que tal pressuposto processual era necessário como efectivamente é à luz do artigo 34º nº1 alínea c) do RJPA e da citada jurisprudência
Na verdade, neste despacho inicial nada se decidiu, não se tendo tomado posição sobre a necessidade do período de pré-adoção, apenas se determinando a notificação das autoras para juntarem aos autos o relatório previsto no art. 50º, nº 4 do RJPA, pelo que o mesmo não formou caso julgado sobre essa questão.
Ademais, a questão da necessidade ou desnecessidade da junção de tal relatório só se colocou após o requerimento das autoras de 10.08.2022, no qual as mesmas expuseram as razões para não apresentarem processo de candidatura da ora recorrente.
Por conseguinte, o recurso merece provimento, ficando, assim, prejudicado o conhecimento da questão da necessidade ou desnecessidade da junção aos autos do relatório a que alude o nº 4 do art. 50º do RJPA (art. 608º, nº 2, ex vi art. 663º, nº 2, do CPC).

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
*
Évora, 10 de novembro de 2022
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Francisco Xavier (2º adjunto)

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[1] Cfr. acórdão do STJ de 28.06.1994, CJ/STJ, Tomo II, p. 159.
[2] Código de Processo Civil anotado, Vol. V (reimpressão), p. 157.
[3] Onde se prescreve: «Decorrido o período a que se refere o n.º 1 ou logo que verificadas as condições para ser requerida a adoção, o organismo de segurança social ou a instituição particular autorizada elabora, em 30 dias, relatório incidindo sobre as matérias a que se refere a alínea i) do artigo 8.º, concluindo com parecer relativo à concretização do projeto adotivo.
[4] É do seguinte teor esta norma: «1 - A prolação da decisão judicial constitutiva do vínculo da adoção depende de: c) prévia avaliação favorável da pretensão expressa pelo candidato a adotante relativamente à adoção do filho do cônjuge, tendo em conta o superior interesse da criança.