Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2111/19.0T8STR-G.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
TÍTULO DE CRÉDITO
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Perante o Assento 5/95 – hoje com valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência – a interrupção da prescrição relativa ao subscritor da livrança não produz efeitos quanto ao respectivo avalista.
2. Igual princípio se aplica em relação ao avalista do sacador da letra de câmbio.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
(…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Comércio de Santarém, por sentença de 26.08.2019 foi declarada a insolvência de (…) e (…), a qual transitou em julgado a 17.09.2019.
Em 02.03.2020, a Caixa Geral de Depósitos, S.A., propôs por apenso acção de verificação ulterior de créditos, peticionando o reconhecimento dos seus créditos no valor global de € 69.158,08.
Os créditos reclamados fundavam-se num contrato de abertura de crédito em conta corrente, até ao montante de € 25.000,00, numa livrança no valor de € 3.124,00 e vencida em 10.06.2014, noutra livrança no valor de € 20.000,00 e vencida em 05.07.2014, e numa letra de câmbio no valor de € 2.094,00 e vencida na mesma data.
Quanto a estes três títulos de crédito, a petição inicial afirma apenas o seguinte (no respectivo artigo 11.º): “No âmbito da sua actividade creditícia, a ora reclamante titular[1] dos seguintes títulos de créditos, todos avalizados, entre outros, pelos aqui insolventes:”, seguindo-se a descrição de cada um desses títulos, com valores, n.ºs da operação e datas de vencimento.
Contestaram os insolventes, invocando, entre o mais, a prescrição do direito de acção quanto às duas livranças e à letra de câmbio, por decurso do prazo de três anos sobre a respectiva data de vencimento, nos termos do artigo 70.º da LULL.
Respondeu a reclamante, afirmando que a subscritora daqueles títulos de crédito foi declarada insolvente por sentença de 13.05.2015 e que ali reclamou o pagamento daqueles títulos, motivo pelo qual o prazo de prescrição se interrompeu, nos termos do artigo 323.º, n.º 1, do Código Civil.
No saneador, foi decidido julgar procedente a excepção de prescrição dos três títulos de crédito, absolvendo os insolventes do pedido de reconhecimento destes créditos.
A causa prosseguiu para conhecimento da matéria relativa à 1.ª parte da causa de pedir – contrato de abertura de crédito em conta corrente – determinando-se a notificação da reclamante para aperfeiçoar a sua petição inicial.

Inconformada com a decisão que julgou prescritos os três títulos de crédito, a reclamante recorre e conclui:
VI. É objecto do presente recurso a decisão do Tribunal a quo, de julgar procedente, por provada, a excepção de prescrição de três (3) títulos de crédito, a que respeitam as operações n.º PT (…), PT (…) e PT (…), e consequentemente de absolver os RR do pedido de reconhecimento deste crédito.

VII. Tal decisão teve como fundamentos, como consta expressamente do teor do douto despacho recorrido, por um lado, o facto dos RR. terem admitido a existência dos títulos de crédito em causa, nos moldes alegados pela CGD, S.A., e por outro lado, o facto de a A. pretensamente nada ter dito quanto à verificação da excepção de prescrição dos mesmos.

VIII. Encontra-se provado nos presentes autos os três títulos de crédito, e a qualidade de avalistas dos Insolventes nos mesmos [facto provado 1, alíneas a), b) e c)].

IX. Está também provado nos autos que as mesmas responsabilidades invocadas na petição inicial da presente acção foram igualmente reclamadas no processo de insolvência da mutuária / subscritora, n.º 10880/15.0T8SNT, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Comércio de Sintra, Juiz 1, como resulta do teor da certidão judicial relativa a esse processo, junta aos autos por Requerimento da A. de 03.02.2021, com a ref.ª Citius 7463008, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

X. Provado está também que nesses autos foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos em 30.10.2017, transitada em julgado em 14.11.2017, como resulta do teor do Ofício datado de 02.03.2021, com a ref.ª Citius 7519893, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

XI. A A. CGD, S.A., em sede de resposta às excepções – requerimento de 08.10.2020, a fls... – pronunciou-se, expressamente, quanto à pretensa prescrição de todos os títulos, ao invés do referido no douto despacho saneador sentença proferido pelo Tribunal a quo.

XII. Nesse requerimento, a CGD, S.A., alegou, concretamente, que “inexiste qualquer pretensa prescrição dos títulos accionados”, tendo, em conclusão de tal afirmação, impugnado especificamente o artigo 28º da contestação apresentada pelos Insolventes, onde estes invocam a pretensa prescrição das livranças e da letra.

XIII. Do teor de tal peça processual resulta, pois, à evidência que a CGD, S.A., tomou posição definida perante os factos invocados em sede de contestação pelos RR., cumprindo plenamente o ónus a que está adstrita, e a que se reporta o artigo 574.º, n.º 1, do CPC.

XIV. O facto invocado pelos RR. (prescrição dos três títulos de crédito) foi especificamente impugnado pela A., logo, tal facto não poderá ser considerado admitido por acordo, motivo pelo qual não poderia o douto Tribunal a quo fundamentar tal decisão na norma do artigo 574.º, n.º 2, do CPC.

XV. Com o devido e merecido respeito, que é muito, não corresponde à factualidade constante dos autos e alegada pela CGD que «em sede de resposta, a A. nada disse relativamente a esta excepção».

XVI. Assim, a motivação constante da decisão recorrida, por não se reportar factualmente aos articulados juntos aos autos (nomeadamente, a resposta da CGD, S.A., às excepções), carece de falta de fundamento, o que aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

XVII. No caso sub judice, o douto Tribunal a quo não poderia aplicar o efeito cominatório resultante da falta de impugnação, quando precisamente a A. impugnou especificamente o facto invocado pelos RR.

XVIII. Pelo que, não poderia, pois, o douto Tribunal a quo decidir, desde logo, tal excepção, com tal fundamentação.

XIX. Quanto muito, e sem com tal conceder ou transigir, atenta a impugnação específica da A. CGD, S.A., deveria ter proferido despacho de selecção do objecto do litígio e temas de prova, a que alude o artigo 596.º do Código de Processo Civil.

XX. Por outro lado, o prazo prescricional a que alude o artigo 70.º da LULL, aplicável ex vi do artigo 77.º do mesmo diploma, é susceptível de ser interrompido, nos termos da Lei substantiva. Neste sentido já se pronunciou a Doutrina e a Jurisprudência, invocando-se, com a devida vénia, o decidido por douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.03.2019, proc. nº 3350/06.9TBAMD-A.L1-7, in www.dgsi.pt, que supra se transcreveu.

XXI. Ora, no caso sub judice, constata-se que, o prazo de prescrição dos três títulos de crédito invocado pelos RR. foi efectivamente interrompido em 14.11.2017, data do trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos proferida no âmbito do processo de insolvência da subscritora desses três títulos de crédito (como resulta do teor do Ofício datado de 02.03.2021, com a ref.ª Citius 7519893, cujo teor aqui se dá por reproduzido).

XXII. Com efeito, como confessam os RR. Insolventes no artigo 12º da sua Contestação, e resulta igualmente do teor da lista a que alude o artigo 129.º do CIRE bem como da douta sentença de verificação e graduação de créditos proferida nesse processo, que constam da certidão judicial relativa a esse processo, junta aos autos por Requerimento da A. de 03.02.2021, com a ref.ª Citius 7463008, cujo teor aqui se dá por reproduzido, as mesmas responsabilidades invocadas pela A. na presente acção de verificação ulterior de créditos foram igualmente reclamadas no processo de insolvência da subscritora, com o n.º 10880/15.0T8SNT, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Comércio de Sintra, Juiz 1.

XXIII. Ora, estatui o n.º 1 do artigo 323.º do Código Civil que «a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente».

XXIV. Refere o Professor Carlos Alberto da Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, 10.ª reimpressão, Coimbra Editora, 1996, pág. 375, 4º ponto: «a prescrição é interrompida pela citação ou a notificação judicial avulsa ou um acto judicial que declare de modo cristalino ou tácito a real intenção do titular do direito de o exercer».

XXV. Significa isto que os procedimentos judiciais são em qualquer caso interruptivos do prazo prescricional, aliás, conforme a Doutrina e a Jurisprudência sempre têm vindo a entender.

XXVI. Assim, dúvidas não podem restar, como efectivamente não restam, que a reclamação dos mesmos títulos no processo de insolvência da subscritora por parte da CGD, S.A., consubstancia «real intenção do titular do direito» em exercer o mesmo.

XXVII. Sendo certo que, tais créditos reclamados apenas se tornaram exigíveis após serem julgados reconhecidos, e graduados em conformidade, por douta sentença de verificação e graduação de créditos de 30.10.2017, transitada em julgado em 14.11.2017.

XXVIII. Assim, atenta a interrupção do prazo de prescrição, por força do trânsito em julgado da douta sentença de verificação e graduação de créditos proferida no identificado processo de insolvência da subscritora, não tendo sido ultrapassado o prazo legal de três anos desde aquela data (14.11.2017) até à data da instauração da presente acção de verificação ulterior de créditos 02.03.2020), inexiste qualquer pretensa prescrição dos títulos accionados, pelo que, não poderia, por este motivo, a excepção peremptória da prescrição de três (3) títulos de crédito ser julgada procedente.

XXIX. Atento o que ficou alegado, e salvo o devido e merecido respeito, a douta decisão de 02.07.2021 sofre de errada aplicação de Direito quando conclui no sentido inverso, impondo-se a sua revogação.

XXX. A douta decisão recorrida fez, assim, menos correcta interpretação e aplicação da lei, violando, designadamente, as normas constantes dos artigos 574.º, n.ºs 1 e 2 e 596.º, ambos do CPC, e artigos 70.º e 77.º, ambos da LULL.

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.

O relevo factual a ponderar na decisão e documentado nos autos, é o seguinte:
1. A reclamante é titular de uma livrança no valor de € 3.124,00, com vencimento em 10.06.2014, subscrita por (…) e (…), Lda., e contendo no verso as assinaturas dos insolventes por baixo dos dizeres “Bom por aval à firma subscritora”;
2. A reclamante é titular de outra livrança, esta no valor de € 20.000,00, com vencimento em 05.07.2014, igualmente subscrita por (…) e (…), Lda., e contendo no verso as assinaturas dos insolventes por baixo dos dizeres “Bom por aval à firma subscritora”;
3. A reclamante também é titular de uma letra de câmbio, no valor de € 2.094,00, com vencimento em 05.07.2014, sacada por (…) e (…), Lda., e aceite por (…), Carnes, Unipessoal, Lda., contendo no verso as assinaturas dos insolventes por baixo dos dizeres “Bom por aval à firma subscritora”;
4. A (…) e (…), Lda. foi declarada insolvente por sentença de 13.05.2015, proferida no Proc. 10880/15.0T8SNT, do Juízo de Comércio de Sintra, a qual transitou em julgado a 02.07.2015;
5. A Caixa Geral de Depósitos, S.A., reclamou naquela insolvência os créditos decorrentes das duas livranças e da letra de câmbio supra identificadas, tendo sido incluída na lista definitiva de créditos reclamados e reconhecidos;
6. Não tendo sido apresentadas impugnações à lista de créditos reconhecidos, foi proferida sentença em 30.10.2017, transitada em julgado em 14.11.2017, julgando verificados os créditos constantes daquela lista e procedendo à respectiva graduação.

Aplicando o Direito.
Da não comunicabilidade da interrupção da prescrição quanto ao subscritor do título cambiário em relação ao seu avalista – artigo 71.º da LULL
Argumenta a Recorrente que o prazo de prescrição dos três títulos de crédito foi interrompido em 14.11.2017, data do trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos proferida no âmbito do processo de insolvência da subscritora daqueles títulos.
Porém, não está alegado em momento algum dos autos que os aqui insolventes tenham por algum modo sido chamados a intervir no processo de insolvência da subscritora das livranças e sacadora da letra de câmbio.
Ora, o artigo 71.º da LULL dispõe que “a interrupção da prescrição só produz efeito em relação à pessoa para quem a interrupção foi feita.”
Perante esta norma, havia quem defendesse que interrompida a prescrição quanto ao aceitante da letra deveria considerar-se também interrompida em relação ao respectivo avalista.[2] Porém, havia jurisprudência e doutrina que pugnava em sentido diverso.[3]
Pelo Assento 5/95, de 28.03.1995, publicado no DR, I Série-A, de 20.05.1995, foi decidida a oposição de julgados e formulada jurisprudência, hoje com valor de acórdão uniformizador, no seguinte sentido: “Por força do disposto no artigo 71.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, aplicável por via do seu artigo 78.º, a interrupção da prescrição da obrigação cambiária contra o subscritor de uma livrança não produz efeito em relação ao respectivo avalista.”
Refere-se nesse assento que o princípio da autonomia e a regra da pessoalidade da eficácia interruptiva afastam quaisquer efeitos que pudessem resultar também da regra da equiparação plasmada no artigo 32.º da LULL.
Não se vislumbrando motivo para divergir da posição firmada naquele Acórdão – de resto, tirado por larga maioria – deveremos entender que a interrupção da prescrição relativa ao subscritor da livrança não produz efeitos quanto ao respectivo avalista. E igual princípio se aplicará em relação ao avalista do sacador da letra de câmbio.
Por outro lado, como bem se observa na decisão recorrida, nada foi alegado quanto à relação subjacente à assunção das obrigações cartulares pelos insolventes, pelo que o prazo de prescrição a aplicar é, tão só, o de três anos a contar do vencimento dos títulos.
Visto que a reclamação dos créditos resultantes das duas livranças e da letra de câmbio, em relação aos aqui insolventes, ocorreu mais de três anos após a data de vencimento daqueles títulos, bem procedeu a decisão recorrida ao julgar procedente a excepção de prescrição.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.
Évora, 16 de Dezembro de 2021
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

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[1] Aparentemente, existe aqui um erro de escrita. Parte-se do pressuposto que se teria pretendido escrever “a ora reclamante é titular…”.
[2] Era o caso de Abel Delgado, in LULL Anotada, 6.ª ed., Petrony, 1990, página 351.
[3] Nomeadamente, Paulo Sendim, in Letras de Câmbio, vol. II, Almedina, n.º 131, páginas 746 e seguintes; mesmo autor e Evaristo Mendes, in A Natureza do Aval e a Questão da Necessidade ou não do Protesto para Accionar o Avalista do Aceitante, Almedina, 1991, n.ºs 16 e seguintes, páginas 38 e seguintes.