Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
992/16.8PAOLH-E.E1
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CONSUMAÇÃO
CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
Data do Acordão: 04/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Salvaguardada a consumação com a prática do primeiro facto ilícito típico, ocorre nova consumação material de cada vez e todas as vezes que é praticado um novo facto ilícito típico que, por si só, já preenche o tipo legal do crime de tráfico mas que é tratado unitariamente por razões de política criminal.

2 - Assim, se o crime de tráfico de estupefacientes foi praticado durante o período que mediou entre Dezembro de 2016 e 22/5/17, tendo o primeiro acto de execução (Dezembro de 2016) sido praticado antes do trânsito da condenação proferida noutro processo e o último (22/5/2017) mais de 4 meses depois daquela data, a data relevante para aferir da existência de concurso de crimes é o dia 22/5/17.

3 - Sendo esta última data posterior àquela em que transitou o acórdão condenatório proferido no outro processo, há que concluir que não existe concurso de crimes e, por isso, não há lugar ao cúmulo jurídico das penas aplicadas nos dois processos.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1.Relatório
No Juízo Central Criminal de Faro – J5, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, em processo comum colectivo em que é arguido (...), devidamente identificado nos autos, foi proferido despacho que indeferiu o requerimento através do qual este pretendia a realização de cúmulo jurídico para englobar na pena em que havia sido condenado nos presentes autos aquela outra, de 8 anos e 10 meses de prisão, que lhe havia sido aplicada no proc. nº 71/12.7JAFAR.
Inconformado com este despacho, dele interpôs recurso o arguido, pretendendo que seja revogado e que seja determinada a realização do cúmulo jurídico nos termos propugnados, para o que apresentou as seguintes conclusões:

1.ª Tendo sido o Recorrente no passado dia 03 de Março do corrente ano notificado da decisão proferida no âmbito do Processo n.º 992/16.8PAOLH, que correu os seus termos junto do Juiz 5 do Juízo Central Criminal de Faro, mediante uma análise cuidada e ponderada dessa decisão proferida pelo Tribunal a Quo diga-se em abono da verdade que essa mesma decisão é completamente absurda que houve uma péssima interpretação da lei e da jurisprudência em vigor,
2.ª Ora vejamos, tendo sido o Recorrente condenado no âmbito daqueles Autos pelo crime de tráfico de estupefacientes numa pena de 6 anos de prisão com decisão proferida em 16 de Abril de 2018, além disso foi aquele também condenado numa pena de 8 anos e 10 meses de prisão no âmbito do Processo n.º 71/12.7JAFAR, que correu os seus termos junto do Juiz 2 do Juizo Central Criminal de Faro, a decisão Condenatória proferida no âmbito desse Processo foi proferida a 13 de janeiro de 2017,
3.ª Assim sendo como os factos praticados no âmbito do Segundo Processo foram praticados a 07 de Dezembro de 2016, foram praticados antes do dia 13 de Janeiro de 2017 data em que foi proferida a decisão em que condenou o Recorrente a 08 anos e 10 meses de prisão,
4.ª Perante isso o ora Recorrente requereu junto daquele Tribunal o respectivo cúmulo juridico uma vez que os factos praticados consumaram se apenas num único acto, em que aquele indeferiu ora requerido por aquele, tendo o ora Recorrente apresentado um Recurso junto do Tribunal da Relação de Évora que teve o mesmo entendimento erradamente confirmando a decisão proferida pelo Tribunal á Quó,
5.ª Posteriormente a essa fase recursal e entendendo o ora Recorrente que tem direito ao cúmulo jurídico no passado dia 24 de Fevereiro do corrente ano apresentou junto do Tribunal á Quo tendo em vista o cúmulo jurídico das duas penas ora referidas, tendo apresentando toda a fundamentação respectiva, só que aquele Tribunal continua a afirmar que o ora Recorrente não tem direito a cumulo juridico sem qualquer fundamento
6.ª Mas diga-se em abono da verdade para se compreender o porquê do ora Recorrente ter direito ao cúmulo juridico e que se deve e bem ter fazer uma interpretação extensiva dos artigos 77.º e seguintes do Código Penal, uma vez que estamos perante dois crimes de tráfico de estupefacientes, e a questão que se coloca é se há concurso de crimes,
7.ª Ora vejamos foi recusado inicialmente o cúmulo jurídico ou seja indeferiu requerimento, com o fundamento de que o crime se iniciou antes do transito em julgado mas que se prolongou após o trânsito,
8.ª Diga-se em bom rigor que o crime praticado pelo Recorrente qualifica-se como um crime continuado que não termina com a pratica de um único acto mas sim em vários por um período de tempo que geralmente só termina com a detenção do agente ao contrário de um crime de execução expontânia por exemplo o crime de homicídio que se esgota e termina na pratica de um único acto,
9.ª Mas para se aferir se os artigos 77.º e seguintes se aplicam ao caso em questão teremos de ter em conta o inicio da actividade criminosa levada a cabo pelo ora Recorrente nos presentes autos, o que significa que a atividade criminosa daquele inicia-se antes do transito em Julgado da primeira condenação, logo enquadra-se e bem no artigo 77.º do Código Penal,
10.ª Enquadrando-se no artigo 77.º do Código Penal face ao ora referido no artigo anterior o Tribunal que condenou o Recorrente tem o dever e a obrigação de fazer o cumulo jurídico, áquele convém também frisar que esta é a posição defendida em vários acórdãos da jurisprudência levados a cabo pelo Supremo Tribunal de Justiça ou seja pelo Douto Tribunal em que neste tipo de crimes o que é levado em conta é o inicio da actividade criminosa levada a cabo pelo agente, como por exemplo aconteceu no Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º1040/06.1PSLSB.SI,“No ponto II do sumário do referido acórdão proferido a 05/11/20111 consagra o caso de cúmulo Juridico por conhecimento superveniente de concurso de crimes tem lugar quando posteriormente á condenação no processo de que se trata, o da ultima condenação, se vem a verificar que o agente anteriormente á tal condenação, praticou outro ou outros crimes, nestes caso são aplicáveis as regras do disposto nos artigos 77.º n.º 2 e 78.º n.º 1 do Código Penal.”,
11.ª Num outro Acórdão proferido pela 3.ª Secção do douto Tribunal no âmbito do Processo n.º 671/15.3POCSC-C.L1.S1, em que o Arguido no âmbito desse Processo inicialmente foi condenado a uma pena de 14 anos por vários crimes de roubos em que este Tribunal reduziu a pena do desse Arguido uma vez que teve em conta vários aspetos entre os quais a razão da idade uma vez que tinha 18 anos ai aplicou – se o regime mais favorável áquele,
12.ª Ainda um outro acórdão proferido pelo Douto Tribunal mais concretamente proferido pela 3.ª Secção no âmbito do Processo 6/14.2GBILH.S1, em que foi proferida uma decisão idêntica á do Acórdão em que foi exemplificado em primeiro lugar no presente Recurso,
13.ª Assim sendo tendo em conta a interpretação extensiva da lei e da jurisprudência em vigor, a actividade criminosa do ora Recorrente nos presentes Autos teve inicio a 07 de Dezembro de 2016, enquanto que o acórdão da primeira condenação foi proferido a 13 de Janeiro de 2017, logo o crime praticado pelo ora Recorrente nos presentes Autos teve o seu inicio antes do transito em julgado daquela condenação, e que o importa aqui é a data em que o crime foi praticado,
14.ª Como também deve se ter em conta a idade do ora Recorrente uma vez que tem 31 anos de idade logo em razão da idade deve ter uma atenuação da pena aplicando-se um regime mais favorável, a não fazer-se o cúmulo jurídico vai criar danos gravíssimos na vida do ora Recorrente,
15.ª Logo e em face do que se foi expondo ao longo do presente Recurso entende-se por sinal que haveria e haverá todas as condições para que seja feito o cúmulo jurídico ao ora Recorrente por ser essa medida justa dos factos, e tendo em conta o respeito pela interpretação da lei e pela jurisprudência em vigor

O recurso foi admitido.
Na resposta, o MºPº defendeu a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida, concluindo como segue:

1 – Por despacho proferido a fls. 2646/2655 dos autos à margem supra referenciados, foi decidido pela Mma. Juiz titular do mesmo não efetuar o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido ora recorrente (...) no presente processo e nos autos de Processo Comum Coletivo n.º 71/12.7 JAFAR.
2 – Decisão essa que não merece qualquer censura, já que o crime de tráfico de estupefacientes objeto do presente processo e os dois crimes objeto dos autos n.º 71/12.7 JAFAR não se encontram em concurso entre si – tendo em conta o disposto no artigo 77º, n.º 1 do Código Penal – pois que os factos objeto dos presentes autos foram praticados após o trânsito em julgado da condenação proferida naquele processo.
3 – Com efeito, os atos de execução do crime de tráfico de estupefacientes objeto dos presentes autos ocorreram entre os dias 7 de dezembro de 2016 e 22 de maio de 2017, data esta em que se considera que o mesmo crime de execução continuada se consumou.
4 – Sendo que esta mesma data – 22/05/2017 – é posterior à data em que a decisão proferida no processo n.º 71/12.7 JAFAR transitou em julgado – 13/01/2017.
5 – Mostrando-se dessa forma perfeitamente justificada a decisão, tomada no despacho ora recorrido, de não proceder ao cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido ora recorrente nos presentes autos e no processo n.º 71/12.7 JAFAR.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no qual - debruçando-se sobre a natureza do crime por cuja prática o recorrente foi condenado em ordem a determinar o momento juridicamente relevante para aferir da existência ou não de concurso, e concluindo que, tratando-se de crime de execução continuada (e não de crime continuado), o mesmo se consumou na data em que foi praticado o último acto de execução, concretamente em 22/5/2017 e, portanto, já depois de ter transitado em julgado a sentença proferida no proc. nº 71/12.7 JAFAR, razão pela qual estamos perante uma sucessão de crimes e não perante um concurso criminal – também se pronunciou no sentido da improcedência do recurso e manutenção do despacho recorrido.
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tenha sido apresentada resposta.
Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre decidir.

2.Fundamentação
Revestem-se de interesse para a decisão do recurso as seguintes ocorrências processuais:
- o ora recorrente foi condenado nos autos principais, por acórdão proferido em 15/3/2018 e do qual não interpôs recurso, pela prática, no período de Dezembro de 2016 até 22/5/2017, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 6 anos de prisão;
- foi igualmente condenado, no proc. nº 71/12.7JAFAR que corre termos no Juízo Central Criminal de Faro – J2, por acórdão transitado em 13/1/2017, pela prática, desde 2010 até 6/4/2013, de um crime de um crime de tráfico agravado e pela prática, em 10/5/2014, de um crime de roubo, nas penas parcelares de, respectivamente, 8 anos e 1 ano e 10 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 anos e 10 meses de prisão;
- em 1/2/21, o recorrente enviou aos autos carta manuscrita e por ele subscrita, na qual manifestava perplexidade pelo facto de não ter sido efectuado o cúmulo jurídico das penas aplicadas naqueles dois referidos processos, requerendo que o seu caso fosse reapreciado;
- o MºPº, na vista que, na sequência, lhe foi aberta, pronunciou-se nos seguintes termos:

P. se informe o arguido (...) de que não existe fundamento legal para a realização de cúmulo jurídico a englobar as penas de prisão efetiva que foram aplicadas nos presentes autos (n.º 992/16.8 PAOLH) e no processo n.º 71/12.7 JAFAR, uma vez que os crimes objeto de cada uma das condenações não se encontram numa relação de concurso – já que o crime objeto dos presentes autos foi praticado (em 22/05/2017) após o trânsito em julgado da condenação proferida no processo n.º 71/12.7 JAFAR (ocorrido em 13/01/2017).
Pelo que não se encontra preenchido o fundamento previsto no artigo 77º, n.º 1 do Código Penal para a efetivação de um cúmulo jurídico.
Também não se mostra possível a realização de um cúmulo jurídico a englobar as penas que foram aplicadas nos presentes autos e no processo n.º 3532/17.8 T9FAR, uma vez que os crimes objeto de cada uma das condenações são de diferente natureza e a pena de prisão suspensa na sua execução aplicada no último dos mencionados processos já foi declarada extinta.

- após o que foi proferido, em 23/2/21, o despacho recorrido, cujo teor é o seguinte:

Fls. 2640
Por se concordar na íntegra com o teor da promoção que antecede, informe o arguido nos exactos termos promovidos.
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Fls. 2645
Visto.
Notifique o Defensor do arguido Nélson Miguel Ramos Pereira do teor do requerimento deste, para os fins tidos por convenientes.

- notificado, veio o recorrente, desta feita pela pena do seu defensor, reiterar a mesma pretensão, sobre a qual foi proferido, em 2/3/21, despacho com o seguinte teor:

Fls. 2650 e ss.
Veio, uma vez, mais, o arguido e o Il. Defensor, requerer a realização do cúmulo de penas em que o arguido foi condenado nestes autos com aquelas que lhe foram aplicadas no âmbito dos processos nº71/12.7JAFAR e nº3532/17.8T9FAR.
Tal questão foi por nós apreciada, e indeferida, por despacho datado de 23.02.2021, encontrando-se, como tal, esgotado o poder jurisdicional quanto a tal matéria.
Notifique.

3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, a única questão suscitada reconduz-se a determinar se deve ou não ser realizado o cúmulo jurídico entre as penas em que o recorrente foi condenado nos autos principais e no proc. nº 71/12.7 JAFAR.
O recorrente defende que sim, na medida em que a actividade criminal em que assenta a sua condenação nos autos principais se iniciou (em Dezembro de 2016) antes do trânsito em julgado da decisão proferida no processo nº 71/12.7 JAFAR (ocorrido em 13/1/17), enquadrando-se, por isso, a seu ver na previsão legal do art. 77º do C. Penal.
Em sentido discordante, o MºPº em ambas as instâncias, considerando, em síntese, que o momento relevante para a definição da consumação do crime de tráfico de estupefacientes é aquele em que foi praticado o último acto de execução e, tendo o mesmo ocorrido em 22/5/17, já depois do trânsito do acórdão proferido no proc. nº 71/12.7 JAFAR, ocorrido em 13/1/17, não estamos perante um concurso de crimes, mas sim perante uma sucessão de crimes, p que as penas em que o recorrente foi condenado nos dois processos em questão devem ser cumpridas sucessivamente.

Em ordem a dilucidar a questão colocada, há que ter em atenção, em primeiro lugar as normas que regem o concurso de crimes e, em particular, o nº 1 do art. 77º nº 1 ( “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única.” ) e o nº 1 do art. 78º ( “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior” ), ambos preceitos do C. Penal.
O caso dos autos, não se estando perante crimes que tenham sido julgados em simultâneo, no mesmo processo, só poderá configurar a previsão legal do conhecimento superveniente do concurso, contida na norma referida em segundo lugar.
Importa, ainda, atentar, na jurisprudência fixada no AUJ nº 9/2016, de acordo com a qual: “O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso.”.
No caso, a primeira condenação que transitou em julgado foi aquela que foi proferida no proc. nº 71/12.7JAFAR, tendo o respectivo trânsito ocorrido em 13/1/17.
Mas, afastado pela generalidade da doutrina e da jurisprudência o cúmulo por arrastamento, só haverá concurso de crimes se o crime pelo qual o recorrente foi condenado nos autos principais tiver sido praticado antes daquela data[3].
Ora, tal crime, de tráfico de estupefacientes, foi praticado durante o período que mediou entre Dezembro de 2016 até 22/5/17. Ou seja, o primeiro acto de execução foi praticado antes do trânsito da condenação proferida no proc. nº 71/12.7JAFAR e o último mais de 4 meses depois daquela data.
Da data em que se considere o crime consumado depende a resposta a dar à questão suscitada no recurso: se essa data for Dezembro de 2016, haverá concurso de crimes com aqueles em que assentou a condenação proferida no proc. nº 71/12.7JAFAR; já se for qualquer data posterior a 13/1/17, nomeadamente 22/5/17, estamos perante uma sucessão de crimes, não podendo efectuar-se o cúmulo jurídico de penas que o recorrente pretende.
Ora, porque o legislador quis antecipar a tutela penal, o crime de tráfico de estupefacientes consuma-se com a prática de qualquer dos actos que constam da descrição do respectivo tipo legal. Logo que ocorra prática de qualquer um dos factos ilícitos típicos, dá-se a consumação formal e material. No entanto, como na expressiva maioria dos casos sucede, e neste também efectivamente sucedeu, o tráfico não se esgota num só acto; o agente do crime tende a repetir condutas essencialmente idênticas ou conexas durante um período temporal mais ou menos alargados. Serão estas condutas posteriores apenas um acréscimo ao crime, já consumado desde a prática do primeiro facto ilícito típico? Ou serão, cada uma delas, uma nova consumação material do crime, mesmo que absorvido na mesma unidade resolutiva?
Sopesada a natureza do crime de tráfico de estupefacientes, tradicionalmente tratado como crime exaurido, como crime de trato sucessivo e/ou como crime de empreendimento, inclinamo-nos para este segundo entendimento[4]. Para o que contribuem duas ordens de razões: uma, porque, a considerar-se o crime consumado logo aquando da prática do primeiro facto ilícito típico e só neste momento, teríamos na decorrência de aceitar que o prazo prescricional começasse a correr desde esse dia e bem seria possível acontecer que a actividade do tráfico se prolongasse, de forma consistente, sem haver perseguição criminal, por lapso temporal tão alargado que permitisse a prescrição do crime quando ainda estavam/continuavam a ser praticados actos de tráfico pelo agente, dando azo a uma situação totalmente absurda que o legislador certamente não quis e seguramente repudiaria; outra, porque por vezes o primeiro facto ilícito típico não basta, por si só, para efectuar a correcta subsunção jurídica da conduta delituosa e então estaríamos perante um crime consumado que, sem o “contributo” dos factos ilícitos típicos que eventualmente se podiam seguir para definir a imagem global do facto, ainda não se saberia se se tratava de um crime de tráfico do art. 25º, do art. 21º, do art. 24º ou eventualmente do art. 26º da Lei nº 15/93 de 22/1.
Entendemos, pois, que, salvaguardada a consumação com a prática do primeiro facto ilícito típico, ocorre nova consumação material de cada vez e todas as vezes que é praticado um novo facto ilícito típico que, por si só, já preenche o tipo legal do crime de tráfico mas que é tratado unitariamente por razões de política criminal[5].
Daí que, no caso sob recurso, a data relevante para aferir da existência de concurso de crimes seja o dia 22/5/17[6]. E, porque esta data é posterior àquela em que transitou o acórdão condenatório proferido no proc. nº 71/12.7JAFAR, há que concluir que não existe concurso de crimes e, por isso, não há lugar ao cúmulo jurídico entre a pena ali aplicada e aquela que foi aplicada ao recorrente nos autos principais.
Não pode, pois, ser acolhida a pretensão do recorrente, devendo manter-se o que foi decidido pela 1ª instância.


4. Decisão
Por todo o exposto, julgam o recurso improcedente, mantendo o despacho recorrido.
Vai o recorrente condenado em 3 UC de taxa de justiça.

Évora, 27 de Abril de 2021
Maria Leonor Esteves
Berguete Coelho


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[1] ( cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Veja-se, entre muitos outros, o Ac. STJ 22/5/13, proc. nº 344/11.6PCBRG.G1.S1, de cujo sumário se destaca o segmento a seguir transcrito:
I - O cúmulo jurídico por conhecimento superveniente de concurso de crimes tem lugar, quando posteriormente à condenação no processo ─ o da última condenação transitada em julgado ─ se vem a verificar que o agente, anteriormente a tal condenação, praticou outro ou outros crimes, que tem ou têm conexão temporal com o último a ser julgado.
II - Em caso de pluralidade de crimes praticados pelo mesmo arguido é de unificar as penas aplicadas, desde que cometidos antes de transitar a condenação por qualquer deles.
III - A partir do trânsito em julgado da primeira decisão condenatória, os crimes cometidos depois dessa data deixam de concorrer com os que os precedem, isto é, já não estão em concurso com os cometidos anteriormente à data do trânsito, abrindo-se um ciclo novo, autónomo, em que o figurino não é já o de acumulação de crimes, mas de sucessão.
IV - A partir da barreira inultrapassável do trânsito em julgado fica afastada a unificação, mas os subsequentes crimes podem integrar outros cúmulos e podem formar-se outras penas conjuntas autónomas, de execução sucessiva.
[4] Diametralmente oposto àquele que foi seguido no Ac. RC 23/9/20, proc. nº 58/13.2PEVIS-D.C1, que se debruçou sobre caso de contornos idênticos e cujo sumário é o seguinte:
I. Analisando o crime de tráfico de estupefacientes sob várias perspectivas, pode afirmar-se que estamos perante um crime de empreendimento, já que os actos que noutros casos seriam classificados como de tentativa são aqui tidos como actos de consumação do próprio crime, como por exemplo o cultivo ou detenção de estupefacientes.
II. Mas também é um crime exaurido, uma vez que, após a realização da conduta típica que já integra a consumação, também pode haver a produção do resultado que ainda interessa à valoração típica porque ligado aos bens jurídicos protegidos pelo tipo. Isto é, depois do cultivo ou detenção do estupefaciente, condutas típicas que conduzem à consumação do crime, ainda pode haver lugar à venda do estupefaciente.
III. Ao apelidar o crime de tráfico de estupefacientes como um crime de trato sucessivo visa-se realçar a vertente de pluralidade de actos típicos, sucessivos (podendo também na prática do crime existir uma pluralidade de actos simultâneos), levados a cabo sob a mesma unidade resolutiva.
IV. Unidade resolutiva e não uma única resolução criminosa. Isso é, o agente terá decidido dedicar-se à actividade de tráfico de estupefacientes durante um determinado período de tempo, durante o qual praticou vários factos ilícitos, com preenchimento dos elementos típicos, quer objectivos quer subjectivos.
V. Em síntese conclusiva, pois, a consumação do crime de tráfico de estupefacientes dá-se com o primeiro acto que preenche os elementos típicos do crime e não com o último.
VI. In casu, o primeiro facto data de Janeiro de 2013. No processo nº 318 (…), a arguida foi condenada por decisão transitada em julgado no dia 29 de Abril de 2014. Isto é, antes do trânsito em julgado desta decisão já se encontrava consumado o crime dos presentes autos, embora se fosse aperfeiçoando com os factos que foram cometidos até 9 de Maio de 2014. Está, pois, em concurso com a pena aplicada no Processo nº 318 (…), verificando-se todos os pressupostos para a realização do cúmulo jurídico requerido pela arguida.
[5] Entendimento que pensamos ser coincidente com o que foi expresso no Ac. RP 8/1/20, proc. 476/13.6JAPRT.P2, no qual se refere que o crime de tráfico de estupefacientes “considera-se praticado e consumado em qualquer (e em todos) os momentos em que o agente (e/ou co-autores) pratique alguma das acções típicas descritas no artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro”.
[6] Em sentido que converge para a mesma solução, vejam-se as considerações expendidas no Ac. STJ 26/6/19, proc. nº 206/16.0PALGS.S2, cuja pertinência também reconhecemos e a seguir vão transcritas:
“Se em sede de tentativa a terminação não tem relevância na medida em que a tutela penal se antecipa ao momento da prática do primeiro dos atos da conduta incriminada, o mesmo não deve entender-se para efeitos de cúmulo jurídico de penas, onde o que releva é o desrespeito pela admonição que deveria ter representado o trânsito em julgado da primeira condenação. Prosseguindo na prática de actos do crime exaurido, após essa admonição, não pode senão considerar-se que o arguido a desconsiderou. Interpretação que obsta a que se acabe numa solução, se não exactamente igual, pelo menos bem próxima do denominado cúmulo por arrastamento, que não é admitido no nosso regime penal.”