Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
430/20.1T8STB.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DECLARAÇÕES DE PARTE
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
MÚTUO
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - No mútuo, seja qual for o valor, a prova do contexto, da finalidade, da deslocação patrimonial por parte dos mutuantes e da frustração do reembolso, não constitui uma prova vinculada, estando sujeita à livre apreciação da prova.

2 - Resulta consensual na doutrina e na jurisprudência que as declarações de parte, por natureza, uma prova interessada, requerem um complemento probatório que as confirme. O que não as impede de constituir um elemento probatório direto, igualmente relevante.

3 - A prova da existência de uma confissão de dívida documentada, não pode ser substituída por uma prova testemunhal, ou assente em declarações de parte, porque de menor valor.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I

J… e sua esposa C…, intentaram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra R…, todos com os sinais dos autos, pedindo que pela sua procedência se condene o R. a pagar-lhes a quantia de 79.750,00€ (setenta e nove mil setecentos e cinquenta euros) e respetivos juros de mora vencidos desde 02/08/2010, no montante de €31.559,15 (trinta e um mil quinhentos e cinquenta e nove euros e quinze cêntimos) e vincendos até ao efetivo e integral pagamento.

Como fundamento da sua pretensão alegam que os AA. emprestaram diversas quantias ao Réu, que totalizam a soma peticionada, sem que este lhas tenha restituído.

O R. apresentou contestação, negando os factos. Concluiu pela improcedência da ação.

Realizou-se a audiência de julgamento após o que foi proferida sentença que julgou a ação totalmente procedente por totalmente provada, e, em consequência condenou o Réu a pagar ao Autor a quantia de 79.750,00 euros, acrescida de juros de mora desde 02.03.2010 e até pagamento.

Inconformado com tal decisão veio o Réu recorrer assim concluindo as suas alegações de recurso:

I) Não pode o Réu/Recorrente concordar com a douta sentença ora recorrida, pois, atenta a falta de prova documental junta aos autos, a prova em sede de declarações de parte, e a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento – sempre teria o douto Tribunal de dar como não provados os factos alegados pelos Autores/Recorridos, absolvendo o Réu/Recorrente dos pedidos por aqueles formulados.

II) Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo errou na apreciação da matéria de facto, errando na apreciação crítica que fez da prova produzida, quer documental, quer testemunhal, bem como errou na subsunção dos factos ao direito, nos termos do disposto no Artigo 640.º, do CPC.

III) Primeiramente, diga-se que, a douta sentença ora recorrida não cumpriu com o dever de fundamentação que resulta da conjugação do disposto nos Artigos 607.º, 3 e 4, do CPC e Artigo 205.º, da Constituição da República Portuguesa.

IV) A douta sentença limitou-se a, no que se refere à prova documental, remeter para as folhas do processo onde os mesmos se encontram. Ora tal não cumpre o dever de fundamentação que impende sobre o Tribunal, pois os documentos não são factos, mas simples meios de prova de factos e, por isso, na fundamentação de facto há que indicar os factos provados pelos documentos, e quais documentos provam que factos, não bastando "dar como reproduzidos" os documentos ou tão pouco elencar todos os documentos juntos aos autos pelas partes.

V) Assim, deveria o Tribunal a quo ter indicado as provas que serviram para formar a sua convicção fazendo reportar a cada facto quais os meios de prova correspondentes, ou pelo menos fazendo reportar cada meio de prova a um conjunto de factos relacionados entre si, o que o Tribunal não fez.

VI) O Tribunal a quo limitou-se a remeter, no que à fundamentação de facto diz respeito, para a prova produzida globalmente considerada.

VII) Ora, tal menção global e genérica para a globalidade da prova produzida, não é suficiente para cumprir o dever de fundamentação constitucionalmente consagrado.

VIII) Sendo, aliás, entendimento pacífico na jurisprudência dos tribunais superiores que a exigência legal de motivação da decisão não se satisfaz com a simples referência aos meios de prova que o julgador considerou decisivos para a formação da sua convicção, antes se torna necessário ao julgador indicar que meios de prova foram decisivos para cada facto em concreto que foi chamado a julgar.

IX) Face a todo o exposto, verifica-se que, na douta sentença ora recorrida, não cumpriu o Tribunal a quo o dever de fundamentação constitucionalmente consagrado, pelo que, a mesma padece do vício de nulidade, previsto no Artigo 615.º, 1, b), do CPC.

X) Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo errou na apreciação da matéria de facto, errando na apreciação crítica que fez da prova produzida, quer documental, quer testemunhal.

XI) Primeiramente, o Tribunal A Quo errou profundamente ao dar como provado que os Autores/Recorridos celebraram com o Réu/Recorrente, ao longo de vários anos, diversos contratos de mútuo com vista a financiar a atividade de comércio de automóveis que à época constituía a sua atividade.

XII) Assim como errou ao dar como provado que os Autores/Recorridos entregaram ao Réu/Recorrente as quantias que alegam ter entregue.

XIII) Mais, errou ao decidir que inicialmente o Réu/Recorrente pagou alguns desses valores aos Autores/Recorridos, tendo deixado de o fazer passado algum tempo.

XIV) Isto porque não existe qualquer prova documental nem testemunhal de os factos tenham sido como os Autores/Recorridos os alegam.

XV) De facto, o único elemento que aponta nesse sentido são as próprias alegações que os Autores/Recorridos fazem na sua Petição Inicial e em sede de declarações de parte.

XVI) Não sendo tal, nem de perto nem de longe, suficiente para que se possam dar tais factos como provados.

XVII) A única “prova” que foi junta relativamente a estes factos foram cheques passados pelo próprio Réu/Recorrente aos Autores/Recorridos, inexistindo qualquer indicação de que a que título foram passados, tal como inexiste qualquer prova ou comprovativo das transferências que os Autores/Recorridos alegam ter efetuado para o Réu/Recorrente.

XVIII) Comprovativos esses que a existirem, teriam sido fáceis de obter e de juntar aos autos, mas visto que na realidade não existem, porque tais transferências nunca foram efetuadas, tal afigura-se, ao invés, impossível.

XIX) Seguidamente, o tribunal a quo errou terrivelmente ao dar como provado que o Réu/Recorrente assinou a minuta de declaração de dívida que os Autores/Recorridos juntaram aos autos, considerando o Réu/Recorrente que tal decisão do tribunal a quo se afigura como perigosa, tornando o sistema judicial vulnerável a ser ludibriado e a vários tipos abusos, a tornar-se o modus operandi normal dos tribunais.

XX) Não existe qualquer prova de que o Réu/Recorrente tenha assinado qualquer declaração de dívida.

XXI) Os únicos elementos que apontam em tal sentido são as próprias declarações dos Autores/Recorridos e o depoimento da testemunha Dr. M….

XXII) Declarações e depoimento que divergem entre si, cada um contendo uma versão muitíssimo deferente dos factos.

XXIII) Pelo que nenhuma delas merece qualquer credibilidade.

XXIV) Mesmo que assim não fosse, nunca poderia ter o tribunal a quo dado como provado que a minuta junta aos autos foi aquela que foi efetivamente assinada pelo Réu/Recorrente (se o tivesse sido), sem que tivesse sido junto efetivamente próprio documento assinado pelo Réu/Recorrente devidamente reconhecido e autenticado.

XXV) Sem conceder, mesmo que o Réu/Recorrente tivesse assinado um documento, nunca se poderia afirmar que foi exatamente o mesmo que foi junto aos Autos, visto que o mesmo nas próprias palavras da testemunha Dr. M…, podia ter sofrido alterações até assinatura efetiva do mesmo.

XXVI) Tal implica que, tal como as datas podiam ter sido objeto de alterações, também o podiam ter sido os valores constantes da declaração, assim como o próprio plano de pagamento.

XXVII) Para além de se afigurar extremamente conveniente e quase inconcebível que a única cópia assinada da minuta da declaração apresentada pelos Autores/Recorridos se tenha extraviado, sempre se dirá que era possível juntar o registo da autenticação do documento ou do reconhecimento da assinatura do Réu/Recorrente efetuado, e que a testemunha Dr. M… afirma que foi feita, e cuja a mesma seria de fácil obtenção na área pessoal do mesmo no site da Ordem dos Advogados.

XXVIII) Só que tal registo não foi junto aos autos.

XXIX) Isto, porque, pura e simplesmente, não existe, uma vez que o Réu/Recorrente nunca assinou qualquer declaração de dívida para com os Autores/Recorridos!

XXX) Nunca devendo o tribunal a quo ter dado como provado tal facto.

XXXI) Face ao exposto, a decisão do Tribunal a quo seria outra, se os factos 1) a 7) dos factos dados como provados não o tivessem sido nos termos supra referidos, e a subsunção dos mesmos ao direito aplicável teria resultado numa absolvição do Réu/Recorrente.

XXXII) Assim, compulsadas as presentes conclusões, deverá ser a ação dada como totalmente improcedente, com absolvição do Réu/Recorrente do pedido formulado pelos Autores/Recorridos.

A final requer que sentença recorrida seja substituída por uma outra, na qual se absolva o Réu/Recorrente, do pedido formulado pelos Autores/Recorridos.

Contra-alegaram os Recorridos, concluindo:

a) A decisão de que a Apelante agora recorre apresenta-se no cômputo geral como justa atendendo aos princípios processuais que devem ser observados, encontrando-se suficientemente fundamentada.

b) As alegações do Apelante são totalmente desprovidas de qualquer lógica ou sentido, sendo somente mais um expediente dilatório na vã tentativa de continuar a adiar o pagamento de uma dívida que já perdura há anos.

c) A Sentença do tribunal «a quo» de forma objetiva e assente nos princípios da livre apreciação da prova devidamente alicerçado no da imediação, deu como totalmente provados os factos articulados pelos Autores, tendo corretamente individualizado os mesmos.

d) O Réu/Recorrente nem se dignou a comparecer pessoalmente na audiência de julgamento, limitando-se somente a negar através dos seus representantes e de forma inverosímil a existência da dívida, dívida que já antes reconhecera formalmente por escrito.

e) O conceito de “única prova” do Apelante é, sem sombra para dúvidas, bastante lato e abrangente, pois não só consegue apresentar duas vezes uma prova única diferente, como, numa delas, ainda conseguiu introduzir uma subdivisão da prova que já era única, ou seja, para ver se entendemos bem, a única prova é então: a) os cheques que o Apelante assinou como garantia de que pagaria o valor que lhe foi mutuado, b) as declarações dos dois Autores que declararam ter mutuado o valor em dívida e ainda c) o testemunho de P…, alguém que teve conhecimento direto da existência do mutuo e que testemunhou na audiência que também havia participado no mesmo tipo de negócio tendo mutuado igualmente dinheiro ao Apelante e tendo recorrido à justiça para o recuperar.

f) Nas suas Alegações o Apelante “esqueceu” que foi ainda feita em Audiência de discussão e julgamento prova inequívoca de que o Apelante assinou um Reconhecimento de Dívida e que no próprio texto da mesma dizia que se declarava devedor da quantia em que foi condenado e “que os credores lhe emprestaram, em várias tranches, e que ele devedor utilizou no comércio de automóveis que constitui a sua atividade comercial”.

g) O Apelante nem sequer apresentou qualquer explicação para a existência dos cheques por si assinados, nem para o facto de ter dado os mesmos como “extraviados” junto do banco, nem para as SMS que enviou, ou para o e-mail constante do processo onde também reconheceu a existência da dívida e apresenta uma desculpa para ter cancelado um dos cheques.

h) O ponto 1) da matéria de facto dada como provada foi obviamente julgado corretamente e não se vislumbra sequer qualquer outra conclusão possível a ser retirada da prova produzida, aliás, nem mesmo à luz das estranhas alegações do Apelante que no meio do “non sense” das mesmas nem se apercebeu que mesmo somente com recurso às “únicas” provas que invoca existirem, a conclusão final de qualquer decisor seria a mesma, ou seja, os mútuos existiram e o Apelante não pagou aquilo que devia aos Autores.

i) Rebate-se toda a argumentação constante das Alegações desde o seu artigo 1.º até ao seu artigo 32.º, pois nada de relevante à boa decisão resulta do que neles vem vertido.

j) Para o Apelante não importa relevar a prova inequívoca de que lhe foram mutuados os valores que ainda deve, importa sim, apreciar o quanto os Autores foram ingénuos e presas fáceis para o seu “esquema” de autofinanciamento, como se a ingenuidade das suas vítimas o ilibasse da responsabilidade em que incorreu.

k) O Apelante refere no seu ponto 36.º que “ficou chocado com o facto de o ponto 2) ter sido dado como provado, pois não foi feita qualquer prova, seja ela documental ou testemunhal, de que tais quantias lhe foram mutuadas, para além das meras alegações dos Autores/Recorridos” – a este respeito remete-se para o já antes invocado e aconselha-se ao Apelante que reveja a documentação constante dos Autos e que volte a ouvir a gravação completa das Audiências pois chocante é fazer tal afirmação após toda a prova produzida, só explicável se não tivessem estado na mesma audiência.

l) Reputa-se ainda o conteúdo do artigo 39.º como quase insultuoso para o Tribunal “a quo”, além de bastar ler a sentença para se perceber que a acusação constante do mesmo é totalmente falsa.

m) É manifesto que também o ponto 2) foi corretamente dado como provado pelo Tribunal “a quo”.

n) O Apelante tentou colocar também em causa os ponto 3) e 4) da matéria de facto provada e fê-lo entre os seus artigos 42.º a 53.º, mas, nem se perderá mais tempo a refutar as falsidades nestes invocadas, por já estar claro do antes exposto que o tribunal “a quo” não fundou a sua decisão quanto a esta matéria ou a nenhuma outra somente com base nas Alegações dos Autores/Recorridos mas sim no conjunto da prova produzida analisada enquanto tal.

o) Relativamente ao constante dos artigos 54.º a 91.º das Alegações do Apelante, nos quais este - invocando alegadas contradições entre o depoimento de uma das testemunhas e as declarações de parte dos Autores – tenta que seja desconsiderada a prova de que foi efetivamente assinada por si uma declaração de dívida, impugna-se a totalidade do conteúdo do vertido nesses artigos por serem manifestamente inventadas, inexistentes ou irrelevantes as supostas contradições apontadas, conforme se demonstrará.

p) Estranha-se que o Apelante venha na mesma peça por um lado tentar desvalorizar o valor e o peso dado às Declarações de Parte dos Autores (Artigo 11.º das suas alegações), reputando as mesmas como de pouca credibilidade e como um tipo de prova menor e por outro que venha depois tentar apontar alegadas (porque inexistentes) contradições entre estas Declarações de Parte em confronto com o depoimento da Testemunha Dr. M…, tentando por esta via atacar a credibilidade do depoimento desta testemunha.

q) Nunca a expressão querer sol na eira e chuva no nabal teve mais aplicabilidade do que à forma contorcida como aqui alegou o Apelante que, para além do recurso a falsidades e a argumentação falha de sentido, ainda conseguiu rodar no seu eixo dentro da mesma peça processual (qual girassol em busca de luz) entrando em contradição com os próprios - já fracos - argumentos por si aduzidos antes.

r) Passaram 12 anos desde que o Apelante se locupletou com valores pertencentes aos Autores – seria mais do que natural que existissem detalhes que já não estivessem totalmente claros para alguns dos intervenientes (estranho seria a esta distância contarem a mesma história igualzinha grão de areia por grão de areia), não obstante e sem prejuízo da análise que se fará adiante, desde já se volta a referir que o testemunho apresentado pelo Dr. M… não deixou margem para quaisquer dúvidas quanto a ter sido elaborado e assinado pelo Apelante um reconhecimento de dívida pelo montante constante da prova documental carreada aos Autos.

s) O Tribunal “a quo” ponderou a importância que atribuiu à prova na formação da sua convicção, tendo relevado primordialmente o conjunto da documentação oferecida como prova e os testemunhos do Dr. M… e da testemunha P…, sendo as declarações de parte relevadas também mas de forma quase residual e ou confirmativa do enquadramento geral. Tendo aliás sido ainda referido que da parte do Réu não foi oferecida qualquer prova.

t) Relativamente à redação do reconhecimento de divida e da problemática (para o Apelante e só para ele) da Autoria da mesma os Autores agradecem ao Apelante ter procedido às transcrições que somente vêm provar que não existe qualquer contradição, existe outrossim uma enviesada tentativa de pérfida interpretação das declarações que até foram transcritas.

u) O Autor quando prestou declarações deixou claro ao longo das mesmas que quando contratou os serviços do Dr. M… a dada altura recorreu a uma minuta onde introduziu os dados que seriam os necessários à elaboração do reconhecimento, nomeadamente dos dele, os da Autora e os do Réu/devedor, chamou-lhe por diversas vezes um “esboço” – conforme consta das transcrições oferecidas pelo apelante no artigo 57.º.

v) A Autora quanto a esta matéria declara que o reconhecimento foi inicialmente redigido pelo marido e finalizado pelo Dr. M… contradição não há nenhuma como se constata uma vez mais lendo a própria transcrição simpaticamente oferecida pelo Apelante no seu artigo 58.º das Alegações.

w) O Dr. M… declarou que a minuta que lhe foi mostrada na Audiência foi por si elaborada, aliás, tal minuta até consta do processo porque foi por ele fornecida devido ao desaparecimento do original, como consta da transcrição do apelante no artigo 59º.

x) O Dr. M… foi no final de contas o Autor material da minuta do reconhecimento de dívida em questão, não é o facto de um cliente utilizando uma minuta de reconhecimento introduzir nela dados e usar a mesma para fornecer os dados ao seu Advogado que faz dele o Autor ou que gera uma contradição invocável e/ou relevante.

No final pedem a confirmação da sentença.


II

O Tribunal a quo deu como provado o seguinte elenco de factos:

1. Os Autores celebraram com o Réu ao longo de anos consecutivos, diversos contratos de mútuo com vista a financiar a atividade de comércio de automóveis que à época constituía a sua atividade.

2. Por via dos referidos contratos de mútuo, os Autores entregaram ao R., além do mais, as seguintes importâncias:

- € 16.500 (dezasseis mil e quinhentos euros) – valor mutuado contra a entrega de cheque bancário passado pelo Réu a favor do Autor J…, em 16.06.2008;

- € 12.900 (doze mil e novecentos euros) – valor mutuado contra a entrega cheque bancário passado pelo Réu a favor do Autor J…, em 16.01.2009;

- € 20.000 (vinte mil euros) - valor mutuado contra a entrega de cheque bancário passado pelo Réu a favor do Autor J… em 27.03.2009, tendo o Réu dado o mesmo como extraviado junto do banco;

- € 20.300 (vinte mil e trezentos euros) – valor mutuado contra a entrega de cheque bancário passado pelo Réu a favor do Autor em 15.12.2009, tendo dado o mesmo como extraviado junto do banco;

- € 4.000 (quatro mil euros) - Transferência bancária efetuada pelo Autor para o Réu Sr. R…;

- € 2.000 (dois mil euros) - última prestação de um empréstimo bancário contraído pelo Autor em benefício do Réu, que era na realidade quem o pagava e que pagou quase até ao fim mas não o fez no que concerne à última prestação, apesar das insistentes solicitações.

- € 4.050 (quatro mil e cinquenta euros) – Transferências bancárias efetuadas pelo Autor para o Réu Sr. R….

3. Embora numa fase inicial do relacionamento entre Autores e Réu este tivesse pago alguns dos valores que lhe foram mutuados, o que permitiu construir uma relação de aparente confiança, a partir de dada altura o Réu deixou de realizar os pagamentos, designadamente os acima referidos, dando desculpas para não o fazer enquanto ia solicitando mais empréstimos.

4. Quando se apercebeu da situação o Autor insistiu diversas vezes verbalmente e por escrito para que o Réu pagasse os montantes em dívida, não tendo logrado tal desiderato.

5. Em três de Março de 2010 o Réu assinou uma Declaração de Dívida do mesmo teor da cópia junta a fls. 11 e vº, onde reconheceu expressamente a existência de uma dívida para com os AA no montante de € 79.750,00.

6. O documento onde se verteu a referida declaração de dívida, assinada pelo R., e que ficou no escritório do Dr. M…, I. Advogado, extraviou-se aquando da sua mudança de escritório.

7. Desde a data exarada naquela declaração, o Réu não pagou qualquer montante aos AA, apesar de a isso ter sido instado por diversas vezes por aqueles.

E, consignou:

“Inexistem factos não provados com relevo para a decisão da causa, desde logo porque os factos articulados pelo R. na contestação ou são de impugnação de sinal contrário aos alegados pelos AA, ou de declaração da sua falta de prova.”


III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artºs. 635º, 3 e 639, 1 e 2 CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.608º in fine), são as seguintes as questões a decidir:

I – Da falta de fundamentação

II - Da impugnação da matéria de facto

III – Do erro na aplicação do direito

I – Da falta de fundamentação

Pretende o Recorrente que «a sentença ora recorrida não cumpriu com o dever de fundamentação limitando-se a, no que se refere à prova documental, remeter para as folhas do processo onde os mesmos se encontram. Ora tal não cumpre o dever de fundamentação que impende sobre o Tribunal, pois os documentos não são factos, mas simples meios de prova de factos e, por isso, na fundamentação de facto há que indicar os factos provados pelos documentos, e quais documentos provam que factos, não bastando "dar como reproduzidos" os documentos ou tão pouco elencar todos os documentos juntos aos autos pelas partes.»

Cremos que só por lapso, contêm as alegações de recurso tal imputação.

Lida e relida a Motivação probatória, de resto, particularizada e descritiva, com referências várias à prova oral produzida em audiência e com alusão a um ou outro documento, em parte alguma se encontra uma remissão para documentos ou para folhas do processo onde os documentos se encontrem.

Uma imputação infundamentada, logo improcedente.

II - Da impugnação da matéria de facto

No corpo das alegações de recurso o Recorrente cumpriu o ónus da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, como previsto no art. 640º do CPC, pelo que, nada obsta ao seu conhecimento.

Ouvimos e lemos toda a prova gravada e documentada.

Considera o Recorrente terem sido erradamente julgados provados os factos assentes nos pontos 1) a 7), ou seja, toda a factualidade dada como provada.

Desde logo, diz o Recorrente, quanto aos pontos 1) a 4) por não terem os AA. feito prova das transferências ou pagamentos que teriam antecedido os cheques juntos aos autos emitidos pelo Réu. As declarações de parte (dos AA.) constituem um meio probatório insuficiente para os provar e, do depoimento da testemunha P… resulta um conhecimento indireto, logo não idóneo. A que acresce o facto de serem ambas as declarações e depoimento despidos de credibilidade, por contradições várias entre si.

Quanto aos pontos 5) a 7), reportada a uma declaração de dívida que o Réu teria assinado e que se extraviou, não existe absolutamente nenhuma prova documental que suporte tais factos, o que seria absolutamente imprescindível para tal prova. E, entre o depoimento da testemunha Dr. M… e as declarações de parte dos Autores, surgem igualmente contradições que ferem tal depoimento na sua credibilidade.

Apreciemos, pois.

Na ponderação probatória dos empréstimos em causa importa atender à prova vinculada prevista no art. 1143 do Código Civil que prescreve:

“Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a € 25 000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a € 2500 se o for por documento assinado pelo mutuário.

Considerando os valores que subjazem aos vários empréstimos, com exceção do que corresponde ao valor de 2.000€, os demais estão vinculados do formalismo legal previsto na parte final do art.1143 do Código Civil, ou seja, devem constar de documento assinado pelo mutuário.

Sendo aquele, inferior a 2.500€, sujeito apenas à livre apreciação da prova.

Ora, os autos contém, juntos com a petição inicial, 4 cheques subscritos e assinados pelo Réu nos valores de 16.500€, 12.900€, 20.000€ e 20.300€ que correspondem ao formalismo exigido: documento assinado pelo mutuário.

A prova do contexto, da finalidade, da deslocação patrimonial por parte dos AA. e da frustração do reembolso, não constitui uma prova vinculada, estando sujeita à livre apreciação da prova, devendo o tribunal, de acordo com o disposto no art. 413º do CPC “tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado” (in casu, documentos particulares, declarações de parte, testemunhas ou presunções).

Resulta consensual na doutrina e na jurisprudência que as declarações de parte, por natureza, uma prova interessada, requerem um complemento probatório que as confirme. O que não as impede de constituir um elemento probatório direto, igualmente relevante.

Assim, o Ac. TRG de 18-01-2018, P. 294/16.0Y3BRG.G1 in www.dgsi.pt:

«-Da declaração da parte importa que o seu relato esteja espontaneamente contextualizado e seja coerente, quer em termos temporais, espaciais e emocionais e que seja credenciado por outros meios de prova, designadamente que as declarações da parte sejam confirmadas, por outros dados, que ainda indiretamente, demonstrem a veracidade da declaração. Caso contrário a declaração revelará força probatória de tal forma débil que não deve ser tida em conta.

- A prova dos factos favoráveis ao depoente e cuja prova lhe incumbe não se pode basear apenas na simples declaração dos mesmos, é necessária a corroboração de algum outro elemento de prova, com os demais dados e circunstâncias, sob pena de se desvirtuarem as regras elementares sobre o ónus probatório e das ações serem decididas apenas com as declarações das próprias partes.”

Ora, a prova do contexto, da finalidade, das entregas por parte dos AA. e da frustração do reembolso, obtém-se das declarações de parte dos AA., complementadas que foram com os depoimentos de P… e M… e, integradas que estão com prova documental: no caso os referidos cheques e o conjunto de mails juntos aos autos em 16-02-2021, trocados entre AA. e Réu, num dos quais o Réu assume a sua dificuldade em cumprir os compromissos com o Autor.

P…, irmão e cunhado dos AA. não falou em valores nem seria expetável que o fizesse por não integrar ele a relação negocial, mas acompanhou de perto o nascer dessa relação entre AA e Réu, tendo ele próprio antecedido com o Réu uma relação idêntica, ou seja, emprestou várias vezes dinheiro ao Réu, com idêntico resultado, ou seja, com reembolsos não cumpridos ou não cumpridos nos prazos pré definidos.

Por outro lado a testemunha M… foi o advogado escolhido pelos AA para encontrar uma solução prática e jurídica, o que fez, aconselhando os AA. a obter uma declaração de dívida por parte do Réu. O seu depoimento é, no essencial, compatível com o dos AA., sendo as apontadas “contradições” irrelevantes e não comprometedoras do essencial: os AA. procuraram-no e a solução dada foi obter do Réu uma confissão de dívida.

Este conjunto probatório integrado na prova documental que constitui o ponto de partida, no caso, os cheques subscritos e assinados pelo Réu, permite dar como provada a factualidade inserta no ponto 1, parcialmente no ponto 2, no ponto 3 e no ponto 4, ou seja, permite dar como provado que:

1. Os Autores celebraram com o Réu ao longo de anos consecutivos, diversos contratos de mútuo com vista a financiar a atividade de comércio de automóveis que à época constituía a sua atividade.

2. Por via dos referidos contratos de mútuo, os Autores entregaram ao R., além do mais, as seguintes importâncias:

- € 16.500 (dezasseis mil e quinhentos euros) – valor mutuado contra a entrega de cheque bancário passado pelo Réu a favor do Autor J…, em 16.06.2008;

- € 12.900 (doze mil e novecentos euros) – valor mutuado contra a entrega cheque bancário passado pelo Réu a favor do Autor J…, em 16.01.2009;

- € 20.000 (vinte mil euros) - valor mutuado contra a entrega de cheque bancário passado pelo Réu a favor do Autor J… em 27.03.2009, tendo o Réu dado o mesmo como extraviado junto do banco;

- € 20.300 (vinte mil e trezentos euros) – valor mutuado contra a entrega de cheque bancário passado pelo Réu a favor do Autor em 15.12.2009, tendo dado o mesmo como extraviado junto do banco.

3. Embora numa fase inicial do relacionamento entre Autores e Réu este tivesse pago alguns dos valores que lhe foram mutuados, o que permitiu construir uma relação de aparente confiança, a partir de dada altura o Réu deixou de realizar os pagamentos, designadamente os acima referidos, dando desculpas para não o fazer enquanto ia solicitando mais empréstimos.

4. Quando se apercebeu da situação o Autor insistiu diversas vezes verbalmente e por escrito para que o Réu pagasse os montantes em dívida, não tendo logrado tal desiderato.”

Mas já não a prova da parte final do ponto 2), ou seja, de que os AA entregaram ainda ao Réu, a título de empréstimo:

- 4.000 (quatro mil euros) - Transferência bancária efetuada pelo Autor para o Réu Sr. R…;

- € 2.000 (dois mil euros) - última prestação de um empréstimo bancário contraído pelo Autor em benefício do Réu, que era na realidade quem o pagava e que pagou quase até ao fim mas não o fez no que concerne à última prestação, apesar das insistentes solicitações.

- € 4.050 (quatro mil e cinquenta euros) – Transferências bancárias efetuadas pelo Autor para o Réu Sr. R….

Desde logo porque as quantias de €4.000 e €4.050, sendo de valor superior a €2.500 haveriam de estar suportadas por algum documento assinado pelo devedor (art. 1143º CC), ou por confissão deste (art. 364º CPC). Por sua vez a quantia de €2.000 não estando subordinada a tal exigência, a sua individualização, não se retira com a necessária segurança do conjunto da prova produzida.

Pelas mesmas razões que fundamentam a nossa apreciação crítica da prova relativamente aos pontos 5 a 7, que passaremos a expor.

O documento junto aos autos com a petição, titulado de “Declaração de Dívida”, datado de 03-03-2010, referindo que R… «declara para os devidos e legais efeitos que deve a J…, (…), a quantia de 79.750€ (…), que os credores lhe emprestaram, em várias tranches, e que ele devedor utilizou no comércio de automóveis que constitui a sua atividade comercial (…). O devedor compromete-se a pagar o montante acima mencionado nas prestações mensais abaixo indicadas, todas elas a depositar ou transferir para conta que os credores têm aberta no Banco (…)», declarando ainda que «reconhece que o montante que lhe foi emprestado foi utilizado para o exercício do seu comércio, cujo produto usou no proveito comum do casal mau grado estar casado no regime de separação de bens e, ainda, que a falta de pagamento de duas prestações acarretará o vencimento de todas as vincendas, que poderão de imediato ser exigidas.», não tem aposta qualquer assinatura do Réu.

Convertê-lo em réplica dum documento putativo definitivo assinado pelo Réu, logo, numa confissão de dívida, com base apenas nas declarações dos AA., que teriam elaborado o esboço com os valores e datas de vencimento, que entregaram depois ao seu advogado que o reelaborou com roupagem técnico-jurídica e que, no seu escritório, obteve a assinatura do Réu, e ainda, com base no depoimento da testemunha M…, o referido advogado, que alegadamente, realizou as referidas démarches, guardando depois o documento definitivo num cofre, vindo depois a extraviar-se numa altura em que mudou de escritório e o cofre foi aberto e alguns documentos desapareceram, diga-se, em abono da segurança jurídica e da segurança da justiça que reclama a prova duma confissão de dívida, que aquela se revela intrinsecamente frágil, para um convencimento que se exige forte.

Desse modo, dá-se por não feita a prova dos factos enunciados em 5) e 6) e, relativamente ao ponto 7) subsiste apenas a prova de que:

«7- O Réu não pagou qualquer montante aos AA, apesar de a isso ter sido instado por diversas vezes por aqueles.» - No que coincide com o teor dos pontos 3) e 4).

Assim se julgando parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto.

III – Do erro na aplicação do direito

Importa apreciar quais as consequências da alteração da matéria de facto na decisão de direito.

Mantém-se provado que os Autores celebraram com o Réu ao longo de anos consecutivos, diversos contratos de mútuo com vista a financiar a atividade de comércio de automóveis que à época constituía a sua atividade. E que, por via dos referidos contratos de mútuo, os Autores entregaram ao R., as seguintes importâncias: - € 16.500, a ser pago em 16.06.2008; - € 12.900 a ser pago em 16.01.2009; - € 20.000 a ser pago em 27.03.2009; e, € 20.300 a ser pago em 15.12.2009. Num total de € 69.700, que não foi pago nas datas de vencimento correspondentes aos montantes parcelares, nem posteriormente, apesar das diversas interpelações para o efeito.

Sendo esse montante devido pelo Réu aos AA.

Os AA. solicitaram juros de mora desde 02.08.2010.

O tribunal a quo, relevou a data de 03.03.2010, data da putativa “declaração de dívida”, como a data do pagamento e, data a partir da qual a dívida, no seu todo se venceria, sendo devidos juros de mora a partir de então.

Insubsistindo esta declaração de dívida como facto provado, subsiste a mora do devedor desenhada no art. 805º, 2 do Código Civil, assente nas diversas datas em que os montantes parcelares haveriam de ser pagos (16.06.2008; 16.01.2009; 27.03.2009 e 15.12.2009).

Simplesmente, qualquer destas datas, ainda que legítimas do ponto de vista do direito substantivo, a serem nesta sede consideradas como datas a partir da qual são devidos juros de mora, confrontaria com os limites objetivos do recurso definidos no art. 635º, nº 5 do CPC, ou seja, estaríamos perante um agravamento da posição do Recorrente, que a lei processual não consente.

Desse modo, resta manter a data fixada na sentença recorrida, de 03.03.2010, posterior a todas as demais, como data a partir da qual se vencem juros de mora, o que se mostra simultaneamente consentâneo com o direito substantivo e adjetivo.

Assim, além da quantia de € 69.700,00 é o Réu igualmente responsável por juros de mora à taxa legal que tiver vigorado e for vigorando para as obrigações civis, sobre aquele montante, contados desde 03.03.2010 e até integral pagamento.


IV

Termos em que, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação (quer quanto ao recurso de facto quer quanto ao recurso de direito) substituindo-se a decisão recorrida por outra, condenando o Réu no pagamento aos Autores da quantia de € 69.700,00 (sessenta e nove mil e setecentos euros) bem como juros de mora sobre aquele montante, à taxa legal que tiver vigorado e for vigorando para as obrigações civis, contados desde 03.03.2010, até integral pagamento.

Improcedendo o recurso quanto ao mais.

Custas pelo apelante.


Évora, 09 de junho de 2022

Anabela Luna de Carvalho (relatora)

Maria Adelaide Domingos

José António Penetra Lúcio