Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1923/21.9T8VCT.G1
Relator: MARIA LEONOR BARROSO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
NEXO DE CAUSALIDADE
TAXA DE ALCOLÉMIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - Não corre nulidade da sentença por falta de fundamentação.
II - A prova testemunhal e os demais factos provados não permitem, com recurso a presunção judicial, estabelecer conexões seguras para firmar o facto desconhecido referente ao “nexo de causalidade naturalístico” entre o grau de álcool de que o autor era portador e o acidente de trabalho, podendo ter interferido outras causas no despiste do ciclomotor, mormente distração momentânea ou quebra física.
III - Os factos provados não permitem a descaracterização do acidente de trabalho, porque não basta a demonstração de que o sinistrado conduzia com uma taxa de álcool de 1,80 g/l., sendo ainda necessária a prova do nexo causalidade entre esta e o acidente.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

AUTORAS: AA e BB (esta representada pela primeira autora por ser menor de idade), respectivamente, na qualidade de cônjuge e filha do sinistrado falecido, patrocinadas pelo Ministério Público.
RÉ: F... – Companhia de Seguros, S.A.”.
A presente acção especial emergente de acidente de trabalho prosseguiu para a fase contenciosa porque a ré seguradora, embora aceitando a ocorrência de um acidente de trabalho, alegou a sua descaracterização por negligência grosseira do sinistrado.

Consta na tentativa de conciliação:

...aceita o acidente dos autos como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e a morte, transferência da responsabilidade pelo salário anual de €9.310,00 (€665,00x14m...não assume, contudo, a responsabilidade pela reparação do acidente em causa. Com efeito, o acidente enquadra-se nos termos do disposto na alínea b) nº1 e nº3 do artigo 14 da Lei 98/2009 de 4/9, verificando-se a descaracterização do acidente por negligência grosseira pois no caso, verificou-se a prática de um crime de condução de veículo com taxa de alcoolémia superior ao legalmente permitido (in casu, 1,8g/l, taxa de alcoolémia que consta do relatório de autópsia), constituindo também um incumprimento das normas do código da estrada que veio a culminar na morte do sinistrado por motivo de despiste da motorizada que conduzia...”

PEDIDO DAS AA- a condenação da ré a pagar:

A) À A. AA:  pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível de €2.793,00, com início no dia 17/6/2021; subsídio por morte no montante de €2.896,14; subsídio por despesas de funeral no montante de €1.499,50; a quantia de €6,00 a título de despesas de deslocação;- juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4%;
B) À BB: a pensão anual e temporária de €1.862,00, com início no dia 17/6/2021; subsídio por morte no montante de €2.896,14;a quantia de €6,00 a título de despesas de transportes;juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4%.

CAUSA DE PEDIR:

As Autoras são respectivamente viúva e filha de CC. Este exercia a actividade de construção civil, por conta própria, sendo trabalhador independente. Tinha a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho transferida para a Ré. No dia 16/06/2021, pelas 18h00, depois de ter saído de uma obra que levava a cabo no ..., em ..., e se dirigia para a sua residência habitual, situada na EN ...05, nº 310, em ..., ..., ..., conduzindo o ciclomotor de matricula ..-LR-.. pelo trajecto habitual, na ..., EN ...05, ..., ..., o ciclomotor despistou-se e CC caiu ao solo. Em consequência sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia junto aos autos, que foram causa da sua morte. O acidente descrito, dado ter ocorrido no trajecto de regresso do local de trabalho, é um acidente de trabalho e, como tal, indemnizável – art. 9º nº 1 al. a) da Lei nº 98/09 de 4/9.

CONTESTAÇÃO DA RÉ -  alega que o acidente ocorreu após o autor sair do trabalho e entrar num estabelecimento ingerindo bebidas alcoólicas, interrompendo o trajeto, pelo que não estamos perante um acidente de trabalho. Ainda que assim não fosse, o mesmo estaria descaracterizado porque o sinistrado apresentava, aquando do acidente, uma taxa de álcool no sangue de 1,80 g/l, circunstância que foi causal do despiste do ciclomotor, da queda do sinistrado e da sua morte, uma vez que todas as demais condições da via e do tempo eram favoráveis. Também o acidente se encontra descaracterizado por incumprimento de regras estradais (3º, 2, 13º, 1,  81º, do Cód. Estrada - proibição de condução sob efeito de álcool), o que consubstancia também violação, sem qualquer justificação, de regras e condições de segurança estabelecidas pela própria lei.
Procedeu-se a julgamento, respondeu-se à matéria de facto e proferiu-se sentença.

DECISÃO RECORRIDA (DISPOSITIVO): decidiu-se do seguinte modo:
“Assim, e face a tudo o exposto, decide-se:
Condenar a R. seguradora a pagar:
À A. AA
- da pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível de €2.793,00, com início no dia 17/6/2021;
- do subsídio por morte no montante de €2.896,14;
- do subsídio por despesas de funeral no montante de €1.499,50;
- da quantia de €6,00 a título de despesas de deslocação;
- juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4%;
À A. BB
- a pensão anual e temporária de €1.862,00, com início no dia 17/6/2021;
- subsídio por morte no montante de €2.896,14;
- a quantia de €6,00 a título de despesas de transportes;
- juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4%.
Custas pela R. seguradora.
Valor da acção: €57.000,35
Proceda ao cálculo (pensão da viúva).”

RECURSO INTERPOSTO PELA RÉ. CONCLUSÕES:
1 – Ocorreu erro na decisão da matéria de facto, sendo que o único facto dado como NÃO PROVADO deve passar a dar-se como PROVADO, ou seja, deve passar a ser dado como PROVADO QUE “foi a TAS de 1,80 g/l que determinou que o sinistrado tivesse perdido o controlo do veículo que conduzia, não conseguindo reagir, travando ou desviando-se antes de abandonar a faixa de rodagem;”
2 - Os meios de prova que impõem tal alteração da decisão da matéria de facto são osdepoimentos das testemunhas DD, EE e FF, relevando os excertos dos seus depoimentos invocados e assinalados e reproduzidos no corpo destas alegações.
3 - Mais: a simples consideração da restante matéria dada como PROVADA impõe, salvo o devido respeito, que se dê também como provado que foi a TAS de 1,80 g/l, que determinou que o sinistrado tivesse perdido o controlo do ciclomotor não conseguindo reagir, travando ou desviando-se antes de abandonar a faixa de rodagem.
4 - É que, como resulta da restante matéria apurada, o malogrado sinistrado, nesse dia 16/06/2021, circulava na EN ...05 conduzindo o ciclomotor ..-LR-.., pelas 18,28 horas, sendo dia, fazendo sol, com um tempo seco e luminoso, isto numa recta com uma extensão superior a 500 metros, em que o piso, em betuminoso, estava seco e bem conservado, sem buracos, e com boa aderência, não havendo quaisquer obras ou obstáculos na via, com circulação de veículos e pessoas praticamenente inexistente, sendo visível a totalidade da faixa de rodagem numa extensão superior a 100 metros, vindo o mesmo a sofrer um despiste e a cair ao solo, não obstante conduzir a uma velocidade de cerca de 40/50 km/hora e sem que ocorresse a intervenção de qualquer peão ou de outro veículo quando o veículo conduzido pelo sinistrado começou a guinar para a direita, indo embater no passeio, caindo ambos e indo a derrapar até ao outro passeio, onde embateram com violência.
5 - Tudo isto associado ao facto de que antes de iniciar a condução do seu ciclomotor o sinistrado havia ingerido bebidas alcoólicas que lhe determinaram uma TAS de 1,80 g/l.
6 – Atentas a ausência de qualquer interferência externa – dada como provada – as excelentes condições para circular de moto no momento existentes – dia solarengo excelente visibilidade, recta com mais de 500 metros de extensão com piso em betuminoso em excelentes condições, ausência de qualquer outro tráfego, de pessoas ou veículos, etc., etc., é por demais evidente que só a absurda TAS de 1,80 g/l (50% superior à taxa de 1,2 g/l, a partir da qual se está a cometer um crime e não mera contraordenação) e quase 4 vezes (400%) superior à TAS de 0,5 g/l legalmente admissível para conduzir (cf. Art. 81º CE) determinou o despiste e consequente morte do sinistrado.
7 – Mais ainda: ao contrário do decidido, mesmo que se entendesse que os depoimentos que se vem de invocar não são suficientes para alterar a decisão da matéria de facto, sempre o facto de que foi a TAS de 1,80 g/l que determinou que o sinistrado tivesse perdido o controlo do veículo que conduzia, não conseguindo reagir, travando ou desviando-se antes de abandonar a faixa de rodagem sempre deveria dar- se como PROVADO, quanto mais não fosse por recurso a uma presunção judicial que, in casu, se impunha.
8 – Ao não o fazer, o Mmo. Juiz a quo violou o Art.º 349º do CCiv. de quel resulta que as presunções judiciais, como ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos) concretizam-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência, sendo admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351º do Cód. Civil).
9 – Presunção judicial que in casu se impõe inapelavelmente – é que tudo aponta, de forma perfeitamente clara e exclusiva, atentas as excelentes condições de circulação dadas como provadas e que já se sublinhou nestas alegações recursivas, para que tenha sido unicamente a esdrúxula TAS de 1,80g/l para conduzir – ainda por cima um ciclomotor – que determinou o despiste do sinistrado, para o qual, note-se, está mais que provada nada mais concorreu.
10 – Aceitar o entendimento do Mmo Juiz a quo de que que não há outra explicação plausível para o sucedido, pois que é possível congeminar um infindável número de hipóteses para o veículo do sinistrado ter começado a guinar para a direita e ir embater no passeio equivaleria a julgar admissível a exigência da chamada prova diabólica ou impossível.
11 - Assim sendo, tendo que se dar como provada toda a matéria constante dos temas da prova, ou seja, para além de toda aquela que se deu como provada, ainda a de que foi a TAS de 1,80 g/l que determinou que o sinistrado tivesse perdido o controlo do veículo que conduzia, não conseguindo reagir, travando ou desviando-se antes de abandonar a faixa de rodagem. - a decisão de mérito a proferir não pode deixar de ser outra.
12 – é que o acidente teve, por isso, como causa única, a condução do sinistrado, inapta devido à TAS de que vinha afectado e, por isso, sem conseguir manter o seu veículo equilibrado, em plena reta, na sua hemifaixa de rodagem, galgou a linha da berma direita e foi embater no lancil do passeio, prosseguindo em queda a raspar pelo chão até ao próximo passeio.
13 – Ao actuar da forma como actuou, o sinistrado praticou actos inúteis e ilícitos com os quais embaraçou o trânsito e comprometeu não só a sua segurança como a de todos os restantes utentes da via, assim violando o nº 2 do Art. 3º, nº 1 do Art. 13º , nº 1 e 2 do Art. 81º do Cód. Estrada (CE) e até mesmo dada a TAS superior a 1,2 g/l, cometeu um crime pp Art. 292º Cód. Penal.
14 – Assim, o acidente não pode deixar de ser imputado em exclusivo ao sinistrado pois que foi unicamente a sua conduta absolutamente ilícita, por grosseiramente violadora, entre outros, dos citados preceitos legais que esteve na origem da sua eclosão.
15 – Conduta esta não só absolutamente grosseiramente negligente como até dolosa, temerária, inútil e indesculpável, e como tal merecedora de juízo de forte censura – violou sem qualquer justificação e grosseiramente não só os mais elementares juízos de prudência e bom senso como várias normas de circulação estradal previstas na lei precisamente para garantir condições de segurança.
16 - Conduta que, em exclusivo pois que não houve qualquer interferência externa, determinou o acidente e por isso as lesões que causaram a sua morte.
17 – Ao caso dos autos impõe-se, assim, a aplicação da alínea b) do nº 1 do Art. 14º da Lei 98/2009 - não pode a R. ser responsabilizada pelo pagamento de qualquer das prestações reclamadas pelas AA., pois que o presente acidente sempre se encontraria descaracterizado como acidente de trabalho, não dando por isso direito a reparação.
18 - Mais ainda: a conduta do malogrado sinistrado determina que até nos termos da al. a) do nº 1 do Art. 14º da Lei 98/2009 se encontra o presente acidente descaracterizado enquanto acidente de trabalho – é que as sobreditas violações de regras estradais, designadamente, dos nº 2 do Art. 3º, nº 1 do Art. 13º e do Art. 81º (proibição de condução sob efeito de álcool) do Cód. Estrada (CE) consubstanciamviolação, sem qualquer justificação, de regras e condições de segurança estabelecidas pela própria lei.
19 – Por fim, e sem prescindir, certo é que não se apurou matéria suficiente para se operar a extensão do conceito de acidente de trabalho.
20 – Sabe-se apenas que 3 - No dia 16/6/2021, depois de ter saído de uma obra que levava a canbo no ..., em ..., e se dirigia para a sua residência, situada na EN ...05, em ..., ..., conduzindo o ciclomotor ..-LR-.., pelo trajecto habitual, sofreu um despiste, caindo ao solo.
21 - Nada mais se apurou, sendo estes, como resulta da Douta decisão em crise, os factos a considerar para prolação de decisão.
22 - Ora, o Art. 9º da Lei 98/2009 ao operar a extensão do conceito de acidente de trabalho estatui o seguinte:“considera-se também acidente de trabalho o ocorrido: a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;…
2 – A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador
23 - Ora, tendo em conta as normas sobreditas, cabe ao autor, enquanto demandante do seu alegado direito às prestações ressarcitórias emergentes do acidente sofrido, conforme decorre do disposto no artigo 342º, n.º 2, do Código Civil, alegar e provar factos que permitam concluir que o acidente ocorreu no trajecto normalmente utilizado pelo sinistrado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador entre o local de trabalho e a respectiva residência – ónus que não cumpriram.
24 - E o certo é que da factualidade que o Mmo. Juiz a quo entendeu por bem dar como provada, da mesma nada consta quanto ao facto de o acidente ter ocorrido durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador.
25 - Assim sendo, como é, não podia o Tribunal proferir a decisão que proferiu pois que na mesma está a considerar factos essenciais que não constam sequer do elenco dos factos provados.
26 - O que, como supra referido, acarreta a nulidade da decisão proferida – cfr. al. b) do nº 1 do Art. 615º CPCiv..
27 - Os factos alegados e provados são insuficientes para qualificar o acidente dos autos como acidente de trabalho, pelo que, ao fazê-lo, o Mmo. Juiz “a quo” interpretou erradamente e com isso violou o estatuído nos nº 1 e 2 do Art. 9º da Lei 98/2009.
28 - Pelo que sempre a decisão ou sentença final a proferir nos autos deveria ser a de julgar a acção improcedente por não provada.
Nestes termos, nos mais de Direito e sempre com o mui Douto suprimento de V. Exas., deve a Douta Sentença ser substituída por outra que altere a decisão sobre a matéria de facto nos moldes propostos, ou, de qualquer modo, altere a decisão de direito considerando que não existe ou não é indemnizável a alegada IPP de 2% poe psiquiatria absolvendo por isso, em parte, a Apelante dos pedidos...”

CONTRA-ALEGAÇÕES: sustenta-se a manutenção da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos dos adjuntos e o recurso foi apreciado em conferência – art.s 657º, 2, 659º, do CPC.

QUESTÕES A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso[1]):
1 – Nulidades da sentença;
2 - Impugnação da matéria de facto;
3 - Desvio/interrupção de trajecto trabalho/residência;
4- Descaracterização do acidente.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO
A) FACTOS:

Factos provados:
1 – As AA. são respectivamente viúva e filha do sinistrado CC e nasceram no dia .../.../1974 e .../.../2002.
2 – O sinistrado desenvolvia a actividade de construção civil, por conta própria, e tinha a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho, como trabalhador independente, transferida para a R. seguradora pela retribuição anual de €9.310,00.
3 – No dia 16/6/2021, depois de ter saído de uma obra que levava a cabo no ..., em ..., e se dirigia para a sua residência, situada na EN ...05, em ..., ..., conduzindo o ciclomotor ..-LR-.., pelo trajecto habitual, sofreu um despiste, caindo ao solo.
4 – Em consequência, sofreu lesões físicas que lhe determinaram a morte nesse mesmo dia.
5 – O acidente ocorreu pelas 18,28 horas, sendo dia, fazendo sol, com um tempo seco e luminoso.
6 – No local em que se deu o acidente, a via desenha-se em recta, com uma extensão superior a 500 metros;
7 – O piso, em betuminoso, apresentava-se seco e bem conservado, sem buracos, e com boa aderência.
8 – Não havia quaisquer obras ou obstáculos na via.
9 – A circulação de veículos e pessoas era praticamente inexistente.
10 – A via, naquele local, permite avistar a totalidade da faixa de rodagem numa extensão superior a 100 metros.
11 – Antes de iniciar a condução do veículo, o sinistrado havia ingerido bebidas alcoólicas que lhe determinaram uma TAS de 1,80 g/l.
12 – Sem que ocorresse a intervenção de qualquer peão ou de outro veículo, o veículo conduzido pelo sinistrado começou a guinar para a direita, indo embater no passeio, caindo ambos e indo a derrapar até ao outro passeio, onde embateram com violência.
13 – O sinistrado circulava a uma velocidade de cerca de 40/50 km/hora.
14 – A A. BB, à data do acidente, estava matriculada e inscrita no 1º ano da licenciatura em História da Universidade do ....
15 – Cada uma das AA. gastou a quantia de €6,00 em deslocações ao Tribunal.
16 – A A. AA gastou, com o funeral do sinistrado, a quantia de €1.499,50.

Factos não provados:
- que tenha sido a TAS de 1,80 g/l que determinou que o sinistrado tivesse perdido o controlo do veículo que conduzia, não conseguindo reagir, travando ou desviando-se antes de abandonar a faixa de rodagem.

B ) NULIDADES DA SENTENÇA:
Refere-se nulidade da sentença com base em falta de factos para caracterizar como sendo in itinere o acidente relatado nos autos.
Segundo, o artigo 615º, nº1, CPC, é nula a sentença quando:
“(…)b) - não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
O normativo reporta-se a vício de falta de motivação que pode atingir a sentença quando desta não conste, ou a factualidade que suporta a decisão e/ou a interpretação e aplicação do direito - 607º/3/2, CPC. Diga-se, preliminarmente, que a nulidade da sentença por falta de fundamentação apenas ocorrerá quando o tribunal omita totalmente a fundamentação de facto e/ou de direito em que ancorou a decisão de mérito proferida nessa sentença.
Em especial no que se refere à fundamentação da decisão de facto, na sentença deve constar a matéria provada (os factos) e a motivação que sustenta a decisão (exteriorização do percurso lógico e do raciocínio seguido pelo julgador, os meios probatórios, as razões e a sua valoração crítica que levaram a que se acolhesse o facto como provado ou não provado).
Como se referiu só a ausência total ou absoluta de fundamentação/motivação integra vício de nulidade[2]. A decisão deve ter o seu elemento principal e não ser arbitrária. Deve demonstrar quais são as suas premissas, quais as razões dadas ao caso para ser aquela a decisão e não outra, sob pena de constituir uma “peça sem base”[3].
Alega a ré que da factualidade dada como provada nada consta quanto ao facto de o acidente ter ocorrido no trajecto normalmente utilizado pelo sinistrado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador entre o local de trabalho e a respectiva residência.
Em primeiro lugar, cumpre dizer que a ré confunde conceitos. Se os factos não são suficientes à procedência do pedido ocorre a chamada inconcludência. Ou seja, falhando o autor no ónus da prova, a consequência é a absolvição do pedido. O “defeito” apontado à sentença redundaria em erro de julgamento (falta de factos bastantes para dar razão ao autor) e não em vício formal da sentença.
Em segundo lugar, o afirmado não corresponde à realidade. De modo alguém a sentença é arbitrária ou inexplicável no sentido acima referido. Contém factos explicativos relativos ao acidente in itinere, mormente no ponto 3:
3 – No dia 16/6/2021, depois de ter saído de uma obra que levava a cabo no ..., em ..., e se dirigia para a sua residência, situada na EN ...05, em ..., ..., conduzindo o ciclomotor ..-LR-.., pelo trajecto habitual, sofreu um despiste, caindo ao solo.”
Ademais, também na fundamentação de direito referiu-se expressamente quanto ao acidente in itinere que:
“O acidente que o vitimou ocorre quando regressava do seu local de trabalho para a sua residência, no seu trajecto habitual – ou seja, trata-se de um típico acidente in itinere, nos termos do artº. 9º, nº. 1, a), da LAT.
É certo que, na sua douta contestação, a R. seguradora vinha alegar que teria ocorrido uma interrupção superior a uma hora no trajecto habitual, não enquadrável no nº. 3 da citada disposição legal.
Acontece, porém, que esta questão não foi suscitada na tentativa de conciliação, sendo que aí a R. apenas declinou a sua responsabilidade pela reparação do sinistro por este se encontrar descaracterizado, nos termos do artº 14, nº. 1, a) e c), da LAT.
Ora, como é jurisprudência pacífica, não tendo suscitado essa questão na fase conciliatória, já não o pode fazer na fase contenciosa.
Veja-se, por todos, o Acórdão da Relação de Coimbra de 25/10/2019 (in www.dgsi.pt): “É no auto de conciliação que globalmente se equacionam todos os pontos decisivos à determinação dos direitos do sinistrado, conforme resulta dos artigos 111º e 112º do CPT, seja no caso de acordo, seja na falta dele. Na fase contenciosa apenas se pode exercitar os pontos ou factos por que o pedido não logrou acordo na fase conciliatória, ou seja, aqueles que ficaram por dirimir na fase conciliatória e que obstaram ao acordo total, à plena reparação, relativamente à pretensão e direitos que o sinistrado reclamou. Do confronto daqueles normativos (artigos 111º e 112º do CPT) podemos concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação, nem o posterior conhecimento de questões não apreciadas nem referidas nesse auto (sublinhado nosso). Os efeitos delimitadores da tentativa de conciliação no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho limitam a reclamação ou a proibição de questões que aí não foram suscitadas.”
Da leitura destas passagens resulta evidente a gratuitidade da invocação de nulidade.
Improcede a arguição de nulidade.

C ) RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
Liminarmente, respondendo à objeção das AA, entendemos que a recorrente cumpriu suficientemente o ónus de impugnação especificada referente ao recurso sobre a matéria de facto - 640º, 1, CPC. Identificou o ponto de facto não provado que impugna (1- que tenha sido a TAS de 1,80 g/l que determinou que o sinistrado tivesse perdido o controlo do veículo que conduzia, não conseguindo reagir, travando ou desviando-se antes de abandonar a faixa de rodagem.), a resposta alterativa (quer que o ponto seja provado) e indicou os meios de prova (depoimentos abaixo discriminados com referência aos segmentos gravados que entende relevantes e presunção judicial), explicando a lógica por via da qual entende que a prova indicada deve conduzir a conclusão diferente. É o suficiente.
Prosseguindo:
A decisão de facto somente deve ser alterada pelo tribunal superior caso os factos considerados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem, e não somente admitirem, decisão diferente – art. 662º do CPC. A utilização do verbo “impor” confere um especial grau de exigência imposto à segunda instância que, assim, deve ser cautelosa e parcimoniosa na modificação da decisão de facto.
O tribunal da relação é uma instância de recurso que, por isso mesmo, conhece em moldes mais restritos sobre a matéria de facto, a qual já foi sujeita a um primeiro crivo. O que também se relaciona com o facto de, no ordenamento jurídico português, vigorar a regra da livre apreciação da prova e subsequente fixação da matéria de facto por parte do julgador, a efectuar segundo a sua prudente convicção, salvo se a lei exigir formalidade especial - art. 607º do Cód. Proc. Civil. O tribunal a quo, pese embora ao abrigo daquele princípio seja livre na apreciação da matéria de facto[4] (assim como o tribunal ad quem), nos termos supra referidos, tem ainda o dever de explicar na fundamentação da matéria de facto qual o fio condutor lógico de raciocínio crítico que ditou aquela materialidade fáctica.  Alcançando-se por essa via as razões de ciência, de lógica e as regras de experiência de vida que lhe estiveram subjacentes. Assim, a reapreciação da prova em segundo instância, não devendo ser minimalista, nem meramente formalista, deve, contudo, ter presente este princípio. Mormente quando incide sobre prova testemunhal, porque não se pode também escamotear o facto de ao tribunal superior faltar a imediação.
Decorre também do exposto que a reapreciação de prova não equivale a novo julgamento, devendo, com referência à matéria impugnada, circunscrever-se aos casos de clara desarmonia entre a prova disponível e a decisão tomada, a incongruências ou outras anomalias que claramente sobressaiam. Ou seja, o julgador do tribunal superior tem de estar bem seguro de que a prova foi mal apreciada e, só nessa circunstância, a deve modificar[5].

No caso concreto:
A recorrente quer que o seguinte ponto não provado seja julgado provado:
“- que tenha sido a TAS de 1,80 g/l que determinou que o sinistrado tivesse perdido o controlo do veículo que conduzia, não conseguindo reagir, travando ou desviando-se antes de abandonar a faixa de rodagem.”
Invoca como meios de prova os depoimentos das testemunhas DD, que elaborou a participação de acidente de viação na sua qualidade de autoridade policial, EE, o qual conduzia um veículo automóvel no mesmo sentido de marcha e na retaguarda do ciclomotor do sinistrado, e FF, a qual foi ouvida na qualidade de médica, depondo sobre os efeitos do álcool na condução.
Refere-se com interesse nas contra-alegações:
Sucede que nenhum dos depoimentos é decisivo para estabelecer com rigor que foi a influência do álcool o factor determinante para a ocorrência do despiste, perda de controlo do ciclomotor e subsequente queda do sinistrado. Nem que tenha sido o estado de alcoolémia do sinistrado a determinar uma condução insegura, potenciando decisivamente a ocorrência do acidente.  Podendo o acidente ter sido produzido em consequência de alguma afecção nervosa ou mental conexionada com a prestação laboral, ou de alguma avaria súbita do ciclomotor, relacionada com o risco genérico agravado, abrangido pela extensão do acidente de trabalho.  Em suma, da prova produzida não se pode inferir, com segurança e de forma inequívoca, que o despiste e a consequente queda do sinistrado não teriam ocorrido sem a influência da referida taxa de alcoolémia.  Não sendo admissível no caso vertente o recurso a presunções judiciais para demonstrar o nexo de causalidade entre a taxa de alcoolémia e a ocorrência do acidente.”
A observação é pertinente e por isso mereceu ser reproduzida.
Na verdade, a primeira testemunha, agente da GNR, chegada ao local após o acidente, não disse uma única palavra sobre a causa do acidente, apenas sabendo que havia marcas no lancil do passeio indicando que ciclomotor ali teria batido antes de se despistar, sendo informado pelas pessoas que ali já estavam que o sinistrado vinha do trabalho. Relatou também as condições da via que já encontravam provadas e que não são questionadas em recurso.
A segunda testemunha, condutor que seguia a alguma distância na retaguarda do sinistrado, referiu que este seguia à frente num ciclomotor, “vinha direito” e depois, a dada altura, “foi embater no lancil”, e que “não sabe o que aconteceu” referindo-se à causa do acidente.
A senhora médica limitou-se a dissertar teoricamente sobre os efeitos que o álcool provoca na condução, mormente diminuição da concentração e visão.
Invoca, ainda, a recorrente que deveria ter funcionado presunção judicial para dar tal facto como provado.
A este propósito referiu-se na sentença:
“Não foi produzida prova segura quanto á matéria que se deu como não provada, sendo de realçar que a testemunha Dr. FF se limitou relatar os efeitos normalmente produzidos por uma intoxicação alcoólica nos valores apresentados pelo sinistrado, não se tendo pronunciado no sentido de que terá sido essa intoxicação que determinou a ocorrência do sinistro; por outro lado, não se nos afigura que se possa, sem margem para dúvida razoável, inferir das circunstâncias do sinistro ou da via que não há outra explicação plausível para o sucedido, pois que é possível congeminar um infindável número de hipóteses para o veículo do sinistrado ter começado a guinar para a direita e ir embater no passeio.”
Concordamos. Explicando porquê:
As presunções judiciais são as ilações que o julgador extrai de factos conhecidos para firmar factos desconhecidos - 349º do Código Civil.
Funcionam quando têm base em outros factos assentes e dependem das circunstâncias do caso concreto.  Terá de se verificar uma muito forte ligação entre factos, uns já provados e outros ainda não provados, em que a existência dos primeiros leva a admitir a ocorrência dos segundos, segundo um juízo probabilidade qualificada e não simples, a aferir de acordo com a experiência comum, juízos correntes de probabilidade, lógica, intuição, dados da ciência, etc....
“As presunções judiciais são situações em que, num quadro de conexão entre factos provados e não provados, à luz da experiência comum, da lógica corrente e por via da própria intuição humana, a existência dos primeiros, em termos de alta probabilidade, justifica a existência dos últimos.”- ac. STJ de 7-12-2005, proc. 05B3853.
  A jurisprudência maioritária tem sublinhado que a mera prova da taxa de alcoolemia é insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, a qual tem de ser aferida da conjugação de todos os elementos do caso, a saber a demais matéria apurada, prova testemunhal produzida, dinâmica do acidente, grau de alcoolemia registado, elementos científicos irrefutáveis,  regras da experiência, etc.
Neste sentido ac. STJ de 26-06-2019, proc. 763/16.1T8AVR.P1.S1, in www.dgsi.pt, em cujo sumário consta :
Para descaracterizar um acidente de trabalho quando o sinistrado apresenta álcool no sangue, ainda que em grau suscetível de influenciar o comportamento humano e de afetar as respetivas faculdades intelectuais ou capacidades psicomotoras, é necessário demonstrar, por quem tem esse ónus, a existência do nexo de causalidade entre aquela situação e a verificação do acidente, ou seja que o grau de alcoolemia foi a causa do acidente, ou que, pelo menos, o influenciou.”
No mesmo sentido ac. desta Relação de Guimarães de 2-12-2021, proc. 389/20....
No caso, se é certo que, em abstrato e de acordo com os dados da ciência, o álcool tem efeitos nocivos sobre capacidades humanas influenciadoras da condução, mormente na concentração e capacidade de reação, a verdade é que, dos factos provados e do conjunto de toda a prova, mormente dos depoimentos das testemunhas, não é possível extrair, com o referido juízo de probabilidade qualificada e com suficiente segurança, que foi o grau de álcool a causa concreta do acidente.
As boas condições da via e o bom tempo, ainda que associados ao grau de álcool, não são fatores bastantes para extrapolar a causalidade com a necessária segurança. O facto de o autor ter guinado para a direita e embatido no lancil do passeio pode ter na sua origem múltiplas causas, desde distração ou desequilíbrio momentâneo, situações que podem ocorrer ainda que não se tenha ingerido bebidas alcoólicas.
Não se diga que a prova é diabólica, porque não o é, na medida em, no caso concreto, temos inclusive uma testemunha ocular. Ora, essa testemunha que, seguia na retaguarda do ciclomotor, referiu que o sinistrado “vinha direito” quando a dada altura bate no lancil. Não se extraindo minimamente do seu depoimento que aquele apresentasse condução irregular indiciadora de que o álcool estivesse manifestamente a dificultar-lhe a condução.
Assim sendo, é de manter o decidido, porque os demais factos provados e a prova testemunhal não permitem firmar o facto desconhecido referente à causalidade entre o acidente e o álcool.

D) RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO
Refere a recorrente três questões:
1 - Que não se apurou matéria suficiente para se operar a extensão do conceito de acidente de trabalho em percurso (in itinere);
2 - Que o acidente se encontra descaracterizado por negligência grosseira do sinistrado - alínea b) do nº 1 do art. 14º da Lei 98/2009;
3 - Que o acidente se encontra descaracterizado por violações de regras e condições de segurança estabelecidas pela própria lei (regras estradais, proibição de condução sob efeito de álcool) - al. a) do nº 1 do art. 14º da Lei 98/2009.

Primeira questão - inexistência de acidente de percurso.

Escreveu-se na sentença:
“No nosso caso, o sinistrado exercia a actividade de profissional da construção civil, tendo nessa qualidade celebrado contrato de seguro de acidentes de trabalho com a R.
O acidente que o vitimou ocorre quando regressava do seu local de trabalho para a sua residência, no seu trajecto habitual – ou seja, trata-se de um típico acidente in itinere, nos termos do artº. 9º, nº. 1, a), da LAT.
É certo que, na sua douta contestação, a R. seguradora vinha alegar que teria ocorrido uma interrupção superior a uma hora no trajecto habitual, não enquadrável no nº. 3 da citada disposição legal.
Acontece, porém, que esta questão não foi suscitada na tentativa de conciliação, sendo que aí a R. apenas declinou a sua responsabilidade pela reparação do sinistro por este se encontrar descaracterizado, nos termos do artº 14, nº. 1, a) e c)-b-, da LAT.
Ora, como é jurisprudência pacífica, não tendo suscitado essa questão na fase conciliatória, já não o pode fazer na fase contenciosa.
Veja-se, por todos, o Acórdão da Relação de Coimbra de 25/10/2019 (in www.dgsi.pt): “É no auto de conciliação que globalmente se equacionam todos os pontos decisivos à determinação dos direitos do sinistrado, conforme resulta dos artigos 111º e 112º do CPT, seja no caso de acordo, seja na falta dele. Na fase contenciosa apenas se pode exercitar os pontos ou factos por que o pedido não logrou acordo na fase conciliatória, ou seja, aqueles que ficaram por dirimir na fase conciliatória e que obstaram ao acordo total, à plena reparação, relativamente à pretensão e direitos que o sinistrado reclamou. Do confronto daqueles normativos (artigos 111º e 112º do CPT) podemos concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação, nem o posterior conhecimento de questões não apreciadas nem referidas nesse auto (sublinhado nosso). Os efeitos delimitadores da tentativa de conciliação no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho limitam a reclamação ou a proibição de questões que aí não foram suscitadas.”

É absolutamente correcto o afirmado.
Atente-se no relatório do acórdão onde se resume o ocorrido na tentativa de conciliação. Nesta consta que a seguradora aceitou expressamente a ocorrência de um acidente de trabalho sem levantar qualquer objecção quanto a este aspecto, sobre o qual estava obrigada a definir-se - 112º e 131º, 1, c) 1ª parte, CPT. Não pode, nos termos das normas citadas, posteriormente tomar posição contrária, tendo-se tal questão como definitivamente arrumada (en passant sempre se diga que a matéria provada do ponto 3 contraria totalmente o referido pela seguradora).
De controvertido apenas remanesceu a descaracterização do acidente por negligencia grosseira e por violação de regras de segurança impostas por lei.
2- Questão -  A descaracterização do acidente por actuação negligente do trabalhador violando regras de segurança estabelecidas na lei - 14º/1/a), NLAT.
Refere com pertinência o Ministério Público em contra-alegações:
“Quanto à violação das condições de segurança previstas na lei, o âmbito de previsão da norma não abrange a violação das regras estradais.
Como refere o Dr. José Eduardo Sapateiro, Juiz Desembargador, in “Reflexões em torno da descaraterização do acidente de trabalho”, Revista do CEJ, 2º. Semestre 2013, número 2, a propósito da violação das condições de segurança por parte do trabalhador, de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei, na previsão do art. 14, nº. 1, a), da LAT, pp. 219 e 236:

«Chegados aqui e tendo em atenção que um número considerável de acidentes de trabalho – quer porque verificados ainda no tempo e local normais (embora itinerantes), quer a título de acidentes in itinere – ocorrem durante a circulação rodoviária, entendemos que as regras estradais, para o comum dos trabalhadores – ainda que tenham de tripular viaturas automóveis de serviço ou próprias, ocasionalmente, por força das funções executadas para o seu empregador, – e com a ressalva dos motoristas profissionais (condutores de táxis e de veículos de passageiros ou de transportes de mercadorias, por exemplo), não integram as condições de segurança previstas na lei e referidas na segunda parte da al. a) do n.º 1 do art.º 14.º

Como já antes deixámos referido, a disposição legal em análise demanda a existência de um nexo de causalidade entre a violação injustificada das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei, princípio sempre presente nos diversos regimes de acidentes de trabalho que, no plano nacional e desde 1942, se têm vindo a suceder.»
Ademais, ainda que assim não fosse, também esta situação de exclusão da responsabilidade acidentária não prescinde do nexo de causalidade, que não se verifica igualmente na situação em apreço.”
O acima referido é pacífico na jurisprudência.
A violação das regras de segurança que relevam para descaracterizar o acidente de trabalho são apenas as vocacionadas a regular o exercício normal da actividade profissional desenvolvida pelos trabalhadores. Trata-se de normas que têm por função a salvaguarda e segurança no trabalho e a prevenção de acidentes, normas que diferem e dependem do tipo de actividade profissional em causa, como por exemplo as regras referentes ao uso de máquinas ou equipamento industrial, ao uso de equipamento de protecção individual, cuidados a seguir no manuseio de materiais inflamáveis ou substâncias perigosas, cuidados a ter em trabalhos em altura, para dar alguns exemplos mais paradigmáticos.
O cerne desta descaracterização resulta do entendimento de que a inobservância pelo sinistrado de regras de segurança previstas na lei (ou estipuladas pelo empregador, no caso do trabalhador por conta de outrem) encerra, em si mesma, um acentuado grau de negligência, mais grave do que o simples incumprimento de um dever geral de cuidado. Trata-se de violação de deveres específicos de diligência a que o trabalhar está obrigado, mormente no que respeita ao cumprimento de condições de segurança previstos na lei (Lei 102/2009, de 10-09-regime jurídico de promoção de segurança e saúde no trabalho).
Ficam, assim, excluídas os normativos que não se conexionam com a actividade profissional e que se destinam a acautelar outros fins ou perigos que não os profissionais, como é o caso das regras rodoviárias destinadas à protecção dos utentes das vias públicas.
Na situação dos autos, o sinistrado trabalhava na construção civil e regressava a casa após o trabalho, pelo que a violação de regras de circulação rodoviária (conduzir com álcool), ao não se conexionarem com a profissão, não são suscetíveis de integrar violação de regras de segurança e de descaracterizar o acidente.

Neste sentido os seguintes acórdãos da nossa mais alta instância (STJ, in www.dgsi.pt):

(i) Ac. de 26-06-2019, proc. 763/16.1T8AVR.P1.S1: “ A descaracterização do acidente prevista na segunda parte da alínea a), do n.º 1, do art,º 14.º, da citada lei, exige que: a) as condições e regras de segurança estabelecidas pelo empregador ou pela Lei se mostrem conexionadas com o risco decorrente da atividade profissional exercida, ligadas à própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua atividade laboral;”
(ii) Ac. de 1-07-2009, proc. 823/06.7TTAVR.C1.S1:
“..VII – A descaracterização do acidente de trabalho prevista na alínea a) do artº 7º da Lei nº 100/97 exige, cumulativamente, os requisitos de (i) existência de regras ou condições de segurança estabelecidas pela lei ou pela entidade empregadora, (ii) verificação, por parte do sinistrado, de uma conduta violadora dessas regras ou condições.... VIII – As condições de segurança a que alude o referido preceito são as normas ou instruções que visam acautelar ou prevenir a segurança dos trabalhadores, visando eliminar ou diminuir os riscos ou perigos para a sua saúde, vida ou integridade física.
(iii) Ac. de 17-05-2007, proc.07S051:
I - Para descaracterizar um acidente de trabalho – simultaneamente de viação – não basta a mera demonstração de que o sinistrado conduzia com uma taxa de alcoolemia elevada. É indispensável provar a existência dum nexo de causalidade entre esse grau de alcoolemia e o acidente.
II - Não configura violação de regras de segurança, para os efeitos de descaracterização do acidente de trabalho previstos no art. 7.º, n.º 1, alínea a), da LAT, o facto de o acidente ter ocorrido quando o trabalhador/sinistrado (cuja actividade no contrato de seguro não era de motorista) se deslocava para casa, em violação de regras relativas à condução de veículo rodoviário, integradoras de ilícito criminal.


3º questão -descaracterização do acidente de trabalho por o acidente decorrer de negligência grosseira e exclusiva do sinistrado

Segundo ao artigo 14º (descaracterização do acidente) da Lei 98/2009, de 4/09-NLAT):
1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:....
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;....
3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.” - negrito nosso.
Para a descaracterização do acidente, à necessidade de a negligência ser grosseira junta-se a exigência de que o acidente tenha exclusivamente resultado daquela falta de diligência, sem o concurso de qualquer outro factor.
A prova destes factos, sendo impeditivos do direito à reparação (342º/2 CC), competem à entidade responsável pela reparação e que dela se quer eximir.
A questão já foi abordada em item anterior, tendo-se concluído pela falta de prova da existência de nexo de causalidade entre o grau de álcool e a verificação do acidente.
Na verdade, esta parte do recurso alicerçava-se na impugnação da matéria de facto e pressupunha o seu êxito.
Ainda assim, sobre a necessidade de nexo causal, veja-se:
Ac. STJ de 7-05-2009, proc. 08S3441
IX - Não basta a mera circunstância de a conduta do sinistrado integrar uma infracção ao Código da Estrada, ainda que eventualmente qualificável como contra-ordenação grave ou muito grave para se dar como preenchido o requisito da negligência grosseira que integra a causa de descaracterização do acidente, pois que o regime jurídico dos acidentes de trabalho reclama mecanismos diferentes daqueles de que se socorre a legislação rodoviária: sendo aqui mais premente o interesse da prevenção geral – com o recurso a presunções de culpa e à punição de meras situações de perigo – jamais se poderiam transpor para a sinistralidade laboral os critérios de gravidade adoptados naquela legislação.
X - Para excluir o direito à reparação nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT, é indispensável que o evento seja imputado, mediante o estabelecimento do nexo de causalidade, exclusivamente, ao comportamento grosseiramente negligente do sinistrado, o que implica a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção, impendendo o ónus da prova dos factos que integram a negligência grosseira e a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, por se tratar de factos impeditivos do direito à reparação, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, sobre a parte demandada.
É de manter o decidido.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique.
Guimarães, 11-05-2023

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Antero Dinis Ramos Veiga



[1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.
[2] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito de Processo Civil, vol. II, 2ª ed.p. 435-6.
[3] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Vol. V, 1984, p. 139-141 e ss.
[4] Salvo especialidades probatórias.
[5] Referindo-se às limitações da 2ª instância quanto a factores coligidos pela psicologia judiciária e no sentido de evitar alterações quando não seja possível concluir com segurança pela existência de erro, vd  António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Código de Processo Civil, 5ª ed., p.s 292, 299, 300.