Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3813/18.3T9BRG.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO
CONFISSÃO INTEGRAL E SEM RESERVAS
ARTº 205
Nº 1 DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. O crime de abuso de confiança p. e p. pelo art. 205.º, n.º 1 do Código Penal, estrutura-se no facto de alguém, ilegitimamente, se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade.
A questão fulcral delimitativa do respetivo tipo criminal decorre da inversão do título de posse, que sendo um ato do foro íntimo, não obedece a fórmulas rígidas para se manifestar, mas tem de se revelar em atos que tal demonstrem inequivocamente.
Só quem se comporta e arrogue como dono dispõe sobre o destino de uma determinada quantia em dinheiro, sem necessidade de dela dar qualquer tipo de satisfação a quem quer que seja.
II. A circunstância de a agente ter recebido a coisa atuando em nome da sociedade sua representada, não obsta em si à prática do crime de abuso de confiança pela primeira.
Uma pessoa coletiva pressupõe sempre que o titular de um seu órgão ou o seu representante atue por ela. Respondendo essa pessoa física pelas suas condutas, quando integrem crimes, independentemente de por tal poder responder também, ou não, a pessoa coletiva, como decorre do n.º 7, do art. 11.º, do Código Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães
Secção Penal

I. RELATÓRIO

No processo comum singular nº 3813/18.3T9BRG, do Juízo Local Criminal de Braga, Juiz 1, da comarca de Braga, foi submetida a julgamento a arguida D. C., com os demais sinais dos autos.
A sentença, proferida a 12 de dezembro de 2019 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
«Parte Criminal
a) Condenar a arguida D. C. pela prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 205º nº 1 do CP na pena de 7 (sete) meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, suspensão condicionada ao pagamento aos demandantes J. C. e M. T., no prazo de 6 (seis) meses a contar do trânsito em julgado da sentença proferida, da quantia de €5 000,00 (cinco mil euros).
b) Custas pela arguida, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça, reduzida a 1/2 atenta a confissão integral e sem reservas.
Parte Cível
a) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes J. C. e M. T. parcialmente procedente e, em consequência, condenar a demandada D. C. a pagar aos demandantes a quantia de €6 200,00 (seis mil e duzentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde o trânsito em julgado da sentença proferida até integral pagamento.
Custas por demandantes e demandada na proporção do decaimento.
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Após trânsito, remeta boletim à DSIC.
Proceda-se a depósito (art. 372.º, n.º 5 do CPP)»
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Inconformada, a arguida interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

1. «Sendo tipificado como crime de abuso de confiança nos termos do artigo 205º do Código Penal: 1ª – O crime de abuso de confiança consiste no descaminho ou dissipação de qualquer coisa móvel, que ao agente tenha sido entregue, de forma licita e voluntária, por título e com um fim que o obrigaria a restituir essa coisa ou um valor equivalente.
2. Não pode existir o preenchimento do tipo objetivo se à arguida não foi entregue qualquer coisa móvel.
3. Ou seja, o dinheiro dos Assistentes foi entregue à Mediadora, e não à aqui arguida.
4. Depois de entrar na conta bancária da imobiliária, a arguida não incorporou os montantes em causa na sua esfera patrimonial.
5. Nem a mediadora se recusou a devolver os montantes em causa, assim que a sua situação financeira o permitisse.
6. Pelo que, não guardando a arguida dinheiro dos ofendidos não poderia estar preenchido o elemento do tipo de crime de abuso de confiança.
7. Pelo que, do ponto de vista jurídico é profundamente errado confundir a arguida com a empresa mediadora, e condená-la à devolução de um montante que nunca recebeu na sua esfera pessoal.

Pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto provada, requer a eliminação dos considerandos constantes do ponto 10, ponto 12, ponto 13 e ponto 14 da matéria dada como provada na sentença com fundamento na prova supra considerada.
Mais suscitando a insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, nos termos da alínea a) do nº2 do artigo 410º do CPP, existe, porquanto a matéria de facto provada ser insuficiente para a formulação de uma solução correta de direito, dado não conter todos os elementos necessários à mesma, como supra se requer. Desde logo por não preenchidos todos os elementos do tipo relativamente ao crime e na matéria civil por não haver indicação sobre a matéria de facto que levou o tribunal a condenar a arguida no pagamento da quantia de 6.200,00€ acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde o trânsito em julgado da sentença até efetivo e integral pagamento.
Tendo sida perdida a eficácia da prova produzida resulta que inexiste prova nos autos de onde possa emergir a condenação da arguida.»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, com o regime e efeito adequados.
A Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pelo não provimento do recurso.
Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, igualmente no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente não respondeu.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).

1. Questões a decidir

A. Impugnação da matéria de facto descrita nos pontos 10, 12, 13 e 14 dos Factos Provados.
B. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por esta não integrar o tipo objetivo do crime de abuso de confiança pelo qual a arguida foi condenada e não haver indicação sobre a matéria de facto que levou à condenação cível.
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2. Factos Provados

Segue-se a enumeração dos factos provados e não provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida.
«Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A arguida D. C. é a única sócia e gerente da sociedade D. C. - Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda., que se dedica à mediação imobiliária, actuando no giro comercial com a denominação X.
2. Em data próxima do dia 08/08/2017, os ofendidos J. C. e M. T., casados, dirigiram-se às instalações da sociedade acima referida, com o propósito de adquirirem um apartamento.
3. Foi-lhes, então, apresentada a fracção autónoma designada pela letra BD, apartamento nº .., destinado a habitação, do tipo T2, lado sul/nascente, com a entrada pelo nº .. e um lugar de aparcamento na cave, designado pelo nº3, que faz parte do imóvel em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, freguesia de …, concelho de Braga, inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ….
4. Mostrando-se os ofendidos interessados na aquisição da mencionada fracção, no dia 08/08/2017, na presença da arguida D. C., assinaram um contrato-promessa de compra e venda, nos termos do qual se comprometiam a comprá-la a T. F., proprietária do referido imóvel, e esta se comprometia, em contrapartida, a vendê-la aos ofendidos, pelo preço de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), devendo a escritura de compra e venda ser outorgada no prazo máximo de 30 dias, a contar da data da assinatura do contrato-promessa.
5. Nos termos do referido contrato, por conta do pagamento do preço e ainda como sinal, os ofendidos entregaram, naquela data, à arguida um cheque com o n.º 5353573975, sacado sobre o Banco …, emitido não à ordem de D. C. – Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda, no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros).
6. Tal cheque foi depositado, no dia 09/08/2017, pela arguida na conta bancária aberta junto do Banco ..., com o n.º 010/200048665, titulada pela sociedade D. C. - Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda.
7. O contrato-promessa atrás referido apenas foi assinado pelos ofendidos, que nele figuravam como segundos outorgantes, porquanto a arguida D. C. comprometeu-se perante eles a recolher a assinatura do primeiro outorgante, J. F., que iria outorgar na qualidade de procurador da promitente-vendedora T. F..
8. Não obstante a assinatura daquele contrato-promessa de compra e venda por parte dos ofendidos, até hoje, a arguida nunca logrou entregar-lhes uma via do mesmo assinada pela promitente-vendedora ou pelo seu procurador nem diligenciou pela marcação de data para a escritura de compra e venda.
9. Desde então, e porquanto não mantivessem mais interesse no negócio, face ao período de tempo entretanto decorrido, seguramente superior a 30 dias, em datas não concretamente apuradas, e por várias ocasiões, os ofendidos contactaram os funcionários e dirigiram-se às instalações da sociedade D. C. - Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda., solicitando a devolução da quantia em dinheiro correspondente ao valor do cheque que entregaram à arguida, mas esta nunca se prontificou a recebê-los, esquivando-se a qualquer contacto.
10. Até hoje, a arguida D. C. sempre recusou devolver-lhes tal quantia, que fez sua, integrando-a no seu património, como se de coisa sua se tratasse, dando-lhe o destino que quis.
11. Em 03/09/2018, a fracção autónoma referida em 3 foi vendida por T. F. a M. G..
12. Não obstante esta venda, a arguida persistiu em não entregar aos ofendidos a quantia monetária que estes lhe haviam entregado como sinal e parte do pagamento do preço.
13. A arguida D. C., ao agir do modo descrito, actuou com o propósito concretizado de se apropriar daquela quantia monetária, sabendo que a mesma não lhe pertencia, que actuava contra a vontade dos ofendidos e que lhes causava prejuízo económico.
14. Agiu de forma livre, deliberada e consciente, conhecendo o carácter proibido da sua conduta.

Mais se provou:
15. Em consequência da actuação da arguida D. C., os demandantes J. C. e M. T. tiveram, desde logo, um prejuízo patrimonial no montante de €5 000,00.
16. Ainda em consequência da actuação da arguida, os demandantes J. C. e M. T. sentiram-se bastante sobressaltados, muito nervosos, ansiosos e emocionalmente desgastados, quer porque precisavam com urgência de mudar de casa já que aquela onde residiam não dispunha de espaço suficiente para albergar mais um membro (foram pais de mais uma criança a 12/08/2017), quer porque precisavam da quantia em poder da arguida para entregar como sinal num novo negócio de compra de casa.
17. A arguida D. C. continua a exercer as funções de gerente da sociedade D. C. - Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda., a qual emprega cinco trabalhadores e mantém-se activa no mercado.
18. É divorciada.
19. Tem um filho de 21 anos de idade, o qual não se encontra a cargo.
20. Vive só em casa própria.
21. A demandante M. T. é investigadora universitária, auferindo mensalmente cerca de €2 000,00.
22. O demandante J. C. é consultor de informática, auferindo mensalmente cerca de €1 500,00.
23. Têm dois filhos (de 5 anos e 2 anos de idade), a cargo.
24. Vivem em casa própria, encontrando-se a amortizar um empréstimo para aquisição de habitação, pagando mensalmente cerca de €670,00.
25. Por sentença proferida em 17/05/2016, transitada em julgado em 16/06/2016, a arguida D. C. foi condenada na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €6,00, num total de €360,00, pela prática, em 2014, de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artº 105º nº 1 do RGIT, pena essa já extinta.
26. Por sentença proferida em 29/01/2018, transitada em julgado em 28/02/2018, foi condenada na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €6,00, num total de €900,00, pela prática, em 17/08/2015, de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo art.º 105º nº 1 do RGIT.
27. Por sentença proferida em 17/01/2019, transitada em julgado em 24/06/2019, foi condenada na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de €10,00, num total de €3 000,00, pela prática, em 17/04/2014, de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 205º nº1 do CP.
28. Por sentença proferida em 3/05/2019, transitada em julgado em 3/06/2019, foi condenada na pena de 190 dias de multa, à taxa diária de €6,00, num total de €1 140,00, pela prática, em 14/11/2016, de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo art.º 105º nº 1 do RGIT.
29. A arguida D. C. tem vários outros processos-crime pendentes na Comarca de Braga por factos similares aos dos presentes autos.
30. Confessou de forma livre, integral e sem reservas os factos de que estava acusada.
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2.2 Factos não provados:

Não se provou que, em consequência do comportamento da demandada D. C., os demandantes tivessem qualquer outro prejuízo patrimonial para além do referido no nº 15 da matéria de facto provada, designadamente, a título de lucros cessantes.
Não se provou que a arguida se tivesse apropriado do dinheiro dos demandantes devido a dificuldades económicas ou problemas de saúde que estivesse a atravessar.
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2.3. Motivação da decisão de facto.

A convicção do tribunal quanto aos factos provados baseou-se, desde logo, nas declarações da arguida D. C., que, tendo comparecido na segunda sessão da audiência de julgamento, acabou por confessar de forma livre, integral e sem reservas os factos de que estava acusada, reconhecendo ainda, a instâncias do tribunal, ter vários processos-crime pendentes na Comarca de Braga por factos similares aos dos autos.
No mais, teve um discurso desculpabilizante, procurando fazer crer que apropriou-se dos €5 000,00 devido a dificuldades financeiras e problemas de saúde que atravessou, versão que não se revestiu de suficiente consistência para ser levada à matéria de facto provada.
Na verdade, o caso vertente não é um caso isolado, pois é do nosso conhecimento profissional que a arguida tem vários processos-crime pendentes por factos da mesma natureza, não se afigurando que, em todos eles, tivesse sido motivada por dificuldades financeiras. Aliás, uma coisa são dificuldades financeiras próprias; outra bem diferente é a maior ou menor prosperidade do mercado imobiliário, aceitando-se apenas que este atravessou um período de crise, aliás ultrapassada a partir de finais de 2017, como a própria arguida reconheceu.
De resto, períodos de maior ou menor turbulência financeira praticamente todas as empresas têm, não se vislumbrando que a maior parte dos seus gerentes ou administradores pratiquem actos como os dos autos, escudando-se em tais dificuldades.
Com alguma importância para a resolução do caso vertente, como a seu devido tempo se verá, a arguida D. C. prontificou-se a pagar a curto prazo aos ofendidos a quantia monetária de €5 000,00, pois assegurou que a sua empresa imobiliária está, actualmente, a laborar normalmente e que aquilo que recebe dos negócios que concretiza tem sido para pagar dívidas semelhantes às dos autos.
A verdade é que mesmo sem a confissão da arguida na segunda sessão da audiência de julgamento, já existiam meios de prova suficientes para dar como provada a versão da acusação.
O tribunal baseou-se também nos depoimentos serenos, precisos, seguros, circunstanciados e, por conseguinte, credíveis dos próprios ofendidos J. C. e M. T., os quais começaram por explicar os contactos que mantiveram com a arguida D. C., na qualidade de gerente da sociedade D. C. - Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda, com vista à aquisição de habitação, o contrato-promessa que assinaram e como entregaram à arguida um cheque no valor de €5 000,00 como sinal e princípio de pagamento do preço.
Prosseguiram o seu depoimento, frisando que a arguida comprometeu-se a recolher a assinatura do primeiro outorgante do contrato-promessa, o que nunca veio a fazer, tendo, a determinada altura, sido proposto o mesmo negócio por mais €10 000,00, o que, logicamente, não aceitaram.
Acrescentaram que, face à não concretização do negócio prometido, por variadíssimas vezes, entraram em contacto com a sociedade D. C. – Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda., solicitando a devolução da quantia monetária que entregaram, escrevendo, inclusive, uma reclamação no respectivo livro de reclamações, mas a arguida nunca os contactou, muito menos se prontificou a recebê-los e a devolver a quantia em causa. Os funcionários da imobiliária davam-lhes sempre uma desculpa, desculpa essa que ia variando (a arguida ou não estava disponível, ou estava em formação ou não estava na agência imobiliária).
Mais tarde, vieram a saber que a fracção autónoma objecto do contrato-promessa fora vendida a um terceiro.
Por último, reportaram-se às consequências que o comportamento da arguida teve, nomeadamente a nível não patrimonial, em consonância com o que foi dado como provado.
Em terceiro lugar, baseou-se o tribunal no depoimento, isento e seguro, da testemunha J. F., procurador da promitente-vendedora T. F.. Com particular interesse para a resolução do problema que nos ocupa, salientou que a arguida D. C. nunca o contactou com vista à obtenção da respectiva assinatura. Aliás, desconhece totalmente quem seja a arguida, pois nunca com ela falou.
Em quarto lugar, levaram-se em conta os depoimentos das testemunhas L. C. (irmão do demandante J. C.) e D. M. (cunhada dos demandantes), os quais inteiraram-se do sucedido através dos próprios demandantes, tendo-se apercebido que os mesmos ficaram nervosos, ansiosos e seriamente preocupados com o facto de terem perdido €5 000,00 e de terem que andar à procura de nova casa que pudesse albergar o agregado familiar.
Levaram-se ainda em conta a cópia do contrato-promessa de compra e venda de fls. 5 verso a 7, a cópia do cheque de fls. 8, a cópia da declaração de fls. 8 verso (subscrita pela própria arguida em que reconhece ter recebido dos ofendidos €5 000,00 a título de sinal do contrato-promessa), a certidão da Conservatória do Registo Comercial da sociedade D. C. - Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda de fls 18 a 20, a certidão da Conservatória do Registo Predial de Braga de fls 33 a 42 e a informação do Banco ..., ficha de assinaturas, extracto bancário e talão de depósito de fls 106 a 112, documentos analisados em sede de audiência de julgamento.
A conjugação de todos os elementos de prova mencionados com as mais elementares regras de experiência comum inculca a ideia de que os factos ocorreram da forma como foram dados como provados, não tendo o tribunal a mais pequena dúvida a esse respeito.
Na verdade, resulta claro que a arguida D. C. apropriou-se da quantia de €5 000,00, que não lhe pertencia e que actuou sempre com tal propósito.
Tal conclusão extrai-se da própria confissão da arguida, mas também da conjugação de múltiplos factos, que passamos a expor.
Em primeiro lugar, ela depositou na conta bancária da sociedade imobiliária de que era e é a única sócia e gerente o cheque no valor de €5 000,00 logo no dia seguinte a tê-lo recebido dos ofendidos, sendo certo que a quantia por ele titulada não lhe pertencia.
Em segundo lugar, esquivou-se aos diversos contactos (e foram muitos!) que os ofendidos tentaram estabelecer com vista à devolução da quantia em causa.
Em terceiro lugar, pelo menos até à data em que foi ouvida em audiência de julgamento, não foi capaz de restituir os €5 000,00 que lhe foram entregues, o que não deixa de ser sintomático.
Por último, e decisivamente, muito embora se tivesse comprometido a recolher a assinatura do primeiro outorgante do contrato-promessa (J. F., na qualidade de procurador de T. F.), nunca o contactou, tendo aquele testemunhado que a pessoa da arguida é-lhe completamente estranha.
Quanto à situação pessoal, profissional e económica da arguida D. C., para além das suas declarações, as declarações da testemunha P. F., funcionário da sociedade D. C. - Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda.
Relativamente à situação pessoal, familiar e económica dos demandantes J. C. e M. T., as suas próprias declarações.
Quanto aos antecedentes criminais da arguida D. C., o CRC de fls. 188 e ss.
Relativamente aos restantes factos não provados, cumpre dizer que nenhuma outra prova se produziu em audiência de julgamento que permitisse dar como provados outros factos para além dos que, nessa qualidade, se demonstraram.»
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A. Impugnação da matéria de facto descrita nos pontos 10, 12, 13 e 14 dos Factos Provados.

Pretende a recorrente a «eliminação» da factualidade descrita nos pontos 10, 12, 13 e 14 dos Factos Provados, que fundamenta na «Desconformidade da prova com a decisão».
Contudo, embora para tal requeira expressamente a reapreciação da prova, é manifesto que não cumpre o ónus de especificação legalmente imposto para este tipo de impugnação pelos n.º 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, já que em momento algum indica as provas que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da respetiva gravação em que funda a impugnação.
De todo o modo, constando da acusação toda a factualidade considerada provada nos pontos 10, 12, 13 e 14 dos Factos Provados, a sua impugnação sempre estaria à partida votada ao insucesso, por abrangida pelo valor probatório da confissão integral e sem reservas que sobre ela fez em julgamento a própria arguida/recorrente.
Efetivamente, na ata da sessão da audiência que teve lugar em 6 de dezembro de 2019, foi expressamente consignada a declaração por parte da arguida de que confessava os factos da acusação, que acabara de lhe ser lida, imediatamente seguida da pergunta do Senhor Juiz que presidia à audiência se o fazia de livre vontade e fora de qualquer coação, bem como se se propunha fazer uma confissão integral e sem reservas; ao que a arguida respondeu afirmativamente (gravação de 13:58:25 a 14:37:06).

Após o que, como consta da mesma ata, foi proferido despacho com o seguinte teor:

«Porque efetuada de livre vontade, integralmente e fora de qualquer coação, julgo válida a confissão prestada pela arguida, a qual implica, de acordo com o disposto no art.º 344º, nº 2, al. a) do C. P. Penal, a renúncia à produção de prova relativamente aos factos imputados» (gravação de 13:58:25 a 14:37:06)
Despacho que foi de imediato notificado a todos os presentes, entre os quais se incluíam a própria arguida e a sua defensora, que sobre tal nada disseram, nem nesse momento nem posteriormente.

Ora, uma das exceções ao princípio fundamental da livre apreciação da prova, consignado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, é precisamente a valor probatório atribuído na lei à confissão integral e sem reservas no julgamento. Prescrevendo a este propósito o artigo 344.º do Código de Processo Penal que:

«1 - No caso de o arguido declarar que pretende confessar os factos que lhe são imputados, o presidente, sob pena de nulidade, pergunta-lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coacção, bem como se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas.
2 - A confissão integral e sem reservas implica:
a) - Renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados;
b) - Passagem de imediato às alegações orais e, se o arguido não dever ser absolvido por outros motivos, a determinação da sanção aplicável; e
c)- Redução do imposto de justiça em metade.
3 - Excetuam-se do disposto no número anterior os casos em que:
a) - Houver coarguidos e não se verificar a confissão integral, sem reservas e coerente de todos eles;
b) - O tribunal, em sua convicção, suspeitar do carácter livre da confissão, nomeadamente por dúvidas sobre a imputabilidade plena do arguido ou da veracidade dos factos confessados; ou
c) - o crime for punível com pena de prisão superior a três anos.
4 - Verificando-se a confissão integral e sem reservas nos casos do número anterior ou a confissão parcial ou com reservas, o tribunal decide, em sua livre convicção, se deve ter lugar e em que medida, quanto aos factos confessados, a produção da prova».

No caso sub judice, não havendo coarguidos, nem qualquer suspeita do caráter livre da confissão, e sendo o crime imputado à arguida o de abuso de confiança p. e p. pelo art. 205.º, nº 1 do Código Penal, a que corresponde pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, o Tribunal a quo decidiu, e bem, que a confissão da arguida implicava a renúncia à produção da prova relativa aos factos constantes da acusação e a consequente consideração destes como provados.
É certo que, tendo o julgamento sido iniciado sem a presença da arguida, na sessão em que esta compareceu pela primeira vez e confessou, havia prova da acusação que já tinha sido produzida anteriormente; mas tal em nada altera a valor probatório atribuído na lei à confissão integral e sem reservas no julgamento.
Assim, e incluindo-se o circunstancialismo descrito nos pontos 10, 12, 13 e 14 dos Factos Provados na matéria fáctica constante da acusação, é manifesto que não assiste qualquer razão à recorrente na sua pretensão de que aquela factualidade seja considerada como não provada ou, utilizado a expressão do recurso, «eliminada».
*
B. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por esta não integrar o tipo objetivo do crime de abuso de confiança pelo qual a arguida foi condenada e não haver indicação sobre a matéria de facto que levou à condenação cível.
A recorrente invoca também que a sentença padece do vício da insuficiência para a decisão de direito da matéria de facto provada, por esta não integrar o tipo objetivo do crime de abuso de confiança pelo qual foi condenada
Argumenta que «do ponto de vista jurídico é profundamente errado confundir a arguida com a empresa mediadora e condená-la à devolução de um montante que nunca recebeu na sua esfera pessoal.». Alegando que o dinheiro dos Assistentes foi entregue à Mediadora D. C. - Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda. e não à arguida, tendo entrado na conta bancária daquela sociedade, a qual nunca se recusou a devolvê-lo assim que a sua situação financeira o permitisse.
Vejamos.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é um dos vícios da sentença previstos no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e, como tal, tem de resultar «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência», isto é, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos (2).
Concretamente, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (3) é a «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher» (4).
No caso em apreço, a arguida foi condenada pela prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo art. 205.º, n.º 1 do Código Penal, que se estrutura no facto de alguém, ilegitimamente, se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade.
Quer isto dizer que neste ilícito a coisa entra validamente em poder do agente, o qual, violando a confiança em si depositada, lhe dá destino diferente daquele para que lhe foi confiada, dispondo dela como se fosse sua, ou seja, com o propósito de não a restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada, passando a agir animo domini.
A questão fulcral delimitativa do respetivo tipo criminal decorre assim da inversão do título de posse da coisa, efetuada pelo agente, «que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se reltivamente a ela – naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais – uti dominu» (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal», Tomo II, p. 103).
Ora, do acervo dos factos considerados provados, que são precisamente os que como tal constam da sentença recorrida (face à improcedência da impugnação da matéria de facto, nos termos já supra expostos) resulta claramente que a arguida, ainda que atuando em nome da mediadora imobiliária D. C. - Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda., da qual era aliás única sócia e gerente, recebeu dos assistentes a quantia de 5.000,00 €.
Tal valor foi-lhe entregue a título não translativo da propriedade, mais concretamente em depósito, como resulta do Regime Jurídico da Atividade Imobiliária (Lei n.º 15/2013, de 02.08), que no seu art. 18.º, n.ºs 1, 2 e 3 estabelece considerarem-se «depositadas à guarda da empresa de mediação quaisquer quantias recebidas dos destinatários de negócio por si mediado, mesmo que a título de preço, que lhe sejam confiadas antes da celebração do mesmo ou do respetivo contrato-promessa, devendo restituí-las imediatamente a quem as prestou, logo que para tal solicitada.»; sendo «expressamente vedado às empresas de mediação utilizar em proveito próprio» tais quantias. O depósito é por imposição legal gratuito, «aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, as disposições previstas no Código Civil para o contrato de depósito», ou seja, e desde logo, o art. 1185.º deste último diploma, que define o depósito como o «contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida.»
Não deixando a factualidade considerada apurada margem para dúvidas de que a arguida, ainda que atuando em nome da sociedade mediadora sua representada, inverteu o título de posse com a não devolução da quantia recebida, apesar de solicitada insistentemente pelos assistentes (cfr. pontos 9 a 12 dos Factos Provados).
Este comportamento da arguida, que integra uma atuação objetiva, ainda que omissiva, levou a que o Tribunal a quo tivesse concluído, por referência às normais regras da experiência comum, que quem assim se comporta, atua como se fosse dono dos 5.000,00 € que lhe haviam sido entregues.
Efetivamente, a inversão do título de posse, sendo um ato do foro íntimo, não obedece a fórmulas rígidas para se manifestar, e é inequívoco que só quem se comporta e arrogue como dono dispõe sobre o destino de uma determinada quantia em dinheiro, sem necessidade de dela dar qualquer tipo de satisfação a quem quer que seja, designadamente aos assistentes, que como vimos lhe tinham entregue esse dinheiro a título de depósito.
Como tal, o comportamento da arguida revela objetivamente que, depois de receber o montante em dinheiro entregue pelos assistentes, inverteu o título de posse e passou a comportar-se como sua dona, embora não se tenha verificado uma deslocação da respetiva propriedade.
Sendo assim indiferente o destino que deu ao dinheiro, posto é que, a partir de dada altura decidiu fazer-se dominus dele.
Acresce, que não assume aqui qualquer relevância a circunstância de a arguida ter recebido de os 5.000,00 € atuando em nome da sociedade sua representada, pois uma pessoa coletiva pressupõe sempre e necessariamente que o titular de um seu órgão ou o seu representante atue por ela. Respondendo essa pessoa física pelas suas condutas, quando integrem crimes, independentemente de por tal poder responder também, ou não, a pessoa coletiva, como decorre do n.º 7, do art. 11.º, do Código Penal. Sendo aliás a regra a de que as pessoas coletivas não podem ser suscetíveis de responsabilidade criminal, o que obviamente não iliba nem podia ilibar o agente que em nome delas atua.
Assim naufragando também este ponto do recurso.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso da arguida D. C..
Custas pela recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UCs a taxa de justiça.
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Guimarães, 28 de setembro de 2020
(Elaborado e revisto pela relatora)

Fátima Furtado
Maria José Matos
(Assinado digitalmente)


1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, Rei dos Livros, 8ª edição, 2011, p. 73.
3. Artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal.
4. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., p. 74.