Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
123/13.6TBGMR.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: CONTRAORDENAÇÕES
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
RESPONSABILIDADE PESSOAS COLECTIVAS
ARTºS 4º
Nº 1
B) DO ETAF

Nº 2 DO RGCO E 12º DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/02/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) De acordo com o disposto no art. 4º, n.º 1, al. l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redação dada pelo DL n.º 214-G/2015, de 02 de outubro, em vigor desde 01 de setembro de 2016, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.

II) É a data de apresentação dos autos de recurso de contraordenação no tribunal que marca o momento em que essa competência se fixa. Assim, só no caso de tal apresentação ter sucedido depois do dia 01-09-2016 é que os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para apreciar a impugnação judicial.

III) Na ausência de normativo que, no Regime Geral das Contraordenações, preveja a cumulação de ambas as responsabilidades, a interpretação que deve ser feita do art. 7º, n.º 2, daquele diploma é a de que a atuação dos órgãos da pessoa coletiva apenas responsabiliza esta última e não as pessoas individuais intervenientes.

IV) O legislador quis, de forma inequívoca, restringir a responsabilidade contraordenacional às pessoas coletivas e não aos seus órgãos, pelo que inexiste qualquer lacuna neste domínio, o que afasta a aplicação subsidiária do art. 12º do Código Penal.

V) De acordo com o disposto no art. 4º, n.º 1, al. l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redação dada pelo DL n.º 214-G/2015, de 02 de outubro, em vigor desde 01 de setembro de 2016, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.

VI) É a data de apresentação dos autos de recurso de contraordenação no tribunal que marca o momento em que essa competência se fixa. Assim, só no caso de tal apresentação ter sucedido depois do dia 01-09-2016 é que os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para apreciar a impugnação judicial.

VII) Na ausência de normativo que, no Regime Geral das Contraordenações, preveja a cumulação de ambas as responsabilidades, a interpretação que deve ser feita do art. 7º, n.º 2, daquele diploma é a de que a atuação dos órgãos da pessoa coletiva apenas responsabiliza esta última e não as pessoas individuais intervenientes.

VIII) O legislador quis, de forma inequívoca, restringir a responsabilidade contraordenacional às pessoas coletivas e não aos seus órgãos, pelo que inexiste qualquer lacuna neste domínio, o que afasta a aplicação subsidiária do art. 12º do Código Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. Nos processos de contraordenação com os NUICO 1179/2007 e 1180/2007, apensados, foi proferida decisão pela Câmara Municipal X, com data de 25-10-2012, a condenar o arguido, P. V., pela prática, em concurso efetivo, de uma contraordenação prevista e punida pelos arts. 4º, n.º 2, al. c), 83º e 98º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, a que se refere o processo n.º 1179/2007, na coima parcelar de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), e de uma contraordenação prevista e punida pelos arts. 4º, n.º 3, al. g), e 98.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do mesmo diploma, a que se refere o processo n.º 1180/2007, na coima parcelar de € 2.000,00 (dois mil euros), e, em cúmulo jurídico, na coima única de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).

2. Não se conformando com essa decisão, o arguido impugnou-a judicialmente, tendo a Mm.ª Juíza, por sentença datada de 12-01-2018 e depositada a 12-03-2018, decidido conceder provimento parcial ao recurso e, em consequência, declarado extinto, por efeito de prescrição, o procedimento contraordenacional quanto à primeira das referidas contraordenações (processo n.º 1179/2007), e aplicado ao arguido, pela prática da segunda (processo n.º 1180/2007) a coima de € 1.000,00 (mil euros).

3. Mais uma vez inconformado, o arguido veio interpor o presente recurso dessa sentença, concluindo a sua motivação nos seguintes termos (transcrição [1]):

«CONCLUSÕES

1 – O Tribunal a quo condenou o arguido ao pagamento de uma coima no montante de €1.000,00, pela prática de uma contraordenação p. e p. pelos artigos 4.º, n.º 3, al. g) e 98º, n.º 1, al. a), do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, a que se refere o processo n.º 1180/2017.
2 – Pelo Tribunal recorrido foram dados por provados, entre outros, os seguintes factos:

O arguido ocupa, por intermédio de terceiro, da sua sociedade “S. P., Serviços, Lda.”, sem autorização administrativa de utilização do solo, um terreno, sito na Rua (…) , concelho de Guimarães, inserido em área classificada de Reserva Agrícola Nacional, com um horto e um edifício prefabricado para a exposição e venda de plantas ornamentais”.
3 – À sociedade “S. P., Serviços, Lda.” foi aplicada uma coima, pelos mesmos factos, ora em contenda, no montante de €500,00 (Quinhentos euros) – fls. 71 a 77.
4 – O Tribunal a quo fundou a sua decisão no facto de o arguido exercer funções de gerência da sociedade “S. P., Serviços, Lda”.
5 – Considerou o tribunal recorrido que a responsabilidade do arguido era distinta e independente da responsabilidade da sociedade.
6 – O arguido foi condenado na qualidade de gerente (membro de órgão) daquela sociedade, sendo que nunca atuou em seu próprio nome e interesse.
7 – Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 7º do Regime do Ilícito de Mera Ordenação Social, apenas a sociedade poderá ser responsável pela prática da contraordenação ora em crise.
8 - Não existe no regime geral aplicável à situação em apreço, norma que impute ao arguido, de forma distinta e independente, a prática da mesma contraordenação, pelo que ao aplicar-se o disposto no n.º 2 do art.º 7.º do Regime do Ilícito de Mera Ordenação Social, não poderá fazer-se uso do disposto no n.º 1 do mesmo artigo e no art.º 11º do Código Penal, conforme defende o Tribunal a quo – veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 174/15.6T8RMR.E1, de 12-07-2016, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt.
9 - A decisão recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 2º, al. j), 4.º, n.º 3, al. g) e 98.º, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação e o art.º 7º, n.º 2 do Regime do Ilícito de Mera Ordenação Social.
Termos em que, revogando a sentença recorrida e proferindo acórdão que absolva o recorrente arguido, farão V/ Exias. inteira JUSTIÇA!!»

4. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância, em resposta à motivação da recorrente, manifestou a sua concordância com a decisão recorrida quando defende que a responsabilidade do arguido e da sociedade são, neste caso, distintas e independentes entre si, sendo legal e juridicamente possível a responsabilização de ambos pelo mesmo facto, conforme se extrai da letra do art. 7º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas e do art. 11º do Código Penal, pelo que o facto de a sociedade “S. P., Ld.ª” ter sido condenada por utilizar o terreno sem autorização administrativa, ou seja, pela prática do facto por si mesma, não exclui a responsabilidade do arguido, termos em que deverá ser negado provimento ao recuso, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

5. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual suscita a questão prévia de a competência para conhecer da impugnação contenciosa em matéria de contraordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, como é o caso, pertencer à jurisdição administrativa, concluindo, assim, que esta Relação não tem competência material para julgar a matéria constante do presente recurso.

6. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente não respondeu a esse parecer.

7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do Código de Processo Penal.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação pelo recorrente, não podendo o tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso [2].

Assim, as questões a apreciar são as seguintes:

a) - A incompetência em razão da matéria, suscitada a título de questão prévia pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto.
b) - A responsabilidade contraordenacional do arguido.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA

2.1 – Nela foram considerados como provados os seguintes factos (transcrição):

«1) O arguido ocupa, por intermédio de terceiro, da sua sociedade “S. P., Serviços, Ld.ª”, sem autorização administrativa de utilização do solo, um terreno, sito na rua (…), concelho de Guimarães, inserido em área classificada de Reserva Agrícola Nacional, com um horto e um edifício prefabricado para a exposição e venda de plantas ornamentais, conforme foi constatado pelos serviços de fiscalização municipal em 12.06.2007.
2) A situação mantém-se, não tendo ainda sido requerida, pelo menos até 26.07.2016, a autorização para utilização do terreno.
3) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que não podia permitir a utilização do terreno sem a necessária autorização administrativa e que a sua conduta era proibida e punida por lei.
4) O arguido não regista antecedentes contraordenacionais.
5) O arguido é empresário, tendo a empresa “S. P., Serviços, Ld.ª”, e aufere o salário mínimo nacional, não possuindo outros rendimentos, nem património; é divorciado; vive sozinho, em casa de um familiar, não pagando renda; e foi declarado insolvente por sentença transitada em 25.06.2015.»

2.2 – Por seu turno, na parte da fundamentação jurídica foi consignado, entre o mais que para o caso não releva, o seguinte (transcrição):

«Importa ainda dizer que a circunstância de a sociedade “S. P. Serviços, Ld.ª” ter sido condenada por utilizar o terreno sem autorização administrativa (prática do facto por si mesma), não exclui a responsabilidade do arguido e assim não obsta à condenação deste pela prática mesma contraordenação (prática do facto por intermédio de outrem, da sua sociedade “S. P. Serviços, Ld.ª”), porquanto a responsabilidade da sociedade e do arguido são distintas e independentes entre si, sendo legal e juridicamente possível a responsabilização de ambos pelo mesmo facto (cfr. art.ºs 7.º do RGCO e 11.º do Código Penal).»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 - Da incompetência em razão da matéria

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, citando o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15-02-2018 [3], que por sua vez se louva na posição defendida no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 11-01-2018 [4], emitiu parecer no sentido de esta Relação não ter competência material para julgar a matéria do presente recurso, pertencendo tal competência à jurisdição administrativa, porquanto, de acordo com o disposto no art. 4º, n.º 1, al. I), do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), na redação dada pelo DL n.º 214-G/2015, de 02 de outubro, que começou a vigorar em 01 de setembro de 2016, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.

Assiste razão ao Exmo. Procurador-Geral Adjunto na argumentação por si desenvolvida, embora daí não se possa retirar o efeito pretendido.

Na verdade, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 100/2015, de 19 de agosto, o DL n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, procedeu à revisão de vários diplomas, entre eles o ETAF, passando este a incluir no elenco da competência material da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos da nova redação da alínea l) do n.º 1 do seu artigo 4º, a apreciação das “…impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo”.

De acordo com o previsto no n.º 5 do artigo 15º do DL n.º 214-G/2015, essa alteração entrou em vigor no dia 1 de setembro de 2016.

Por seu lado, conforme o Tribunal dos Conflitos tem vindo a decidir [5], é a data em que os autos de recurso de contraordenação são apresentados no tribunal que marca o momento em que a competência se fixa. Assim, só no caso de tal apresentação ter sucedido depois do dia 01-09-2016 é que os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para apreciar a impugnação judicial, nos termos do disposto no art. 4º, n.º 1, al. l) do ETAF, na redação dada pelo DL n.º 214-G/2015.

Com efeito, de acordo com o disposto no art. 38º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) e no art. 5º do ETAF, o acontecimento que define a fixação da competência do tribunal é a propositura da ação, momento esse que segundo o art. 259º, n.º 1, do Código de Processo Civil, coincide com a entrada da petição na secretaria, assim se iniciando a instância.

Ora, nos recursos de impugnação judicial de decisões proferidas por entidades administrativas, é o ato de apresentação dos autos ao juiz pelo Ministério Público que vale como acusação (art. 62º, n.º 1, do DL n.º 433/82). Assim, só com essa iniciativa ocorre algo equiparável à propositura da ação ou da causa.
No caso vertente, conforme resulta do carimbo aposto a fls. 32, os autos foram apresentados pelo Ministério Público em tribunal no dia 14-01-2013, ou seja, muito antes da referida data de 01-09-2016.

Por conseguinte, a competência material para conhecer da impugnação judicial deduzida pelo arguido através do presente processo, tendo por objeto a decisão administrativa que lhe aplicou uma coima no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo, pertence aos tribunais comuns.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, improcede a questão prévia suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, pelo que nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso.

3.2 – Da responsabilidade contraordenacional do arguido

A Mm.ª Juíza a quo entendeu que a circunstância de a sociedade "S. P. - Serviços, Lda.", da qual o arguido é legal representante, ter sido condenada pelos mesmos factos (conforme se encontra documentalmente comprovado a fls. 68 e ss.), não exclui a responsabilidade individual do arguido e, assim, não obsta à condenação deste pela prática da mesma contraordenação, porquanto ambas as responsabilidades são distintas e independentes entre si, sendo legal e juridicamente possível a responsabilização de ambos pelo mesmo facto.

Insurgindo-se contra esse entendimento, sustenta o recorrente que, não tendo atuado em seu próprio nome e interesse, mas apenas na qualidade de gerente (membro de órgão) da sociedade, e não contendo o regime geral aplicável à situação em apreço qualquer norma que preveja, no contexto das contraordenações, a responsabilização cumulativa, com a das entidades coletivas, dos indivíduos que atuem em representação delas, deve considerar-se que as atuações dos órgãos da pessoa coletiva apenas responsabilizam esta e não as pessoas individuais intervenientes, termos em que deverá ser absolvido da contraordenação em apreço nos autos.

Vejamos se a razão está do seu lado.

As pessoas coletivas, ainda que incapazes de atividade física que as concretize, são dotadas de consciência e vontade próprias, devido à sua estrutura organizativa. Como tal, são direta e autonomamente destinatárias das normas que visam proteger os bens jurídicos, sendo, pois, suscetíveis de culpa pela respetiva violação [6].

Sendo assim, coloca-se a questão de determinar o âmbito e a forma que deve assumir o nexo de imputação do facto à responsabilidade do entes coletivos, ou seja, saber se estes são diretamente responsáveis apenas pelos atos praticados pelas pessoas individuais ou se também o são enquanto garantes da não produção de resultados típicos, isto é, quando a falta de vigilância e de controlo dos seus órgãos ou representantes tenha permitido a prática do facto por uma pessoa sob a sua autoridade [7].

Como se pode ler no acórdão desta Relação de 25-01-2010 [8], citando a esse respeito Germano Marques da Silva [9] e Jorge dos Reis Bravo [10], «A procura de um modelo de imputação que responda eficazmente à necessidade responsabilizar o ente coletivo mas, ao mesmo tempo, respeite a sua alteridade relativamente à conduta humana subjacente, conduziu basicamente a duas respostas distintas: uma primeira, de responsabilidade direta, em que a imputação é imediatamente dirigida ao comportamento da pessoa coletiva sem necessidade de intermediação de pessoas físicas; outra, de responsabilidade por substituição, na qual a responsabilidade da pessoa coletiva pressupõe a avaliação do comportamento de uma ou mais pessoas físicas e de seguida a atribuição deste comportamento, e da reprovação que suscita, à pessoa coletiva».

O art. 7º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (RGCO), aprovado pelo DL n.º 433/82, de 22 de outubro, ao dispor que "as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas, bem como às associações sem personalidades jurídicas", consagra o princípio da responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas.

Quanto ao modelo de imputação adotado para a responsabilidade contraordenacional, dispõe o n.º 2 do mesmo artigo que "As pessoas coletivas ou equiparadas são responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções".
Conclui-se no mencionado acórdão que «Perante essa formulação, a regra consagrada acolhida foi a da responsabilidade direta da pessoa coletiva, (…) por efeito da identificação das condutas – ativas ou omissivas - dos seus órgãos e representantes juridicamente vinculantes, tal como definidos pelo ordenamento civil, como atos próprios do ente coletivo.

Mas, por outro lado, verificado esse requisito – identificação -, o legislador do Regime Geral das Contraordenações optou por responsabilizar apenas a pessoa coletiva, afastando o regime da responsabilidade cumulativa ou paralela (…). Não se encontra no ordenamento nacional qualquer norma que condicione a responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva a prévia ou concomitante responsabilização de pessoa singular, ou seja, que acolha o modelo de responsabilidade cumulativa necessária (…). Não decorre da Lei, nem dos princípios, a necessidade do procedimento contraordenacional ser dirigido tanto contra o ente coletivo como contra o(s) agente(s) físico(s), antes subsistindo autónoma a responsabilidade daquele mesmo que se extinga, por exemplo por morte, a responsabilidade da pessoa singular. Como refere Germano Marques da Silva:

"É interessante anotar desde já que não obstante o Código Penal de 1982 não ter consagrado a responsabilidade criminal das pessoas coletivas, optando pela responsabilização dos titulares dos seus órgãos e dos seus representantes que atuassem em nome dela, nos termos do instituto da "atuação em nome de outrem", já o Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, optou pela sua responsabilização e não daqueles que atuem em nome dela. Com efeito, o artº 7º, deste diploma admite a aplicação das coimas tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas, bem como às associações em personalidade jurídica, mas estabelece que só as pessoas coletivas respondem pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções (art. 7º, nº 2)».

Também no parecer n.º 11/2013 da Procuradoria-Geral da República foi perfilhado o entendimento de que a responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas assenta numa imputação direta e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num “defeito estrutural da organização empresarial” (defective corporate organization) ou “culpa autónoma por défice de organização”, quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa coletiva, que nem sequer precisa de ser identificada nem individualizada.

Assim, a imputação da infração à pessoa coletiva resulta de se considerar autor desta o sujeito que tiver violado (por ação ou por omissão) a proibição legal ou o dever jurídico cuja violação a lei comina com contraordenação, solução que é coerente com o facto de no direito contraordenacional a ilicitude não assentar numa censura ético-jurídica, mas sim na violação de um dever legal.

Aderindo à argumentação aduzida no acórdão desta Relação de 31-01-2005 [11], mais recentemente, a Relação de Évora, no acórdão de 12-07-2016 [12], entendeu que, face à letra do citado n.º 2 do art. 7º do RGCO, a responsabilidade pelos factos cometidos pelos órgãos das pessoas coletivas ou equiparadas é exclusiva das pessoas coletivas, e que o legislador quis, de forma inequívoca, restringir a responsabilidade contraordenacional às pessoas coletivas e não aos seus órgãos, uma vez que, se assim não fosse, o referido regime geral teria uma norma paralela à do art. 12º do Código Penal ou, por exemplo, à dos arts. 2º do DL n.º 28/84, de 20 de janeiro, e do art. 6º do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, normas estas que, com um teor muito semelhante, estendem a responsabilidade ao próprio membro do órgão da pessoa coletiva.

Daí que, perante essa vontade do legislador, seja de concluir pela inexistência de qualquer lacuna neste domínio, com a consequente não aplicação subsidiária do art. 12º do Código Penal, ao abrigo da regra prevista no art. 32º do RGCO, o qual dispõe que "Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal".

Com efeito, o Código Penal de 1982 consagrou, como regra geral, o princípio da individualidade da responsabilidade criminal (art. 11º), panorama que apenas foi alterado com as alterações introduzidas nesse preceito pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, ao consagrar a responsabilidade penal das pessoas coletivas em relação aos tipos de crimes elencados no seu n.º 2.

Por seu lado, o RGCO, que entrou em vigor sensivelmente ao mesmo tempo que o Código Penal de 1982, foi muito mais inovador do que ele, ao prever, no seu art. 7º, n.º 1, a regra que as coimas são aplicáveis tanto a pessoas singulares como a pessoas coletivas e ainda a associações de facto sem personalidade jurídica, normativo este que se tem mantido inalterado.

Estas circunstâncias levam-nos a concluir que no que respeita à responsabilidade dos entes coletivos, o RGCO é autossuficiente em relação ao previsto no Código Penal, o que afasta a existência de uma lacuna a integrar ao abrigo da referida regra da subsidiariedade, designadamente no que concerne à aplicação do art. 12º do Código Penal, o qual prevê a responsabilidade de quem age voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa coletiva, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem [13].

Como foi decidido no acórdão da Relação de Lisboa de 29-04-1997 [14], «não existindo no DL n.º 433/82, de 27/10, uma norma paralela à do art. 12º do CP relativa à extensão da punibilidade à atuação em nome de outrem, não é indiferente a qualidade em que determinada pessoa singular atuou: em seu próprio nome e interesse ou como gerente (órgão) de uma sociedade comercial, pois neste último caso a contraordenação tem de ser imputada à pessoa coletiva (art. 7º, n.º 2, do DL n.º 433/82)».

No mesmo sentido se pronuncia Augusto Silva Dias [15], ao referir que «(…) no âmbito do art. 11.º, tal como, de resto, em todo o Direito Penal, rege o principio da responsabilidade cumulativa ou concorrente, segundo o qual "a responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes …" (art. 11.º, n.º 7). Já no domínio das contraordenações apenas as pessoas coletivas respondem pelas infrações cometidas pelos seus órgãos. É assim no RGCO por via omissiva, isto é, por falta de disposição que consagre aquela forma de responsabilidade e no RGIT por via afirmativa, estabelecendo o art. 7.º, n.º 4, em nítido contraste com o n.º 3, desenhado para a responsabilidade criminal, que "a responsabilidade contraordenacional das entidades referidas no n.º 1 exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes". Por detrás desta opção terão estado razões de ordem pragmática pois a determinação dos agentes individuais das contraordenações seria complexa e teria custos excessivos para a Administração Tributária».

Pelo exposto,

Posto isto, no caso dos autos, constata-se que, em face da matéria provada, o facto em que se traduz a prática da contraordenação - ocupação com um horto e um edifício prefabricado para exposição e venda de plantas ornamentais, sem autorização administrativa, de um terreno inserido em área classificada de reserva agrícola nacional - foi levado a cabo pela própria sociedade de que o arguido é legal representante.

Por conseguinte, de acordo com o entendimento que perfilhamos, a responsabilidade por essa contraordenação recai exclusivamente sobre a referida sociedade, a qual já foi condenada, como resulta dos documentos juntos a fls. 68 e ss., e não também sobre o arguido, enquanto pessoa singular e legal representante daquela pessoa coletiva, impondo-se, pois, a sua absolvição.
Procede, assim, o recurso.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, P. V., e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, absolvendo-o da contraordenação por que foi condenado.

Sem custas, atenta a procedência do recurso (arts. 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal, ex vi do art. 74º, n.º 4, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, art. 93º, n.º 3, deste último diploma).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 02 de julho de 2018

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)


[1]- Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a formatação e a ortografia utilizadas, que são da responsabilidade do relator.
[2]- Cf. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
[3]- Proferido no processo n.º 783/17.9BESNT e disponível em http://www.dgsi.pt.
[4]- Proferido no processo n.º 060/17, disponível em http://www.dgsi.pt.
[5]- Nomeadamente nos acórdãos de 01-06-2017 (processo n.º 05/17), 28-09-2017 (processo n.º 024/17), 28-09-2017 (processo n.º 026/17), 20-12-2017 (processo n.º 28/17), 11-01-2018 (processo n.º 27/17), 11-01-2018 (processo n.º 045/17) e 08-02-2018 (processo n.º 66/17), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[6]- Vd. Germano Marques da Silva, Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e representantes, Verbo, 2009, pág. 161.
[7]- Vd. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 303.
[8]- Proferido no processo n.º 459/05.0GAFLG, disponível em http://www.dgsi.pt.
[9]- Ob. cit., págs. 174-196.
[10]- In Direito Penal de Entes Coletivos, Coimbra Editora, 2008, págs. 108-113.
[11]- Proferido no processo n.º 2191/04-1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[12]- Proferido no processo n.º 174/15.6T8RMR.E1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[13]- Em sentido contrário, vd. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, 6ª edição, 2011, pág. 123.
[14]- Proferido no processo n.º 0008345, sumariado em em http://www.dgsi.pt.
[15]- In Direito das Contraordenações, Almedina, 2018, págs. 91-92.