Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6661/17.4T8VNF.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
LISTA DE CREDORES
ERRO MANIFESTO
ERRO SUBSTANCIAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A falta de impugnação da lista de credores não preclude o dever de o juiz sindicar a sua legalidade e o direito de qualquer interessado impugnar a qualificação e graduação dos créditos em recurso de apelação, contanto que se verifique a existência de um “erro manifesto” constante do n.º 3, do art. 130.º.

II- O “erro manifesto” a que alude este último preceito do CIRE, que abrange o erro formal e o erro substancial, tem de ser um erro existente na relação de créditos apresentada pelo administrador da insolvência, e de que o juiz se aperceba nomeadamente pela análise das reclamações de créditos, o qual não se confunde com eventuais causas de exclusão do crédito não alegadas e comprovadas nos autos.

III- Aliás, se o juiz estivesse confinado, na sua actuação, a exclusivos poderes de homologação, ficaria vedada às partes eventualmente prejudicadas a possibilidade de recorrerem da sentença homologatória por quaisquer outras razões que não estivessem relacionadas com a verificação de meros erros formais, o que não se compagina com os princípios basilares que subjazem ao direito insolvência.

IV- Mas, se se tratar de erro de natureza substancial, cuja rectificação implique ficarem afectados direitos das partes, os princípios do contraditório e da igualdade substancial das partes implicam a impossibilidade de imediata elaboração da sentença homologatória, uma vez que a alteração que, com o fim de rectificação desse erro, seja efectuada, origina que a lista de credores passe a ser distinta.

V - Nessa hipótese, deve o Juiz determinar a elaboração de nova lista de credores, rectificada nos termos que indique, pelo administrador de insolvência, abrindo-se novo prazo para impugnações.

VI - A falta de elaboração dessa nova lista constitui nulidade essencial.

VII - Enquanto a herança permanece indivisa o devedor é apenas aquele património autónomo, dotado de personalidade judiciária e, por isso, susceptível de ser parte, isto é, de demandar e de ser demandado.

VIII - Após a partilha, esse devedor desaparece, dando lugar a uma pluralidade de devedores, tantos quantos os herdeiros, cuja respectiva responsabilidade é determinada pela proporção da quota que lhes tenha cabido na herança.

IX - Do mesmo modo que, depois de efectuada a partilha deixa de fazer sentido aludir a bens da herança, uma vez que cada um desses bens entrou na esfera jurídica patrimonial do herdeiro a quem coube, perdendo qualquer ligação à herança que, enquanto património autónomo, deixou de ter existência jurídica.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

A Requerente V. S., solteira, residente na Rua …, veio propor a presente acção com processo especial para Acordo de Pagamento, previsto nos artigos 1.º, n.º 3, e 222.º-A a 222.º-I, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, tendo vindo juntar aos autos o acordo de pagamento, o qual foi publicado, tudo ao abrigo do disposto no artigo 222.º-F, n.º 2, do CIRE.

O senhor administrador apresentou a lista provisória a 13/11/2017, não tenho havido impugnação do crédito José nos cinco dias úteis seguintes.

A 6/10/2018, pela devedora foi alegado que o crédito do credor José advém da sua qualidade de herdeiro legitimário do seu falecido pai sendo a sua responsabilidade perante aquele credor de 1/3 de metade do montante de condenação, isto é o montante de 35.455,52 €, requerendo, assim, que, para efeitos de votação, fosse considerado o montante de 35.455,52 €, relativamente ao credor José.

Considerado o teor do requerimento apresentado foram elaborados dois mapas de votação:
- O primeiro para efeitos de votação de José de cordoo com a lista do artigo 17-D, do CIRE – montante de 212.733,10 €, em que houve 52,135% de votos emitidos desfavoráveis;
- O segundo para efeitos de votação de José de cordoo com o requerimento apresentado pelo devedor – montante de 35.455,52 €, em que houve 62,155% de votos emitidos favoráveis;

Por despacho proferido nos autos foi considerada extemporânea a impugnação do crédito reconhecido a José e, por decorrência, considerado não aprovado o plano de pagamento, e logo também não homologado o acordo de pagamentos apresentado nos autos.

Inconformado com tal decisão, apela a Autor, e, pugnando pela respectiva revogação, formula nas suas alegações as seguintes conclusões:

I. Nos presentes autos de Processo Especial para Acordo de Pagamento, o credor José reclamou a quantia de € 124 699,47 euros (cento e vinte e quatro mil euros e seiscentos e noventa e nove euros e quarenta e sete cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos contados sobre o mencionado crédito, calculados desde 8 de Outubro de 2003 (data do início da mora), à taxa de 4% ao ano.
II. Tal quantia, reclamada na sua totalidade, deriva de um contrato promessa de compra e venda. Contudo, o referido crédito integra a herança aberta por óbito do pai da devedora – J. R. que faleceu em 16 de Dezembro de 2005.
III. Em 06-03-2018, a Devedora deu conhecimento e arguiu excepção dilatória de conhecimento oficioso (artigos 6.º, 576.º, 577.º, 578.º e 278.º todos do Cód. Proc. Civil), com importância para a Devedora, sobre questão incidental, referente ao crédito reclamado por José que não deverá ser atendido na sua totalidade, mas, apenas será responsável pelas dívidas daquele na proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.
IV. Entendeu a douta sentença recorrida que, a lista provisória de créditos foi apresentada pelo senhor administrador provisório em 13- 11-2017, não sendo impugnada a lista provisória de créditos, foi automaticamente reconhecido, não podendo posteriormente, em 06-03- 2018 ser posto em questão, o que não pode ser considerada.
V. É justamente a decisão contida neste despacho que é impugnada, por via de recurso de apelação.
VI. O douto Tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas, cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigos 130.º e 608.º n.º 2 do Cód. Proc. Civil).
VII. A Devedora aqui recorrente invoca, entre outras, a nulidade da omissão de pronúncia que, decorre do facto de a decisão impugnada se não ter pronunciado sobre o requerimento apresentado em 06-03-2018, invocando excepção dilatória de conhecimento oficioso sobre o crédito do credor reclamante.
VIII. Isto porque, o Herdeiro só tem de pagar a dívida até ao limite do valor que herda. Pois não são solidárias, pois nada na lei impõe tal solidariedade – artigos 513.º e 2098.º do Cód. Civil.
IX. Mais, o reclamante e credor, José, sabe que a aqui recorrente tem razão. O credor, José intentou acção contra M. M., V. S. e A. R. - através do Processo 216/12.7TBVVD - Comarca de Braga - Braga - Inst. Central - 1ª Secção Cível - J2 – estes na qualidade de herdeiros de J. R., pedindo: Se declare o incumprimento definitivo e culposo dos promitentes vendedores; Se declare, em virtude desse incumprimento, a resolução do contrato; Se condene solidariamente os réus, por efeito do incumprimento verificado, a pagar ao autor a quantia; Se condene solidariamente os réus a indemnizar o autor pelo atraso no cumprimento da obrigação sobredita, prestação que corresponde aos juros que se vencerem desde a data da constituição em mora Outubro de 2003 até cumprimento integral da obrigação em falta.
X. Por sentença proferida em 02-01-2015 decidiu o Tribunal, julgar parcialmente procedente a acção e totalmente improcedente a reconvenção e, em consequência, considerando a extinção do contrato-promessa em apreço, por actuação imputável a ambas as Partes, “condenou a Ré M. M. e os restantes Réus (a aqui Devedora V. S.) e A. R., estes na qualidade de herdeiros do falecido J. R., a devolverem ao autor (aqui credor José) a quantia recebida por este último e pela primeira ré a título de sinal, ou, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde 08.10.2003 e até integral pagamento”. (cfr. cópia da sentença junta).
XI. Tanto mais que, da decisão proferida verifica-se não existir qualquer responsabilidade solidária entre os réus (a Devedora, mãe e irmão) na devolução ou restituição da totalidade da quantia recebida pelo falecido J. R..
XII. Atenta a decisão proferida, a mãe da Devedora é responsável pela devolução ao credor (José) de metade do montante da condenação (50%), correspondendo à sua própria responsabilidade enquanto outorgante do contrato promessa em causa e à meação dos bens do casal a que tem direito.
XIII. O restante valor (50%) do montante da condenação, corresponde à responsabilidade ou encargo do falecido J. R. e deverá ser restituída na proporção de 1/3 pela mãe da Devedora, 1/3 pela Devedora e 1/3 pelo irmão, no montante de 20.783,40 € por cada um, tendo em consideração a quota hereditária que a cada um pertence.
XIV. Pelo que, atendendo ao exposto, a Devedora/recorrente apenas é responsável pelo pagamento ao credor José da quantia de 20.783,40 €, acrescida de juros.
XV. A Devedora só deverá responder pela sua obrigação, ou seja, pelo pagamento da parte que lhe cabe na proporção das respectivas quotas hereditárias.
XVI. Não sendo lícito o credor vir aos presentes autos exigir de forma ilegal o pagamento integral da quantia que lhe deve ser restituída.
XVII. Em consonância com a natureza jurídica da herança indivisa, dispõe o artigo 2091.º do Cód. Civil que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, nomeadamente os direitos relativos ao reconhecimento ou não dos bens da herança.
XVIII. Notária e directora do Instituto dos Notários de Portugal, Sandra Brás diz: “as dívidas da pessoa que faleceu só serão pagas se os bens deixados forem suficientes e até ao limite do seu valor”, o que garante não terá que se responsabilizar por qualquer dívida herdada.
XIX. Se o montante da dívida ultrapassar o do património, não terá direito a nada. Isto acontece porque o valor dos encargos foi coberto pelo património disponível. A parte da dívida que não conseguir ser coberta não será uma preocupação sua pois ficará a fundo perdido.
XX. As obrigações dos herdeiros da herança partilhada perante os credores desta não são solidárias, pois nada na lei impõe tal solidariedade – artigos 513.º e 2098.º do Cód. Civil.
XXI. Por isso, não é ao credor permitido exigir a cada herdeiro mais do que a proporção da sua quota na herança, nem assiste ao herdeiro que porventura pague mais do que aquela proporção o direito de regresso contra os demais herdeiros – artigo 524.º do Cód. Civil.
XXII. Ao actuar como o fez o credor usou e litigou de má fé, reclamando um valor que sabe não ter direito, muito acima do que a Lei permite.
XXIII. Dispõe o artigo 334.º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
XXIV. O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a concreta aplicação de um preceito legal que, na normalidade das situações seria ajustada, numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante. “O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” – Ac. do STJ, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, 3, 117.
XXV. A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.
XXVI. Uma das vertentes em que se exprime tal actuação, manifesta-se, quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou – “venire contra factum proprium”.
XXVII. Refere a douta sentença recorrida que, publicada a Lista Provisória” fica precludida qualquer alteração. A “publicação da lista provisória”, de forma deliberadamente simplificada, pode dizer-se que, após a publicação a lista provisória, poderá ser impugnada no prazo de cinco dias úteis, convertendo-se em definitiva, caso o não seja, e sendo impugnada compete ao juiz decidir, em idêntico prazo - n.º 3 do art.º 222.º-D do CIRE.
XXVIII. A lista provisória foi publicada no portal Citius no dia 13.11.2017. O prazo para as impugnações terminou a 20.11.2017. E, findo o prazo para impugnações, os declarantes dispõem de um prazo de dois meses para concluir as negociações encetadas.
XXIX. Se, realmente, o administrador reconheceu o crédito reclamado e nenhum credor, tendo sido colocado em condições de o fazer, compareceu a exercer o seu direito de contradição ou impugnação, a ordem jurídica interpreta, legitimamente a atitude do credor como sinal inequívoco de que nada tem a opor à pretensão do credor reclamante e ao reconhecimento, pelo administrador do respectivo crédito.
XXX. Esta regra – o reconhecimento definitivo, por falta de impugnação, do crédito – sofre apenas um desvio: o de erro manifesto. Um tal erro pode referir-se a qualquer aspecto relevante tanto para a existência do crédito como para o seu valor ou a sua qualificação.
XXXI. Mas há de ser, por exigência terminante da lei – um erro manifesto. Deve, pois, tratar-se de um erro ostensivo, patente, crasso, evidente.
XXXII. Exceptua-se, nos termos gerais, o caso da impugnação diferida, i.e., aquela que pode ser apresentada depois do prazo da impugnação, admissível em três situações: quando o impugnante pretenda alegar factos supervenientes, i.e., factos ocorridos posteriormente ao termo do prazo fixado para a impugnação, ou facto anteriores de que o impugnante só teve conhecimento depois de findar esse prazo; quando a lei permita expressamente a apresentação posterior da impugnação; finalmente, quando o impugnante pretenda invocar factos de conhecimento oficioso, o que se justifica pela circunstância de que, se o tribunal pode, em qualquer momento, conhecer desses factos, então também o impugnante os pode alegar em qualquer fase da causa (artigos 608.º n.º 2, 2ª parte do Cód. Proc. Civil, ex-vi artigo 17.º do CIRE).
XXXIII. Verifica-se uma nulidade processual sempre que seja praticado um acto que não é permitido ou seja omitido um acto imposto ou uma formalidade essencial (artigo 195.º n.º 1 do Cód. Proc. Civil, aplicável por força do princípio tempus regit actum – artigo 129.º n.º 1 do mesmo Código).
XXXIV. Se ao Juiz é lícito o conhecimento oficioso de qualquer facto que se resolva num erro manifesto da lista de credores reconhecidos, então também o impugnante o pode alegar em qualquer fase da causa da insolvência.
XXXV. Recorde-se que a questão do quantum do crédito do credor reclamante – e o erro correspondente - foi levantada no contexto do processo especial para acordo de pagamento e este é, indubitavelmente, dominado por uma inquisitoriedade forte.
XXXVI. Do mesmo modo, se ao Juiz é lícito ordenar a produção das provas que tiver por necessárias ou convenientes para aferir da correcção do erro, formal ou substancial, da lista dos créditos, à parte há de ser reconhecido o direito de, com a alegação desse erro, produzir ou propor-se produzir as provas ordenadas para o convencimento da sua existência.
XXXVII. E, por erro manifesto, deve ter-se, seguramente, o erro na quantificação dos créditos, tornado patente a partir, designadamente, das provas produzidas pela Devedora com o requerimento no qual inculca o equívoco.
XXXVIII. Sendo isto exacto, segue-se, em boa lógica, que à Devedora era lícita, apesar da omissão definitiva de impugnação dos créditos, a alegação de qualquer facto, ainda que relativo à quantificação dos créditos reconhecidos, que inculcasse o erro nessa quantificação, e, bem assim, a junção da fundamentação destinada a demonstrá-lo.
XXXIX. A esta luz, a decisão impugnada ao concluir pela sua vinculação ao dever de proceder à correcção do erro manifesto da lista de créditos apresentada – com a finalidade de decidir o problema da recusa de homologação do acordo de pagamento suscitada pela Devedora, deve ter-se por exacta.
XL. Maneira que – e é esse o problema que constitui o ponto vivo do objecto do recurso – tudo está em saber se o fundamento último da recusa de homologação do plano em que assentou a decisão impugnada – a Devedora apenas é responsável pelas dívidas na proporção da quota que lhe tenha cabido na herança e não pelo crédito reclamado pelo credor José na sua totalidade – é ou não exacto.
XLI. E, para a apreciação do quórum deliberativo deve atender-se que a Devedora não terá de responder pela dívida na totalidade, mas só deverá responder pela sua obrigação.
XLII. O que levaria à aprovação do plano e sua homologação.
XLIII. O exercício do direito manifesta-se "in casu" desajustado, anormal, criando uma desproporção objectiva entre ter quórum para a aprovação do plano, e efeitos para a sua homologação.
XLIV. Ora, reforçando a ideia de que, o Abuso de Direito é certo que é uma excepção peremptória imprópria de conhecimento oficioso.
XLV. Numa palavra: só releva a violação que seja susceptível de influir no exame e na decisão da causa, que comprometa, irremediavelmente, o fim que a lei se propunha atingir; quando a ofensa da lei não tenha este efeito patológico, a violação é negligenciável ou desprezível, e o juiz fica autorizado a declarar irrelevante a nulidade correspondente.
XLVI. A douta sentença recorrida enferma de nulidade na parte em que decidiu da não aprovação e, simultaneamente, da recusa de homologação do plano da Devedora na medida em que, nos termos em que foi proferida, sem se ter pronunciado do incidente apresentado pela devedora em 06-03-2018,
XLVII. alegando excepções de conhecimento oficioso, para a apreciação do quórum deliberativo deve atender-se que a Devedora não terá de responder pela dívida na totalidade, mas só deverá responder pela sua obrigação, o que levaria à sua aprovação.
XLVIII. Deve, consequentemente, ser declarada nula a douta sentença recorrida na parte em que não homologou o plano e encerrou os presentes autos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 195.º do Cód. Proc. Civil, aplicável ex vi artigo 17.º do CIRE, por ter sido omitida uma formalidade que a lei prescreve - uma vez que, tal irregularidade pode influir no exame ou na decisão da causa.
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Os Apelados não apresentaram contra-alegações.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II – Delimitação do objecto do recurso.

Sendo certo que, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, podem ser enunciadas as seguintes questões a decidir:

- Apreciar da invocada nulidade da decisão recorrida por omissão de conhecimento, prevista no artigo 615, nº 1, al. d), do C.P.C..
- Analisar se o despacho recorrido enferma de nulidade;
- Analisar se se verifica a existência de abuso de direito;
- Analisar se a lista de credores reconhecidos enferma de “erro manifesto”.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

Além dos factos que constam do relatório que antecede, e com relevância para a decisão do recurso, consta da fundamentação de direito da decisão recorrida o que a seguir se transcreve:

(…)
Dispõe o artigo 222º-D, nº3 CIRE que a lista provisória de créditos é imediatamente apresentada na secretaria do tribunal e publicada no portal Citius, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias úteis e dispondo, em seguida, o juiz de idêntico prazo para decidir sobre as impugnações formuladas.
O nº4 do mesmo artigo dispõe que não sendo impugnada, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em lista definitiva.
No caso em apreço, o senhor administrador provisório apresentou a lista provisória a 13-11-2017. Nos cinco dias úteis seguintes o crédito reconhecido a José não foi impugnado. Pelo que foi automaticamente reconhecido, não podendo posteriormente a 6-3-2018 ser posto em questão. Tal impugnação é totalmente extemporânea, pelo que não pode ser considerada.
Pelo exposto, e tendo em conta que o plano de pagamentos não foi aprovado, conforme votação de fls 298, não homologo o acordo de pagamentos apresentado nos autos.
(…)

Fundamentação de direito.

Invoca o Recorrente a violação, por parte da decisão recorrida, do disposto no art. 615º, nº 1, al. d), do C.P.C., cuja nulidade abrange os casos nulidades da “omissão de conhecimento” e do “conhecimento indevido” (1).

O primeiro desses casos (2) consiste, assim, no facto de a decisão não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer, por força do disposto no art. 608º, nº 2 do C.P.C.. (3)

Daí que se possa afirmar que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não ter tido aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.

A segunda das referidas hipóteses, a prevista na alínea d) – a do conhecimento indevido ou excesso de pronúncia –, verifica-se em todos aqueles casos em que sejam conhecidas e apreciadas questões que na sentença não podiam ser tratadas ou julgadas, por não terem sido colocadas em causa por qualquer das partes e não serem de conhecimento oficioso.

Este tipo de nulidade, tal como a omissão de pronúncia, está também directamente relacionada com o comando legal fixado no nº 2, do artº 608º, do CPC, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

Esta norma suscita o problema de se saber qual o sentido exacto da expressão «questões» nele empregue, sendo elucidativos os ensinamentos de Alberto dos Reis, o qual refere que “(…) assim como a acção se identifica pelos seus elementos essenciais (sujeitos, pedido e causa de pedir) (…) também as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado”. (4)

E, assim sendo, óbvio resulta que o conceito (questões) terá ser considerado num sentido amplo, ou seja, englobando tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que sobre elas as partes hajam suscitado.

Daí que a doutrina e a jurisprudência distinguem, por um lado, “questões” e, por outro, “razões” ou “argumentos” e, concluem que só a falta de apreciação das primeiras – das "questões” – integra a nulidade prevista no citado normativo, mas já não a mera falta de discussão das «razões» ou «argumentos» invocados para concluir sobre as questões. (5)

De tudo decorre, assim, que não basta à regularidade da decisão a fundamentação que contém, revelando-se ainda necessário que trate e aprecie o divergência jurídica carreada para autos pelas partes, podendo assim considerar-se que esta causa de nulidade da decisão complementa a da nulidade por falta de fundamentação, pois que, o contraditório proporcionado às partes com relação aos aspectos jurídicos da causa não pode deixar de encontrar a devida expressão e resposta na decisão. (6)

Destarte e, sintetizando, estando defeso ao Juiz ocupar-se de questões não suscitadas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso, a nulidade da decisão por pronúncia indevida (conhecimento indevido), constituindo hipótese inversa à da omissão de pronúncia, apenas ocorre nos casos em que na decisão se conhece questão de que não se podia tomar conhecimento.

Revertendo agora à análise da presente situação, como fundamento da nulidade que invoca alega o Recorrente que a invocada nulidade de omissão de pronúncia que, decorre do facto de a decisão impugnada se não ter pronunciado sobre o requerimento apresentado em 06-03-2018, invocando excepção dilatória de conhecimento oficioso sobre o crédito do credor reclamante, isto porque, o herdeiro só tem de pagar a dívida até ao limite do valor que herda, uma vez que não são solidárias, pois nada na lei impõe tal solidariedade – artigos 513.º e 2098.º do Cód. Civil.

Ora, analisado o despacho recorrido dele consta expressamente que “no caso em apreço, o senhor administrador provisório apresentou a lista provisória a 13-11-2017. Nos cinco dias úteis seguintes o crédito reconhecido a José não foi impugnado. Pelo que foi automaticamente reconhecido, não podendo posteriormente a 6-3-2018 ser posto em questão. Tal impugnação é totalmente extemporânea, pelo que não pode ser considerada.

E assim sendo, e sem curar de saber do acerto ou não desta decisão, do que não há dúvidas é que ao considerar extemporâneo o requerimento em apreço justificado está o facto de não ter sido conhecido o seu mérito, e logo de modo algum se pode falar na existência de situação de “non liquet” ou qualquer omissão de pronúncia sobre o teor do requerimento.

Destarte, não se vislumbra que o despacho recorrida padeça do imputado vício (art. 615º, nº 1, d) do C.P.C.), já que nele foi tomada posição sobre o teor do requerimento formulado pela Recorrente.

Improcede, assim, nesta parte a presente apelação.

No que concerne às demais questões suscitadas, salvo o muito e devido respeito, entendendo-se, como se entende que há inter-relacionamento entre todas as questões suscitadas, efectuar-se o tratamento conjunto de todas ela, pois apenas se houver um exercício abusivo de um direito e o despacho que o conheceu padecer de vício que ainda seja possível conhecer é que poderá ter procedência a pretensão da Autora, não havendo a menor possibilidade de isso se vir a verídica se se entender não ser já possível conhecer dos vicio que são invocados.

Assim sendo, e por essa razão não se autonomizará a resolução de qualquer dada questões suscitadas, procedendo-se antes ao seu tratamento conjunto, sem omissão do tratamento contextualizado de cada uma delas numa sequência meramente lógica e que não respeitará formalmente a ordem por que foram alegadas.

Passaremos então a analisar da eventual existência do direito invocado pela Recorrente em simultâneo com a questão de saber se ainda estamos num momento adequado à sua alegação, ou se esse direito já se encontra percutido, como está subjacente ao despacho recorrido.

Como fundamento substancial de sua pretensão de ver reduzido o valor do crédito reclamado alega a Recorrente que o Herdeiro só tem de pagar a dívida até ao limite do valor que herda, uma vez que não são solidárias, pois nada na lei impõe tal solidariedade – artigos 513.º e 2098.º do Cód. Civil.

Ora, na situação vertente, credor, José intentou acção contra M. M., V. S. e A. R. - através do Processo 216/12.7TBVVD - Comarca de Braga - Braga - Inst. Central - 1ª Secção Cível - J2 – estes na qualidade de herdeiros de J. R., pedindo:

- Se declare o incumprimento definitivo e culposo dos promitentes vendedores;
- Se declare, em virtude desse incumprimento, a resolução do contrato;
- Se condene solidariamente os réus, por efeito do incumprimento verificado, a pagar ao autor a quantia;
- Se condene solidariamente os réus a indemnizar o autor pelo atraso no cumprimento da obrigação sobredita, prestação que corresponde aos juros que se vencerem desde a data da constituição em mora Outubro de 2003 até cumprimento integral da obrigação em falta.

Sucede que, por sentença proferida em 02-01-2015 decidiu o Tribunal, julgar parcialmente procedente a acção e totalmente improcedente a reconvenção e, em consequência, considerando a extinção do contrato-promessa em apreço, por actuação imputável a ambas as Partes, “condenou a Ré M. M. e os restantes Réus (a aqui Devedora V. S.) e A. R., estes na qualidade de herdeiros do falecido J. R., a devolverem ao autor (aqui credor José) a quantia recebida por este último e pela primeira ré a título de sinal, ou, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde 08.10.2003 e até integral pagamento”.

Mais alega que, da decisão proferida verifica-se não existir qualquer responsabilidade solidária entre os réus (a Devedora, mãe e irmão) na devolução ou restituição da totalidade da quantia recebida pelo falecido J. R., pelo que, atenta tal decisão proferida, a mãe da Devedora é responsável pela devolução ao credor (José) de metade do montante da condenação (50%), correspondendo à sua própria responsabilidade enquanto outorgante do contrato promessa em causa e à meação dos bens do casal a que tem direito.

O restante valor (50%) do montante da condenação, corresponde à responsabilidade ou encargo do falecido J. R. e deverá ser restituída na proporção de 1/3 pela mãe da Devedora, 1/3 pela Devedora e 1/3 pelo irmão, no montante de 20.783,40 € por cada um, tendo em consideração a quota hereditária que a cada um pertence.

E assim sendo, atendendo ao exposto, a Devedora/recorrente apenas é responsável pelo pagamento ao credor José da quantia de 20.783,40 €, acrescida de juros, pelo que a devedora só deverá responder pela sua obrigação, ou seja, pelo pagamento da parte que lhe cabe na proporção das respectivas quotas hereditárias, não sendo lícito o credor vir aos presentes autos exigir de forma ilegal o pagamento integral da quantia que lhe deve ser restituída.

Aqui chegados, e previamente à análise das razões substanciais de sua pretensão, sob pena de eventual inutilidade dessa mesma análise substancial, cumprirá esclarecer se ainda está em tempo de o fazer, pois, como consta do despacho recorrido, foi apresentada a lista provisória de créditos e publicada no portal Citius, sendo que, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias úteis, não o seno, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em lista definitiva.
Ora, como é consabido, apresentada a lista de credores reconhecidos por parte do administrador da insolvência (art. 129º do CIRE), estatui o nº 1 do artigo 130.º do mesmo diploma que, nos dez dias seguintes ao termo do prazo fixado no nº 1, do artigo anterior, (ou seja, o prazo para apresentação da relação de credores pelo Sr. Administrador da Insolvência), pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.

Dispõe o nº 3 da mesma disposição que «se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista».

Como é consabido, este específico segmento do preceito - salvo o caso de erro manifesto – tem sido objecto de considerável controvérsia.

Assim:

- Enquanto para alguns, tal conceito deve interpretar-se em termos amplos, «não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite tendo em conta que o erro tanto pode respeitar à natureza e montante do crédito como às suas qualidades, em qualquer caso cabendo ao Juiz o dever de evitar violação da lei substantiva; mas isto igualmente sem que possa deixar de permitir aos interessados o respectivo exercício do contraditório». (7)
- Para outros, «é extremamente limitado o poder do juiz controlar as listas elaboradas pelo administrador da insolvência, que se limita à correcção de erros evidentes da própria lista, não lhe sendo possível averiguar da veracidade e legalidade da lista perante as reclamações apresentadas, as quais nem sequer lhe são comunicadas». (8)

Destarte, ainda que se entenda dever interpretar em termos amplos o conceito de “erro manifesto”, o que parece não haver dúvidas é que tem de tratar-se de «um erro manifesto existente na relação de créditos apresentada pelo Sr. Administrador da insolvência, e de que o juiz se aperceba nomeadamente pela análise das reclamações de créditos», (9) o qual não se confunde com eventuais causas de exclusão do crédito não alegadas e comprovadas nos autos.

Pode, tal erro, abranger razões ligadas à substância dos créditos em apreço, o que poderá ser objecto de censura por parte do Tribunal, mesmo que os aludidos créditos não tenham sido objecto de qualquer impugnação, pois que, a inexistência de impugnações não constitui garantia significativa da correcção das listas elaboradas pelo administrador da insolvência, pese embora os credores não fiquem, apesar dessa inexistência, com o direito de confiar na estabilidade da ilegalidade substancial resultante de alguma eventual incorrecção, mesmo que os possa beneficiar, sendo que, também não podem ficar impedidos de defenderem os seus direitos contra alguma alteração inesperada.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 17/04/2018, “Temos como bom o entendimento segundo o qual se deve interpretar em termos amplos o conceito de erro manifesto constante da norma do n.º 3 do artigo 130º, não o limitando ao simples lapso material ou ao erro formal decorrente de qualquer incongruência que a lista de créditos apresente; constituirá também erro manifesto o que assumir natureza substancial, ou seja, aquele que respeitar à indevida inclusão/exclusão do crédito nessa lista, ao seu montante ou às suas qualidades”.

Mesmo que não haja impugnação por banda de qualquer interessado, o juiz pode e deve filtrar a menção do crédito constante da lista apresentada pelo administrador da insolvência, apreciando as suas características, procedendo à sua qualificação jurídica e aferindo se as garantias referidas pelo administrador se mostram conformes com as regras de Direito aplicável.

É este, de facto, o entendimento que predomina na doutrina e na jurisprudência (10) e que rebate a ideia de um efeito cominatório pleno decorrente da falta de impugnação da lista apresentada pelo administrador da insolvência, impondo ao juiz, nesse caso, uma decisão meramente homologatória. Não é a inexistência de impugnações da lista que dita a inexistência de erros na sua elaboração.

Sobre este tema, referem Carvalho Fernandes e João Labareda (11):

“A inexistência de impugnações não constitui garantia significativa da correcção das listas elaboradas pelo administrador da insolvência. Este reparo deve ser entendido em função dos curtos prazos concedidos pela lei, quer ao administrador da insolvência, para elaborar as listas, quer aos interessados para as impugnar. Nota tanto mais relevante quanto é certo serem, na grande maioria dos casos, em número significativo os créditos reclamados e volumosos os documentos que instruem as reclamações.
Por outro lado, impressiona, no que respeita às garantias, que a sua constituição esteja normalmente dependente do preenchimento de requisitos formais ad substantiam, cuja falta seja, afinal de contas, puramente ignorada ou desconsiderada por mero efeito da falta de impugnação.

Por isso, defendemos que deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite.”

Aponta no mesmo sentido Mariana França Gouveia (12):
“No lugar paralelo da sentença de homologação, desistência ou transacção (artigo 300.º do CPC), o juiz examina o objecto e a qualidade das pessoas para apurar a validade do negócio. E a sentença que profere é uma sentença de mérito, produzindo caso julgado material. Não deve, pois, interpretar-se a norma do artigo 130º, n.º 3 como uma imposição ao juiz, até porque ele é o autor da sentença. Deve antes entender-se a regra como uma possibilidade de simplificação processual à sua disposição.”.

Esta possibilidade – diríamos, mesmo, obrigação – de o juiz não se limitar a homologar a lista de créditos apresentada, encontra a sua razão de ser nos poderes de fiscalização que lhe são cometidos pelo artigo 58º do CIRE, nos quais se inclui o de averiguar se o administrador da insolvência elaborou a relação de créditos com observância de todas as determinações legais, sejam elas de ordem formal ou substancial. É que, competindo ao juiz proferir a sentença de verificação e graduação dos créditos, mormente em função das garantias invocáveis, não pode ele deixar de exercer o indispensável controlo da legalidade.

Aliás, se o juiz estivesse confinado, na sua actuação, a exclusivos poderes de homologação, ficaria vedada às partes eventualmente prejudicadas a possibilidade de recorrerem da sentença homologatória por quaisquer outras razões que não estivessem relacionadas com a verificação de meros erros formais, o que não se compagina com os princípios basilares que subjazem ao direito insolvência. (13)

Em consequência, o conceito de erro manifesto, como defendem Carvalho Fernandes e João Labareda, tem de ser interpretado em termos amplos, não podendo o Juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar nem dos documentos e demais elementos de que disponha, para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite, tendo em conta que o erro tanto pode respeitar à natureza e montante do crédito como às suas qualidades, em qualquer caso cabendo ao Juiz o dever de evitar violação da lei substantiva.

Ora, isto considerado, dúvidas não restam de que a verificar-se, a situação exposta pela Recorrente constitui ou integra um erro manifesto, impondo-se, assim, o seu conhecimento.

Assim, e pelos fundamentos supra expostos, entende a Recorrente, em decorrência da aludida decisão, a sua mãe é devedora e responsável pela devolução ao credor (José) de metade do montante da condenação (50%), correspondendo à sua própria responsabilidade enquanto outorgante do contrato promessa em causa e à meação dos bens do casal a que tem direito, sendo que, do restante valor (50%) do montante da condenação, corresponde à responsabilidade ou encargo do falecido J. R. e deverá ser restituída na proporção de 1/3 pela mãe da Devedora, 1/3 pela Devedora e 1/3 pelo irmão, no montante de 20.783,40 € por cada um, tendo em consideração a quota hereditária que a cada um pertence.

Assim, e concluído, em seu entender a Devedora/recorrente apenas é responsável pelo pagamento ao credor José da quantia de 20.783,40, já inexiste responsabilidade solidária entre os herdeiros.

Vejamos então se lhe assiste razão.

Como é sabido, que a morte de uma pessoa física produz diversas consequências jurídicas que carecem de resolução, mormente se, como sucede in casu, no momento do decesso o património do de cuius for composto também por dívidas, tornando-se mister nessa situação acautelar os direitos dos respectivos credores – o que tem lugar através do fenómeno sucessório.

Com efeito, em consonância com o que se dispõe no art. 2024º do Código Civil (diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem), através da sucessão, as situações jurídicas patrimoniais (activas e passivas) que compunham a esfera jurídica do falecido no momento do seu óbito serão transmitidas aos seus sucessores, caso estes aceitem a herança.

O fenómeno sucessório assume, pois, uma função simultaneamente individual e colectiva – ao proteger a propriedade privada, ampara também os direitos dos credores do falecido oferecendo-lhes, tanto quanto possível, a mesma garantia patrimonial que tinham anteriormente, sendo que este objectivo, tal como enfatiza OLIVEIRA ASCENSÃO (14), é alcançado pelo “ingresso do herdeiro na posição jurídica do de cuius”, sendo a herança constituída pelas situações jurídicas de natureza patrimonial que se encontravam na titularidade do falecido no momento da morte e não devam extinguir-se por efeito desta (cfr. arts. 2024º e 2025º).

A herança identifica-se, por conseguinte, com a noção de património global (rectius, de património colectivo), já que entre nós se admite a sucessibilidade não apenas dos bens, mas das situações jurídicas patrimoniais activas e passivas que compunham a esfera patrimonial do falecido aquando da sua morte.

No concernente às dívidas que compunham o património do de cuius aquando do seu decesso, enquanto situações jurídicas passivas, subsistem para além do seu falecimento, sendo normalmente integradas no objecto da herança.

Na verdade, tal como emerge do art. 2068º, são encargos da herança aqueles pelos quais a herança responde, sendo que entre os encargos aí previstos conta-se, no que ao caso importa, o pagamento das dívidas do autor da sucessão.

Todavia, o facto de nesse normativo se afirmar que “a herança responde” não significa que se atribua à herança a responsabilidade pelos seus encargos antes se devendo entender por herança os bens que fazem parte da mesma (cfr. arts. 2071º e 2097º).

A herança não pode ser responsável pelos seus próprios encargos na medida em que não é uma pessoa jurídica, mas uma massa de situações jurídicas activas e passivas. É certo que a herança (enquanto estiver jacente) goza de personalidade judiciária (cfr. art. 12º, al. a) do Cód. Processo Civil) mas desse facto não decorre a personalidade jurídica; Pelo contrário, daí se infere antes a sua natureza de património autónomo, destituído de personalidade jurídica.

Destarte, afigura-se-nos, pois, não se revelar correcto falar-se de responsabilidade da herança já que o facto de se empregar a expressão “a herança responde” deve ser entendido como a intenção de fazer limitar a responsabilidade pelos encargos da herança aos bens herdados, ou seja, a de fazer da herança, conforme tem sido generalizadamente defendido, um património autónomo de afectação especial – ou seja, um “núcleo patrimonial que só responde e responde só ele por certas dívidas” (15).

Há, por conseguinte, que articular o art. 2068º com outras disposições legais (v.g. art. 2071º) para determinar quem são os verdadeiros responsáveis pelos encargos da herança já que a herança em si será apenas o limite dessa responsabilidade.

Ora, o nosso regime jurídico (cfr. art. 2071º) estabelece, como regra, o princípio da responsabilidade limitada do herdeiro pelos encargos da herança, quer tenha havido aceitação a benefício de inventário, quer a herança tenha sido aceite pura e simplesmente (cfr. art. 2052º), cingindo-se a sua responsabilidade às forças da herança, isto é, é sempre uma responsabilidade intra vires hereditatis, corroborando assim a afirmação acima feita de que estamos perante um património autónomo na medida em que, em princípio, só os bens da herança é que respondem pelos encargos hereditários.

No que tange propriamente à responsabilidade dos herdeiros, há que distinguir consoante a herança se encontre indivisa, ou seja, já aceite, mas não estando ainda determinada a titularidade das concretas situações jurídicas que a compõem ou, pelo contrário, já esteja partilhada, através do preenchimento da quota de cada herdeiro.

No primeiro caso, diz-nos o art. 2097º que os bens da herança respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos e, na medida em que estamos perante um património colectivo, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (art. 2091º, nº 1).

Após a partilha da herança, como salientam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (16), «o panorama jurídico da responsabilidade pelos encargos dela (nomeadamente quanto aos antigos débitos do de cuius) sofre uma alteração substancial, embora sem nunca esquecer a raiz da proveniência dessas dívidas. Enquanto a herança se manteve no estado de indivisão, porque nenhum dos herdeiros tinha ainda direitos sobre bens certos e determinados, todos os bens hereditários respondiam colectivamente; a partir da divisão da herança, passa a responder cada herdeiro, individualmente, pela satisfação de cada dívida da herança (ou de cada encargo dela), mas apenas em proporção da quota que lhe coube na partilha (dentro, por conseguinte das forças dos bens que especificamente recebeu da herança, nos termos resultantes do disposto no artº 2071º)».

Daí que, após a partilha, carece de sentido aludir a bens da herança, pois cada um desses bens entrou na esfera jurídica patrimonial do herdeiro a quem coube, perdendo qualquer ligação à herança que, enquanto património autónomo, deixou de ter existência jurídica.

É assim lícito concluir que, consumada a partilha e integrados os bens herdados nos patrimónios de cada um dos herdeiros a quem foram adjudicados, deixa de se poder falar em bens da herança, deixando outrossim de haver solidariedade entre os herdeiros para com os credores daquela, o que significa, pois, que os credores da herança apenas passam a ter a faculdade de exigir dos herdeiros a quota-parte que a cada um deles tenha cabido (cfr. art. 2098º, nº 1).

Na verdade, e como a propósito do tema se refere, no acórdão da Relação de Coimbra de 12/09/2006, “Estatui o artº 2097º do Código Civil, que os bens da herança indivisa respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos [São encargos da herança, de acordo com o artº 2068º, as despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, os encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, o pagamento das dívidas do falecido e o cumprimento dos legados.].

Preceitua, por sua vez, o nº 1 do artº 2098º que, efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.

A lei é explícita ao estabelecer regimes diferentes para a liquidação dos encargos da herança conforme esta se mantenha ainda indivisa ou tenha sido já partilhada[ É o seguinte o sumário do acórdão da Relação do Porto de 04/11/1977, in BMJ, nº 273, pág. 322:

Se os herdeiros já se encontram determinados (embora a herança não esteja partilhada), aqueles são os representantes da herança, porque tal qualidade é-lhes conferida pelo artigo 2091.° do Código Civil. E daí que possam ser demandados par dívidas do de cujus, sendo, pois, partes legítimas em acção destinada à respectiva cobrança. Outro problema distinto é o de saber como, determinados os herdeiros, se devem liquidar os respectivos encargos. E aqui tem de se distinguir dois momentos: antes da partilha, os bens respondem colectivamente pela sua satisfação (artigo 2097.°); depois da partilha, cada herdeiro responde só pelos encargos na proporção da quota que lhe couber na herança, podendo até os herdeiros deliberar sobre a forma de efectuar esse pagamento (artigo 2 098.°)”.

E essa diferença de regimes compreende-se perfeitamente: a herança indivisa constitui um património autónomo ao qual a própria a lei [artº 6º, al. a) do CPC] atribui personalidade judiciária, enquanto a herança já partilhada deixou de existir como património autónomo, dissolveu-se ou diluiu-se nos patrimónios dos herdeiros, passando cada um dos bens que a integraram a confundir-se com os demais bens do herdeiro a quem foi adjudicado.

Após a partilha deixa de fazer sentido aludir a bens da herança, pois cada um desses bens entrou na esfera jurídica patrimonial do herdeiro a quem coube, perdendo qualquer ligação à herança que, enquanto património autónomo, deixou de ter existência jurídica.

Relativamente aos credores da herança, enquanto esta permanece indivisa o devedor é apenas um, ou seja, é aquele património autónomo, dotado de personalidade judiciária e, por isso, susceptível de ser parte, isto é, de demandar e ser demandado [Embora tenha de ser representado, umas vezes pelo cabeça-de-casal, outras pelo conjunto dos herdeiros (artºs 2079º e seguintes, com relevo para o artº 2091º).]. Mas, após a partilha, esse devedor desaparece, dando lugar a uma pluralidade de devedores, tantos quantos os herdeiros. Só que a medida da responsabilidade destes determina-se pela proporção da quota que lhes tenha cabido na herança e não por qualquer outro critério, designadamente, pelo valor dos bens que lhes tenham sido adjudicados.

Com efeito, as quotas que a cada um dos herdeiros caibam na partilha não têm de ser necessariamente preenchidas com bens, podendo, por exemplo, ser adjudicados todos os bens a um único herdeiro, pagando este as tornas devidas aos demais. Nesse caso, é óbvio que o herdeiro a quem foram adjudicados todos os bens não fica – a não ser que isso tenha sido acordado, como permite o artº 2098º, nºs 2 e 3 – responsável pela totalidade dos encargos, antes respondendo apenas na proporção da sua quota na herança. Mas com todo o seu património e não necessariamente e só com os bens herdados. E os restantes herdeiros, que não receberam qualquer bem da herança, não ficam, na proporção das suas quotas, desonerados do pagamento dos respectivos encargos, por eles respondendo, na dita proporção, com todo o seu património.

As obrigações dos herdeiros da herança partilhada perante os credores não são solidárias, pois nada na lei impõe tal solidariedade (artºs 513º e 2098º). Por isso, não é ao credor permitido exigir a cada herdeiro mais do que a proporção da sua quota na herança, nem assiste ao herdeiro que porventura pague mais do que aquela proporção direito de regresso contra os demais herdeiros (artº 524º). (17)

Aqui chegados, com uma questão de acentuada relevância nos deparamos desde logo, pelo facto de o processo não fornecer elemento para um cabal esclarecimento da questão de saber se ainda estamos perante uma herança ilíquida e indivisa ou se já terá sido efectuada a partilha.

E assim sendo, previamente à questão que é colocada por via recursória e que consiste na de saber se a apelante pode ver excluída a sua responsabilidade pelo pagamento da totalidade da dívida estando apenas reduzida à parte correspondente à sua quota parte na herança de seu falecido pai, terá de colocar-se uma outra que consiste na sua eventual ilegitimidade para, por si só, responder pela totalidade ou apenas por parte de uma dívida que, na inexistência de partilha efectuada, será da herança e ainda não do herdeiro e, portanto e consequentemente, uma obrigação que sobre a primeira impende, não podendo ser reclamado do herdeiro., mesmo que só parcialmente.

Na verdade, e reforçando o que foi dito, dos credores da herança, enquanto esta permanece indivisa o devedor é apenas um, ou seja, é aquele património autónomo, dotado de personalidade judiciária e, por isso, susceptível de ser parte, isto é, de demandar e de ser demandado.

E apenas após a partilha, esse devedor desaparece, dando lugar a uma pluralidade de devedores, tantos quantos os herdeiros, cuja medida da respectiva responsabilidade se determina pela proporção da quota que lhes tenha cabido na herança e não por qualquer outro critério, designadamente pelo valor dos bens que lhes tenham sido adjudicados.

Assim sendo, após a realização de uma partilha deixa de fazer sentido aludir a bens da herança, pois cada um desses bens entrou na esfera jurídica patrimonial do herdeiro a quem coube, perdendo qualquer ligação à herança que, enquanto património autónomo, deixou de ter existência jurídica.

E à luz de tudo exposto é por demais evidente que, de duas uma:

- Ou a partilha da herança já foi efectuada e, tal como alega a Recorrente, enquanto Devedora apenas é responsável pelo pagamento ao credor José pelo valor da sua quota parte na dívida global do autor da herança;
- Ou, a não ter ainda sido realizada a partilha, estaremos perante uma herança ilíquida e indivisa, e então este credor carece de legitimidade para a reclamação da dívida perante o herdeiro, por ela ser, como se deixou dito, da responsabilidade da própria herança indivisa enquanto património autónomo com personalidade judiciária, e não do herdeiro.

Deste modo, ou sobre a Recorrente não recai a responsabilidade pela divida reclamada, ou, na melhor das hipóteses, ou seja, a de ter sido efectuada a partilha, sempre a quota-parte da Apelante se cifraria em 20.783,40€ 2.334,09, sendo esse o valor que constituiria a medida da sua responsabilidade para com o credor da herança, sendo esse o valor que deveria constar das listas provisória e definitiva de créditos.

Todavia, e, não obstante o decidido, não se nos afigura que possa falar-se da existência de abuso de direito.

Na verdade, pese embora se admitir que o Reclamante possa não ter qualquer direito ou, pelo menos, o valor reclamado poder ser manifestamente superior ao valor da responsabilidade da Devedora/Recorrente, parece-nos evidente que se não pode falar da existência de uma situação de abuso de direito.

Estando, no abuso de direito, em jogo, um princípio de ordem e interesse público, não depende da invocação das partes saber se, quem exercita o direito que se arroga, age motivado e sob condicionantes que tornem o seu exercício ilegítimo (18), e, como defendia Manuel de Andrade, ainda antes do actual C.C., verifica-se a existência de abuso de direito quando este era exercido “em termos clamorosamente ofensivos da justiça“, mostrando-se “ gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na colectividade“. (19)

No actual C.C. o Artº. 334º prescreve “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito“, sendo que, adoptou-se nesse preceito do C.C. a concepção objectiva de abuso de direito, uma vez que “não é necessária a consciência de se excederem com o seu exercício os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, basta que se excedam esses limites“. (20)

Como sustenta Orlando de Carvalho, o que importa averiguar é se o uso do direito subjectivo obedeceu ou não aos limites de autodeterminação, poder esse que existe, tão somente, para se prosseguirem interesses e não para se negarem interesses, sejam eles próprios ou alheios, e o abuso de direito “é justamente um abuso porque se utiliza o direito subjectivo para fora do poder de usar dele“ (21), havendo abuso de direito, segundo o critério proposto por Coutinho de Abreu “quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumental e na negação de interesses sensíveis de outrem“. (22)

O princípio do “venire contra factum proprium”, como aplicação do princípio da confiança do tráfico jurídico, faz com que não deva ser desiludida a outra parte quando esta confia em declarações ou no comportamento do titular do direi­to, pois, como afirma Menezes Cordeiro, “no essencial, a concretização da con­fiança, ela própria concretização de um princípio mais vasto, prevê, (...) a actuação de um facto gerador de confiança, em termos que concitem interesse por parte da ordem jurídica; a adesão do confiante a esse facto; o assentar, por parte dele, de aspectos im­portantes da sua actividade posterior sobre a confiança gerada - um determinado inves­timento de con­fiança - de tal forma que a supressão do facto provoque uma iniquidade sem remédio. O factum proprium daria o critério de imputação da confiança gerada e das suas consequên­cias”. (23)

Além disso, “normalmente, não se exige culpa por parte do res­ponsável pela criação da situação de confiança. Mas exige-se que ele estivesse em con­dições de poder agir doutra maneira, designadamente, que tivesse podido conhecer e impedir a aparência criada, usando o cuidado normal, que devesse e pudesse conhecer que, ao adoptar a conduta que cria a confiança, se priva para o futuro de parte da sua liberdade de decisão pessoal”. (24)

No que respeita aos pressupostos salienta Baptista Machado que “a con­fiança digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura”.
“Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação de confiança, é preciso que ela directa ou indirectamente revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro”. (25)

Logo, o conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica, apenas surgem, quando alguém, estando de boa fé, com base na situação de con­fiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida, de onde lhe resultarão danos, se a sua legítima confiança vier a ser frustrada.

Ora, aplicando as noções sinteticamente expostas ao caso em apreço, temos que, o valor que legitimamente por si poderia ser reclamado envolve o conhecimento de algumas questões de direito, designadamente, do regime da responsabilidade por dívidas de heranças , que não é seguro que o Reclamante tivesse conhecimento, tendo, por isso de admitir-se que possa ter efectuado a reclamação de um crédito por um valor a que não tinha substancialmente direito sem que tivesse essa consciência, pois, no fundo, ele reclamou, efectivamente, o valor global de uma dívida existente e da responsabilidade da mãe da Autor e dos demais herdeiros do seu falecido pai.

E assim sendo, por não haver uma certeza ou sequer convicção razoável de que o Reclamante tenha actuado com a consciência de que estava a exercer um direito excedendo os limites impostos pela boa fé, ou sequer que tenha excedido esses limites, ou seja, que estivesse a exercer um direito que sabia não ter em manifesto prejuízo dos interesses de outrem, somos de entender não ter sido demonstrado o abuso de direito.

No entanto, constatada a existência de um erro “substancial manifesto existente na relação de créditos apresentada pelo Sr. administrador da insolvência, e de que o Juiz se aperceba nomeadamente pela análise das reclamações de créditos, deve este determinar a elaboração de nova lista, rectificada com base nos elementos que indique, mas sem poder então homologar de imediato a lista de credores nem graduar também de imediato os créditos. Esta homologação e subsequente verificação e graduação de créditos só pode ter lugar de imediato inexistindo tal erro substancial manifesto, pelo que, perante tal erro, há em primeiro lugar que proceder à respectiva rectificação, ou substituição da lista por outra rectificada, e, de seguida, dar às partes a hipótese de procederem, querendo, às impugnações que tenham por convenientes para defesa dos seus direitos.

A omissão desta formalidade essencial, da elaboração de nova lista de credores pelo Sr. administrador da insolvência, que tenha em conta o erro substancial de que, se entenda que esta enferme, com observância de seguida as formalidades legalmente impostas, com início na possibilidade de impugnação por quem quer que nisso se mostre interessado, integra uma nulidade essencial, prevista no art.º 195º, do Cód. Proc. Civil.

Assim, e concluindo, perante a existência de um erro substancial manifesto existente na relação de créditos apresentada pelo Sr. administrador da insolvência, deve o juiz determinar a elaboração de nova lista, rectificada com base nos elementos que indique, mas sem poder então homologar de imediato a lista de credores nem graduar também de imediato os créditos.

Esta homologação e subsequente verificação e graduação de créditos só pode ter lugar de imediato inexistindo tal erro substancial manifesto, pelo que, perante tal erro, há em primeiro lugar que proceder à respectiva rectificação, ou substituição da lista por outra rectificada, e, de seguida, dar às partes a hipótese de procederem, querendo, às impugnações que tenham por convenientes para defesa dos seus direitos.

Destarte, e por tudo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a decisão recorrida, determinado seja elaborada e apresentada nova lista de credores, devidamente rectificada, e da qual apenas deverá constar o crédito Reclamado pelo credor em apreço, uma vez e se demonstrada a efectuação da partilha.´, devendo ser excluído, caso o crédito ainda pertença à herança ilíquida e indivisa, a qual notificada, está sujeita a novos prazos de impugnação, prosseguido o processo os seus ulteriores e normais termos.

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, e, em consequência, decide-se revogar a decisão recorrida, determinado seja elaborada e apresentada nova lista de credores, devidamente rectificada, e da qual apenas deverá constar o crédito Reclamado pelo credor em apreço, uma vez e se demonstrada a efectuação da partilha, devendo ser excluído, caso o crédito ainda pertença à herança ilíquida e indivisa, a qual notificada, está sujeita a novos prazos de impugnação, prosseguido o processo os seus ulteriores e normais termos.

Sem custas.
Guimarães, 17/ 12/ 2018.
Processado em computador. Revisto – artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.

Jorge Alberto Martins Teixeira
José Fernando Cardoso Amaral.
Helena Gomes de Melo.


1. Cfr. A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 690.
2. Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, reimpressão, p. 142.
3. Cfr., p. ex., A. Varela e outros, obra citada, p. 690; Alberto dos Reis, obra e local citado (estabelecendo também uma correspondência directa entre o vício em questão e a exigência mencionada no art. 660º, nº 2 do C.P.C.); Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, 1982, p. 142.
4. Cfr. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., pg. 54.
5. Cfr. Neste sentido, Acórdão STJ de 02.07.1974, de 06.01.1977 e de 05.06.1985, entre outros.
6. Cfr. Anselmo de Castro, obra e local citados na nota anterior.
7. Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2009, p. 456. Entendimento também seguido nos Acórdãos do STJ de 25.11.2008, proc. 08A3102 e da Relação do Porto de 03.11.2010, proc. 2578/09.4TBVFR-D.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
8. Cfr. Luís Meneses Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2009, p. 231.
9. Cfr. o Acórdão do STJ de 25.11.2008, citado na nota 7.
10. Na jurisprudência, vejam-se, por todos, os acórdãos deste STJ de 25.11.2008 (Cons. Silva Salazar), no processo n.º 08A3102, e de 30.09.2014 (Cons. Ana Paula Boularot), no processo n.º 3045/12.4TBVLG-B.P1.S1, ambos em www.dgsi.pt. Refira-se ainda que o acórdão da Relação de ..., de 30.11.2010 (Proc. n.º 1803/09.6TJVNF-D.G1), em que a recorrente encontra conforto para a sua tese, é quase tabelar na apreciação da matéria em debate, não apresentando argumentos que contrariem a posição que entendemos ser a melhor.
11. Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas”, Anotado, 2.ª Edição, 2013, página 555
12. “Verificação do Passivo”, Revista ‘Themis”, edição especial de 2005, página 156. Veja-se, ainda, Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2017, página 293.
13. Cfr. Acórdão do S.T.J., de 17/04/2018, proferido no processo nº 4247/11.6TBBRG-B.G1-A.S3. in www.dgsi.pt.
14. In Direito Civil. Sucessões, 5ª edição, págs. 402 e seguinte.
15. Cfr., por todos, CAPELO DE SOUSA, Direito das Sucessões, Vol. II, 3ª edição renovada, págs. 73 e seguintes e GOMES DA SILVA, Herança e sucessão por morte. A sujeição do património do de cuius a um regime unitário no livro V do Código Civil, 2002, pág. 144 e seguintes, embora este último autor ressalte que na aceitação pura e simples se estabelece uma separação patrimonial imperfeita entre a herança e o património pessoal do herdeiro, uma vez que, por ausência de inventário, se afigura difícil demonstrar o ativo que compõe a herança e afastar as agressões dos credores hereditários ao patrimonial pessoal do herdeiro.
16. In Código Civil Anotado, Vol. VI, pág. 158. Ainda no mesmo sentido pode ver-se CAPELO DE SOUSA, ob. citada, vol. II, págs. 109 e seguintes.
17. Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 12/09/2006, proferido no processo nº 365-B/1998.C1, in www.dgsi.pt.
18. Cfr. Ac. S.T.J. 5.02.87, B.M.J. 364º, pag 787
19. Cfr. Manuel de Andrade – Teoria Geral das Obrigações, pag. 63
20. cfr. A. Varela, in R.L.J., ano 114, pag. 74-75 .
21. Cfr. Teoria Geral do Direito Civil – Sumários desenvolvidos, Coimbra, 1981, pag. 44.
22. Cfr. Coutinho de Abreu, Abuso de Direito, pag. 43.
23. Cfr. Menezes Cordeiro, ob. cit., pg 758.
24. Cfr. Baptista Machado, obra citada, pag. 414 e, também no sentido de inexigência de culpa, Menezes Cordeiro, obra e volume citados, pag. 761.
25. Cfr. Baptista Machado, Obra citada, pag. 416.