Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1162/17.3T8VRL-A.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
PERICULUM IN MORA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
A deliberação que tem por conteúdo a eleição dos órgãos sociais não esgota todo o seu potencial danoso no ato da tomada de posse já verificado, não podendo, pois, afirmar-se, com base em tal ato, inexistir “periculum in mora” e, com tal fundamento, julgar, sem mais, improcedente a requerida providência, certo que a mesma continua, ainda que restrita aos eventos futuros, potencialmente útil para o efeito visado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

A. Relatório

F. C. intentou o presente procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais contra Equipa A, pedindo que fossem declaradas nulas ou anuladas as deliberações sociais, nomeadamente as eleições, tomadas no dia 22 de Junho de 2017, quer porque a respetiva Assembleia Geral não foi convocada nos termos da lei e dos Estatutos, quer pelas restantes irregularidades no próprio decurso da Assembleia, ordenando-se a sua suspensão, bem como a suspensão do apuramento dos resultados definitivos das eleições dos órgãos sociais, notificando-se o Presidente da Assembleia Geral da Requerida para se abster de dar posse aos órgãos sociais eleitos no referido dia.
Citada, a Requerida veio deduzir oposição, alegando a inadmissibilidade do procedimento cautelar, por já ter sido executada a deliberação, e a inexistência da verificação dos requisitos necessários ao decretamento da providência.
Na sequência da referida oposição, sem produção de qualquer outra prova, por se ter considerado que os autos reuniam todos os elementos para que fosse apreciada a questão da inadmissibilidade da providência cautelar requerida, foi proferida decisão a julgar improcedente o procedimento cautelar, não decretando a suspensão de deliberação social tomada no dia 22 de junho de 2017.

O Requerente recorreu desta decisão apresentando as seguintes conclusões:

I. A Sentença que decidiu julgar improcedente o procedimento cautelar, mais determinando não decretar a suspensão da deliberação social tomada pelo Equipa A, não se pode manter.
II. Decorre da sentença proferida que não se verifica a existência de periculum in mora, na medida em que a tomada de posse dos órgãos sociais ocorreu em 9 de Julho de 2017, ou seja em data posterior à entrada da petição inicial, mas anterior à data da citação do Recorrido, sendo entendimento do Tribunal "a quo" que assim sendo nem sequer está em causa o disposto no artigo 381.°, n.º 3, do C.P.C.
III. Não pode o Recorrente aceitar tal posição, na medida em que a interposição da presente acção ocorreu em 3 de Julho de 2017, ou seja em data anterior à tomada de posse dos órgãos sociais, que apenas ocorreu em 9 de Julho de 2017.
IV. Para efeitos de decisão e decretamento da presente providência cautelar, deve relevar a data de interposição da acção não devendo apenas ser tida em consideração a citação ocorrida, pois a mesma apenas teve lugar 15 dias após a entrada da presente acção de procedimento cautelar.
V. A citação do Recorrido ocorreu apenas 15 dias após a interposição da petição inicial, não podendo esse facto ser negativamente valorado, na medida em que a citação do Recorrido não depende do Recorrente.
VI. Não se compagina com a urgência dos presentes autos ter estado a presente providência cautelar 14 dias a aguardar que fosse determinada a citação do Recorrido, facto que veio a revelar-se determinante no não decretamento da providência cautelar.
VII. Não pode o Recorrente ver a sua pretensão ser indeferida, por, entre a data de entrada da petição inicial e a citação, terem, entretanto, tomado posse os órgãos sociais do Recorrente.
VIII. No modesto entendimento do Recorrente a data de entrada da acção - 3 de Julho de 2017 - deve ser a data a ter em consideração para efeitos de apreciação do periculum in mora, por parte desse Exmo. Tribunal.
IX. A sentença proferida deve revogada e substituída por outra que decrete a suspensão da deliberação social tomada pelo Equipa A, na Assembleia Geral do dia 22 de Junho de 2017, sob pena de a letra da lei se tornar, de facto, impossível de obter qualquer efeito prático.
X. A Meritíssima Juiz "a quo" fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 380.º e 381.°, n.º 3, do C.P.C.”
A Recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, porquanto já nada há a acautelar e a deliberação e atos subsequentes são de execução instantânea e não produziram quaisquer danos ou prejuízos.
Foi proferida decisão sumária pela Relatora que julgou a apelação procedente, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento do processo.
Desta decisão reclama a Recorrida para a conferência, nos termos do art. 652º, nº 3, do CPC, pugnando, de novo, pela manutenção da decisão da primeira instância.
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B. Delimitação do objeto do recurso

Como é sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do NCPC).
Assim sendo, no caso, é a seguinte a questão a decidir:
- Saber se, no caso de deliberação que teve por conteúdo a eleição dos órgãos sociais de determinada pessoa coletiva, verificada a tomada de posse dos eleitos, deixou de existir o “periculum in mora” pressuposto para o decretamento da suspensão da referida deliberação.
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C. Factos considerados pela decisão da 1ª Instância:

1. No dia 22 de Junho de 2017, entre as 19 e 23 horas, realizaram-se eleições para os órgãos Sociais da Requerida para o biénio 2017/2019.
2. Da ata da Assembleia-Geral resulta o seguinte: “Concluído o trabalho de apuramento, os resultados foram comunicados aos candidatos à presidência da Equipa A e divulgadas aos sócios tendo sido declarada vencedora a lista A, presidida pelo sócio nº .. A. R..”
3. Do auto de tomada de posse dos órgãos sociais do Equipa A resulta que a tomada de posse dos órgãos sociais eleitos teve lugar no dia 9 de Julho de 2017, pelas 19h00m.
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D. O Direito.

Em causa está a suspensão de deliberação que teve por conteúdo a eleição dos órgãos sociais da Requerida.
Em suma, sustenta o julgador a decisão recorrida - que decidiu julgar improcedente o procedimento cautelar sem produção de qualquer prova - nos seguintes termos:
Como já referimos, pretende o requerente acautelar que a lista eleita para os órgãos sociais em Assembleia Geral inicie o seu mandato, o que ocorre pelo acto de tomada de posse.
A tomada de posse ocorreu em 9 de Julho de 2017, ou seja em data posterior à entrada da petição inicial, mas anterior à da citação da requerida, pelo que nem sequer está em causa o disposto no nº3 do artigo 381º do CPC.
Posto isto, em conclusão, entende-se não se verificar a existência do periculum in mora.
Consumado que está o efeito que se pretendia acautelar, a presente providência ter-se-á que considerar inútil - neste sentido vide Moitinho de Almeida, “ Anulação e Suspensão de Deliberações Sociais, 2ª edição, 1990, fls. 141 “Se a deliberação cuja execução se pretende suspender já foi executada, a providência cautelar de suspensão perdeu todo o seu efeito útil, pelo que deve ser indeferida.”
Assim sendo, da providência requerida nunca resultaria qualquer efeito paralisador da execução da deliberação, pelo que o seu decretamento não reveste qualquer utilidade.
Sem razão, desde já se dirá.
Na verdade, apesar de ser certo que o dano que se pretende evitar com o procedimento cautelar especificado de suspensão de deliberações sociais é o que decorre da demora da ação de impugnação da deliberação social impugnada - uma vez que se pretende prevenir e impedir os prejuízos que para o requerente adviriam da execução das deliberações durante a pendência da ação principal com a qual se buscará decisão definitiva acerca da validade das mesmas -, pelo que forçoso é concluir que no caso das deliberações cuja validade é questionada já se encontrarem executadas, em princípio os prejuízos possíveis já terão ocorrido, e assim, nada havendo a prevenir ou a impedir, em tais casos não se justificará o procedimento cautelar de suspensão, sendo a negação da providência cautelar resultado da falta de verificação de uma condição de procedência, para que tal seja inteiramente correto necessário será, porém, que as deliberações em causa sejam deliberações de execução instantânea - como a Recorrida defende ser a objeto da providência cautelar ora em causa - ou seja, que a produção dos respetivos efeitos e dos danos aos mesmos associados se esgote num único ato, o que não se pode dizer seja o caso da deliberação ora em apreço.
A este respeito, escreve Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil.”, IV, pág. 75/76:
“Apesar das divergências que continuam a notar-se, parece avolumar-se o número de arestos que, privilegiando a função instrumental do direito, como sistema que deve responder às exigências da vida, dão maior realce aos efeitos práticos para justificar a utilidade da medida ainda que restrita aos eventos futuros.
Isso permite formular a conclusão de que a suspensão das deliberações sociais não deve entender-se no seu sentido mais restrito, como simples impedimento da actividade dos órgãos sociais destinada a executá-la, antes deve estender-se à paralisação dos efeitos jurídicos que a deliberação seja susceptível de produzir.
Nesta base, enquanto a deliberação não estiver totalmente executada ou enquanto se protraírem no tempo os respectivos efeitos, directos, laterais, secundários ou reflexos, suficientemente graves para serem causadores de dano apreciável, será viável obter a suspensão da sua execução através da específica providência criada pelo legislador.”
E esta é, efetivamente, a jurisprudência dos tribunais superiores que vem reafirmando sucessivamente que a deliberação pode ser suspensa, mesmo que já executada “desde que seja de execução permanente ou contínua, ou, sendo de execução através de um único acto, continuar a produzir efeitos danosos” (Acs. do ST de 10/12/92 acessível in www.dgsi.pt, de 6/06/91, BMJ 408,445, de 12/11/87, BMJ 371,378 e na doutrina cfr. Pinto Furtado in “Deliberações Sociais”, p. 478, Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre a Reforma do P.C.”, 2ª ed., p. 241 e Carlos Olavo in CJ 1998, T. III, p. 31), o mesmo sucedendo com as deliberações que, apesar de terem sido imediatamente executadas, perdurem no tempo, sendo causa de dano apreciável, como sucede com a eleição de membros dos órgãos sociais (cfr. Ac. da R.P. de 12/02/96, in CJ, T. I, p. 219).
Mais recentemente, frisou-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 18.05.2010:
“Se as deliberações podem continuar a ser executadas ou os efeitos danosos da sua execução podem continuar a verificar-se, permanece fundamento para a medida cautelar de suspensão, a tal não obstando a circunstância de terem já sido praticados actos de execução”.
No apontado sentido, ali se indicam ainda o Acórdão do STJ de 16/05/95 (Proc. 085732, relatado pelo Cons. Oliveira Branquinho, os Acórdãos da Rel. Porto de 12/02/96 (Proc. 9551089, relatado pelo Des. Bessa Pacheco) e de 11/03/96 (Proc. 9551383, relatado pelo Des. Azevedo Ramos), os Acórdãos da Rel. Lisboa de 17/07/2008 (Proc. 2321/2008-1, relatado pelo Des. Rui Vouga) e de 04/06/2009 (Proc. 1196/07.6TYLSB-A.L1-8, relatado pelo Des. António Valente) e, finalmente, os Acórdão da Rel. Évora de 20/09/2007 (Proc. 1502/07-3, relatado pelo Des. Acácio Neves), todos em www.dgsi.pt.e Impugnação das Deliberações Sociais, Dr. Carlos Olavo, CJ, XIII, 3, 20/31.
E com tal fundamento decidiu-se no citado acórdão da Relação de Coimbra:
“A deliberação social que destitui um gerente e/ou nomeia outro é, quanto ao efeito extintivo/constitutivo da qualidade e da “situação” de gerente, instantânea, mas opera uma mutação jurídica extinguindo uma relação de gerência e constituindo outra.
Como consequência dessa mutação o gerente destituído é deslegitimado e o nomeado legitimado para o desempenho da actividade de gestão.
A inactividade do gerente destituído e/ou a actividade do gerente nomeado constituem efeito reflexo da deliberação, integrando a sua execução e podendo produzir efeitos danosos.
É de admitir, por isso, a suspensão da deliberação social com aquele conteúdo.”
Esta orientação foi de novo seguida no Acórdão da Relação de Coimbra de 18.03.2014, onde se concluiu que “estando em causa uma deliberação social que elegeu o presidente e a secretária da mesa da assembleia geral, bem como a reformulação dos estatutos da sociedade e destituição dos membros dos órgãos sociais, esta com certeza tem efeitos continuamente danosos”.
E o mesmo entendimento se vê plasmado no Acórdão da Relação de Évora de 27.02.2014, onde se entendeu que deliberação idêntica à ora em crise era uma deliberação que perdurava no tempo e que “se as deliberações podem continuar a ser executadas ou os efeitos danosos da sua execução podem continuar a verificar-se, permanece fundamento para a medida cautelar de suspensão, a tal não obstando a circunstância de terem sido praticados já actos de execução”.
Corroborando toda a referida jurisprudência, veja-se ainda Lobo Xavier, in Revista de Legislação 123-378, Rev. Des. XXXIII, 195 e seguintes, ao defender que, visando a suspensão das deliberações sociais paralisar a eficácia da deliberação, esta pode ser suspensa enquanto não se esgotarem todos os seus efeitos danosos sejam eles diretos, laterais ou secundários, ou reflexos. “Deverá acentuar-se enquanto a deliberação não for suspensa corre-se o risco dela se ir desde logo executando e criando, portanto direitos e obrigações, que a nulidade futuramente decretada não pode afectar(…)”.
Face ao que se acabou de expor quanto à orientação jurisprudencial sucessivamente reafirmada pelos Tribunais Superiores e à ponderosa razão de que o sistema jurídico deve responder às exigências da vida, reportando-nos agora ao caso de deliberação que tem por conteúdo a eleição dos órgãos sociais, forçoso é concluir que a mesma não esgota todo o seu potencial danoso no ato da tomada de posse já verificado, não podendo, pois, afirmar-se, no caso dos autos e com base em tal ato, ter deixado de existir o “periculum in mora” (ou ter sobrevindo a inutilidade da lide) e, com tal fundamento, julgar, sem mais, improcedente a requerida providência, certo que a mesma continua, ainda que restrita aos eventos futuros, potencialmente útil para o efeito visado.
Do exposto resulta que o fundamento invocado pela decisão recorrida não legitima a decisão de julgar improcedente o procedimento cautelar, devendo, por isso, a referida decisão ser revogada. Daí não decorre, porém, como é bom de ver, que a mesma deva ser substituída por outra que decrete a suspensão da deliberação social tomada pelo Equipa A, na Assembleia Geral do dia 22 de Junho de 2017, devendo, pelo contrário, os autos prosseguirem para apreciação da totalidade dos requisitos da providência requerida.
Melhor explicitando, adaptando a fórmula utilizada no Acórdão da Relação do Porto de 22.02.2011 ao presente caso (em que a decisão recorrida é de improcedência e não de extinção por inutilidade superveniente da lide, mas o fundamento é o mesmo), deve revogar-se a decisão recorrida e ordenar a sua substituição por outra que não julgue improcedente a providência pelo motivo que vem sindicado.
Procede, pois, na medida do explanado, a apelação.

Sumário

A deliberação que tem por conteúdo a eleição dos órgãos sociais não esgota todo o seu potencial danoso no ato da tomada de posse já verificado, não podendo, pois, afirmar-se, com base em tal ato, inexistir “periculum in mora” e, com tal fundamento, julgar, sem mais, improcedente a requerida providência, certo que a mesma continua, ainda que restrita aos eventos futuros, potencialmente útil para o efeito visado.

E. Decisão:

Pelo exposto, julgando-se a apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida e ordena-se a sua substituição por outra que não julgue improcedente a providência pelo motivo que vem sindicado.
Custas pela Recorrida.
Guimarães, 07.12.2017

Relator
1º Adjunto
2º Adjunto