Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2944/17.1T9BRG-B.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: RECUSA
REQUISITOS LEGAIS
INDEFERIMENTO
ARTº 43º
Nº 1 DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: INDEFERIR O PEDIDO DE RECUSA
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. Da lei processual penal ( art. 43 nº 1 do Código de Processo Penal) não se retira o que deve entender-se por “motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade de um juiz” capaz de justificar a recusa da sua intervenção num processo e o consequente afastamento do princípio do juiz natural, razão pela qual se impõe uma análise casuística dos motivos invocados de acordo com parâmetros objetivos ou subjetivos, na certeza de que quando a imparcialidade de um juiz ou a confiança da comunidade nessa imparcialidade são justificadamente postas em causa, o juiz deve ficar impedido de administrar a justiça.
2. Quando um processo chega a julgamento o juiz já teve contacto com o processo e já proferiu diversas decisões que o levaram a ponderar sobre a eventual prática do crime (já recebeu a acusação ou a pronúncia, já recebeu a contestação, já ponderou sobre os meios de prova a produzir…), mas nenhuma destas decisões é suscetível de comprometer a imparcialidade do juízo a fazer perante a prova que venha a resultar do julgamento.
3. De igual modo se o juiz do julgamento, anteriormente, em serviço de turno, teve contacto com o processo e ordenou a realização de busca domiciliária, tal intervenção, por si só, não é suscetível de pôr em causa a posição “equidistante, descomprometida e desprendida em relação ao objeto da causa e a todos os sujeitos processuais” que necessariamente terá de ter no julgamento, sob pena de alienar o mais importante património moral que possui e que é pressuposto fundante da dignidade das funções que exerce.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães.

I.
No início da audiência de julgamento do processo 2944/17.1T9BRG que corre termos no juízo local criminal de Vila Verde, o arguido G. M. apresentou requerimento de recusa da senhora juiz A. F. nos seguintes termos (transcrição):

“Perante a consulta dos autos do mandado de busca e apreensão emitido pela Mmo Juiz Dra. A. F., e o seu conteúdo em que de facto na qualidade de Juiz de Instrução Criminal e que no referido despacho consta resulta a inequívoca a prática de um crime de ameaça agravada, ou seja existe numa fase processual anterior uma ponderação relativamente à prova que constava à data nos autos, pelo que se requer a V. Ex o pedido de recusa nos termos do artigo 43º, nº 3 do Código de Processo Penal”.

A senhora juiz A. F. pronunciou-se nos seguintes termos (transcrição com introdução de correções posteriores efetuadas por despacho):

Veio o arguido requerer a recusa da signatária para presidir à audiência de julgamento, pelo facto de a mesma ter ordenado busca domiciliária à residência do arguido, atuando como Juiz de Instrução, em sede de inquérito, na sequência de promoção do Ministério Público.
A intervenção da signatária foi pontual, numa fase do processo em que se avalia unicamente a existência de meros indícios da prática de factos ilícitos, tendo ocorrido em 2-1 - 2018, ou seja, num dia de turno de férias judiciais.
Importa notar que a situação que aqui se prefigura não vem contemplada na lei como causa impeditiva para que o Juiz possa intervir no julgamento, designadamente nos impedimentos previstos no artigo 40.° do Código de Processo Penal.

Conforme consta no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-05-2010, publicado no endereço eletrónico da dgsi «O art. 40.° do CPP tem em vista garantir a imparcialidade do juiz enquanto elemento fundamental à integração da função jurisdicional, face a intervenções processuais anteriores que, pelo seu conteúdo e âmbito, considera como razão impeditiva de futura intervenção. O envolvimento do juiz no processo, através da sua directa intervenção enquanto julgador, através da tomada de decisões, o que sempre implica a formação de juízos e convicções, sendo susceptível de o condicionar em futuras decisões, sim afectando a sua imparcialidade objectiva, conduziu o legislador a impedi-lo de intervir nas situações em que a cumulação de funções processuais pode fazer suscitar no interessado, bem como na comunidade, apreensões e receios, objectivamente fundados. VIII. À luz do que fica exposto e tendo em conta todas as causas de impedimentos taxativamente previstas na lei (als. a) a e) do art. 40°), certo é constituir elemento comum de todas elas a intervenção anterior do juiz no processo, ou seja, a intervenção em fase anterior do processo.
IX. Elemento comum de todas aquelas causas de impedimento também é, obviamente, a de que subjacente aos impedimentos se encontra o receio de que a intervenção do juiz venha a ser considerada suspeita, por a sua imparcialidade se mostrar posta em causa.».
Com efeito, considera a signatária que não ocorre motivo suscetível de colocar em causa a sua imparcialidade, inexistindo razão geradora de desconfiança sobre a sua imparcialidade, posto que a anterior intervenção processual foi pontual, ponderando apenas a existência de indícios suficientes para. autorização de uma diligência de prova. Tal circunstancialismo não é suscetível de gerar uma dúvida ou suspeita na generalidade das pessoas, quanto à (im)parcialidade do Juiz que deverá realizar a audiência de julgamento.
Em conformidade com o exposto, afigura-se-nos que não ocorre, no caso, fundamento para se deferir o pedido de recusa suscitado pelo arguido, o que se consigna nos termos e para o efeito do artigo 45.° n.° 3 do Código de Processo Penal.
Determino que se extraia, pela ordem que se indica, certidão do presente despacho, as notificações do mesmo, seguindo-se o despacho judicial de folhas 29 e 30, a acusação deduzida pelo Ministério Público, o despacho que a recebeu e todos ás despachos posteriores proferidos pela signatária e respetivas notificações ao arguido e, finalmente, da ata de audiência de julgamento que antecede, criando-se apenso próprio e remetendo-se o mesmo ao Tribunal da Relação de Guimarães, para decisão.
Nos termos e para os efeitos do artigo 43°, n.° 5, do Código de Processo Penal, faz-se consignar que, sem prejuízo de justificada urgência, a subsequente tramitação dos presentes autos ficará a aguardar a decisão sobre o requerimento de recusa do arguido, o que se consigna - cfr. o art. 45,nº 2, do Código de Processo Penal,
Notifique,
*
Após os vistos, foram os autos à conferência.
*

II.

Cumpre decidir.
Dispõe o artigo 203º da Constituição da República Portuguesa que “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”.
Trata-se de um princípio fundamental que tem como um dos corolários o princípio da imparcialidade constante do artigo 10º da DUDH e, bem assim, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6º, nº 1).
Também a LOSJ dispõe, no seu artigo 4º nº 1, que os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei, prevendo o Código de Processo Penal no Capítulo VI, do Titulo I, do Livro I, um conjunto de normas encimadas pela epígrafe Impedimentos, Recusas e Escusas como forma de garantir a total imparcialidade, pressuposto necessário para a confiança na Justiça por parte de todos os cidadãos.
De acordo com a generalidade da doutrina e jurisprudência nacionais (seguindo o método do TEDH) a imparcialidade deve ser avaliada sob um prisma subjetivo e, depois, ainda que nada haja a apontar ao comportamento do juiz, sob uma otica objetiva (cfr. J.F.Dias e Nuno Brandão in Sujeitos Processuais Penais – O Tribunal – Coimbra, 2015, página 27-28).
Há diversas razões pelas quais pode ser posta em causa a capacidade de um juiz manter a imparcialidade num julgamento. Quando tal acontece, isto é, quando, de forma justificada, a imparcialidade do juiz ou a confiança da comunidade nessa imparcialidade, são postas em causa, o juiz deve ficar impedido de administrar a justiça.
A lei processual penal - no artigo 43, nº 1 do CPP - prevê que: A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Acrescenta no nº 2 que pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 4º.
Da lei não se retira o que deve entender-se por “motivo sério e grave”, razão pela qual se impõe uma análise casuística de acordo com parâmetros objetivos e subjetivos, tal como decorre da orientação jurisprudencial saída do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: sob o ponto de vista subjetivo, a imparcialidade presume-se até prova (a fazer pelo requerente) em contrário; em termos objetivos terá de resultar da ocorrência de factos verificáveis que autorizem suspeitar de imparcialidade do juiz (justice must not only be done, it must also be seen to be done) (cfr Ac. RG de 17/12/2020, não publicado, em que foi relator o Des. Cruz Bucho – Proc 193/20.0RGMR e abundante jurisprudência e doutrina nele citadas).
Ensina o Professor F. Dias in Direito Processual Penal, 1974, I, 320 que é tarefa da lei velar por que, em qualquer tribunal e relativamente a todos os participantes processuais, reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional juridicidade. E acrescenta: Pertence a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera, não enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu.
A lei exige, então, que seja um motivo sério e grave, - casuisticamente avaliado, isto é, em concreto, tendo em conta as funções e os atos processuais do juiz, - aquele que se mostre capaz de afastar o princípio do juiz natural, com assento constitucional no nº 9 do artigo 32º.
No caso em apreço o requerente não invocou concretamente razões pelas quais duvida da imparcialidade da senhora juiz cuja recusa requereu. Limitou-se a referir que a senhora juiz, numa fase anterior do processo, proferiu despacho do qual consta inequívoca “a prática de um crime de ameaça agravada”.
Na sua resposta a senhora juiz confirmou que ordenou, em sede de inquérito, busca domiciliária à residência do arguido, atuando como juiz de instrução, na sequência da promoção do ministério público. Mais esclareceu que tal intervenção foi pontual, numa fase do processo em que “se avalia unicamente a existência de meros indícios da prática de factos ilícitos, tendo ocorrido tal intervenção, num turno de férias judiciais”.
A questão que se põe é, pois, a de saber se tal intervenção, nas descritas circunstâncias e no início do processo, é suscetível de constituir motivo sério e grave adequado a colocar em causa a imparcialidade da senhora juiz para realizar o julgamento. Ou, por outro prisma, se a intervenção da senhora juiz no processo corre o risco de ser considerada suspeita por ocorrer motivo sério e grave e, nessa medida, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Ora, o requerente, já o vimos, não invoca quaisquer circunstâncias que possam pôr em causa a “fortaleza de ânimo, de caráter e de personalidade moral do juiz” (cfr. Ac TC de 16/08/88 in BMJ, 378, 176); por outro lado, a circunstância objetiva invocada, só por si, não é suscetível de fazer temer uma falta de imparcialidade que abale a confiança que os tribunais devem inspirar numa sociedade democrática.
E assim é, porque, quando um processo chega a julgamento, o juiz, mesmo que não tenha tido qualquer intervenção em fase anterior, já por diversas vezes proferiu decisões que o levaram a ponderar sobre a eventual prática do crime (já recebeu a acusação ou a pronúncia, já recebeu a contestação, já ponderou sobre os meios de prova …). Ora, nenhuma destas decisões é suscetível de comprometer a imparcialidade do juízo a fazer perante a prova que venha a resultar do julgamento. Isto é, nenhuma destas intervenções anteriores é suscetível de pôr em causa a posição “equidistante, descomprometida e desprendida em relação ao objeto de causa e a todos os sujeitos processuais” que necessariamente terá de ter o juiz no julgamento, sob pena de alienar o mais importante património moral que possui e que é pressuposto fundante da dignidade da função que exerce.
Portanto, não se pode dizer que a intervenção que a senhora juiz teve em serviço de turno seja suscetível de gerar uma dúvida séria sobre a sua capacidade de julgar de modo isento, sem pré juízos, tanto mais quanto não são invocadas quaisquer circunstâncias particulares ou anómalas que tenham ocorrido em redor do despacho proferido em inquérito e/ou da busca determinada, que, relembra-se,
foi um de vários despachos proferidos pela senhora juiz até ao início do julgamento a que preside por força da aplicação do princípio do juiz natural, que não deverá, por isso, ser posto em causa. (O princípio do juiz natural, é de tal forma necessário à boa administração da justiça que está presente na nossa tradição jurídico constitucional, implícita ou explicitamente, há quase 200 anos, isto é, desde que sugerido pelo artigo 9, 2ª parte da Constituição de 1822 até à atual Constituição ( embora, entretanto, omitido pela Constituição de 1933).
Assim, em conclusão, não existindo, subjetiva ou objetivamente, motivo sério e grave gerador de desconfiança ou suspeição relativamente à imparcialidade da senhora juiz e capaz de sustentar a pretendida recusa, terá a mesma de ser indeferida.
*
III.
DECISÃO.

Em face do exposto, acordam os juízes da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães em indeferir o pedido de recusa da senhora juiz A. F. formulado pelo arguido G. M..
Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3Ucs.
Guimarães, 11 de janeiro de 2021

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho