Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
37/20.3T8PTL.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
LEGITIMIDADE PASSIVA
ESBULHADOR
COMODATO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/01/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÕES DE DUAS REQUERIDAS
Decisão: PROCEDENTE APELAÇÃO DUMA REQUERIDA E IMPROCEDENTE A APELAÇÃO DOUTRA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O procedimento cautelar de restituição provisória da posse pode ser instaurado não só contra o esbulhador ou seus herdeiros, mas também contra terceiro que esteja na posse da coisa esbulhada e tenha conhecimento do esbulho. Quem tem de ser demandado pelo esbulhado é aquele que lhe tira a coisa; só assim não será se o esbulhador falecer entretanto, caso em que devem ser demandados os seus herdeiros, ou houver transmitido a coisa a terceiro e este tiver conhecimento do esbulho, situação em que também deve ser demandado este terceiro.
II- Se um dos requeridos, face ao próprios termos do requerimento inicial, não é o esbulhador, não sucedeu a quem privou a requerente da posse da coisa e não lhe foi transmitida a respectiva posse, em conformidade com o disposto no artigo 1281º, nº 2, do Código Civil, não é parte legítima no procedimento cautelar.
III- A não especificação, nas conclusões das alegações, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, determina a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto.
IV- Se for privado da coisa emprestada, o comodatário tem o direito de obter a sua restituição, mesmo contra o comodante, através do procedimento cautelar de restituição provisória da posse ou de qualquer outra acção possessória.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – RELATÓRIO

1.1. T. A., Unipessoal, Lda., instaurou procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra M. N. e A. J., pedindo a restituição provisória à Requerente da posse do prédio urbano sito na Rua ..., nºs …, da freguesia de ..., Ponte de Lima, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº .../19112002 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ..., bem como a fixação de uma sanção pecuniária no valor de € 300,00 sempre que seja violada a posse da Requerente.
Após produção de prova, foi proferida decisão a ordenar «a restituição imediata à Requerente da posse do prédio identificado no artigo 2.º do requerimento inicial» e a «condenar os Requeridos a pagar o valor de € 300,00 a título de sanção pecuniária compulsória sempre que seja violada a posse da requerente na sequência da restituição ora ordenada – cf. artigo 365º, nº2 CPC».
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1.2. Os Requeridos deduziram oposição, separadamente.
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1.3. Realizada a audiência final, foi proferida decisão a julgar improcedentes as oposições e a manter a providência cautelar de restituição provisória de posse.
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1.4. Inconformado, o Requerido A. J. interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«I. Com o presente recurso, os Recorrentes pretendem colocar em crise a decisão proferida, e que julgou improcedentes as oposições apresentadas, por não provadas, mantendo a decisão que decretou a providência de restituição provisória da posse, porquanto pretendem demonstrar que a sentença recorrida viola várias normas jurídicas.
II. Os procedimentos cautelares pautam-se por princípios de urgência e analisam a prova produzida de forma indiciária, o que ainda assim não altera o que infra melhor vamos explanar.
III. Determina o artigo 377.º do Código de Processo Civil (CPC) que “No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.”
IV. Podemos definir como esbulho a conduta adotada de molde a tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de meios que impedem a utilização pelo possuidor da coisa esbulhada, sendo certo que a violência no esbulho pode traduzir-se numa ação física exercida sobre as coisas como meio de coagir o esbulhado a suportar uma situação contra a sua vontade – a este propósito, veja-se o disposto no douto Aresto do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/11/2011.
V. “A ação de restituição de posse pode ser intentada pelo esbulhado ou pelos seus herdeiros, não só contra o esbulhador ou seus herdeiros, mas ainda contra quem esteja na posse da coisa e tenha conhecimento do esbulho.” – artigo 1281.º, n.º 2 Código Civil.
VI. Analisados os factos provados, que aqui damos por integralmente reproduzidos, apura-se inequivocamente que todos os factos que se relacionam com o esbulho e com a violência, e que permitem, a final, que o tribunal recorrido conclua pela existência indiciária dos fundamentos da providência requerida (a posse, o esbulho e a violência), se reportam exclusivamente à Requerida e, algumas vezes, a um terceiro (o seu pai).
VII. Apenas vem o Recorrente referido no que se reporta à propriedade do imóvel e ao casamento com a Requerida.
VIII. Não resulta provado que o Recorrente tenha exercido qualquer ato de violência, quer contra a Requerente ou qualquer seu representante legal ou funcionário; não resulta provado que o Recorrente tivesse, ainda ou em alternativa, exercido qualquer ato de violência contra o bem imóvel melhor descrito nos autos; assim como não resulta provado que o Recorrente tivesse, assim, colocado em crise qualquer posse, ou mera posse, da Requerente ou de terceiros.
IX. O Recorrente nem sequer se encontra a residir em território nacional e não tem nem nunca teve qualquer relação com os factos provados na douta sentença de que ora se recorre!
X. E muito menos dos mesmos tinha conhecimento dos factos provados, levados a efeito pela Requerida - só teve conhecimento do dito e alegado contrato de comodato muitos meses após a sua alegada celebração e já no ano de 2020.
XI. Não resultando da matéria de facto provada que o Recorrido tivesse conhecimento dos factos praticados exclusivamente pela Requerida (e pontualmente pelo pai desta), sendo que apenas os atos pela mesma praticados são suscetíveis de preencher os conceitos de esbulho e de violência.
XII. Da prova produzida resulta que o Recorrente não é nem nunca foi o esbulhador, não estava na posse da coisa e não tinha conhecimento do alegado esbulho.
XIII. A sentença doutamente proferida deveria ter concluído pela ilegitimidade do Recorrente, nos termos do disposto no artigo 1281.º, n.º 2 Código Civil.
XIV. Revestindo uma exceção dilatória, e decorrendo da prova produzida, o juiz a quo podia e devia ter apreciado oficiosamente a ilegitimidade do Recorrente, porquanto inexiste fundamento para o condenar nos termos peticionados – tudo conforme dispõem os artigos 577.º e 578.º do CPC.
XV. Assim não fazendo, a doutamente proferida sentença recorrida violou o disposto nos artigos 1281.º do Código Civil e 577.º e 578.º CPC.

Nestes termos e nos melhores de direito deve o presente recurso ser julgado procedente e ser a sentença revogada, como é de DIREITO E JUSTIÇA!».
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1.5. Também a Requerida M. N. interpôs recurso de apelação, onde formula as seguintes conclusões:

«1 - A Requerida mulher, ora Recorrente não se conforma com a sentença proferida que decidiu pela procedência da providência cautelar ordenando a restituição da posse do imóvel em causa à Requerente e bem assim, condenar os Requeridos no pagamento de uma sanção pecuniária no valor de € 300,00, sempre que seja violada a posse da Requerente.
2 - Embora na sua generalidade consideremos o enquadramento jurídico levado a cabo pelo Tribunal a quo correcto, porém, atentas as especificidades do caso sub judice, provadas mediante a documentação junta aos autos e as declarações prestadas quer pelas partes, quer pelas testemunhas por si arroladas, discordamos da lógica de raciocínio seguida pelo julgador, nomeadamente a fundamentação por si utilizada para decidir do presente procedimento, que deveriam conduzir a outro resultado.
3 – Desde logo, da análise dos arts. 1279º do C.C. e 393º do C.P.C., podemos concluir que são três os requisitos a serem preenchidos para que o presente procedimento cautelar possa ser decretado – a posse; o esbulho e a violência.
4 - O Prof. António Geraldes refere que “sem prejuízo do poder de averiguação atribuído ao Tribunal, incumbe ao Requerente o ónus da prova dos factos constitutivos do direito por si invocado e que no caso sub judice traduzem-se em fazer prova da posse, do esbulho e da violência.”
5 - “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” – art. 1251º do CC.
6 - Traduzindo-se pois, na exteriorização de um direito real que se define por dois elementos: o corpus (elemento material) e o animus (intenção de exercer um determinado direito real como se fora seu titular).
7 – Logo, o conceito de posse, distingue-se do conceito de detenção, uma vez que, esta engloba situações em que, embora haja exercício do poder de facto sobre uma coisa, não existe o animus possidendi – artigos 1251º e 1253º do C.C.
8 - Neste sentido, os artigos 1259º, nº 1, 1260º, n.ºs 1 e 3 do C.C. 1261º, n.º 1 e 2, todos do C. C.“.
9 - No caso sub judice atenta a prova produzida, estamos em crer que o requisito do animus não se encontra demonstrado na sua globalidade, porquanto, a Requerente, demonstrou a existência do “corpus” mas não logrou demonstrar a existência a seu favor do “animus”.
10 - Ora, a prova da existência destes dois elementos, é fundamental para a determinação da posse, competindo à Requerente sua prova.
11 - Assim, independentemente de estarmos perante uma posse titulada ou não titulada, resulta dos autos, nomeadamente dos documentos juntos e das declarações prestadas pelas partes, que a posse, no sentido do elemento “animus”, nunca existiu.
12 - O se provou é existir apenas e tão só uma mera detenção por parte da Requerente, baseada num contrato de comodato celebrado como troca de favores, assente em declarações falsas, que não correspondem à vontade das partes.
13 - A validade desse contrato, implicaria a boa-fé do possuidor do prédio no exercício do direito que invoca a seu favor e a sua convicção de que a sua actuação era verdadeira, legal e sobretudo titulada e sem que existisse qualquer violação de direito de outrem.
14 - No entanto, a Requerente, não logrou demonstrar, no exercício do seu alegado direito, a boa-fé e a convicção de que não estaria a lesar interesses de outrem.
15 - Ao contrário, a Requerida mulher, nas suas declarações de parte prestadas dia 18/06/2020 de 00:00:01 a 00:41:32), supra transcritas, prova a má fé com que a Requerente vinha exercendo esse direito e sobretudo a falta de convicção da mesma, de que o exercício daquele não estava a lesar interesses de outrem.
16 - Deixando claro que, o representante legal da Requerente sempre teve conhecimento desde o primeiro momento que a vontade declarada no contrato de comodato junto aos autos, não correspondia à vontade real das partes, e estas nunca tiveram qualquer intenção em celebrar entre si, nenhum contrato de comodato.
17 - Apenas, se tratava de um conluio, entre o representante da Requerente e a Requerida mulher, com intuito de prejudicar o Requerido marido, numa futura partilha de bens, na sequência de um processo de divórcio anunciado.
18 - Porém, a Requerente, através do seu representante legal, aproveitou o referido contrato, para explorar, em seu proveito o A.L., que os Requeridos haviam projectado para o local.
19 - Deste modo, a Requerente vem agindo agiu como um mero detentor, de má fé, uma vez que sabia que a posse por si exercida, não resultava da real e efectiva vontade das partes em celebrar qualquer contrato de comodato, o que, no dizer da Requerente mulher, consistiu numa “TROCA DE FAVORES”.
20 - Esta mesma tese foi confirmada pelas testemunhas arroladas pela Requerida mulher – D. P. (depoimento prestado dia 18/06/2020 de 00:00:01 a 00:32:13), rotações 00:00:03; rotações 00:19:16; rotações 00:25:05 e rotações 00:27:44 e J. P. (depoimento prestado dia 18/06/2020 de 00:00:01 a 00:12:46) supratranscritos.
21 - Face ao exposto, pese embora se admita a prova da existência do “corpus”, não se admite a verificação do “animus possidendi”.
22 - Ora, a existência cumulativa destes dois elementos é essencial para se verificar a POSSE, tal e qual ela é concebida no sistema jurídico Português.
23 - Aliás, do depoimento prestado pelas testemunhas da Requerente, apenas resulta provado o exercício da posse, quanto ao elemento do “corpus”.
24 - Porém, já do depoimento das testemunhas arroladas pelos Requeridos e até das próprias declarações de parte da Requerente mulher, resulta sem qualquer dúvida que a Requerente não obstante exerça a posse sobre aquele imóvel, fazia-o na convicção de que tal direito não lhe assistia e que aquela era e está a ser exercida contra a vontade dos Requeridos, que de tudo fizeram para que o mesmo lhes fosse restituído.
25 - Pelo que, salvo melhor opinião da prova realizada nos autos, resulta somente que a Requerente, através do seu representante legal, tem vindo a explorar um alojamento local no imóvel dos Requeridos, sem o seu consentimento, contra a sua vontade e com base num contrato que a própria, em conluio com a Requerida mulher, elaborou e assinou, em troca de favores de que ambos necessitavam.
26 - Assim, existe por parte da Requerente um manifesto abuso de direito, que o Tribunal não poderia deixar de conhecer e muito menos desvalorizar em função de uma posse não titulada, de má fé e contra a vontade real e efectiva dos proprietários do imóvel, que estes sim se veem esbulhados de forma violenta de o poderem utilizar, como legais e exclusivos e legítimos donos do imóvel.
27 - Até porque, seria impossível para qualquer pessoa media considerar que os Requeridos adquiriram o prédio recorrendo ao crédito, pelo qual pagam a prestação mensal de cerca de € 700,00 (setecentos euros) ao banco, para instalarem e exploraram no mesmo um alojamento local e, entretanto, entreguem aquele à Requerente, sem qualquer contrapartida (renda), por 20 (vinte) anos a título de comodato.
28 - Não obstante, não se verificando, a posse da Requerente, nos termos supra expostos, fica prejudicada a análise dos restantes requisitos – esbulho e violência, para que o presente procedimento cautelar fosse julgado procedente por provado.
29 - Diríamos até, que a verificar-se o esbulho, este só poderia ser imputado à Requerente, que através da sua conduta, tem impedido os Requeridos de exercerem, como legais e legítimos proprietários do imóvel, os direitos a ele inerentes, bem como de usufruir do mesmo e dos rendimentos e frutos que aquele é susceptível de produzir.
30 - E, assim, nunca a providência cautelar deveria ter sido dada como provada, ao fazê-lo estamos convictos que o Tribunal a quo cometeu um erro de interpretação da prova realizada em audiência de discussão e julgamento.
Termos em que, e no mais que Vossas Excelências suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência seja a sentença ora proferida revogada, substituindo-se por outra tudo de molde a que a providência cautelar se julgada improcedente por não provada, com o que se fará INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!».
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Os recursos foram admitidos como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.6. Questões a decidir

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso. Por outro lado, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, não podendo o tribunal ad quem analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes ao tribunal a quo. Em matéria de qualificação jurídica dos factos a Relação não está limitada pela iniciativa das partes – artigo 5º, nº 3, do CPC.

Neste enquadramento, são questões a decidir:

i) Ilegitimidade do Requerido A. J.;
ii) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto (verificar se a Recorrente M. N. cumpriu os ónus de especificação que lhe são impostos no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto e, na afirmativa, se existiu erro no julgamento da matéria de facto e em que termos deve ser modificada a matéria de facto);
iii) Falta do requisito animus (elemento subjectivo ou intencional da posse) para o decretamento da providência cautelar de restituição provisória da posse.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto
2.1.1. Na decisão recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:

a) A sociedade Requerente tem como escopo social “alojamento mobilado para turistas, gestão imobiliária e a exploração de actividades turísticas, compra e venda e arrendamento de imóveis”;
b) Requerente e Requeridos celebraram, em 2 de Janeiro de 2019, um acordo, por eles apelidado de contrato de comodato, tendo como objecto o prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão, primeiro e segundo andares com superfície coberta de 212,70 m2 e logradouro de 468,80 m2, sita na Rua ..., …, da freguesia de ..., Ponte de Lima, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº .../19112002 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., com o valor patrimonial de € 176.310,00 (cento e setenta e seis mil, trezentos e dez euros), conforme consta da cópia junta aos autos de fls. 15 a 16 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
c) A Requerente, após a celebração do referido acordo, passou a ocupar o supra-referido imóvel a partir de Abril/Maio de 2019, dedicando-se desde então e ininterruptamente à exploração do alojamento local tendo para o efeito, e já possuidora pelo contrato celebrado, instalado mobiliário, adereços, roupas e utensílios necessários à utilização pretendida prestando serviços de dormida e refeições de pequeno-almoço aos hóspedes que tal solicitassem, tendo despendido, pelo menos, a quantia de € 5.000,005;
d) Procedendo à gestão as plataformas de Internet utilizadas, tais como X, Y, etc., de forma a contratualizar com os interessados nos serviços próprios do alojamento local;
e) Pagando as respectivas despesas referentes a água, electricidade, telecomunicações;
f) Servindo-se de todos os cómodos que integram o aludido imóvel e promovendo a sua limpeza, lavagens de roupas e tudo que é inerente ao exercício da actividade desenvolvida de alojamento local; g) Circulando nele livremente, fazendo dele coisa sua e certa que não lesava interesses alheios, sem a oposição de quem quer que seja;
h) Na convicção de ali se encontrar a laborar por força do acordo referido na alínea b);
i) Desde Outubro de 2019 que a Requerida mulher vem praticando actos que perturbam o exercício da posse por parte da requerida (2) [Requerente] relativamente ao prédio objecto do contrato de comodato;
j) Em meados de Outubro de 2019, a Requerida sem aviso ou autorização prévia invadiu o espaço interior do imóvel, mexeu no computador e pertences da requerida (3) [Requerente] e do seu legal representante, tentando obter os nomes de usurários e palavras-passe das várias plataformas informáticas de gestão turística;
k) No dia 18 de Outubro de 2019 a Requerida, bem sabendo que dentro do imóvel se encontravam clientes, e aproveitando a ausência do legal representante da requerente que tinha ido jantar, invadiu o imóvel dirigindo-se a um dos quartos de hóspedes e sem respeito pela privacidade dos mesmos, intimidando-os, sendo que em consequência os mesmos contactaram o legal representante da Requerente e abandonaram o imóvel muito assustados e desagradados com o sucedido, impedindo desta forma o normal funcionamento do alojamento local;
l) Neste caso, e para minorar o episódio vivenciado e as críticas eventuais nos respectivos sites, o legal representante da Requerente, a expensas da Requerente colocou-os num hotel em Ponte de Lima;
m) Tais factos e condutas da Requerida foram participados à GNR de Ponte de lima, tendo sido autuado com o NIPC 420/19.7GAPTL que corre termos no DIAP de Ponte de Lima;
n) Na sequência de tais acontecimentos, e com receio que a Requerida voltasse a entrar no imóvel por precaução e para evitar novos episódios a representante trocou as fechaduras das portas de acesso ao exterior do imóvel;
o) Contudo, a requerida M. N. não desistiu de realizar acções de intimidação tendo colocado cola na ranhura da caixa de correio do citado imóvel, inviabilizando o depósito da correspondência dirigida à Requerente;
p) Aproveitando-se do facto de o legal representante da Requerente não se encontrar dentro do imóvel durante o fim-de-semana de 1 de Dezembro de 2019, a Requerida munida de um escadote e acompanhada pelo seu pai entrou novamente no imóvel objecto do contrato de comodato celebrado com a Requerente, pela janela da cozinha, partindo para o efeito os vidros, o que lhe permitiu abrir a janela e introduzir-se dentro do imóvel;
q) Uma vez no interior do imóvel, além de retirar grande parte dos lençóis, e toalhas de banho e de mesa pertença da Requerente, ainda lhe subtraiu um aquecedor;
r) Mexeu nos pertences pessoais do legal representante e por fim inutilizou três fechaduras com paus e cola, e trocou a fechadura de uma porta de acesso ao interior do imóvel, a mais utilizada pelo legal representante da sociedade Requerente;
s) Removeu a fechadura do portão de acesso ao logradouro, colocando-lhe um cadeado grosso de ferro e um aloquete, impedindo desta forma o acesso da Requerente ao imóvel e à exploração de alojamento local;
t) O legal representante da Requerente apenas teve conhecimento de tais factos quando regressou ao imóvel no dia 2 de Dezembro de 2019, pelas 23.00 horas;
u) Perante o sucedido chamou a GNR para participar aditamento à queixa apresentada anteriormente, e tentou contactar um serralheiro para mudar a fechadura, contudo sem lograr êxito, uma vez que inexistem tais serviços de urgência quer em Ponte de Lima quer em Viana do Castelo;
v) Assim sendo, o legal representante da Requerente só conseguiu serralheiro para realizar a troca de fechadura por uma de alta segurança na quarta-feira dia 4 de Dezembro de 2019, o que importou uma despesa no montante de € 480,00;
w) No entanto conseguiu entrar para dentro do imóvel com a ajuda das forças policiais, dando de imediato conta do que lhe tinha sido subtraído;
x) Na terça-feira, dia 3 de Dezembro, como ainda não tinha sido realizada a troca de fechadura, o legal representante da Requerente que se encontrava no interior do imóvel, dirigiu-se a uma janela e viu a Requerida e seu pai, com diversas ferramentas inclusive brandindo uma marreta, o que fortemente provocou receio no representante legal da Requerente, o qual chamou a GNR para tomar conta da ocorrência e para retirar a Requerida e seu pai da propriedade;
y) Contudo, e como a GNR demorou a chegar, a Requerida mulher e seu pai conseguiram passar para o logradouro e tentaram aceder ao interior do imóvel;
z) O legal representante da Requerente que se encontrava acompanhado por um casal de amigos, que ante os relatados acontecimentos tinham ido propositadamente para lá, ouviram a Requerida dizer ao pai que naquele dia tomavam conta da casa desse por onde desse, nem que partissem tudo o que lhes aparecesse pela frente à machadada – inclusive quem lhes fizesse frente;
aa) O legal representante da Requerente confrontou-os informando-os que tinha chamado a GNR, e que deveriam abandonar voluntariamente o local;
bb) A GNR demorou tempo a demover a Requerida dos seus intentos, mas conseguiu fazê-lo naquele momento;
cc) Nesse mesmo dia a Requerida ainda se deslocou uma vez mais com o pai à propriedade, munida de várias ferramentas, tendo novamente a Requerente chamado a GNR para os retirar do local;
dd) No dia 4 de Dezembro de 2019, conforme supra-referido, um serralheiro vindo de …, concelho de Gondomar foi colocar uma fechadura de alta segurança numa das portas de acesso ao interior do imóvel para evitar a entrada da requerida, uma vez que todas as outras fechaduras já estavam danificadas e inviáveis de serem utilizadas;
ee) Sucede, porém, que durante o fim-de-semana de 7 e 8 de Dezembro de 2019, aproveitando uma vez mais o facto de o legal representante da Requerente se ter ausentado, a Requerida acedeu mais uma vez ao imóvel e introduziu-se no seu interior através da janela do quarto do legal representante, partindo o vidro para o referido efeito, e uma vez no interior destruiu a fechadura de alta segurança colocada no dia 04.12.2019 pela Requerente;
ff) A Requerida colocou ainda trancas nas portas interiores, impedindo o acesso total da Requerente à parte da casa onde funcionava exclusivamente alojamento local, o que levou a Requerente a cancelar todos os compromissos agendados até ao final do ano;
gg) O legal representante da Requerente deu conta do sucedido no dia 9.12.2019 à noite quando regressou ao imóvel, tendo de imediato chamado a GNR para proceder ao arrombamento da janela do quarto para entrar no imóvel e participado tal facto;
hh) Porém, pelo facto de a GNR não reunir naquele dia e àquela hora meios para proceder ao arrombamento da janela, agendaram tal programa para o dia seguinte;
ii) No dia seguinte, e acompanhado pelos soldados da GNR o requerido (4) [legal representante da Requerente] entrou no imóvel com a ajuda técnica, no entanto viu-se cingido apenas à parte do imóvel onde se encontrava situado o seu quarto, contudo sem poder entrar e sair de casa a não ser pela janela, pelo facto de ter todas as fechaduras inutilizadas, fechaduras estas que não se atreveu a trocar pelo facto de a requerida as inutilizar sistematicamente, e ser inviável em termos financeiros;
jj) A Requerida ainda construiu um aviso de onde constava a proibição de entrar naquele local, e que colocou no logradouro do imóvel;
kk) Durante o final de semana de 14 e 15 de Dezembro de 2019 o legal representante da Requerente deslocou-se ao imóvel, tendo recorrido uma vez mais à força policial, e ao tentar entrar pela janela do seu quarto (única parte da casa a que tinha acesso) deparou-se com uma cena de bruxaria montada pela Requerida;
ll) Tendo dado conta que lhe tinham sido furtados diversos bens pessoais, nomeadamente roupas, televisão, e vários quadros (cerca de dez), desconhecendo no entanto se também foram levados outros bens que se encontravam noutras divisões;
mm) No dia 30 de Dezembro de 2019 quando chegou ao imóvel, a Requerida tinha mudado novamente o cadeado e o aloquete, impedindo totalmente a sua entrada na propriedade que já estava confinada à entrada pela janela para o quarto de dormir;
nn) Com a conduta da Requerida, a Requerente ficou impedida de entrar no imóvel e consequentemente de explorar o alojamento local;
oo) Os Requeridos casaram-se um com o outro em 8 de Setembro de 2001 e divorciaram-se por sentença proferida em 12 de Novembro de 2019, conforme cópia junta aos autos de fls. 69 a 72 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
pp) O prédio descrito na alínea b) foi arrolado como bem comum do casal nos acordos que precederam a decisão de divórcio referida na alínea anterior;
qq) Para adquirirem o imóvel descrito na alínea b), os Requeridos pediram dinheiro emprestado ao banco, sendo que a prestação mensal ascende a € 720,00;
rr) Antes de rasurado, o representante legal da Requerente e a Requerida apuseram as suas assinaturas no documento, apelidado pelas partes de termo de rescisão de contrato de comodato, cuja cópia consta de fl. 72v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
ss) A Requerida celebrou o acordo descrito na alínea b) em seu nome e em representação do Requerido, valendo-se da procuração cuja cópia se encontra junta aos autos de fls. 98 a 99 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
tt) No dia 6 de Setembro de 2019, o Requerido revogou a procuração supra descrita e do facto notificou a Requerida avulsa, pessoal e judicialmente, conforme cópia que se encontra junta aos autos de fls. 107 a 109 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
uu) A Requerida tem projectos próprios relacionados com o turismo e com o alojamento local.
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2.1.2. Na decisão recorrida considerou-se ainda que não se provaram os seguintes factos:
«Do requerimento inicial: inexistem.
Da oposição da requerida: artigos 15º a 20º, 22º a 24º, 26º a 32º, 39º a 44º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea rr), 45º e 54º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea rr).
Da oposição do requerido: artigos 15º, 22º a 24º, 33º a 35º, 39º, 47º, segunda parte, 48º, 49º, segunda parte, 55º, 57º e 58º, 68º a 84º, 86º a 92º, 94º».
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2.2. Da apelação do requerido A. J.
2.2.1. Ilegitimidade do Requerido

O Recorrente A. J. sustenta que se verifica a sua ilegitimidade, uma vez que «não é nem nunca foi o esbulhador, não estava na posse da coisa e não tinha conhecimento do alegado esbulho» e que a decisão recorrida apenas se refere a si quando «se reporta à propriedade do imóvel e ao casamento com a Requerida».
O essencial da sua argumentação consiste na alegação de que «não resulta provado que o Recorrente tenha exercido qualquer ato de violência, quer contra a Requerente ou qualquer seu representante legal ou funcionário; não resulta provado que o Recorrente tivesse, ainda ou em alternativa, exercido qualquer ato de violência contra o bem imóvel melhor descrito nos autos; assim como não resulta provado que o Recorrente tivesse, assim, colocado em crise qualquer posse, ou mera posse, da Requerente ou de terceiros».

Analisado o procedimento cautelar, concluiu-se que se verifica a ilegitimidade do Requerido A. J.. Porém, a ilegitimidade não resulta de não terem ficado demonstrados os elementos que refere no recurso, o que constituiria fundamento de improcedência do procedimento cautelar, mas sim de tais elementos nem sequer terem sido alegados no requerimento inicial, no qual não lhe é imputado – ao Requerido A. J. – qualquer acto conexo com a legitimidade passiva no procedimento cautelar de restituição provisória da posse.

De harmonia com o disposto no artigo 30º, nºs 1 e 2, do CPC, o réu/demandado é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, sendo que tal interesse exprime-se pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
Com especial relevo, dispõe o nº 3 do mencionado artigo, que na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
No caso dos autos não se verifica a falta de indicação da lei, pois, o artigo 1281º, nº 2, do Código Civil estabelece que a acção de restituição de posse pode ser intentada «não só contra o esbulhador ou seus herdeiros, mas ainda contra quem esteja na posse da coisa e tenha conhecimento do esbulho». Caso seja pedida a manutenção da posse, nos termos do nº 1 do referido artigo, a acção pode ser intentada «apenas contra o perturbador, salva a acção de indemnização contra os herdeiros deste».
Portanto, tanto no caso de ser pedida a manutenção da posse como a restituição da posse, a legitimidade passiva está legalmente estabelecida. Somente podem ser demandadas as pessoas que a lei expressamente enuncia.
A ratio de tais preceitos é fácil de entender. No que respeita ao nº 1, se se pede a condenação do perturbador a cessar a prática de actos que causam perturbação, só o próprio perturbador (5) pode ter legitimidade passiva para tal pedido, pois, como é óbvio, não pode alguém ser condenado a abster-se de continuar uma actividade que não tem (6). Quanto ao nº 2, a acção de restituição deve ser intentada contra o esbulhador e, se este entretanto já tiver transmitido a posse a terceiro, a pessoa que esteja na posse da coisa e tenha conhecimento do esbulho, ou seja, um terceiro de má-fé. Ressalva-se a possibilidade da legitimidade passiva se estender aos herdeiros do perturbador, para efeitos indemnizatórios (7), ou do esbulhador.
No caso dos autos, está em causa um procedimento cautelar de restituição provisória da posse, pelo que, em abstracto, podia ser instaurado não só contra o esbulhador ou seus herdeiros, mas também contra terceiro que esteja na posse da coisa esbulhada e tenha conhecimento do esbulho. Dito de uma forma simples, quem tem de ser demandado pelo esbulhado é aquele que lhe tira a coisa; só assim não será se o esbulhador falecer entretanto, caso em que devem ser demandados os seus herdeiros, ou se tiver transmitido a coisa a terceiro e este tiver conhecimento do esbulho, situação em que também deve ser demandado este terceiro.

No requerimento inicial, apesar de a Requerente instaurar o procedimento cautelar contra a Requerida M. N. e o Requerido A. J., nenhum acto de esbulho (ou ao menos de perturbação da sua posse) imputa ao Requerido, assim como não alega que este esteja na posse do imóvel ou que tenha sucedido à Requerida. Embora já irrelevante em sede legitimidade passiva (8), nem sequer foi invocado que o Requerida tinha conhecimento do esbulho.
Portanto, de harmonia com o próprio requerimento inicial, o Requerido não esbulhou a Requerente nem está na posse (9) do imóvel esbulhado.
Ora, se o Requerido, face ao próprios termos do requerimento inicial, não é o esbulhador, não sucedeu a quem privou a Requerente da posse do imóvel e não lhe foi transmitida a respectiva posse, em conformidade com o disposto no artigo 1281º, nº 2, do CCiv., não é parte legítima no presente procedimento cautelar.
A ilegitimidade do Requerido constitui uma excepção dilatória (art. 577º, al. e), do CPC) e acarreta a sua absolvição da instância (art. 278º, nº 1, al. d), do CPC).
Termos em que procede a apelação do Recorrente A. J..
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2.3. Da apelação da recorrente M. N.
2.3.1. Da impugnação da decisão da matéria de facto

2.3.1.1. No âmbito da sua apelação, a Recorrente M. N. aparenta querer impugnar a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância e que se proceda à reapreciação da prova gravada.
E dizemos “aparenta” por a Recorrente não afirmar expressamente que pretende impugnar a matéria de facto.
Só indirectamente se deduz tal pretensão, assentando tal conclusão nos seguintes elementos:
Primeiro, a Recorrente invoca que as suas alegações são «de facto e de direito». Alegar de facto numa apelação poderá ser entendido como pretendendo impugnar a decisão sobre a matéria de facto, pois qualquer outro tipo de alegação será sempre de direito, mesmo quando se analisam e interpretam os factos para daí extrair determinada solução jurídica.
Segundo, em cerca de treze páginas das alegações (págs. 10 a 22) a Recorrente transcreve extractos da gravação da prova produzida na audiência final, referentes a depoimentos de parte e de testemunhas. Ora, a transcrição de extractos da prova gravada só tem sentido útil na apelação em que se impugne a decisão relativa à matéria de facto. No âmbito de uma apelação exclusivamente em matéria de direito a transcrição de extractos de depoimentos é inócua em ordem a alterar a decisão sobre a matéria de facto.
Terceiro, a Recorrente utiliza expressões que revelam uma apreciação do resultado da prova produzida diferente do considerado pelo Tribunal recorrido, como é o caso das seguintes:
- «reportando-nos ao caso concreto e atendendo à prova produzida, estamos em crer que este requisito não se encontra demonstrado na sua globalidade»;
- «São os Requeridos e, designadamente a Requerida mulher, quem demonstrou ao Tribunal a má fé com que a Requerente vinha exercendo esse direito e sobretudo a falta de convicção da mesma, em que o exercício daquele não estava a lesar interesses de outrem. Veja-se as declarações de parte da Requerida mulher prestadas (…)»;
- «Assim, resulta claro que, era do conhecimento do representante da Requerente que a vontade declarada no contrato de comodato junto aos autos, não correspondia à vontade real das partes, que nunca tiveram qualquer intenção em celebrar entre si, nenhum contrato de comodato e nomeadamente o contrato constante dos autos»;
- «Assim, parece claro, que os Requeridos, conseguiram provar que a Requerente agiu como um mero detentor, de má fé, uma vez que sabia que a posse por si exercida, não resultava da real e efectiva vontade das partes em celebrar qualquer contrato de comodato, o que, no dizer da Requerente mulher, consistiu numa “TROCA DE FAVORES”. Neste sentido, veja-se o depoimento da testemunha (…)»;
- «Ao contrário, do depoimento prestados pelas testemunhas arroladas pelos Requeridos e até das próprias declarações de parte, dúvidas não subsistem que o possuidor apesar de exercer a dita posse sobre aquele imóvel, fazia-o na convicção de que tal direito não lhe assistia e que aquela era e está a ser exercida contra a vontade dos Requeridos, que de tudo fizeram para que o imóvel lhes fosse restituído, o que até à presente data não aconteceu, apesar da requerente, ter por um longo período de tempo abandonado o imóvel»;
- «Assim, o que na verdade ficou provado é que a Requerente, através do seu representante legal, vem explorando um alojamento local no imóvel dos Requeridos, sem o seu consentimento, contra a sua vontade e com base num contrato que a própria, em conluio com a Requerida mulher, elaborou e assinou, em troca de favores de que ambos necessitavam»;
- «O Tribunal, não deveria, olvidar-se destes factos, pelo contrário deveria valorizá-los e interpretá-los de acordo com aquilo que são as regras do senso comum, para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa»;
- «Pelo que, salvo melhor opinião da prova realizada nos autos, resulta somente que a Requerente, através do seu representante legal, tem vindo a explorar um alojamento local no imóvel dos Requeridos, sem o seu consentimento, contra a sua vontade e com base num contrato que a própria, em conluio com a Requerida mulher, elaborou e assinou, em troca de favores de que ambos necessitavam»;
- «o Tribunal a quo cometeu um erro de interpretação da prova realizada em audiência de discussão e julgamento».
Pelo exposto, consideramos que a Recorrente pretendeu impugnar a decisão sobre a matéria de facto, com a reapreciação da prova gravada, sendo certo que a não ser assim, sem o acréscimo de 10 dias ao prazo normal para recorrer (v. art. 638º, nºs 1 e 7, do CPC), o recurso teria de ser considerado extemporâneo.
*
2.3.1.2. Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».
No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.
Em todo o caso importa enfatizar que foi afastada a admissibilidade de recursos genéricos sobre a decisão da matéria de facto e o legislador optou «por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente» (10).

Delimitada pela negativa, segundo Abrantes Geraldes (11), a impugnação da decisão da matéria de facto deve ser rejeitada no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
*
2.3.1.3. Na decisão sobre a matéria de facto, ora impugnada, julgaram-se provados, sob as alíneas a) a uu), cinquenta factos e como não provados os supra indicados em 2.1.2., ou seja, cinquenta e seis factos (12).
Aplicando os aludidos critérios ao caso que agora nos ocupa, verifica-se que a Recorrente não especificou, nas conclusões das alegações do seu recurso, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, tal como exige o artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC. Em nenhuma das trinta conclusões das alegações do recurso da Requerida M. N. se indica qualquer dos cinquenta factos provados ou dos cinquenta e seis factos não provados, por referência às respectivas alíneas ou números/artigos, como incorrectamente julgados. Aliás, as conclusões nem sequer contêm qualquer referência expressa à impugnação da decisão da matéria de facto.
Além disso, a Recorrente não toma posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, ou seja, não indica o que concretamente deve ser dado como provado ou não provado.
Em suma: a recorrente não aponta os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados e não indica a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre a factualidade impugnada.
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2.3.1.4. Vejamos qual é, desde logo, a consequência da falta de especificação dos pontos da matéria de facto considerados incorrectamente julgados.
Os recursos para a Relação tanto podem envolver matéria de direito como matéria de facto. Em ambos os casos vigora o ónus de alegar e formular conclusões.
Em conformidade com o disposto no artigo 639º, nº 1, do CPC, seja qual for a espécie e a natureza do recurso, impende sobre o recorrente o ónus de formular conclusões. Quer o recurso verse sobre matéria de direito ou verse sobre matéria de facto, «o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão».
Tratando-se de recurso em matéria de direito, o referido ónus cumpre-se procedendo à indicação dos elementos referidos no nº 2 do artigo 639º do CPC. Se o recurso for em matéria de facto, as conclusões devem especificar os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, tal como estabelecido no artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC.
Sem dúvida que há uma especificidade no recurso que envolve a matéria de facto, mas isso não dispensa o recorrente de formular conclusões. A especificidade reside em apenas se exigir ao recorrente que identifique nas conclusões os concretos pontos de facto que repute incorrectamente julgados. Tudo o mais, ou seja, a fundamentação da imputação do erro de julgamento de facto (13) faz-se na motivação das alegações e já não nas conclusões.
Cingindo a nossa apreciação ao recurso em matéria de facto, poder-se-á perguntar qual a razão de ser da exigência de formulação de conclusões, traduzida na sintética indicação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados.
A razão é perfeitamente clara e compreensível: são aos conclusões que delimitam o objecto do recurso, em consonância com a regra geral que se extrai do artigo 635º do CPC, pelo que a enunciação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente tem de ser feita nas conclusões.
Essa especificação é indispensável, na medida em que as conclusões circunscrevem a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das excepções, na contestação (14). Não sendo, manifestamente, uma questão de conhecimento oficioso, a circunstância de não se especificarem os concretos pontos de facto incorrectamente julgados consubstancia, desde logo, uma falta de indicação do seu objecto.
Com efeito, as conclusões exercem a importante função de delimitação do objecto do recurso, através da identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende impugnar na decisão recorrida e sobre o qual se pretende que o tribunal superior faça uma reapreciação. O tribunal superior só aprecia o objecto definido pelas conclusões e, por isso, não tem de conhecer de uma questão, seja ela factual ou de direito, que não consta das conclusões, a não ser que se trate de matéria de conhecimento oficioso. O que não consta das conclusões não é objecto de conhecimento.
Além de habilitar a um adequado exercício do contraditório pelo recorrido (15), a necessidade dessa especificação está também intimamente ligada às duas regras impostas no artigo 608º, nº 2, do CPC, onde se estabelece que «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Em conformidade com o disposto no artigo 635º do CPC, uma questão considera-se integrada no recurso se constar das conclusões; se assim suceder, o tribunal de recurso tem de resolver a questão que foi submetida à sua apreciação. Pelo contrário, se determinada questão não for indicada nas conclusões o tribunal não pode ocupar-se dela, ou seja, não pode dela conhecer, excepto se lhe for imposto o conhecimento oficioso.
Sendo assim, num recurso em matéria de facto, se o tribunal de recurso não aborda um ponto de facto que o recorrente identifica como incorrectamente julgado, verifica-se uma nulidade por omissão de pronúncia (artigos 666º, nº 1, e 615º, nº 1-d, 1ª parte, do CPC); se decide relativamente a um ponto de facto que o recorrente não identificou como incorrectamente julgado, em princípio, comete uma nulidade por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1-d, 2ª parte, do CPC).
Vejamos agora qual é a consequência da falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados.
Por um lado, excepto em matéria de que lhe cumpre apreciar oficiosamente, é inequívoco que o tribunal superior não pode conhecer de uma questão que não foi enunciada nas conclusões.
Por outro lado, a lei expressamente impõe a rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto quando o recorrente não especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados – artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC. Estabelecendo um paralelismo com a petição inicial, tal como esta está ferida de ineptidão quando falta a indicação do pedido, também as conclusões num recurso em matéria de facto em que não se indicam os concretos pontos de facto incorrectamente julgados são “ineptas”.
E não se justifica sequer a prolação de qualquer despacho de convite à sua indicação. Foi propósito deliberado do legislador não instituir qualquer convite ao aperfeiçoamento das alegações a dirigir ao apelante. Por um lado, a lei é a este respeito imperativa, ao cominar a imediata rejeição do recurso, nessa parte, para a falta de cumprimento pelo recorrente do referido ónus processual. Por outro lado, não há lugar a convite ao aperfeiçoamento das conclusões, uma vez que o artigo 652º, nº 1, al. a), do CPC apenas prevê a intervenção do relator quanto ao aperfeiçoamento das «conclusões das respectivas alegações, nos termos do nº 3 do artigo 639º», ou seja, quanto à matéria de direito e já não quanto à matéria de facto.

Termos em que se rejeita o recurso em matéria de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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2.3.2. Falta do elemento volitivo da posse

Nos autos está em causa um procedimento cautelar de restituição provisória de posse e, a esse propósito, em consonância com o estabelecido no artigo 1279º do Código Civil, dispõe o artigo 377º do Código de Processo Civil:
«No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência».

Portanto, a procedência da providência cautelar de restituição provisória de posse depende da alegação e prova dos três requisitos indicados nos artigos 377º e 378º do Código de Processo Civil:
- a posse (o tribunal tem de concluir que o requerente é, pelo menos, aparentemente, titular da posse, ou seja, que actua por forma correspondente ao exercício de determinado direito real);
- o esbulho (é preciso mais do que uma turbação da posse; é necessário que o requerente seja privado da posse que tenha sobre a coisa, ficando impedido de a continuar);
- a violência (pode ser física ou moral, isto é, o esbulho pode resultar do emprego de força física ou de intimidação contra o possuidor; a possibilidade concedida ao possuidor de ser restituído à posse imediatamente, antes de julgada procedente a acção, radica na violência cometida pelo esbulhador).
O Tribunal de primeira instância entendeu que estavam reunidos todos esses requisitos, pelo que decretou a providência requerida e, após dedução de oposição, manteve-a.
Decretada providência de restituição provisória de posse, o requerido pode deduzir oposição, alegando factos (ou excepções) ou produzindo meios de prova não tidos em conta pelo tribunal, com vista a obter a revogação ou redução da providência cautelar.
É contra a decisão proferida sobre a oposição que a Requerida M. N., ora Recorrente, reage, sustentando que «o requisito do animus não se encontra demonstrado na sua globalidade, porquanto, a Requerente, demonstrou a existência do “corpus” mas não logrou demonstrar a existência a seu favor do “animus”» e que existe «tão só uma mera detenção por parte da Requerente, baseada num contrato de comodato celebrado».
Sustenta ainda que a «a Requerente, através do seu representante legal, tem vindo a explorar um alojamento local no imóvel dos Requeridos, sem o seu consentimento, contra a sua vontade e com base num contrato que a própria, em conluio com a Requerida mulher, elaborou e assinou, em troca de favores de que ambos necessitavam».

Verifica-se que este último argumento não tem qualquer apoio nos factos provados. Pese embora tenha sido alegada essa versão sobre a existência de um conluio entre a Requerente e a Requerida, isto é, que o contrato de comodato foi simulado, inserido no âmbito de uma «troca de favores de que amb[a]s necessitavam», os factos que alicerçavam a mesma não resultaram demonstrados. Por isso, improcedem as conclusões que a Recorrente formulou com base em factos não demonstrados, na parte em que ainda não se encontravam prejudicadas pela rejeição da apelação em matéria de facto.

Sendo assim, resta apurar se o poder de facto exercido pela Requerente sobre o imóvel dos Requeridos é dotado, em simultâneo, de animus.
A palavra posse inculca vulgarmente a ideia de poder de facto exercido sobre certa coisa, no sentido de controlo material dela. Em sentido técnico-jurídico, a posse integra a presença cumulativa de dois elementos distintos: o corpus e o animus. Para que seja juridicamente relevante, além do poder de facto sobre a coisa – o corpus –, é necessário que exista uma específica disposição anímica por parte de quem exercer o corpus, consistente na intenção de agir como se fora titular do direito de propriedade ou de um direito real limitado. Esse elemento volitivo ou subjectivo da posse designa-se por animus possidendi.
Em conformidade com as alíneas b) e c) da matéria de facto, a Requerente tem o poder de facto sobre o imóvel em virtude de um contrato de comodato (art. 1129º do CCiv.) que celebrou com os Requeridos em 02.01.2019.
A Requerente ocupa o imóvel desde Abril/Maio de 2019, na qualidade de comodatária. É uma relação jurídica de mera detenção (16), mas que lhe proporciona o poder de facto sobre o imóvel descrito em a) dos factos provados.
Porém, a lei estende ao comodato a tutela possessória. É inequívoco o artigo 1133º, nº 2, do CCiv., ao dispor que «se este [o comodatário] for privado dos seus direitos ou perturbado no exercício deles, pode usar, mesmo contra o comodante, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276º e seguintes». Se for privado da coisa, o comodatário tem o direito de obter a sua restituição, mesmo contra o comodante, através do procedimento cautelar de restituição provisória da posse ou de qualquer outra acção possessória.
Estando demonstrado que a Requerente tem sobre a coisa uma actuação de facto correspondente ao exercício do direito (17), verifica-se que na sua actuação também está presente o elemento subjectivo – o animus.
Com efeito, provou-se, sob as alíneas g) e h) da matéria de facto, que relativamente ao imóvel descrito em b) a Requerente actua «fazendo dele coisa sua e certa que não lesava interesses alheios» e «na convicção de ali se encontrar a laborar por força do acordo referido na alínea b)» (18). Portanto, além de ter o poder de facto, emergente do contrato de comodato, a Requerente também tem actuado com a intenção de exercer, como titular, o direito de comodatária sobre o imóvel dos autos.
Por isso, a Requerente tem direito à tutela possessória que lhe é conferida pelos artigos 1133º, nº 2, 1277º, 1278º, nº 1, e 1279º do CCiv. e 377º e 378º do CPC, sendo certo que também se provou tanto o esbulho como a violência utilizada no mesmo.
Aliás, a demonstração de que estavam reunidos os requisitos da restituição provisória da posse foi feita de forma exemplar na decisão recorrida, pelo que não pode deixar de ser mantida.
Quanto à alegada actuação da Requerente em abuso do direito, afirmada na conclusão 26ª das alegações da Recorrente («existe por parte da Requerente um manifesto abuso de direito, que o Tribunal não poderia deixar de conhecer e muito menos desvalorizar em função de uma posse não titulada, de má fé e contra a vontade real e efectiva dos proprietários do imóvel, que estes sim se vêem esbulhados de forma violenta de o poderem utilizar, como legais e exclusivos e legítimos donos do imóvel»), verifica-se que é alicerçada em factos não demonstrados. Pelo contrário, resulta dos factos provados que a Requerente entrou na detenção do imóvel de forma pacífica (19), não esbulhou quem quer que seja, não utilizou para o efeito de violência e o poder de facto que exerce sobre a coisa é titulado por emergir de um contrato de comodato (20).
Aliás, não está em causa o facto de os Requeridos serem donos do imóvel, o que ninguém põe em causa, mas sim o facto de o mesmo ter sido dado de comodato à Requerente, que passou a deter o poder de facto sobre o objecto mediato do contrato celebrado em 02.01.2019, e de dele ter sido privada através de um acto de esbulho violento. Por isso, não se descortina qualquer actuação da Requerente que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito que emerge do contrato de comodato. Nenhum dos três limites assinalados no artigo 336º do CCiv. a Requerente excedeu.

Em suma: é inequívoco o acerto da decisão de manter a providência cautelar de restituição provisória de posse.

Termos em que improcede a apelação da Recorrente M. N..
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2.4. Sumário

1 – O procedimento cautelar de restituição provisória da posse pode ser instaurado não só contra o esbulhador ou seus herdeiros, mas também contra terceiro que esteja na posse da coisa esbulhada e tenha conhecimento do esbulho. Quem tem de ser demandado pelo esbulhado é aquele que lhe tira a coisa; só assim não será se o esbulhador falecer entretanto, caso em que devem ser demandados os seus herdeiros, ou houver transmitido a coisa a terceiro e este tiver conhecimento do esbulho, situação em que também deve ser demandado este terceiro.
2 – Se um dos requeridos, face ao próprios termos do requerimento inicial, não é o esbulhador, não sucedeu a quem privou a requerente da posse da coisa e não lhe foi transmitida a respectiva posse, em conformidade com o disposto no artigo 1281º, nº 2, do Código Civil, não é parte legítima no procedimento cautelar.
3 – A não especificação, nas conclusões das alegações, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, determina a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto.
4 – Se for privado da coisa emprestada, o comodatário tem o direito de obter a sua restituição, mesmo contra o comodante, através do procedimento cautelar de restituição provisória da posse ou de qualquer outra acção possessória.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar:
3.1. Procedente a apelação do Requerido A. J., revogando-se no que respeita ao mesmo a decisão recorrida, que se absolve da instância;
3.2. Improcedente a apelação da Requerida M. N., mantendo-se a decisão recorrida.
Custas da apelação do Requerido a suportar pela Requerente/Recorrida.
As custas da apelação da Requerida serão suportadas por esta.
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Guimarães, 01.10.2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Trata-se de um evidente lapso de escrita, revelado pela própria redacção da alínea: a Requerida mulher vem praticando actos que perturbam a posse, não da própria, mas da contraparte, a Requerente. Por isso, na decisão recorrida consta “requerida” mas deve considerar-se que se pretendeu dizer “Requerente”.
3. Novo lapso material ao escrever-se requerida, quando era Requerente, como se torna patente da expressão que se segue àquela: “e do seu legal representante”.
4. Trata-se de novo lapso material, o qual, tal como os anteriores, já emergia do requerimento inicial. O sujeito da acção é o legal representante da Requerente e não o Requerido, o que facilmente se retira da sequência dos factos e seu enquadramento.
5. Mas, no nosso entendimento, deve ser considerado perturbador tanto aquele que executa materialmente o acto de perturbação como aquele que o ordena – ambos são autores do acto.
6. Elsa Sequeira Santos e Rui Pinto, in Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.), 2ª edição, Almedina, pág. 64.
7. Em conformidade com as regras do direito sucessório – art. 2024º do CCiv.
8. O conhecimento do esbulho por parte do Requerido só seria relevante, para efeitos de legitimidade passiva, se ele estivesse na posse da coisa. O conhecimento do esbulho sem posse é um elemento que não releva para efeitos de determinação da legitimidade passiva na acção de restituição da posse.
9. No artigo 1281º do CCiv. emprega-se o termo posse em sentido próprio (art. 1251º).
10. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 163. No mesmo sentido Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, pág. 463.
11. Ob. cit., págs. 168 e 169.
12. Ressalva-se eventual erro de contagem.
13. Os fundamentos ou requisitos da impugnação relativa à matéria de facto que se mostram enunciados no artigo 640º, nº 1, alíneas b) e c), e nº 2, do CPC.
14. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 115.
15. Com a especificação das questões que se colocam ao tribunal ad quempara resolução, o recorrido fica a saber exactamente o que se discute no recurso e, por isso, está em condições de responder à alegação do recorrente – art. 638º, nº 5, do CPC.
16. V. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 6.
17. V. as alíneas c) a g) dos factos provados, sendo que na primeira delas consta: «A Requerente, após a celebração do referido acordo, passou a ocupar o supra-referido imóvel a partir de Abril/Maio de 2019, dedicando-se desde então e ininterruptamente à exploração do alojamento local tendo para o efeito, e já possuidora pelo contrato celebrado, instalado mobiliário, adereços, roupas e utensílios necessários à utilização pretendida prestando serviços de dormida e refeições de pequeno-almoço aos hóspedes que tal solicitassem, tendo despendido, pelo menos, a quantia de € 5.000,005».
18. São, por isso, improcedentes as conclusões 13 e 14, sobretudo quando invoca que «a Requerente, não logrou demonstrar, no exercício do seu alegado direito, a boa-fé e a convicção de que não estaria a lesar interesses de outrem». Trata-se de uma afirmação contrária aos factos dados como provados.
19. V. als. c) a g) dos factos provados, sendo que circulava no imóvel de forma livre e «sem a oposição de quem quer que seja».
20. V. al. b) dos factos provados.