Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
375/16.0GAVLP.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: AMEAÇA
ELEMENTOS TÍPICOS DO CRIME
MAL FUTURO
ARTºS 153º Nº 1 E 155º Nº 1 AL. A)
DO CP E 86º 3º DA LEI Nº 5/2006 DE 23/02
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Ainda que a doutrina e a jurisprudência estejam de acordo em que uma das características essenciais do crime de ameaça reside em vaticinar-se um mal futuro, sobre a interpretação desta expressão é de aderir ao entendimento de que haverá ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante uma execução iminente, pelo que o mal anunciado terá a característica de mal futuro desde que não se trate já duma tentativa criminosa.

II) Sempre que alguém dirija a outrem uma expressão, verbal ou de outra natureza, de anúncio de causação de um mal, não acompanhando essa ação com os atos de execução correspondentes, permanecendo inativo em relação à execução do mal anunciado, todo o tempo que durar essa inação e se mantiver a possibilidade de o mal anunciado se concretizar é futuro, em termos de interpretação da expressão em causa.

III) Assim, integra o anúncio de um mal futuro a frase "tenho aqui a arma para lhe dar um tiro nos cornos", proferida pelo arguido, dirigindo-se à mulher do ofendido e referindo-se a este, na medida em que não foi acompanhada de qualquer ato de execução nem esta poderia ser levada a cabo de imediato, por o visado não se encontrar presente, mas sim nas proximidades, não estando o mal anunciado na iminência de acontecer.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de juiz singular, com o NUIPC 375/16.0GAVLP, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real - Juízo de Competência Genérica de Valpaços, realizado o julgamento, foi proferida sentença a condenar o arguido, C. T., como autor material de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos arts. 153º e 155º, n.º 1, al. a), do Código Penal, e 86º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 8,00, no total de € 1.280 (mil duzentos e oitenta euros).
2. Não se conformando com essa condenação, o arguido recorreu da sentença, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem (correspondentes à reformulação das inicialmente apresentadas e que, pela sua extensão, não correspondiam a um resumo dos fundamentos do recurso) [1]:

«CONCLUSÕES:

1- Face à prova carreada para os autos e à produzida em Audiência de Julgamento impunha-se uma decisão diferente da que veio a ser proferida na sentença recorrida.
2- Decisão que devia absolver o arguido/recorrente da prática do crime de que vinha acusado.
3- O Recorrente não praticou o crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art.153º e 155º, nº 1, al. a), ambos do Cód. Penal, e art. 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
4- O Tribunal “a quo” apreciou mal a prova produzida e enquadrou legalmente a mesma erradamente, violando o disposto nos arts. 153º, 155º do Cód. Penal, o art. 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, e violou o disposto no art. 127º do Cód. Proc. Penal.
5- O presente recurso tem também por fundamentos a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, e o erro notório na apreciação da prova, e tudo à luz das regras da experiência comum – art. 410º nº 1 e 2, als. a), b) e c)-.
6- Tem, ainda, por fundamento, a produção de uma sentença contrária à Jurisprudência e Doutrina maioritárias, no que concerne à alegada frase que constitui o eventual crime de ameaça, atento o seu tempo verbal.
7- A acusação resume-se ao constante do seu ponto 3, quando ali se diz o seguinte “Nessa sequência, ao mesmo tempo que lhe exibiu uma espingarda caçadeira que trazia consigo, disse-lhe: “Tenho aqui uma arma carregada para lhe dar um tiro nos cornos!”.
8- No Auto de Ocorrência junto a fls. 65, dos autos, consta que a expressão alegadamente produzida pelo arguido foi tenho aqui uma arma carregada para arrebentar com o teu marido”.
9- Esta expressão nada tem a ver, nenhuma similitude tem com a que consta da acusação.
10- Quando na motivação da sentença o Tribunal “a quo” diz que há ligeira discrepância de expressões e que esta é irrelevante no caso dos autos, está, para além do mais, a escamotear a razão de ciência das testemunhas e a validar testemunhos falsos.
11- O tribunal não podia dar como provado que o arguido proferiu a expressão constante da acusação, já que não se fez prova da mesma.
12- Podia e devia ter posto em causa a veracidade do testemunho das testemunhas da acusação, mas não o fez.
13- Admitir que uma mesma pessoa, no mesmo processo, em momentos diferentes diga sobre uma mesma pretensa realidade palavras e frases completamente distintas, quando o que está em causa é julgar criminalmente uma pessoa, é abrir uma caixa de pandora na justiça.
14- O tribunal, na opinião da defesa, no caso concreto e atendendo aos depoimentos das testemunhas de acusação, só podia chegar à conclusão, até pelas regras da experiência comum, que nada se passou como foi relatado e como foi dado como provado na sentença recorrida.
15- Nesta parte, não restam dúvidas que o tribunal “a quo” fez uma errada apreciação da prova e violou os mais elementares princípios das regras da experiência comum.
16- Diz-se na sentença recorrida que o que consta da acusação é que delimita o objeto do processo, para justificar ter dado como provado que a expressão alegadamente proferida pelo arguido foi a que consta da acusação e não a que consta do Auto de Ocorrência.
17- Salvo o devido respeito, para além de outras razões que não importa aqui considerar, o que interessa e deve interessar ao tribunal é apurar a verdade dos factos, é chegar à verdade material.
18- A delimitação do objeto do processo não é e não pode ser estanque, sendo que a busca da verdade é um desiderato da justiça que tem de estar, ou devia estar sempre presente nas decisões dos tribunais, sendo que em qualquer altura do processo a alteração não substancial ou substancial dos factos constantes da acusação pode ocorrer ao abrigo do disposto nos arts. 358º e 359º do Cód. Proc. Penal.
19- Em suma, a sentença recorrida devia ter absolvido o arguido por falta de prova, ou no mínimo, ao abrigo do princípio do “in dúbio pró réu”, já que a acusação não logrou fazer a prova que lhe competia, ou seja, aquela que não deixa qualquer dúvida.
20- Foi dado como provado que no dia 4 de Novembro de 2016 o queixoso J. A. C. e o arguido mantiveram uma conversa acerca das delimitações dos prédios, não tendo chegado a entendimento – ponto 1 dos factos provados- e foi dado como provado no ponto 2 da sentença recorrida que, “…porquanto havia ficado desagradado pelo diálogo anteriormente ocorrido, em 5.11.2016, o arguido seguia na condução …”
21- Importa atentar e sublinhar esta expressão “desagradado”. É que, dar como provado que o arguido ficou desagradado, não é o mesmo que dar como provado que o arguido ficou irado, possesso, revoltado. Uma expressão, a primeira, leva normalmente a um sentimento de desgosto, aborrecimento, as outras, levam a sentimentos de enfurecimento, raiva, insubmissão. Ora, só estas, é que eventualmente podiam levar a que o arguido, ou qualquer outra pessoa normal e comum como ele, pudesse tomar qualquer iniciativa de ameaçar matar, ou mesmo matar alguém. Esta é uma verdade ou realidade que as regras da experiência comum, o bom senso e a racionalidade nos indicam e convencem que assim é.
22- Do depoimento de J. A. C. não se pode retirar fundamento, causa, para que tenha havido litígio entre as partes, tenha havido motivo para o arguido ficar aborrecido, muito menos depois do mesmo ter dito que a conversa foi longa, cerca de 30 minutos.
23- As testemunhas da acusação nada nos dizem de concreto que possa justificar a ira do arguido, muito menos de querer matar ou ameaçar matar.
24- E à luz das regras da experiência comum e do normal e costumeiro comportamento humano, é por demais sabido que se tivesse havido qualquer litígio, desavença, ou desentendimento, o mais natural era ter havido imediatos insultos e agressões mútuas, o que, como se sabe, não aconteceu.
24- As próprias testemunhas de acusação afirmaram que no dia 4/11/2016, depois do arguido se ter ido embora, as mesmas não falaram sequer entre si na conversa que tinham tido com aquele e que terá durado, no dizer de ambas as testemunhas da acusação, cerca de 30 minutos. E como disse a testemunha A. C., “Não, nesse dia não houve chatices nenhumas”.
25- As regras da experiência comum, da lógica, da razão, no agir do pensar humano, não foram tidas em conta pelo tribunal.
26- De contrário, o tribunal teria concluído que nenhuma razão plausível e justificada existia para que o arguido tivesse o comportamento que o tribunal diz que teve.
27- O tribunal fez, pois, uma errada apreciação da prova produzida e, consequentemente, produziu uma decisão também errada e injusta. O tribunal teria que absolver o arguido.
28- Constata-se, à saciedade, que a testemunha A. C. foi levada a dizer coisas que anteriormente não tinha dito e que se contradisse ostensivamente.
29- Não produziu esta testemunha um depoimento isento, credível, espontâneo, sereno, objetivo, constante e inabalável, como na sentença recorrida é afirmado.
30- Antes pelo contrário. Ouça-se a gravação deste depoimento, para aquilatar da forma e tom com que a testemunha respondeu ao advogado da defesa. É bem sintomático da falta de isenção, serenidade, credibilidade e até falta de urbanidade para com o signatário. Tudo e sempre com a passividade do tribunal.
31- E com a objeção do tribunal a que a defesa confrontasse a testemunha com perguntas que, para além do mais, tinham também como objetivo obter resposta à razão de ciência daquela. O que, como é por demais sabido, é condição essencial para se aferir da credibilidade que os testemunhos merecem.
32- Em conclusão, a defesa, ao contrário do tribunal, entende que o depoimento da testemunha A. C. não merece credibilidade. E, no mínimo, devia ter suscitado no tribunal sérias reservas quanto à veracidade dos factos que relatou em audiência de julgamento, posto que, ao contrário do afirmado na sentença recorrida, o seu depoimento não foi sereno, nem objetivo, nem constante, muito menos inabalável.
33- E sendo esta a única testemunha que alegadamente presenciou o invocado facto criminoso, o tribunal devia ter absolvido o arguido, por falta de prova.
34-Ou no mínimo pelo princípio do “in dúbio pró réu”.
35- As expressões que alegadamente constituem crime e que constam, uma da acusação, outra da sentença e que o tribunal “a quo” deu como provada, ambas são feitas na forma verbal do presente do indicativo.
36- São expressões de ameaça de um mal presente, que não de um mal futuro.
37- Face ao depoimento das testemunhas de acusação, o arguido sabia onde se encontrava o visado da alegada ameaça, podendo, se tivesse querido, oportunidade de dar um tiro no visado logo ali e de imediato. O que não aconteceu.
38- Donde, o eventual receio ou medo do visado não ter qualquer fundamento, nem se poder dar como provado, ao contrário do decidido pelo tribunal.
39- Pelo que não se verifica este requisito do tipo de crime de ameaça.
40- Por outro lado, a consumação do crime de ameaça supõe o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem mal futuro, que constitua crime e que produza nele medo ou inquietação e prejuízo na sua liberdade de determinação.
41- O mesmo é dizer, que ao contrário do que o tribunal afirma, a ameaça podia ter-se concretizado logo naquele momento.
42- E não se podia concluir, como fez o tribunal erradamente, tratar-se de um mal futuro, antes e só um mal presente e imediato.
43- Há o anúncio de um mal futuro sempre que as palavras suscetíveis de provocar medo ou intranquilidade não tiverem sido proferidas na iminência da «execução» do crime anunciado, no sentido em que esta expressão é tomada para os efeitos de tentativa.
44- No caso concreto, atendendo ao espaço temporal - segundos - entre a produção da afirmação à testemunha A. C. e o encontro/cruzamento dos veículos na estrada do arguido e do visado J. A. C., é de concluir que não estamos perante um crime de ameaça, antes, eventualmente, perante a iminência da prática de um crime.
45- Falta, pois, também este requisito essencial para que o tipo legal do crime de ameaça ficasse preenchido.
46- Ao decidir, como decidiu, o tribunal fez uma errada apreciação e interpretação da matéria de facto, com a consequente violação do disposto no art. 153º e 154º do Cód. Penal, posto que não se verificam todos os requisitos cumulativos exigidos para este tipo legal de crime se consumar.
47- Donde, dever ter sido o arguido, também por esta via e com este fundamento, absolvido da acusação que lhe foi imputada.
48- Em conclusão, deve o Recorrente ser absolvido da prática do crime de que vem acusado, substituindo-se a sentença recorrida por outra que decida em conformidade.

Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se a mesma por outra que absolva o arguido, assim se fazendo sã e inteira
JUSTIÇA»

3. A Exma. Procuradora-Adjunta na primeira instância respondeu ao recurso, terminando a sua contramotivação nos seguintes termos (transcrição):

«Concluindo:

1. Para que haja erro notório na apreciação da prova é necessário que a decisão do julgador, que foi fundamentada na sua livre convicção, seja uma decisão, de entre as possíveis, aquela que é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum;
2. Para que existisse erro notório na apreciação da prova necessário era que fossem dado como provados factos incompatíveis entre si, ou que fossem dados como provados factos contrários à prova produzida;
3. Para que houvesse contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão era necessário que, de acordo com um raciocínio lógico, fosse de concluir que a fundamentação da matéria de facto levasse a uma decisão oposta à que foi tomada;
4. Nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador;
5. Assim, na valoração da prova, o julgador é livre de formar a sua convicção desde que, para tanto, a mesma não seja contra as regras da experiência, da lógica e da razão;
6. Da sentença não resulta qualquer erro notório na apreciação da prova nem uma contradição entre a fundamentação da matéria de facto e dos factos provados;
7. Em face da fundamentação consignada na sentença recorrida, na qual, no uso do princípio da livre apreciação da prova, se encontra explanado o processo de formação da convicção a que chegou o tribunal recorrido, de forma isenta, crítica, lógica e racional, cremos que a mesma decisão não merece qualquer reparo.
8. Para que fosse violado o princípio in dubio pro reo necessário seria que o Tribunal a quo tivesse ficado com dúvidas sobre os factos e que perante essas dúvidas tivesse decidido contra o arguido, o que, in casu¸ não sucedeu, uma vez que o Tribunal a quo não ficou com dúvida alguma sobre como os factos ocorreram e que, como tal, fez constar na matéria dada como provada.
9. O que o recorrente pretende é substituir a convicção do tribunal pela sua própria versão.
10. O crime de ameaça concretizou-se quando o recorrente interpelou a testemunha A. C., perguntou pelo paradeiro do seu marido e comunicou-lhe que iria dar-lhe um tiro, forçosamente e uma vez que o ofendido J. A. C. aí não se encontrava, em momento posterior, o que sabia que lhe seria transmitido.
11. Qualquer pessoa naquelas circunstâncias e qualquer cidadão conhecedor da situação só podia interpretar aquela locução como uma ameaça de um mal futuro, porque adequada a criar medo ou inquietação no denunciante ou de o privar da sua liberdade de decisão e de ação.
12. Consequentemente, o tribunal a quo só poderia ter chegado à conclusão que fez consignar na motivação da douta sentença recorrida e ao seu enquadramento jurídico-penal.
13. Atento tudo o que se deixou exposto é nosso entendimento que a sentença recorrida não violou qualquer disposição legal, mostrando-se a condenação bem fundamentada e a pena aplicada justa e adequada.

Sendo assim, nenhum reparo merece a sentença recorrida.

Como tal, deve o recurso apresentado pelo arguido ser declarado improcedente por infundado, mantendo-se tal sentença e a condenação que lhe foi imposta.

TERMOS EM QUE, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, mantendo a sentença recorrida farão V. Exas. JUSTIÇA.»

4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, perfilhando integralmente a posição defendida pelo Ministério Público na instância recorrida, considerando que a Exma. Procuradora Adjunta respondeu de forma clara e cabal, analisando detalhadamente e com muito acerto as questões levantadas pelo recorrente, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.
5. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu a esse parecer.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do mesmo código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR

Dispondo o art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que "a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido", são, pois, as conclusões que constituem o limite do objeto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso [2].

Assim, balizadas pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar são as seguintes:

a) - A existência, na sentença recorrida, dos vícios decisórios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova.
b) - A impugnação da matéria de facto por erro de julgamento, com invocação da violação do princípio in dubio pro reo.
c) - A verificação dos elementos típicos do crime de ameaça.

Refira-se, a título de questão prévia, o seguinte:

No início do corpo da motivação, o recorrente, ao abrigo do disposto no art. 380º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, requer a correção da sentença recorrida, por esta não cumprir o que vem disposto na al. d) do n.º 1 do art. 374º do mesmo diploma, uma vez que, no respetivo relatório é afirmando que “o arguido apresentou rol de testemunhas (fls. 126)”, mas não se diz que o mesmo apresentou contestação, negando a prática dos factos de que vem acusado.

Porém, nas conclusões reformuladas que apresentou, o recorrente abandonou essa pretensão, não a incluindo no resumo dos fundamentos do recurso, pelo que este tribunal não tem de a apreciar, consabido que é, como referem Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques [3], que «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC [art. 635º, n.º 4 do Novo Código de Processo Civil]».

Ainda que a correção da sentença pudesse ser determinada oficiosamente pelo tribunal, o certo é que o facto de o recorrente ter posto de lado o referido pedido encontra justificação na circunstância de a Mª. Juíza a quo, ao admitir o recurso, já ter corrigido a sentença, nos precisos termos por ele pretendidos (cf. despacho de fls. 182), independentemente da respetiva relevância. Assim se compreende que, nas conclusões que reformulou, o recorrente tenha abandonado tal pretensão, por a mesma se ter tornado absolutamente desnecessária.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA

É do seguinte teor a motivação de facto constante da sentença recorrida (transcrição):

«Factos provados:

Com interesse para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. A 04.11.2016, o arguido era possuidor e o ofendido J. A. C. era proprietário de prédios rústicos confinantes, data em que mantiveram uma conversa acerca das suas delimitações, não tendo chegado a qualquer entendimento.
2. Assim, e porquanto havia ficado desagradado com o diálogo anteriormente ocorrido, em 05.11.2016, o arguido seguia na condução do seu veículo automóvel, por um caminho sito no Lugar de Terrundes, em Póvoa do Lila, Rio Torto e, apercebendo-se da presença naquele local de A. C., mulher do ofendido J. A. C., que circulava apeada, imobilizou o seu veículo e perguntou-lhe pelo seu marido, tendo aquela respondido que o mesmo se encontrava ali perto na realização de trabalhos agrícolas.
3. Nessa sequência, ao mesmo tempo que lhe exibiu uma espingarda caçadeira que trazia consigo, disse-lhe:
“Tenho aqui a arma para lhe dar um tiro nos cornos!”
4. Tal expressão, como o arguido bem sabia, atenta a forma como foi proferida, seria transmitida ao ofendido pela sua mulher e ainda que era adequada a provocar receio e intranquilidade no ofendido, como foi tudo aliás sua intenção e como efetivamente veio a suceder, perante a possibilidade de que pudesse vir a concretizar o intento que anunciava.
5. Agiu, assim, o arguido, no propósito conseguido de atingir o ofendido no seu sentimento de segurança no que à sua integridade física e vida diz respeito.
6. Agiu ainda o arguido de modo livre, deliberado e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se absteve de a prosseguir.

Das condições pessoal e económica do arguido em especial:

7. O arguido é comerciante, vendendo fruta.
8. Aufere entre € 400 a € 600,00 mensais.
9. Tem dois filhos, de 4 anos e 10 meses.
10. Vive com estes e a esposa em casa própria.
11. A sua mulher é professora, auferindo cerca de € 800,00 mensais.
12. Tem o 9º ano de escolaridade.
13. O arguido não regista antecedentes criminais.

Mais se provou que:

14. O arguido é tido como boa pessoa e trabalhador.

Factos Não Provados

A. Que o arguido já fosse proprietário de terreno confinante com o do ofendido a 04/11/2016.
B. Que o veículo conduzido pelo arguido fosse do tipo 4x4.
C. Que nas circunstâncias referidas em 3. o arguido tenha referido que a arma estava ” carregada”.

Motivação da matéria de facto

Nos termos do disposto no art. 124.º do C.P.P. constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicável.
O princípio básico que norteia a apreciação da prova é o da sua livre apreciação tal como prescrito pelo art. 127.º, n.º 1 do C.P.P.: «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente».
A este propósito, releva a apreciação feita pelo Cons. Armando Leandro no Ac. do STJ de 16/01/2002, Proc. nº 3649/01 - 3ª Secção, que afirma o seguinte:

“O critério da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP, não significa a possibilidade de apreciação puramente subjetiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objetiva e crítica e em boa medida objetivamente motivável, em harmonia com as regras da lógica, da razão, das regras da experiência e dos conhecimentos científicos; engloba porém não só os factos probandos apreensíveis por prova direta mas também os factos indiciários, no sentido de factos que, por deduções e induções objetiváveis a partir deles, tendo por base as referidas regras, conduzem à prova indireta daqueles outros factos, que constituem o tema da prova; tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve porém, naturalmente, também elementos subjetivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer com honestidade e maturidade para melhor impedir que possam ser fonte de arbitrariedade e permitir atuem, pelo contrário, como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível”.
Inspirados por este mote cumpre, então, explanar os elementos probatórios nos quais se baseou o tribunal para dar como provados e não provados os factos supra elencados.

Assim, os factos provados baseiam-se nos seguintes meios de prova:

Prova testemunhal:
- J.A.C.;
- A. C.;
- A. P.;
- M. B.;
- J. R.;
- A. C.;
- A. M.;

Prova documental:
- Auto de ocorrência de fls. 65;
- Auto de busca e apreensão e documentos relativos às armas de fogo apreendidas de fls. 35-37, 41-48, 77-81
- Informações da PSP de fls. 67
- CRC de fls. 125;
- Escritura de fls. 133-136;
- O arguido não prestou declarações, remetendo-se ao silêncio.

Para prova do facto assente em 1., foi tido em conta o teor da escritura pública constante de fls. 133-136 dos autos, o qual atesta que apenas a 30/01/2017 o arguido adquiriu o terreno que confina com o do ofendido (pelo que resultou não provado o constante de A).
Não obstante, tal mostra-se irrelevante para a matéria probatória aqui em causa. Com efeito, não obstante ainda não ser seu proprietário para efeitos registrais, o arguido era já seu possuidor na data referida em 1.
De facto, resultou com clareza do depoimento do ofendido J. A. C. que na data referida em 1., bem como no período que a antecedeu, o arguido já cultivava no terreno que pouco tempo depois veio a adquirir.

Para prova dos factos assentes em 2. e 3., foi tido em conta o depoimento de A. C.. Esta depôs de forma objetiva, isenta e credível, relatando de forma espontânea e identificando de forma cabal a expressão referida em 3.

Com efeito, esta referiu que seguia a pé sozinha quando o arguido se abeirou dela e proferiu tal expressão, sendo que a arma se tratava de arma de caça e se encontrava encostada à porta do carro, do lado de dentro.

O seu depoimento mostrou-se sereno, objetivo, constante e inabalável, motivo pelo qual o Tribunal não teve quaisquer dúvidas em dar como assentes os factos referidos em 2. e 3.
Para além disso, relevou ainda o Tribunal o facto de estas testemunhas (ofendido e esposa) não demonstrarem no seu depoimento qualquer animosidade ou sentimento de vingança para com o arguido, afirmando já o conhecer há algumas dezenas de anos.

Relativamente à ligeira discrepância entre a expressão constante do auto de ocorrência de fls. 65 e o que resultou assente em 3., foi tido em conta o depoimento da testemunha A. M.. Este explicou que recebeu a denúncia, tendo passado para o auto aquilo que lhe foi transmitido.

Contudo, não foi essa a expressão que ficou a constar da acusação, que delimita o objeto do processo, sendo que foi a expressão constante em 3 que foi identificada como tendo sido proferida pelo arguido pela testemunha A. C..

Pelo exposto, tal discrepância lexical mostra-se irrelevante no caso dos autos, sendo aliás a expressão constante do auto de ocorrência em todo semelhante à constante do facto 3.

Para prova do facto assente em 4. foi ainda tido em conta o depoimento de A. C. e do ofendido J. A. C.. Este explicou que desde que ocorreram os factos aqui em causa, não obstante não ter deixado de ir ao seu terreno o faz com mais cuidado, sentindo-se receoso mesmo que tenha alguém ao lado.

Este referiu mesmo, de forma espontânea, que tem “medo de levar um tiro”. De modo coerente, a testemunha A. C. referiu como o ofendido se tem sentido receoso perante os factos referidos em 1. a 3.

As testemunhas de defesa inquiridas A. P., M. B., J. R. e A. C. não presenciaram os factos em causa nos autos, motivo pelo qual o seu depoimento não tem a virtualidade de afastar os depoimentos supra mencionados.
Com efeito, resulta com linear clareza que o facto de estes “não terem ouvido falar” que o arguido ameaçou o ofendido não é de molde a afetar a credibilidade dos depoimentos supra referidos e tidos como credíveis e isentos.

Os depoimentos das testemunhas de defesa foram tidos em conta para prova do facto assente em 14.

Por sua vez, deve dizer-se que resulta do circunstancialismo apurado e lido à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida que o arguido, da forma como atuou, fê-lo com cognoscibilidade e intencionalidade, bem sabendo que ao atuar da descrita forma ameaçava o ofendido, e que tal expressão não obstante ter sido proferida perante a sua esposa iria chegar ao seu conhecimento, como chegou, não se coibindo de atuar da forma supra descrita, sabendo ainda que tal é proibido e punível por lei, assim se dando como provada a matéria de facto vertida nos pontos 4 a 6.
Para prova das condições económicas e sociais do arguido (factos 7 a 12), foram tidas em conta as declarações por este prestadas em audiência.
Relativamente à ausência de antecedentes criminais do arguido (facto n.º 13), foi tido em conta o CRC junto aos autos.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 - Dos vícios decisórios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova
3.1.1 - Imputando tais vícios à sentença recorrida, o recorrente fá-lo, porém, em termos que revelam uma confusão nítida entre as duas formas perfeitamente distintas que existem de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto: por um lado, a invocação dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2 (a chamada revista alargada) e, por outro, a impugnação (ampla) da matéria de facto, a que se refere o art. 412º, n.ºs 3 e 4, ambos do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer referência.
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No primeiro caso, o recurso pode ter como fundamento qualquer dos seguintes vícios, previstos nas várias alíneas do n.º 2 do art. 410º, todos eles invocados pelo recorrente: - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al. a); - a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (al. b); - ou o erro notório na apreciação da prova (al. c).

Conforme resulta expressis verbis desse preceito legal, os vícios aí referidos, que são de conhecimento oficioso [4], constituindo um defeito estrutural da decisão, têm de resultar do respetivo texto, na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos a ela estranhos para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento [5]. Tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença, esta terá que ser autossuficiente quanto a eles, não se podendo recorrer à prova documentada.
No âmbito desta revista alargada, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla, o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto no sentido da reapreciação da prova, limitando-se a detetar os vícios que a sentença em si mesmo evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426º, n.º 1).

3.1.2 - Mencionando expressamente, na conclusão 5ª, as três mencionadas alíneas do n.º 2 do art. 410º, ao longo das restantes conclusões e do próprio corpo da motivação, apenas é alegado que o tribunal não podia dar como provado que o arguido proferiu a expressão constante da acusação (“tenho aqui a arma para lhe dar um tiro nos cornos”), porquanto, atendendo aos depoimentos das testemunhas de acusação, só podia chegar à conclusão, até pelas regras da experiência comum, que nada se passou como foi relatado e dado como provado, pelo que fez uma errada apreciação da prova, devendo ter absolvido o arguido por falta de prova ou, no mínimo, ao abrigo do princípio in dubio pro reo (cf. conclusões 11ª, 14ª, 15ª, 19ª, 27ª, 33ª e 34ª).

Concretamente, o recorrente põe em causa a credibilidade atribuída pelo tribunal a quo ao depoimento da testemunha A. C., chamando à colação a forma e o tom como esta respondeu ao defensor do arguido, bem como o facto de a mesma, em julgamento ter referido uma expressão diferente da que relatou ao órgão de polícia criminal e que ficou a constar do auto de ocorrência de fls. 65, lido em audiência. Mais alega que as testemunhas de acusação não disseram nada de concreto que possa justificar a ira do arguido, sendo que o facto, dado como provado, de no dia anterior este ter ficado desagrado com o ofendido, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, também não constitui razão plausível e justificada para o querer matar ou ameaçar matar.

Constata-se, assim, que o recorrente não se atém ao texto da decisão recorrida, para demonstrar que da mera leitura da mesma resulta que a Mmª. Juíza a quo incorreu em erro ao dar como provados determinados factos, como se impunha que fizesse, o que afasta liminarmente a existência daqueles vícios decisórios. Pelo contrário, extravasando o âmbito da arguição dos vícios em questão, o recorrente socorre-se da prova oralmente produzida em audiência, de que inclusivamente transcreve vários excertos no corpo da motivação, para demonstrar que o tribunal recorrido a valorou erradamente, visando, assim, a reapreciação da mesma pelo tribunal de recurso, com vista a ser dado como não provado o facto relativo ao seu comportamento para com o ofendido e com base no qual foi condenado.
Tal erro, nos termos em que é invocado, a existir, traduzir-se-á antes em erro de julgamento, objeto da impugnação alargada de decisão de facto ao abrigo do art. 412º, n.ºs 3 e 4, a analisar infra, e não da impugnação restrita prevista no art. 410º, n.º 2.
Aquilo que o recorrente questiona é o modo como o tribunal a quo valorou a prova produzida, ou seja, o uso que fez do princípio da livre apreciação da mesma, sem apontar à decisão recorrida qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto, contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, nem erro notório na apreciação da prova, no sentido em que estes vícios devem ser entendidos, ou seja, como resultando do próprio texto da decisão posta em crise.

Com efeito, o recorrente invoca os apontados vícios como corolário da sua própria apreciação da prova produzida, chamando à colação elementos externos ao texto da sentença recorrida, confundindo, pois, vícios da decisão judicial com erro de julgamento.

3.1.3 - Embora surjam invocados de forma abstrata, sem concretização nem indicação, ao longo das conclusões e do próprio corpo da motivação, onde residirão, o certo é que sendo tais vícios de conhecimento oficioso, se a sentença recorrida deles padecer, cumpre declará-lo e retirar daí as respetivas consequências.

Porém, do texto da decisão sob escrutínio, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação de qualquer deles.
Contrariamente ao que o recorrente parece pressupor, o vício da insuficiência não é uma insuficiência da prova produzida para dar como provada a matéria de facto em causa, mas sim a insuficiência dessa matéria de facto para a decisão de direito.

Com efeito, a insuficiência para a decisão (de direito) da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados. Na primeira critica-se o tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo. Consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito sobre a mesma. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente. Por seu lado, na insuficiência da prova para os factos provados censura-se a errada apreciação da mesma levada a cabo pelo tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal [6].

Da leitura da sentença recorrida não resulta a invocada insuficiência da matéria de facto dada como assente, uma vez que o tribunal tomou posição sobre todos os factos da acusação, não decorrendo também que tenham surgido factos relevantes para a discussão da causa (para além daqueles que constam da matéria de facto) sobre os quais devesse recair um juízo de provado ou não provado, sendo os factos dados como assentes bastantes para se poder decidir a questão da culpabilidade do arguido e da determinação na pena a aplicar-lhe.

Por seu lado, também não se vislumbra qualquer contradição insanável da fundamentação, ou seja, uma incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados, uma vez que em parte alguma se afirma e nega ou mesmo tempo uma coisa ou se emitem duas proposições contraditórios que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, nem entre a fundamentação e a decisão, por não ser de concluir que, de acordo com um raciocínio lógico, a motivação se orienta no sentido contrário ao da respetiva decisão de facto tomada, nem ainda que esta não seja esclarecedora face a uma colisão entre os fundamentos invocados.

Finalmente, também não se deteta ostensivamente qualquer equívoco resultante de factos do conhecimento geral ou do funcionamento das leis da lógica, da física, da mecânica ou de conhecimentos científicos, criminológicos e vitimológicos, o que afasta a existência de um erro notório na apreciação da prova. A decisão proferida pelo tribunal a quo sobre o facto impugnado não revela qualquer vício de raciocínio na apreciação da prova, que se evidencie aos olhos do homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, e que se traduza em ter-se dado como provado algo que não se provou ou que não pode ter acontecido.

Saliente-se que não é suscetível de consubstanciar esse vício a alegação de que o mero desagrado do arguido, derivado dos conhecimentos do dia anterior, não torna plausível que o mesmo tivesse ameaçado o ofendido de morte.

Com efeito, da leitura da decisão recorrida no seu todo, nomeadamente a motivação factual, não resulta ostensivamente que, ao dar este último facto como provado, o tribunal tenha violado as regras da experiência comum ou feito uma apreciação da prova manifestamente incorreta, desadequada, ilógica, arbitrária ou contraditória, dando como assente algo que não se provou ou que não pode ter acontecido.

Com efeito, na perspetiva da lógica interna da decisão e em face do respetivo texto, o referido facto, dado como provado, tem suporte na prova produzida, porquanto, de acordo com o teor da motivação da decisão de facto, o mesmo assentou no depoimento da testemunha A. C., esposa do ofendido e perante quem o arguido proferiu a expressão ameaçadora, tendo esse depoimento merecido toda a credibilidade ao tribunal a quo. Por seu lado, em face das regras do normal acontecer, a ocorrência de tal facto surge como perfeitamente possível e lógica, na sequência da conversa mantida no dia anterior entre o arguido e o ofendido, sobre as delimitações dos prédios rústicos de que eram, respetivamente, possuidor e proprietário, na qual não chegaram a entendimento, o que deixou o arguido desagradado.
Pelo exposto, improcede a questão dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova.

3.2 - Do erro de julgamento

Ainda em sede de recurso sobre a matéria de facto, sustenta o recorrente que o tribunal a quo não apreciou corretamente a prova produzida em audiência, impondo-se, em face da análise da mesma, uma decisão diversa quanto ao facto descrito no ponto 3º da matéria provada, que deverá ser dado como não provado, por falta de prova ou, no mínimo, ao abrigo do princípio in dubio pro reo, com a sua consequente absolvição.

3.2.1 - Nos termos do art. 428º, os tribunais da relação conhecem não só de direito mas também de facto, assim se concretizando a garantia do duplo grau de jurisdição na matéria de facto, sendo que uma das vertentes aqui admitida é a da impugnação ampla, visando o chamado erro de julgamento.
Este erro resulta da forma como foi valorada a prova produzida, ocorrendo quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. O erro de julgamento pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.
Nesta forma de impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida (como acontece com os vícios previstos no art. 410º, n.º 2), alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431º, al. b).

Todavia, conforme jurisprudência constante [7], esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição das gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, destinando-se antes a obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma, na forma como apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.
Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, importa ter presente que entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, nos termos do qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Tal não significa que a atividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Concedendo esse princípio uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, o julgador deverá ser capaz de o fundamentar de modo lógico e racional.
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária dos meios de prova, impondo-lhe a lei que extraia deles um convencimento lógico e motivado, avaliando-os com sentido de responsabilidade e bom senso.

Mais se exige que o julgador indique os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito. Não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
Se a decisão factual da primeira instância se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível, optando por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção, obtida com os benefícios da imediação e da oralidade, apenas deverá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização, pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe analisar o processo de formação da convicção do julgador do tribunal a quo, verificando se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar, não bastando, para uma eventual alteração, uma diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova produzida.

Por isso, a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzem a ela, já não o devendo ser quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ou seja, o tribunal da relação só pode e deve determinar uma modificação da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão [8].

No entanto, como é salientado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2010 [9], "(…) o regime do recurso em matéria de facto, se não exige do tribunal de recurso uma avaliação global, impõe-lhe, todavia, como se referiu, que confronte o juízo sobre os factos do tribunal recorrido com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifica nas conclusões da motivação.

A decisão do recurso sobre a matéria de facto exige que aprecie se, no caso concreto, a matéria de facto, rectius, os pontos questionadas da matéria de facto, tem efetivo suporte, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados na decisão recorrida e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem «decisão diversa». (…)

Mas a convicção autónoma sobre o sentido da decisão em matéria de facto relativamente aos pontos questionados só poderá resultar da ponderação, em concreto, das provas identificadas pelo recorrente que o tribunal de recurso deve analisar em juízo e ponderação autónomos; as razões da convicção têm de ser as razões da convicção do próprio tribunal formadas perante os elementos de prova que ponderou nos limites do recurso, e não a assunção ou a recuperação genéricas da convicção ou dos termos da convicção do tribunal recorrido. (…)

Com efeito, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto tem como pressuposto que o princípio da livre apreciação da prova (e a livre convicção, no sentido materialmente adequado do conceito) não esteja deferido, ou seja passível de aplicação, apenas ao tribunal de 1ª instância, mas também à instância de recurso no limite dos poderes de cognição definidos pela delimitação do recorrente.
A livre convicção do tribunal de recurso substitui-se, nos limites da cognição, à convicção do tribunal recorrido, aceitando-a na identidade de apreciação, ou sobrepondo-lhe, se for o caso, a sua própria convicção."

Assim se compreende a exigência feita nas als. a), b) e c) do n.º 3 do art. 412º, no sentido de o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto ter de especificar os concretos pontos da mesma que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, sendo caso disso, as que devem ser renovadas.

3.2.2 - Como facto individualizado que, em seu entender, foi erroneamente julgado, indica o recorrente, nas conclusões, o ponto 3º da matéria de facto provada, ou seja, que ele disse à mulher do ofendido, referindo-se a este último, «Tenho aqui a arma para lhe dar um tiro nos cornos!», factualidade essa que foi considerada como integradora dos elementos objetivos do crime de ameaça agravada pelo qual foi condenado.
Para cumprir o ónus de especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o recorrente terá de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.
Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.

Neste âmbito, em ordem a indicar o conteúdo específico dos meios de prova que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida quanto ao facto impugnado, com explicitação das razões desse entendimento, o recorrente, nas conclusões, alega que, ao invés do considerado pelo tribunal a quo, não foi produzida prova suficiente de que ele proferiu a dita expressão, uma vez que o depoimento da testemunha A. C. não merece credibilidade, pois não foi sereno, objetivo, constante nem inabalável, pelo que, sendo esta a única testemunha que alegadamente presenciou tal facto, deveria o mesmo ter sido dado como não provado, por falta de prova ou, no mínimo, por aplicação do princípio in dubio pro reo.

De acordo com o n.º 4 do art. 412º, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em ata, nos termos do n.º 2 do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, cabendo ao tribunal da relação proceder à audição e visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa (art. 412º, n.º 6).
Sucede que as conclusões extraídas da motivação pelo recorrente são omissas quanto à localização das passagens da gravação em que se encontram registados os depoimentos das testemunhas em que o mesmo estriba o invocado erro de julgamento.

Não obstante o art. 417º, n.º 3, permitir o convite ao aperfeiçoamento da respetiva peça processual se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do art. 412º, entendemos que, se analisada a peça do recurso, constatarmos que a indicação das especificações legais, embora não constando das conclusões, consta do corpo da motivação de forma suficiente para se compreender o móbil do recorrente, não se deverá ser demasiado formalista ao ponto de atrasar a tramitação de um processo quando existem conclusões e se consegue das mesmas deduzir, mesmo que parcialmente e por recurso ao texto das motivações, as mencionadas indicações.

Acresce que, ainda por uma outra razão não se justificaria proceder a esse convite, tanto mais que o seu não acatamento não conduziria à rejeição do recurso na parte relativa à questão da impugnação da matéria de facto, apesar de tal consequência estar prevista no art. 417º, n.º 3.

Isto porque, como o Supremo Tribunal de Justiça vem considerando [10], ainda que no âmbito do processo civil, mas que entendemos ser transponível para o processo penal [11], relativamente aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação, e um ónus secundário, este tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo tribunal da relação aos meios de prova gravados relevantes, atualmente consubstanciado na exigência de indicação concreta das passagens da gravação dos meios de prova oralmente produzidos e em que se funda a impugnação (art. 412º, n.º 4, in fine). Este ónus de indicação concreta das passagens relevantes das declarações e dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, mostrando-se satisfeito quando não exista dificuldade relevante na localização pelo tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja baseado para demonstrar o invocado erro de julgamento.
É o que sucede no caso vertente, em que o recorrente, no corpo da motivação, indica os excertos dos depoimentos que, em seu entender, impõem uma decisão diferente da que foi proferida pela primeira instância sobre a matéria de facto impugnada, por referência aos minutos e segundos das passagens da gravação em que se encontram registadas, procedendo inclusivamente à sua transcrição parcial.
Por conseguinte, mostra-se cabalmente cumprido o ónus de especificação previsto nas als. a) e b) do n.º 3 e no n.º 4 do art. 412º.

3.2.3 - Como claramente consta da motivação da decisão de facto, transcrita supra, a convicção da Mmª. Juíza quanto ao facto impugnado, dado como provado no ponto 3º, assentou essencialmente no depoimento da testemunha A. C., mulher do ofendido e a quem o arguido, referindo-se àquele, disse: "tenho aqui a arma para lhe dar um tiro nos cornos!"

Com efeito, aí se consignou que a testemunha depôs de forma objetiva, isenta e credível, relatando de forma espontânea e identificando de forma cabal a expressão referida no ponto 3º dos factos provados, porquanto referiu que seguia a pé sozinha quando o arguido se abeirou dela e proferiu tal expressão, sendo que a arma se tratava de uma arma de caça e se encontrava encostada à porta do carro, do lado de dentro, acrescentando ainda a Senhora Juíza que esse depoimento se mostrou sereno, objetivo, constante e inabalável, motivo pelo qual não teve quaisquer dúvidas em dar como assente o facto em apreço.

Procedendo à audição integral desse depoimento, constata-se que a testemunha, ao longo do mesmo, por várias vezes afirmou que o arguido lhe dirigiu a expressão com o teor constante da acusação e dado como provado ("tenho aqui a arma para lhe dar um tiro nos cornos!”).

O recorrente faz assentar as razões da discordância relativamente à forma como o tribunal a quo decidiu essa factualidade na circunstância de a julgadora ter atribuído inteira credibilidade ao depoimento da testemunha A. C., tendo, pois, a convicção sobre a decisão fática assentado em elementos probatórios que, no seu entender, não permitem dar como provado o facto impugnado.
Um dos fundamentos invocados para demonstrar essa falta de credibilidade consiste na discrepância existente entre a expressão dada como provada e aquela que ficou a constar do auto de ocorrência junto a fls. 65, elaborado na sequência da deslocação da testemunha ao posto da GNR, no próprio dia dos factos, e cuja leitura em audiência foi autorizada pelo tribunal (cf. despacho de fls. 139).

Com efeito, de acordo com esse auto, a testemunha A. C. afirmou ao militar da GNR que se encontrava de serviço de atendimento que o arguido se dirigiu a si dizendo: "tenho aqui uma arma carregada para arrebentar com o teu marido".
Atribuindo relevância à diferença lexical existente entre as duas expressões, o arguido requereu a inquirição do referido militar da GNR (A. M.), o que foi deferido, resultando da audição do respetivo depoimento que o mesmo afirmou que exarou no auto a expressão que lhe foi mencionada pela testemunha, tanto mais que até a colocou entre aspas.

Perante estes elementos probatórios, sustenta o recorrente que o tribunal a quo devia ter posto em causa a veracidade do testemunho da referida A. C., por esta ter dito em momentos diferentes e sobre a mesma pretensa realidade palavras e frases completamente distintas.
Não cremos que assim seja.

Em primeiro lugar porque olvida o recorrente que aquando da apresentação da queixa, logo dois dias depois dos factos (em 07-11-2016), o ofendido, indicando a sua mulher como testemunha, imputou ao arguido a expressão “tenho aqui a arma para lhe dar um tiro nos cornos”, ou seja, aquela que foi relatada pela testemunha A. C. em audiência e dada como provada (cf. auto de denúncia de fls. 4 a 6).

Por outro lado, os segmentos das duas expressões que não são coincidentes ("dar um tiro nos cornos" e "rebentar todo"), porque reportados expressamente à posse de uma arma de fogo, inclusivamente exibida pelo arguido à testemunha, têm ambos, inequivocamente, o mesmo e único sentido de atentar contra a vida do visado, através do disparo dessa arma.

Por conseguinte, mesmo sem colocar a hipótese de o arguido até ter proferido ambas as expressões, o facto de ter dito apenas uma delas e de a testemunha, eventualmente, ao procurar reproduzi-la, mais próximo ou mais afastado da data dos factos, ter utilizado uma expressão semelhante mas inequivocamente com o mesmo significado, não pode ter a virtualidade de, por si só, abalar a credibilidade do seu depoimento, como pretende fazer o recorrente.

Aliás, A. C., ao ser confrontada com a discrepância entre a expressão por si relatada e a que ficou a constar do auto de ocorrência, acaba mesmo por admitir a possibilidade de ter sido esta última a efetivamente dita pelo arguido, invocando a erosão da memória pelo decurso do tempo (cf. a segunda parte do seu depoimento, a partir do minuto 03:56).

Relevante e decisivo é que, como vimos, ambas as expressões convergem no mesmo sentido e significado, arredando, assim, a existência de uma contradição relevante, e muito menos ostensiva, como sustenta o recorrente, entre o que foi declarado pela testemunha nos dois momentos processuais.

Carecem, assim, de razoabilidade as dúvidas que se suscitam ao recorrente quanto à veracidade do testemunho prestado por A. C. em audiência de julgamento e valorado pela Mm.ª Juíza.

De igual modo, também são perfeitamente insubsistentes as reservas que o recorrente pretende lançar sobre a credibilidade da testemunha, ao alegar que a forma e o tom com que a mesma respondeu ao Exmo. defensor são sintomáticos da falta de isenção, serenidade, credibilidade e até de urbanidade para com o mesmo, tudo e sempre com a passividade do tribunal, que até objetou a que a defesa confrontasse a testemunha com perguntas que, além do mais, tinham também como objetivo obter resposta à respetiva razão de ciência.

Pese embora o recorrente não concretize em que aspetos do depoimento deteta falta de isenção e serenidade, sempre diremos que, contrariamente ao que é sustentado, da audição integral do depoimento da testemunha, constata-se que a mesma, tal como foi considerado pela Mm.ª Juíza, depôs de forma objetiva, isenta e imparcial, não obstante a sua relação de proximidade com o ofendido, com quem é casada.

Aliás, tal como também foi consignando na motivação da decisão de facto e, efetivamente, se constata da audição dos respetivos depoimentos, estes não demonstraram qualquer animosidade ou sentimento de vingança para com o arguido, afirmando já o conhecerem há algumas dezenas de anos, o que milita no sentido de corroborar a sua isenção e objetividade.

Por seu lado, refira-se que também não se deteta falta de urbanidade da testemunha para com o ilustre advogado, mas apenas algum agastamento e impaciência da mesma, ao ser confrontada pelo mesmo com perguntas que já lhe haviam sido formuladas, levando-a a dizer repetidamente "já respondi", em termos e tom compreensíveis perante a circunstância de a testemunha e o ilustre causídico serem vizinhos e inclusivamente terem prédios próximos, como resulta da audição do depoimento em questão.

Também não se conclui por qualquer objeção do tribunal a que a defesa confrontasse a testemunha com perguntas. Pelo contrário, mais do que uma vez, depois de chamar a atenção para a natureza ou para o caráter repetido da questão e de o Exmo. defensor insistir na formulação da mesma, a Mm.ª Juíza permitiu que a testemunha respondesse (cf., nomeadamente, a partir dos minutos 11:30 e 13:20 da 2ª parte do depoimento).

Por fim, ao invés do sustentado pelo recorrente, o seu comportamento em apreço é consentâneo com as regras da experiência comum, da lógica e do normal acontecer, atenta a existência entre o arguido e o ofendido de um litígio por questões de propriedade, tendo ambos, no dia anterior ao dos factos, mantido uma conversa acerca das delimitações dos prédios rústicos confinantes de que eram, respetivamente, possuidor e proprietário, na qual não chegaram a qualquer entendimento, o que deixou o arguido desagradado.

Estes factos, dados como provados nos pontos 1º e 2º da matéria assente, ainda que não tenham sido acompanhados de insultos ou de agressões mútuas, conferem inteira plausibilidade ao comportamento ameaçador protagonizado pelo arguido no dia seguinte, à luz das referidas regras da normalidade.

Por outro lado, estando em causa uma mera ameaça (de morte), que, como veremos adiante, não exige um propósito de concretização do mal anunciado, também carece de sentido a argumentação do recorrente de que o mero desagrado com o ofendido, por não comportar sentimentos de ira, enfurecimento, raiva, insubmissão ou revolta, não seria suficiente para que uma pessoa normal e comum como ele tomasse qualquer iniciativa no sentido de o ameaçar matar.

Por tudo quanto vem de se expor, não se vislumbram as mínimas razões para pôr em causa a convicção alcançada pela Mmª. Juíza quanto à atribuição da expressão em causa ao arguido, nada havendo a censurar no processo lógico e racional subjacente à formação dessa convicção, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis.

Assim, não encontramos razões para divergir da apreciação da prova feita pela primeira instância, que pôde ainda contar com os indiscutíveis benefícios derivados da imediação, termos em que os elementos de prova especificados pelo recorrente de modo algum impõem uma decisão diversa quanto ao facto impugnado, antes a justificam.

Por conseguinte, nenhuma censura merece a decisão do tribunal a quo, ao dar como provado esse facto, na medida em que o mesmo resulta do depoimento da testemunha A. C., sendo consentâneo com as regras da experiência comum, dado o litígio existente entre ofendido e arguido.

3.2.4 - Não se diga também, como faz o recorrente, ter havido violação do princípio do in dubio pro reo, postulado do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
No processo penal não tem aplicação o ónus da prova formal, segundo o qual cada uma das partes terá de produzir as provas necessárias a sustentar os factos que alega, porquanto, vigorando o princípio da investigação, recai sobre o juiz o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento.

Em consequência, se uma vez produzida toda a prova, persistir uma dúvida razoável sobre determinados factos no espírito do julgador, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a favor do arguido. Sendo o direito penal um direito de culpa, a qual representa um limite intransponível para a decisão, “os princípios da presunção de inocência e de in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta, como suporte axiológico-normativo da pena” [12].

Conforme ensina Figueiredo Dias [13], “relativamente ao facto sujeito a julgamento, o princípio [in dubio pro reo] aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpa e de exclusão da pena bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais». Em todos estes casos a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido”.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, será dado como não provado se lhe for desfavorável, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa.

Contudo, para tanto não basta dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou que derivem da sua interpretação da factualidade revelada nos autos. Da mesma forma que também não é suficiente a circunstância de terem sido apresentadas em audiência versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes.

Acresce que não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio, mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada. A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio [14].
A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Terá de ser uma dúvida séria, positiva, racional e que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a íntima convicção do tribunal, que seja argumentada e coerente.
Em suma, o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
No âmbito dos seus poderes de cognição sobre a matéria de facto, compete ao tribunal da relação sindicar a concreta utilização do princípio in dubio pro reo por parte da primeira instância.

Com efeito, a violação desse princípio pode resultar da análise do texto da própria decisão recorrida e do processo decisório nela evidenciado, ocorrendo quando se concluir que o tribunal recorrido ficou em dúvida quanto a elementos que permitem estabelecer o grau de culpabilidade do arguido e, nesse estado de dúvida, decidiu contra ele.

Para além dessa situação, de verificação pouco frequente, a imputação da violação do princípio in dubio pro reo torna necessário demonstrar a existência de erro na apreciação dos meios probatórios produzidos, através do reexame dos mesmos, com vista a evidenciar que, em face da carência ou insuficiência da prova, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida quanto a factos relevantes para a responsabilidade criminal do arguido.

No caso dos autos, como ressuma da motivação da decisão de facto, o tribunal a quo considerou provado o facto em apreço para além de qualquer dúvida razoável sobre ele, ou seja, sem ter dúvidas em fixar a sua ocorrência tal como se encontra descrito, não decorrendo da sentença a existência ou confronto da julgadora com qualquer dúvida insanável, motivo pelo qual não houve que a valorar a favor do arguido.

Como efeito, a Mm.ª Juíza, dando a conhecer o processo de formação da sua convicção, procedeu a uma explicitação do depoimento da testemunha A. C., que acolheu, bem como das razões porque lhe foi atribuída credibilidade, não havendo outros elementos probatórias a ponderar quanto ao facto ora impugnado, por não terem sido produzidos, já que o próprio arguido optou por não prestar declarações e as demais testemunhas inquiridas não presenciaram o episódio em que o mesmo ocorreu, baseando-se, pois, a julgadora num juízo de certeza e não em qualquer juízo dubitativo.

Por seu lado, pelas razões expostas supra, a propósito da reapreciação da prova, após audição dos depoimentos das testemunhas A. C., A. M. e do próprio ofendido, concluímos pela inexistência de razões que devessem ter levado o tribunal a ficar com qualquer réstia de dúvida sobre o facto impugnado.
Em suma, a prova produzida em audiência permite claramente concluir pela verificação do facto impugnado, sem qualquer afrontamento das regras da experiência comum ou apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, pelo que nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em primeira instância, subtraído a qualquer dúvida, nada havendo a alterar.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto com base em erro de julgamento.

3.3 - Do preenchimento dos elementos típicos do crime de ameaça

Por fim, sustenta o recorrente que não se encontram preenchidos os requisitos típicos do crime de ameaça pelo qual foi condenado, porquanto, sabendo ele onde se encontrava o visado com a alegada ameaça, se tivesse querido dar-lhe um tiro, teve oportunidade de o fazer logo ali, de imediato, o que não aconteceu, donde não tem qualquer fundamento o eventual receio ou medo sentido pelo mesmo, para além de que não foi anunciada a prática de um mal futuro, mas sim um mal presente e imediato.

3.3.1 - O art. 153º, n.º 1, do Código Penal pune “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.”

São, pois, elementos constitutivos deste tipo legal de crime:

a) - o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal que constitua crime;
b) - que esse anúncio seja feito de forma adequada a provocar receio, medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do visado;
c) - e que o agente tenha atuado com dolo genérico, isto é, consciência e vontade de praticar o facto, incluindo a consciência da adequação da ameaça a provocar o medo ou intranquilidade.

Do ponto de vista da conduta descrita e no sentido que interessa ao preenchimento do tipo legal, a ação ou ato de ameaçar traduz-se em prometer ou prenunciar um mal futuro que constitua crime, ou seja, em anunciar, de modo explícito ou implícito, a intenção de causar um facto maléfico injusto e grave, consistente em danos físicos, económicos ou morais, necessariamente futuros, independentemente do concreto prazo eventualmente assinalado para a concretização da ameaça.

Não se exige, porém, que a ameaça provoque medo ou inquietação. Basta que seja adequada a provocar um estado de temor ou medo capaz de limitar ou constranger, de forma reputada relevante, a paz individual ou a liberdade de determinação da pessoa visada.

Para o preenchimento do tipo objetivo do crime exige-se que a ameaça dirigida contra alguém contenha em si uma aptidão mobilizadora adequada a provocar medo ou inquietação, ou seja: a) - que corresponda a um mal, seja de natureza pessoal, seja de natureza patrimonial; b) - que o mal objeto da ameaça seja futuro, não podendo ser um mal atual ou iminente, porque neste caso estar-se-á perante uma tentativa de execução do respetivo mal; c) - e que a sua ocorrência dependa ou apareça como dependente da vontade do agente, devendo o juízo sobre essa dependência ser feito segundo um critério objetivo-individual, isto é, segundo a perspetiva do homem comum, da pessoa adulta e normal, não deixando de se ter em conta como fator corretivo as características individuais da pessoa ameaçada.

Ainda que a doutrina e a jurisprudência estejam de acordo em que uma das características essenciais do crime de ameaça reside em vaticinar-se um mal futuro, muitos equívocos se têm gerado face ao referido por Taipa de Carvalho no Comentário Conimbricense do Código Penal [15], segundo o qual, “o mal ameaçado tem de ser futuro”, logo acrescentando que “isto significa apenas que o mal objeto da ameaça não pode ser iminente, pois neste caso estar-se-á diante duma tentativa de execução do respetivo mal” [16].
Sendo inquestionável que ameaçar é anunciar a alguém um mal, necessariamente futuro, importa apurar o que se deve entender por mal futuro.

Sobre a interpretação dessa expressão, entendemos ser de aderir ao entendimento de que haverá ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante uma execução iminente. Por outras palavras, o mal anunciado terá a característica de mal futuro desde que não se trate já duma tentativa criminosa, nos termos em que o art. 22º do Código Penal a caracteriza.

Assim, será mal futuro tudo o que não seja execução iminente ou em curso (caso de uso de violência). Futuro é todo o tempo compreendido naquele em que é proferida a expressão que anuncia o mal que o seu autor diz que será causado, não acompanhada de atos correspondentes à sua simultânea ou imediata concretização. Ou seja, sempre que alguém dirija a outrem uma expressão, verbal ou de outra natureza, de anúncio de causação de um mal, não acompanhando essa ação com os atos de execução correspondentes, permanecendo inativo em relação à execução do mal anunciado, todo o tempo que durar essa inação e se mantiver a possibilidade de o mal anunciado se concretizar é futuro, em termos de interpretação da expressão em causa [17].

Que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o este seja curto ou longo é irrelevante [18].
Nessa medida, um “mal iminente” não deixa de ser um “mal futuro”, o que significa que o deslindar do problema não pode passar por questões de rigor terminológico ou fórmulas verbais, relacionadas com a semântica ou com os tempos verbais utilizados [19].

Na dicotomia entre “mal futuro” e “mal iminente”, o que está essencialmente em causa é o destrinçar se uma determinada conduta preenche o crime de ameaça, ou antes uma tentativa de crime do “mal ameaçado”.

O crime de ameaça reside na ameaça em si, ganhando autonomia ao “mal ameaçado”, mal este que, como resulta do preceito legal, tem de consistir na “prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”.

Ora, constituindo ele próprio, o “mal ameaçado”, um crime, há que equacionar as situações em que a ameaça perde relevância, como que ficando subsumida pelo início de concretização do mal ameaçado.

Será o caso em que alguém, em disputa com outrem, refere “eu mato-te” e concomitantemente, ou logo de seguida, dispara uma arma de fogo que, não obstante, não logrou atingir a pessoa. Neste caso (naturalmente, dependendo das demais circunstâncias), o que estaria em causa seria uma tentativa de homicídio e não um concurso entre crime de ameaça e crime de homicídio na forma tentada. Atento o imediatismo da conduta do agente, não se lograria o lapso de tempo suficiente para provocar na vítima o “medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, que constitui outro dos pressupostos do crime de ameaça.

Concorda-se, pois, com a afirmação de que o referido trecho do texto de Taipa de Carvalho tem de ser cuidadosamente ponderado, não podendo as suas palavras ser aplicadas acriticamente, sob pena de intoleráveis atropelos à legalidade democrática, criando áreas de impunidade criminal onde o legislador as não autoriza, para além de se atraiçoar o pensamento daquele autor.

Com efeito, um mal futuro contrapõe-se a um mal passado. Conforme se conclui da consulta a vários dicionários da língua portuguesa, o futuro é o tempo que há de vir, que se segue ao presente, que há de ou que está para ser, acontecer ou suceder, isto é, aquilo que vai ser ou acontecer num tempo depois do presente. E, o mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer. Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há de ser, que há de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer.

É claro que sendo o mal iminente, poderemos estar perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é do respetivo mal, já que, segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, atos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico.

Mas daí não se segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça. Quando alguém afirma “vou-te matar”, poderemos estar perante uma tentativa de homicídio ou uma tentativa de coação, que consomem naturalmente a ameaça, ou perante um crime de ameaça. Tudo depende da intenção do agente. É que, para haver tentativa não basta a prática de atos de execução, é necessário que esses atos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º 1, do Código Penal).
Aliás, algumas linhas à frente do excerto acima citado e que tantas incompreensões tem gerado, o próprio autor esclareceu que «Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cf. art. 22º-2-c)».
Se, por exemplo, o agente não tem intenção de matar, aquela expressão, não integra um ato de execução de um crime de homicídio, mas integra claramente um crime de ameaça, verificados os demais pressupostos deste tipo de crime, nomeadamente a consciência do agente da suscetibilidade de provocação de medo ou intranquilidade.

No sentido de integrarem o crime de ameaça expressões com algum imediatismo, podem-se confrontar, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa de 17-06-2004 [20], versando sobre uma situação em que o agente, no calor de uma discussão, de natureza familiar, disse para a vítima em tom sério “mato-te”, e da Relação de Coimbra de 10-07-2014 [21], em que a conduta do agente consistiu em dizer à vítima, em tom de voz sério, alto e ameaçador, “anda cá filho da puta … anda cá para fora …mato-te … mordo-te as orelhas todas”.

Neste último acórdão entendeu-se que a expressão “mato-te”, pese embora usada no presente do indicativo, não deixa também de ter uma projeção de futuro, em linguagem corrente. Na verdade, comporta um anúncio de um mal futuro, na medida em que não indica o momento exato da ação, podendo ser substituída ou ser sinónimo de “hei de matar-te”.

3.3.2 - Revertendo ao caso dos autos, a condenação do recorrente pelo crime de ameaça assentou na seguinte matéria, definitivamente dada como provada: «(…) porquanto havia ficado desagradado com o diálogo anteriormente ocorrido [a 04.11.2016], em 05.11.2016, o arguido seguia na condução do seu veículo automóvel, por um caminho sito no Lugar de Terrundes, em Póvoa do Lila, Rio Torto e, apercebendo-se da presença naquele local de A. C., mulher do ofendido J. A. C., que circulava apeada, imobilizou o seu veículo e perguntou-lhe pelo seu marido, tendo aquela respondido que o mesmo se encontrava ali perto na realização de trabalhos agrícolas. Nessa sequência, ao mesmo tempo que lhe exibiu uma espingarda caçadeira que trazia consigo, disse-lhe: “Tenho aqui a arma para lhe dar um tiro nos cornos!”».

Dúvidas não existem de que estas palavras integram inequivocamente o anúncio explícito de um mal, de natureza pessoal, que constitui crime, porquanto no contexto em que foram proferidas pelo arguido, têm o significado de este pretender dar um tiro de caçadeira ao ofendido, atentando, pois, conta a sua vida.
O que o recorrente põe em causa é a verificação do elemento típico do crime traduzido na adequação da ameaça a causar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de movimentação do visado, concretamente por não se tratar do anúncio de um mal futuro, mas antes e só de um mal presente e imediato.
A este respeito não resistimos a transcrever o que a Mª. Juíza assertivamente escreveu na sentença recorrida e que merece a nossa inteira adesão:

«(…) não obstante a expressão proferida pelo arguido utilizar o tempo verbal no presente do indicativo, tal não invalida que se considera tratar-se a mesma de um mal futuro. Com efeito, uma vez que a expressão foi proferida perante a esposa do ofendido e na ausência deste, torna-se manifesto que a ameaça nunca poderia concretizar-se naquele momento, pelo que sempre teria de concluir-se tratar-se de um mal futuro, isto é, a executar não no momento em que foi proferida mas mais tarde.»
Não é, pois, correta a alegação do recorrente de que logo ali e de imediato tivesse tido a oportunidade de dar um tiro ao ofendido, uma vez que este não se encontrava presente, mas sim nas proximidades, segundo a informação prestada pela mulher do mesmo.
Significa isto que o mal anunciado pelo arguido não foi acompanhado de qualquer ato de execução nem esta poderia ser levada a cabo de imediato, não estando, pois, na iminência de acontecer.

Como tal, à luz das considerações supra tecidas a esse respeito, é de concluir que foi anunciado um mal futuro, enquanto mal que há de vir ou que está prestes a acontecer, ainda que num momento temporalmente próximo.

Sustenta ainda o recorrente que o visado não tinha qualquer fundamento para sentir receio ou medo, uma vez que ele teve oportunidade de logo ali lhe dar um tiro, pois sabia que se encontrava próximo, o que não fez.

Porém, contrariamente ao que o recorrente pressupõe, de acordo com o elemento típico em apreço, para que estejam preenchidos os pressupostos da prática do crime de ameaça, a lei não exige que esta provoque medo ou inquietação, bastando que seja adequada a provocar um estado de temor ou medo capaz de limitar ou constranger, de forma reputada relevante, a paz individual ou a liberdade de determinação da pessoa visada. O futuro mal anunciado pelo sujeito ativo há de revelar-se apto para, numa avaliação objetiva, se configurar como condicionador da liberdade de determinação da pessoa alvo da ameaça e subjetivamente idóneo a inculcar na pessoa visada um estado de medo e inquietação constrangedor da sua normal e fluente forma de ser e de agir.

Ao invés do que sucedia no Código Penal de 1982, não se trata agora, a partir da revisão de 1995, de um crime de resultado. Com efeito, enquanto nesse diploma (art. 155º, n.º 1) se exigia que o agente tivesse provocado no sujeito passivo receio, medo, inquietação ou lhe tivesse prejudicado a sua liberdade de determinação, no código atual basta que o agente se tenha servido de expediente adequado a provocar-lhe tais sentimentos ou a prejudicar-lhe a referida liberdade. Trata-se agora de um crime de perigo concreto, na medida em que, para a sua consumação, não se exige a ocorrência de dano, mas também não se basta com a simples ameaça, exigindo-se que, em concreto e através de um juízo ex ante, se reconheça na ameaça perpetrada efetiva potencialidade intimidatória, isto é, aptidão para intimidar, criar sentimentos de medo ou de inquietação.

O critério para ajuizar da adequação da ameaça para provocar medo ou inquietação ou para prejudicar a liberdade de determinação deverá ser objetivo e individual: - objetivo, no sentido de que a ameaça deve considerar-se adequada tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente e a suscetibilidade de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa; individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada. Assim, para se aferir da idoneidade da ameaça, deve levar-se em consideração, além do mais:

- as circunstâncias do caso concreto (mal anunciado, sua credibilidade e exequibilidade, forma, tempo e lugar da conduta maléfica anunciada, capacidade do agente para delinquir e seus antecedentes criminais, costumes locais, etc.);
- e as particulares condições do sujeito passivo (impressionabilidade, passividade, estado psicológico, idade, capacidade de resistência, etc.) e o conhecimento que o agente ativo tenha, no momento da conduta, dessas particulares condições do sujeito passivo.
Em particular, a ameaça, para ser idónea, deve ser séria, ou seja, razoavelmente credível na perspetiva da vítima, devendo o mal anunciado aparecer, com verosimilhança, realizável. O agente há de exteriorizar o seu propósito de um modo que faça crer ao sujeito passivo que o mal anunciado é sério, real e persistente, não pretendendo a lei punir criminalmente simples bazófias ou ataques de cólera, que não traduzem, seriamente, um perigo para a liberdade individual.
Não é, no entanto, necessário que o agente pense realizar o mal anunciado, bastando que aparentemente tal possa ser considerado pelo visado. Daqui se deduz que a questão da gravidade do mal e da sua adequação para intimidar tem que se relacionar com a pessoa do ameaçado e com as circunstâncias que rodeiam os factos, uma vez que determinada expressão pode ser mais ou menos intimidatória em função das circunstâncias em que é proferida e da própria condição de quem a profere e de quem a recebe [22].

Em suma, ameaça adequada é a que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado, tendo em conta as características do mesmo e conhecidas do agente, independentemente de ficar ou não intimidado, bem como as circunstâncias que rodearam os factos e a própria capacidade de quem profere a ameaça para a concretizar [23].

Ora, as circunstâncias em que os factos ocorreram (o arguido estar munido e ter exibido à mulher do ofendido uma espingarda de caça quando proferiu a expressão ameaçadora), a motivação para o seu comportamento (a existência de um conflito por questões de propriedade, tendo ficado desagradado com a conversa que no dia anterior mantivera com o ofendido acerca das delimitações dos prédios rústicos confinantes de que um era possuidor e o outro proprietário), bem como o teor da frase proferida pelo arguido (“tenho aqui a arma para lhe dar um tiro nos cornos”), apontam inequivocamente no sentido de, objetivamente, a ameaça nela contida, relativa à prática de um crime contra a vida, ser adequada a causar medo e inquietação ao visado. Com efeito, tal ameaça apresenta-se como suscetível de ser encarada pelo mesmo como séria e razoavelmente credível.

Pelo exposto, às palavras proferidas pelo arguido, na presença da mulher do ofendido mas a este dirigidas, não pode ser recusada a aptidão mobilizadora para provocar receio, medo ou inquietação no mesmo, por corresponderem inequivocamente ao anúncio de um mal futuro, suscetível, segundo o senso comum e as regras da experiência, de afetar a paz individual ou a liberdade de determinação de qualquer indivíduo normal.
Refira-se que para a consumação do crime não é necessário que a ameaça seja proferida perante a pessoa visada, bastando que chegue ao conhecimento da mesma por qualquer meio, nomeadamente através do relato de terceiro [24], como sucedeu no caso vertente, atenta a factualidade dada como provada no ponto 4º.
Mostra-se, assim, preenchido o elemento objetivo típico do crime de ameaça cujo preenchimento é posto em causa no recurso, o mesmo sucedendo com os demais elementos típicos.
Ainda que fosse irrelevante o agente ter ou não intenção de concretizar o mal anunciado ou ter provocado ou não medo e inquietação no destinatário, já que a consumação do crime se basta com a adequação da ameaça, no caso concreto tais factos resultaram provados (cf. pontos 4º e 5º do elenco da matéria assente).

Pelo exposto, também nesta parte improcede o recurso.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, C. T., confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 21 de maio de 2018


(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)


[1]- Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes, a formatação e a ortografia utilizadas, que são da responsabilidade do relator.
[2]- Como resulta, nomeadamente, dos arts. 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal e do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995).
[3]- In Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801, e também in Recursos Penais, 8ª edição, 2011, Rei dos Livros, pág. 113, nota 116.
[4]– Cf. o acórdão uniformizador de jurisprudência referido na nota 2.
[5]- Vd. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., pág. 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pág. 77 e ss..
[6]- Cf. o acórdão do TRL de 18-07-2013 (proc. 1/05.2JFLSB.L1-3), disponível em http://www.dgsi.pt.
[7] - Cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 17-03-2016 (processo n.º 849/12.1JACBR.C1.S1), de 20-01-2010 (processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1), de 14-03-2007 (processo n.º 07P21) e de 23-05-2007 (processo n.º 07P1498) e do TRP de 11-07-2001 (processo n.º 110407), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[8] - Cf. o acórdão do STJ de 25-03-2010 (processo n.º 427/08.OTBSTB.E1.S1), disponível em http://www.dgsi.pt.
[9] - Proferido no processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[10] - Cf., nomeadamente, o acórdão de 29-10-2015 (processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1), disponível em http://www.dgsi.pt.
[11] - Conforme, aliás, já foi entendido no acórdão desta Relação de 11-07-2017 (processo n.º 376/11.4TACHV.G2), disponível em http://www.dgsi.pt.
[12]- Vd. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 519.
[13]- In Direito Processual Penal, I, pág. 215.
[14]- Cf. o acórdão do STJ de 04-11-1998, in BMJ n.º 481, pág. 265.
[15]- Tomo I, pág. 343.
[16]- Cf. o acórdão do TRC de 09-09-2009 (processo n.º 363/08.OOGAACB.1), disponível em http//www.dgsi.pt.
[17]- Cf. o acórdão do TRG de 07-01-2008 (processo n.º 1798/07-2), disponível em http//www.dgsi.pt.
[18]- Vd. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 343.
[19]- Cf. o acórdão do TRC de 13-11-2013 (processo n.º 268/11.7TATNV.C1), disponível em http//www.dgsi.pt.
[20]- Proferido no processo n.º 3525/04 9ª Secção, pesquisado em http// www.pgdlisboa.pt.
[21]- Proferido no processo n.º 162/12.4GAACN.C1, pesquisado em http//www.dgsi.pt.
[22]- A este respeito, vd. FRANCISCO MUÑOZ CONDE, in Derecho Penal, Parte Especial, 13ª edição, Editora Tirant lo Blanch, Valência, 2001, pag.s 158 a 160.
[23]- Cf. Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 348.
[24]- Cf. o acórdão do TRC de 20-05-2015 (processo n.º 176/13.7GCGRD), disponível em http://www.dgsi.pt.