Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1069/16.1JABRG.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: CRIME DE HOMICÍDIO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
DESQUALIFICAÇÃO
JOVEM DELINQUENTE
NÃO ATENUAÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Não é suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade e, consequentemente, servir para qualificar o crime de homicídio com base numa atuação por motivo fútil, a circunstância de o arguido agir no âmbito de uma discussão travada com a vítima, motivado pelo facto de esta, para além de recusar o reatamento da relação de namoro, conforme ele vinha insistindo há cerca de quatro meses, lhe confirmar que mantinha uma outra relação afetiva, facto de que o arguido suspeitava e que afastava a concretização da sua vontade de reconciliação, tendo, pois, agido motivado por ciúme passional.

II) O direito penal dos jovens surge como uma categoria própria, envolvendo um ciclo de vida, referente a um período de latência social, de descompromisso com a relação escolar, familiar e profissional, com um potencial de delinquência, em moldes efémeros, sob o signo de capacidade de mutação e regressão na fase de mais avançada idade.

III) Para realizar o juízo de prognose sobre o desempenho futuro da personalidade do jovem, impõe-se ponderar, numa avaliação global dos factos apurados no caso concreto, a natureza e modo de execução do crime, a personalidade do arguido, a sua conduta anterior e posterior ao facto, bem como as suas condições de vida, tudo de forma a averiguar se a moldura penal do crime em questão é ou não excessiva tendo em vista os fins de socialização do jovem condenado.

IV) Porém, esse juízo sobre a existência de sérias razões para crer que da atenuação especial da pena resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado reverte mais às condições pessoais e de carácter deste (condições de vida, familiares, educação, inserção e prognose sobre o desempenho da personalidade) do que à gravidade das consequências do facto.

V) Mas, mesmo não partindo da gravidade dos factos, o juízo sobre as vantagens para a reinserção social do arguido não pode olvidar a refração de duplo sentido da personalidade para os factos e destes para aquela.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de tribunal coletivo, com o NUIPC 1069/16.1JABRG, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Central Criminal de Guimarães – J2, realizado o julgamento, foi proferido acórdão, datado de 06-12-2017 e depositado no dia seguinte, com o seguinte dispositivo (transcrição [1]):

«IV. Decisão.

Pelo exposto, este Tribunal Coletivo:

a) Condena o arguido B. O. pela de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, n.ºs 1 e 2, 23º, 131º, n.º 1, 132º, n.ºs 1 e 2, al. e), do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão;
b) Condena o arguido B. O. pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias, à taxa diária de 5,00 (cinco) euros, no montante global de 500,00 (quinhentos) euros;
c) Condena o demandado civil B. O. a pagar à demandante civil, B. P., a quantia de € 21.850,00 (vinte e um mil oitocentos e cinquenta euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por esta sofridos mercê da conduta daquele, quantia, esta, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a data da presente decisão e até efetivo e integral pagamento;
d) Condena o demandado civil B. O. a pagar à demandante civil, B. P., a quantia de € 814,90 (oitocentos e catorze euros e noventa cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais por esta sofridos mercê da conduta daquele, quantia, esta, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a data da notificação do pedido de indemnização civil e até efetivo e integral pagamento;
e) E absolve o arguido/demandado do demais peticionado no pedido de indemnização civil deduzido pela demandante civil;
f) Condena, ainda, o arguido no pagamento das custas criminais, que fixa em 3 U´sC de taxa de justiça, e nos demais acréscimos legais que fixa no mínimo;
g) Condena o demandado civil e a demandante civil nas custas cíveis e na proporção do respetivo decaimento.»

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso, concluindo a respetiva motivação nos seguintes termos (transcrição):

«Conclusões

1 - O tribunal a quo não tinha suporte probatório suficiente para considerar provado que o arguido manifesta um carácter e personalidade egocêntrica, ou seja, que o arguido padece de uma perturbação da personalidade caracterizada por egocentrismo. Semelhante afirmação conclusiva não tem suporte em nenhuma prova produzida em julgamento e o facto da ofendida e as testemunhas B. L. e J. F. referirem que o arguido era ciumento, não permite, de per si, ao tribunal concluir que o mesmo tem uma personalidade egocêntrica, critério indicador de um transtorno da personalidade narcisista. Personalidade esta que, quer no CID-10 – Classificação Internacional de Doenças da O.M.S, quer no DSM-V – Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, é classificada como perturbação da personalidade.
2 - Existiu, portanto, erro na apreciação da prova que incidiu sobre os factos (art. 410.º, n.º 2, al. c) do C.P.P.), pois, o tribunal a quo não poderia dar por provado que o arguido durante o namoro manifestava um carácter e personalidade egocêntrica, por não dispor de suporte probatório que lhe permitisse considerar provado semelhante facto narrado em 2.
3 - E, ao considerar como provado tal facto o tribunal a quo excedeu os limites impostos pelo artigo 127.º, do C.P.P.
4 - Pelo que devem ser alteradas as respostas dadas aos sobreditos factos constantes da matéria de factos provada de molde a que deles conste como não provado possuir o arguido um carácter e personalidade egocêntrica.
5 - Analisados os factos provados, na imagem global dos mesmos não se deteta a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, pelo que deveria ter sido ditada uma absolvição quanto à verificação da qualificativa prevista no artigo 132.º, n.º 1 al. e), uma vez que, de forma alguma, racional e logicamente, se poderia ter dado como provada a imputação dessa qualificativa ao arguido.
6 – O arguido agiu no âmbito de uma situação de conflito consubstanciada na discussão travada com a ofendida e motivada pelo facto de esta lhe ter confirmado manter uma relação com o V. C. e motivado pelo ciúme acabou por lhe desferir o golpe com uma faca, um único golpe, para de imediato exclamar “não acredito que fiz isto”. Semelhante afirmação transporta em si o arrependimento do ato perpetrado e note-se que, face o facto tido por não provado sob o item 1, o arguido nunca tinha formulado o propósito em matar a ofendida. Não se podendo afirmar, como consta da fundamentação do acórdão recorrido, que ao proferir “não acredito que fiz isto” se centrou em si mesmo e consequentemente que foi determinado por egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral, de tal modo a revelar especial censurabilidade e perversidade.
7 - Os factos provados permitem formar a convicção de que se o arguido pretendesse tirar a vida à ofendida teria desferido não um mas vários golpes com a faca. Pelo que inexiste motivo fútil.
8 - O recorrente, conforme decorre do relatório social junto aos autos, tem inegável suporte familiar e laboral, estável, revelando consequente maturidade, encontrando-se socialmente integrado, tais elementos são relevante para se ajuizar das sérias razões que haja para crer que, da atenuação especial da pena, nos termos do artigo 4.º, do D. L. 401/82, de 23/09, resultem vantagem para a reinserção social deste.
9 - No acórdão recorrido não se encontra devidamente fundamentada a ilação de que para o arguido não advirão vantagens da aplicação do regime penal para jovens delinquentes. Pois, independentemente de se averiguar da existência de pressupostos de facto para a atenuação, optou-se pela não aplicação do regime, valorando-se inequivocamente apenas a proteção de bens jurídicos, intervindo a reintegração do agente apenas enquanto individualizadora da pena entre o limite mínimo da prevenção geral e o limite máximo da culpa, e não como se impunha finalidades de integração e ressocialização do arguido recorrente.
10 - A aplicação do regime penal especial para jovens delinquentes ao recorrente, atenta a sua integração social derivada dos factos constantes do seu relatório social, funcionará como inegável estímulo para a sua efetiva reinserção social e definitivo afastamento de comportamentos desviantes. Aliás, mesmo em termos de prevenção geral as respetivas finalidades encontram-se asseguradas sendo que no meio comunitário onde reside, a sua situação processual é conhecida não tendo sido identificados sentimentos de rejeição à sua presença. A que acresce terem os factos que originaram os presentes autos um carácter excecional no trajeto de vida do recorrente, não emergindo de um quadro disfuncional - (cfr. conclusões do relatório social).
11 - Daí que, o facto de se tratar de um delinquente primário concatenado com todos os factos provados, o inequívoco apoio familiar, não evidenciam um prognóstico completamente negativo relativamente à possibilidade da integração do jovem delinquente num mundo afastado do crime e externamente condizente com as regras sociais. Na verdade, a gravidade dos factos praticados não permitem de per si formular dúvidas quanto à possibilidade de integração na sociedade, sendo que o relatório social do arguido apresenta inequívocos indícios positivos no sentido da reintegração do mesmo.
12 - Sendo que não podemos simplesmente retirar da gravidade do crime praticado a impossibilidade de reintegração do arguido, dado que a atenuação especial trará vantagem para a ressocialização deste, esta atenuação deve ser aplicada, uma vez que as exigências de prevenção geral por si só não são de molde a afastar este regime especial.
13 - Aplicando-se o regime especial para jovens delinquentes, face aos factos seria suficiente para realizar de forma adequada e suficiente as necessidades da punição, a simples ameaça de prisão, aplicando-se ao recorrente a pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão sujeita a regime de prova.
14 - A punição do arguido na pena de seis anos de prisão pela prática do crime de homicídio na forma tentada é manifestamente exagerada, não se filiando numa visão factual ponderada pela gravidade global dos factos e da culpa neles desenhada, sendo nítida a violação do disposto no artigo 71.º, n.º 1, do C. P. pelo menos, em termos de culpa.
15 - A pena aplicada, de seis anos de prisão, não realiza nenhum dos seus fins, na medida em que a pena, para além de dever ser a retribuição justa do mal praticado, deve contribuir para a reinserção social do agente, por forma a não prejudicar a sua situação senão naquilo que é necessário e deve dar satisfação ao sentido de justiça e servir de elemento dissuasor relativamente aos elementos da comunidade.
16 - Destarte, em nome da justiça e da equidade, impõe-se a aplicação de uma pena não superior a quatro anos e seis de prisão, a qual realizaria as exigências decorrentes do fim preventivo especial, ligadas à reinserção social do delinquente e exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade. Tal pena de uma pena de quatro anos e seis meses deverá ser suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova.
17 - Com efeito, a matéria de facto provada permite concluir que as necessidades de prevenção especial consentem que a pena de quatro anos e seis meses de prisão seja suspensa na sua execução e, assim, possibilitar ao arguido manter ligação à comunidade de origem, facilitando o processo de ressocialização e amortizando os efeitos negativos que podem advir do cumprimento efetivo da pena de prisão.
Foram violados os artigos 32.º da C.R.P., 127.º, 410.º, n.º 2, al. c) do C.P.P., 70.º e 71.º do C. Penal e 4.º, do D.L. n.º 401/82, de 23 de Setembro.

Nestes termos e nos demais de direito, sempre com o douto suprimento de V.ªs Ex.ªs, deverá, o presente recurso, merecer provimento, com todas as consequências legais.
Com o que farão Vossas Excelências a justiça que o caso reclama.»

3. O Exmo. Procurador da República junto da primeira instância respondeu à motivação do recurso nos seguintes termos:

- Quanto ao invocado erro notório na apreciação da prova, analisada a decisão recorrida, não está maculada com tal vício, porquanto dela não resulta que o mesmo seja de tal modo evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores, para além de que, embora tal não venha alegado, para se concluir da portabilidade de personalidade narcisista não se torna necessário que o seu aferidor esteja dotado de especiais conhecimentos científicos com vista a tal.
- Em relação à pretendida desqualificação do crime de homicídio, o dissídio do recorrente em relação a essa parte da decisão assenta numa visão distorcida dos factos, porquanto, ao minimizar o golpe com a faca, olvida as concretas características desta e a forma como atingiu a assistente com ela, bem como que, à expressão “não acredito que fiz isto”, por si proferida, não pode ser conferido um potencial de manifestação de arrependimento, tendo antes, como entendeu o tribunal, tal expressão sido determinada por egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral. Por fim, apesar de o recorrente alegar não ter agido com intenção de matar, não tendo impugnado tal segmento da matéria de facto, deve-se o mesmo considerar como assente.
- No que concerne à aplicação do regime especial para jovens, ao contrário do alegado pelo recorrente, não corresponde à verdade que o tribunal se tenha cingido apenas à valoração da proteção de bens jurídicos, pois, para além disso, procurou e encontrou um plus que recomendava a sua não aplicação na situação em apreço, como se colhe do acórdão recorrido, salientando ainda que, contrariamente ao alegado pelo recorrente, não corresponde à verdade que não se façam sentir especiais exigências de prevenção geral positiva, laborando aquele em lapso ao pretender fazer equivaler tais exigências à situação de não rejeição do arguido pela comunidade.
- Relativamente à reclamada redução da pena, o recorrente não apresenta uma verdadeira alegação, porquanto não convoca qualquer factualidade, aduzindo apenas conceitos vagos e genéricos que, em circunstância alguma, poderão constituir a âncora de tal pretensão, mostrando-se a pena aplicada ao arguido adequada às exigências de prevenção geral e especial, bem como às suas condições pessoais.
- Por fim, atenta a posição assumida quanto à não redução da pena, não pode proceder a pretensão de suspensão da pena, por imperativo legal, sendo que, de todo o modo, pese embora a boa inserção sociofamiliar e laboral e a ausência de antecedentes criminais, não se antevê que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pois razões de prevenção geral e especial impõem a não aplicação do reclamado instituto.
Em conformidade, conclui que deverá se negado provimento ao recurso

4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de a 1ª e a 3ª questões suscitadas pelo recorrente virem suficiente e adequadamente debatidas na resposta do Ministério Público junto da 1ª instância, sendo de sufragar as considerações e entendimentos ali expendidos, dando-os por reproduzidos e dispensando-se, por desnecessário e redundante, dum impertinente aditamento de mais desenvolvida argumentação em defesa da improcedência dessas questões.

Já no que tange à contestação do recorrente pela sua condenação por um crime de homicídio qualificado na forma tentada, entende o Exmo. Procurador-Geral Adjunto assistir-lhe razão, na medida em que, no caso dos autos, a agressão da assistente surge depois de uma tentativa de reatamento por parte do arguido, agindo este por ciúme, no convencimento de que a ex-namorada tinha um relacionamento amoroso com outro indivíduo e por não se conformar com a decisão dela em recusar o reatamento do namoro entre ambos, circunstancialismo este que remete para o “homicídio passional”, entendido como cometido, em regra, “repentinamente, na sequência de um impulso emocional súbito” e não para um plano criminoso, como presumiu o tribunal ao afirmar que o arguido formou o propósito de tirar a vida da assistente, pelo que, apesar de a conduta do arguido ser muito reprovável, o conjunto de circunstâncias, mormente a vontade do arguido no reatamento da relação pelo qual insistia, não permite qualificar de fútil, isto é, irrelevante, insignificante, sem sentido, o motivo de que o homicídio tentado resultou, não havendo na conduta do recorrente mais do que a censurabilidade pressuposta no tipo de homicídio simples. Assim, não está verificada a agravante qualificativa “motivo fútil” prevista na al. e) do n.º 2 do art. 132º do Código Penal, ficando, portanto, a prática pelo recorrente de um crime de homicídio simples, na forma tentada.

Atentos os reflexos da procedência dessa questão na medida da pena de prisão a aplicar ao recorrente, entende o Exmo. Procurador-Geral Adjunto que, tendo em conta o circunstancialismo do cometimento do crime e ainda as circunstâncias decorrentes da factualidade provada e os critérios de determinação da medida da pena, esta deve situar-se abaixo do meio da moldura abstrata, considerando justa a pena de quatro anos.

Mais se lhe afigura que os dados disponíveis quanto à personalidade do recorrente, as suas condições de vida, o comportamento anterior e posterior ao crime (sem qualquer antecedente criminal) apontam no sentido da substituição da pena de prisão, sendo que não se apresenta como seguro que o sentimento da comunidade reclame uma pena de prisão efetiva, tendo em conta o condicionalismo que rodeou a ocorrência do crime, termos em que propugna pela suspensão da execução da pena, pelo mesmo período de quatro anos, devendo ficar subordinada à condição de o recorrente pagar a quantia arbitrada a título de indemnização, no prazo de três anos a contar do trânsito em julgado da decisão, assim se concedendo provimento parcial ao recurso, com a consequente imediata extinção da medida de coação de obrigação de permanência na habitação na habitação com vigilância eletrónica.
5. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta a esse parecer.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do mesmo código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Dispõe o art.º 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

É entendimento pacífico que são as conclusões que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando, assim, para o tribunal ad quem, as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam [2].

No caso vertente, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar são as seguintes, elencadas pela ordem da sua precedência lógica:

a) - A existência de erro notório na apreciação da prova.
b) - A desqualificação do crime de homicídio com fundamento na não verificação da circunstância qualificativa de motivo fútil.
c) - A aplicação do regime especial para jovens delinquentes.
d) - A medida da pena.
e) - A suspensão da execução da pena.

2. DA DECISÃO RECORRIDA

É do seguinte teor a fundamentação de facto do acórdão recorrido (transcrição):

«I. Fundamentação.

1.De Facto.
1.1.Factos provados.

Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

- Da acusação

1. O arguido manteve um relacionamento de namoro com a ofendida B. P. durante cerca de um ano e meio, relação, essa, que começou em Novembro de 2014 e terminou por volta de Abril de 2016, embora nos últimos três meses o arguido e a ofendida tenham mantido encontros esporádicos.
2. Durante o período de namoro o arguido, por diversas vezes, manifestou um carácter e personalidade egocêntrica, gerando-se discussões entre ambos, motivadas pelo comportamento, excessivamente, ciumento do arguido em relação à ofendida.
3. O arguido nunca se conformou com o fim da relação e, por diversas ocasiões, tentou reatar o namoro, enviando SMS’s e insistindo, por diversas formas, conversar com a ofendida, mas sem sucesso, tendo pelo menos numa dessas ocasiões, o arguido, escrito e enviado uma sms a uma sua amiga onde mencionou que iria tentar matar a ofendida.
4. No dia 11 de Agosto de 2016, cerca das 14h15/14h30, o arguido encontrava-se a trabalhar e, como é motorista, passou junto da casa da ofendida B., sita na Rua (…), viu-a no exterior com o cão, pelo que, decidiu parar para falar com ela acerca de uma consulta médica que sabia que ela tinha tido de manhã e também para, uma vez mais, tentar reatar o namoro.
5. Depois de parar a carrinha que conduzia, o arguido falou com a ofendida B., pedindo-lhe para entrar em casa para conversarem, e entraram os dois na casa da ofendida.
6. A determinada altura, já no interior da cozinha da dita residência, começaram a discutir visto que o arguido desconfiava que a ofendida B. mantinha um relacionamento com um outro indivíduo, que o arguido conhecia pelo nome de C. F. mas cujo nome completo é V. C. P. F..
7. O arguido confrontou a ofendida com tal facto, mas a ofendida não lhe respondeu;
8. Continuaram a discutir sobre esse ponto, até que o arguido muniu-se de uma faca de cozinha que estava na banca, apontou-a à ofendida B. dizendo-lhe que sabia que ela ia ter com o C. nessa tarde.
9. Esta faca tinha cabo em madeira, de cor castanha e uma lâmina fina, com cerca de 12 cm de comprimento;
10. No decurso dessa discussão o telemóvel da ofendida tocou, dizendo-lhe esta que era o C., enquanto atendia a chamada, dizendo-lhe também ela que o C., no decurso daquela conversa, se apercebeu da presença do arguido na casa dela.
11. Após tal chamada, o arguido pegou no telemóvel da ofendida e ali viu uma fotografia dos pés da B. e do C. e, zangado com tal situação, atirou o referido telemóvel, marca “Apple”, modelo “Iphone 5S”, no valor de €468,00 (quatrocentos e sessenta e oito euros), contra a parede e o frigorífico, partindo-o.
12. Ao partir o identificado telemóvel o arguido causou à ofendida um prejuízo, pelo menos, de €468,00 (quatrocentos e sessenta e oito euros).
13. Nesta altura, a ofendida B. começou a chorar, dizendo que o pai lhe ia bater, ausentando-se para o quarto, indo o arguido atrás dela, levando a faca na mão, voltando os dois, pouco tempo depois, à cozinha.
14. Foi neste momento, encontrando-se ambos na cozinha, que a ofendida B. confirmou ao arguido que mantinha uma relação com o V. C..
15. Ato seguido, estando a B. posicionada entre o fogão e o frigorífico, o arguido aproximou-se da mesma e utilizando a faca que tinha na mão direita, desferiu um golpe com força, espetando a dita faca na zona central do tronco, entre o peito e o abdómen, mantendo a faca na perpendicular em relação ao corpo dela, tendo a ofendida caído ao chão e começado a gemer.
16. Entretanto chegou à dita residência o referido V. C. e tocou à porta daquela casa.
17. O arguido foi à porta da dita residência e não deixou que o V. C. entrasse e, apercebendo-se disso mesmo, a B. pediu ao arguido que deixasse o V. C. entrar senão ela morria ali;
18. Nessa ocasião o V. C., ouvindo a B., abriu a porta da casa e ali entrou de imediato e, ainda na entrada daquela casa, deparou-se com o arguido que lhe disse ter dado uma faca à B., motivo pelo qual o V. C. discutiu e agrediu fisicamente, de forma não concretamente apurada, o arguido;
19. Logo de seguida o V. C. dirigiu-se à cozinha onde estava a B.;
20. Nessa ocasião o arguido fugiu;
21. A ofendida B. foi, prontamente, levada pelo C. até à fábrica onde trabalhava a mãe daquela e daqui, já acompanhados, o V. e a B., pela mãe desta, deslocaram-se os três para os Bombeiros de Vizela, sendo a B. transportada pelos Bombeiros para o Hospital de Guimarães, onde deu entrada diretamente no bloco operatório, apresentando uma lesão perfurante na zona do epigastro/hipocôndrio direita, lesão essa que atingiu a totalidade da parede e com perfuração do fígado.
22. Em consequência direta dos referidos golpes, sofreu a ofendida B. P., no abdómen uma cicatriz hipertrófica de cor rosada em localização supra umbilical, linha média, distanciando a sua extremidade mais interior 13 cm do umbigo, de forma irregular com dimensões máximas de 2,5cm, três cicatrizes com as mesmas características, peri centimétricas, em localização abdominal inferior, uma na linha média (peri umbilical) e duas nos flancos esquerdo e direito com dor a palpação das regiões peri cicatriciais e no hipocôndrio direito;
23. No primeiro Relatório do Exame pericial realizado à ofendida foi mencionado, naquela data, que as referidas lesões determinaram 60 dias para a consolidação médico-legal, com afetação da capacidade de trabalho geral (9 dias).
24. O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida à ofendida e de lesar o seu corpo e saúde, usando uma faca e atingindo-a numa zona do corpo que sabia alojar órgãos vitais para a vida, prevendo com isso que a poderia matar, estando perfeitamente ciente que o meio utilizado e a forma súbita como agiu, retirava qualquer hipótese de defesa à vítima, resultado com o qual se conformou e quis, só o não logrando obter por circunstâncias alheias à sua vontade.
25. Ao atuar da forma descrita quis, igualmente, o arguido causar os estragos efetivamente causados numa coisa que sabia não lhe pertencer.
26. Mais sabia que agia contra a vontade e sem autorização da sua legítima proprietária, tendo pleno conhecimento da censurabilidade penal da sua conduta.
27. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

- Do pedido de indemnização civil (com exclusão dos alegados neste mas já dados como provados e relativos à acusação).

28. Como consequência direta e necessária dos factos descritos nos números 11, 12, 25 a 27, a demandante sentiu-se desesperada, triste e desconsolada e sentiu, também, receio e medo da reação que o pai pudesse vir a ter, em virtude do telemóvel ter ficado deteriorado;
29. Como consequência direta e necessária dos factos descritos nos números 15, 24 e 27, a blusa e o soutien que a demandante tinha vestidos ficaram com um buraco, no local em que a faca também os atingiu;
30. Mercê dos factos descritos nos números 15, 24 e 27, quer na ocasião em que o arguido desferiu o golpe com a mencionada faca na ofendida quer durante algumas horas após tal facto e até que lhe foi comunicado que estava a salvo de perigo de vida, a demandante receou pela sua própria vida;
31. e tendo, nessas alturas, a demandante vivido momentos angustiantes e de desespero, aflição e lutando pela própria vida;
32. e tendo nessa ocasião perdido sangue, o que intensificou o receio sentido de que poderia morrer.
33. Mercê dos factos descritos nos números 15, 24 e 27, a demandante foi para o hospital e ali foi sujeita a uma operação cirúrgica e a transfusões de sangue;
34. Devido à conduta do arguido descrita nos números 15, 24 e 27, a demandante esteve internada no hospital durante nove dias, quatro dos quais em regime de OBS, tendo efetuado antibioterapia e pensos cirúrgicos durante sete dias;
35. E, passado cerca de 1 mês do sucedido, a demandante teve de se deslocar ao hospital para uma consulta médica, e teve de se deslocar novamente ao hospital para fazer análises e uma ecografia;
36. E ainda hoje a demandante sente dor e desconforto na zona atingida;
37. Em consequência da conduta perpetrada pelo arguido, e referida nos números 15, 24 e 27, a demandante foi observada no internamento por Psiquiatria, com pedido de consulta de psiquiatria para reavaliação;
38. e tem sido acompanhada, a demandante (mercê da aludida conduta do arguido) desde o início do ano letivo pelo serviço de psicologia e orientação do Agrupamento de Escolas de Vizela, por não conseguir lidar com as consequências emocionais decorrentes da agressão, por manter sentimentos confusos, que a deixam angustiada, frustrada e insegura, por recear que algo idêntico pode voltar a acontecer;
39. E a demandante continua a viver um sofrimento, que vai variando de intensidade, pelo medo constante de que o demandado lhe cause novamente algum mal.
40. Devido à mencionada conduta do arguido e ao sofrimento, insegurança e medo que a mesma provocou, e ainda provoca, na demandante B. esta alterou as suas vivências, mormente não sai à rua senão acompanhada por amigos e ou pelos pais, o que provoca na ofendida tristeza;
41. Acresce que os factos perpetrados pelo arguido na ofendida continuam presentes nos pensamentos e no dia-a-dia da demandante, o que influencia negativamente o investimento e disponibilidade da demandante para o estudo e aprendizagem, refletindo-se nos seus resultados escolares;
42. A demandante durante quase um ano, e em consequência da conduta do arguido perpetrada no corpo da mesma, esteve impedida de praticar exercício físico com regularidade, nomeadamente voleibol, atividades que promoviam a sua auto estima e auto confiança, bem como a interação e comunicação com outras pessoas da sua idade;
43. Ao partir o telemóvel, o demandado causou à demandante um prejuízo patrimonial de 468,90€ (quatrocentos e sessenta e oito euros e noventa cêntimos), correspondente ao seu valor de mercado;
44. Com a sua conduta o demandado danificou a camisa e o sutiã que a demandante tinha vestidos na ocasião, causando-lhe um prejuízo patrimonial de 46,00€ (quarenta e seis euros);
45. Encontrando-se a demandante de férias escolares, aquando dos factos em causa nos autos, encontrava-se a mesma trabalhar na fábrica na qual a sua mãe também trabalha, auferindo a título de estímulo e de incentivo a quantia diária de 20,00€;
46. Mercê da conduta do arguido a demandante deixou de trabalhar desde o dia 12 de agosto até ao dia 19 do mesmo mês e desde o dia 5 de Setembro a 16 de Setembro, num total de 15 dias úteis de trabalho, por lhe ter sido recomendado não fazer quaisquer esforços;
47. Mercê, ainda, da conduta perpetrada pelo arguido na ofendida/demandante, esta teve de se deslocar duas vezes a consultas médicas e exames;
48. Aos 6.9.2017 foi realizado exame pericial à demandante civil, B., e o respetivo Relatório, de onde consta que como consequência direta do referido golpe cometido pelo arguido, a data de consolidação médico-legal das lesões é fixável em 1.3.2017, tendo em conta os seguintes aspetos: data da última consulta de Cirurgia Geral no hospital de Guimarães;
49. que o Défice Funcional Temporário Total (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Total e correspondendo com os períodos de internamento e/ou repouso absoluto), situou-se entre 11.8.2016 e 19.8.2016 (num período de 9 dias);
50. que o Défice Funcional Temporário Parcial (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Parcial, correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses atos, ainda que com limitações), é fixável entre 20.8.2016 e 1.3.2017 (fixável num período de 194 dias);
51. O Quantum doloris (correspondente à valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado pela demandante durante o período de danos temporários, entre a data do evento (11.8.2016) e a cura ou consolidação das lesões) é fixável no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes com perigo de vida da demandante, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efetuados;
52. O Dano Estético Permanente (corresponde à repercussão das sequelas, num perspetiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afetação da imagem da vítima quer em relação a si própria quer perante os outros) é fixável no grau 3, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, tendo em conta os aspetos, localização das cicatrizes e a idade da demandante.
53. A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer – correspondente à impossibilidade estrita e específica para a vítima de se dedicar a certas atividades lúdicas, de lazer, e de convívio social, que exercia de forma regular e prévia ao evento traumático e que para ela representavam um amplo e manifesto espaço de realização e gratificação pessoal, - é fixável no grau 1, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta a limitação dolorosa na corrida e em atividades de lazer fisicamente mais exigentes.

- Da contestação.

54. O arguido quando se dirigiu à casa da ofendida, aos 11.8.2016, não transportou com ele a faca em causa nos autos;
55. Após ter desferido o mencionado golpe com a faca no corpo da ofendida o arguido disse “não acredito que fiz isto”;

- Mais se provou:

56. O arguido não sofre de doença mental ou de alterações de comportamento;
57. O arguido não apresenta qualquer expressão psicopatológica ou anomalia psíquica ao exame clínico (realizado aos 26.10.2017), nomeadamente qualquer ideação ou expressão emocional de ciúme;
58. O arguido apresenta capacidade de avaliação da ilicitude dos atos em apreço nos autos e capacidade de se autodeterminar em função dessa avaliação, sendo considerado imputável para os atos em causa nos autos;
59. O arguido não apresenta perturbação ao nível da sua personalidade que lhe causa prejuízo da capacidade valorativa;
60. O arguido não tem antecedentes criminais.
61. Os pais do arguido tiveram sempre a atividade de operários fabris;
62. A dinâmica do agregado familiar formado pelo arguido e pelos pais apesar de é coesa, sofreu algumas ruturas e reconciliações ao longo do tempo em que permaneceram casados, com uma vivência marcada por conflitualidade associada ao facto de o pai ter sido consumidor de substâncias aditivas e de a mãe sofrer de problema ao nível da saúde mental;
63. Os pais do arguido divorciaram-se em 2014, tendo o arguido, um ano mais tarde e por opção própria, passado a integrar o agregado do pai, mantendo contactos regulares com a mãe;
64. O arguido ingressou na escola em idade normal, pautando o seu percurso sem incidentes; com a obtenção do 9º ano, decide optar pela via profissionalizante, integrando o curso de técnico auxiliar de saúde, com frequência de estágio para o efeito, faltando-lhe um módulo do curso para obter a equivalência ao 12º ano de escolaridade;
65. Em Agosto de 2016 o arguido iniciou-se laboralmente, como motorista, na fábrica têxtil onde a mãe também exercia atividade;
66. À data dos factos, o arguido integrava o agregado de origem, composto pelo pai e pela avó paterna;
67. Nos tempos livres privilegiava a companhia do agregado de origem e o convívio com os seus familiares e amigos;
68. Ao nível laboral, encontrava-se profissionalmente ativo, há cerca de 1 mês, como motorista, na fábrica onde a mãe também exercia atividade, auferindo cerca de 620€ mensais, situação que se alterou com os factos que deram origem ao presente processo;
69. Atualmente a subsistência do agregado é assegurada pelos rendimentos auferidos pelo pai, como operário fabril, no valor de cerca de 760 €/mês;
70. A dinâmica familiar caracteriza-se por um padrão de relacionamento funcional, com sentimentos de pertença e coesão entre os elementos e pese embora os pais do arguido se encontrem divorciados, estes mantêm um relacionamento cordial, bem como um especial empenho em prestar apoio ao arguido, atendendo à sua situação processual;
71. A avó do arguido, que reside no piso superior da habitação, encontra-se acamada, necessitando de cuidados permanentes, sendo o arguido que auxilia nesse sentido a tia paterna que se desloca diariamente à habitação para tal;
72. Como perspetivas futuras, o arguido refere pretender reintegrar-se laboralmente, manifestando vontade de a médio/longo prazo obter colocação na sua área de formação, situação que surge condicionada face à sua atual situação processual;
73. No meio comunitário onde reside, a situação processual do arguido é conhecida não tendo, no entanto, sido identificados sentimentos de rejeição à sua presença;
74. Durante o período de execução da medida de coação o arguido manteve uma conduta na sua globalidade normativa.
*
1.2. Factos não provados

Com interesse para a decisão da causa resultaram “não provados” os seguintes factos:

1. Que nas ocasiões descritas no número 3 dos “Factos provados” o arguido pensava tirar a vida à ofendida;
2. Que na ocasião referida no número 5 dos “Factos provados” a ofendida tivesse acedido ao arguido que este entrasse na casa dela para conversarem;
3. Que na ocasião referida no número 7 dos “Factos provados” a ofendida tivesse dito ao arguido que o mesmo não tinha nada a ver se ela mantinha um relacionamento com outro indivíduo, mormente o V. C.;
4. Que na ocasião referida no número 8 dos “Factos provados” o arguido tivesse dito à ofendida que se o C. ali fosse a casa “iria fazer alguma coisa”;
5. Que o telemóvel descrito no número 11 dos “factos provados” tivesse o valor de 350,00 euros;
6. Que ao partir o identificado telemóvel o arguido tivesse causado à ofendida um prejuízo de, apenas, 350,00 euros.
7. Que a demandante tivesse realizado as deslocações entre Vizela, onde reside, e o Hospital de Guimarães em autocarro, e tivesse despendido, em tais deslocações por autocarro, o custo de 2,30€ (dois euros e trinta cêntimos) por viagem;
8. Que a fábrica em que a ofendida trabalhava à data dos factos em causa nos autos era explorada pela mãe daquela;
9. Que o arguido nunca tivesse representado como resultado da sua conduta ferir com gravidade a ofendida e/ou causar-lhe a morte;
10. Que o arguido com a sua conduta não quis matar a ofendida;
11. Que o arguido tivesse agido sem a consciência da ilicitude do seu ato e com capacidade diminuída de dominar a sua vontade;
12. e que tivesse agido na sequência de um delírio crónico passional de ciúme que lhe diminuiu a capacidade de dominar a vontade.
*
1.3. Motivação.

Determina o art. 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, além do mais, que a fundamentação da sentença contenha a enumeração dos factos provados e não provados que serão, como resulta do art. 368º, n.º 2, do mesmo Diploma, apenas os que sendo relevantes para a decisão estejam descritos na acusação, ou na pronúncia, tenham sido alegados na contestação, ou que resultem da discussão da causa.

Com efeito, atenta a uniformidade do entendimento que desde há muito o STJ tem vindo a adotar sobre este ponto aquela enumeração visa a exaustiva cognição do “thema probandum”, i. é, a demonstração de que o Tribunal analisou especificamente toda a matéria de prova que foi submetida à sua apreciação e que revista de interesse para a decisão da causa, pelo que a obrigação legal, de na sentença, se fazer a descrição dos factos provados e não provados, se refere tão somente “(...) aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação”.

Aqui chegados cumpre, ainda, referir que, como é consabido, em matéria de apreciação da prova, vigora o princípio de acordo com o qual o julgador formará livremente a sua convicção, objetivando-a racionalmente nos elementos produzidos ou analisados em audiência de julgamento e, com apoio, as mais das vezes, num raciocínio dedutivo ou indutivo, confrontando-a com as chamadas regras da experiência comum, entendidas como juízos hipotéticos assentes nas máximas da experimentação ordinária, independentes dos casos individuais em que se alicerçam e para lá dos quais mantêm validade - cfr. art. 127º, do Código de Processo Penal.

Posto isto, e tendo presente o que se deixou dito - o que releva nomeadamente face à aquisição de novos factos que não foram oportunamente alegados em qualquer peça processual mas resultaram da audiência de discussão e julgamento, sendo certo que não correspondem a qualquer alteração substancial, mas só e apenas a alteração não substancial dos factos, e como foi dado conhecimento em sede de audiência - vejamos o percurso da motivação do Tribunal.

Principiemos com as declarações do arguido.
Desde logo, cumpre dizer que o arguido, num primeiro momento das suas declarações, não colocou em causa os factos exarados na acusação, exceção feita à intenção de matar a ofendida e que ali lhe é imputada, defendendo nunca ter tido intenção de matar a B. e de não ter representado como possível causar-lhe perigo para a vida.

Num segundo momento das suas declarações referiu já não se recordar em que momento da discussão que teve com a B., na casa desta, a mesma lhe disse já ter um namorado – se antes ou depois da B. ter recebido a chamada em causa na acusação -; assim como disse já não se recordar em que momento pegou na faca de cozinha mencionada na acusação – se pegou naquela antes ou depois de ter ido ao quarto da ofendida.

Mais relatou que após ter desferido o golpe com a faca, na ofendida, arrependeu-se logo do que fez e entrou em choque, e que proferiu as frases “ai que a minha avó não me vai perdoar”, “não acredito que fiz isto” – frase esta última que a ofendida confirmou ter sido proferida pelo arguido na relatada ocasião, e como infra se verá.

Mencionou ter tentado telefonar para o 112 ou para o INEM, mais dizendo que enquanto estava a falar para o INEM a chamada em questão caiu.

Referiu, ainda, que entretanto ali acedeu o V. C. , à porta da casa da B., e que ele (arguido) tentou não deixar que o V. entrasse na aludida residência – relato, este, confirmado pela ofendida e pela testemunha V. e como infra se verá
.
Confrontado, em juízo, com as SMS cuja transcrição está junta a fls. 143 e ss., assumiu ter sido quem escreveu tais sms e as enviou, do seu telemóvel para os telemóveis que as amigas então utilizavam – factualidade, esta, também confirmadas pelas amigas A. J. e A. P., como mais adiante se constatará.

E confrontado com o texto da mensagem (n.º 1974) de 9.8.2016, 11:15:56 – “Eu não a quero com ele” – explicou que se referia à B. e ao V. C. porque na ocasião já desconfiava que a B. namorava com o referido C. – ou seja, resulta destas declarações do arguido que mesmo antes dos factos (ocorridos nesse mesmo dia mas após a hora em que tal sms foi escrita e enviada) o arguido já desconfiava que a ofendida e o V. namoravam um com o outro.

Confrontado com o texto da mensagem n.º 1985, de 9.8.2016, 11:20:45 - “Não consigo eu vou tentar matá-la não mostres a ninguém isto é não ligues”, explicou tratar-se de um desabafo e que não lhe passou pela cabeça matar a B..
Por fim referiu, quanto aos factos, e a instâncias da Defesa, que não conseguiu controlar o ciúme, mas que isto, não foi uma vingança.

Vejamos, agora, as declarações da ofendida B.
Num discurso espontaneamente pouco organizado e que deixou perceber uma sincera angústia relativamente aos factos em causa nos autos, B. P. relatou os factos de que foi vítima e como constavam da acusação, exceção feita de que tivesse referido ao B. que ele podia entrar na sua casa, pormenorizando que ele perguntou se ali podia entrar mas que entrou de imediato sem que ela lhe desse autorização.

Relatou, ainda, que durante o namoro que teve com o arguido se tudo estivesse de acordo com o que ele queria tudo ficava bem; que o arguido tinha ciúmes quer dos amigos quer das amigas dela, e de quem a mesma teve de se afastar mercê dos aludidos ciúmes do arguido e para que o aludido namoro corresse bem; que o arguido queria saber as passwords do telemóvel e dos contactos que ela tinha, mormente nas redes sociais, e que ela lhe deu tais passwords na esperança de que ele mudaria a sua forma de ser (ciumento).

Referiu, igualmente, que após ela e o arguido terem terminado o namoro entre eles, tentaram reatar o mesmo, tiveram encontros esporádicos (e até de cariz íntimo) após tal termino; que a dada altura, não querendo ela mais reatar o namoro, o arguido tentou por diversas e insistentes vezes reatar o mencionado namoro, enviando sms e insistindo conversar com ela, mas sem sucesso.

Mais disse que após o arguido lhe ter desferido o golpe com a faca, e em causa nos autos, referiu “não acredito que fiz isto”, e que lhe disse (à B.) que tentou ligar para a mãe e para os bombeiros mas que eles não atendiam, embora ela, que sempre se manteve consciente, não se tivesse apercebido se o arguido fez tais chamadas.

Relatou, ainda, que o arguido, na ocasião, não lhe prestou qualquer socorro.

Mais referiu que entretanto o V. C. acedeu àquela casa mas que o arguido não o deixou entrar e apercebendo-se ela disso mesmo pediu ao arguido que deixasse o V. entrar senão ela morria ali; que ouviu, então um barulho e pensou que eles (arguido e V.) andassem à luta e chamou o V. e este foi ter com ela e dali a levou, de carro, para a fábrica onde a mãe dela trabalha e dali foram os três para os bombeiros e depois para o hospital.

Mais reportou que receou, na altura, que pudesse morrer.

Igualmente deu conta das dores, do sofrimento, da angústia, do padecimento que sofreu e ainda sofre mercê da conduta do arguido.
Cumpre referir que a ofendida prestou as aludidas declarações de modo que se mostrou espontâneo, objetivo, isento e, por isso, credível.

Sendo ainda que, cumpre dizê-lo, a assistente não se limitou a descrever os factos como os mesmos vinham referidos na acusação e no pedido de indemnização civil, ficando o relato dos mesmos por ela feito aquém dos ali descritos, o que demonstra a sua objetividade.

E foram as declarações da ofendida, assim prestadas, de modo espontâneo, isento, objetivo, pormenorizado e crível, quando em confronto com as do arguido, que decisivamente convenceram – nomeadamente no que tange aos ciúmes que o arguido sempre revelou aquando do namoro que manteve com a ofendida, e o ascendente egocêntrico, por causa de tais ciúmes, que este tinha perante aquela em tal namoro; as insistências do arguido, perante a ofendida, para reatarem namoro; o momento em que o arguido pegou na faca de cozinha em causa nos autos; o modo de atuação pelo mesmo protagonizado e ainda o mesmo após ter desferido aquele golpe e, ainda, quando ali acedeu o V.; tanto mais que tais declarações foram, ainda, corroboradas - no que respeita à descrição da relação de namoro entre arguido e ofendida e, ainda, ao segmento da acusação que se refere à chegada da testemunha V. ao local dos factos -, respetivamente, pelos depoimentos das testemunhas B. L. e J. F. e do aludido V. C. ; e no que concerne às insistências por parte do arguido para reatar namoro com a ofendida, tais declarações (da ofendida) foram corroboradas pelos depoimentos das testemunhas V. C., A. L. e A. P. (estas duas amigas do arguido).

Com efeito, a testemunha B. L., amiga da B. há 4 anos, relatou que a B., quando namorava com o arguido, se lhe queixava que o mesmo, por ciúmes, não a deixava ter amigos; mais disse a testemunha que presenciou que era o arguido quem, durante tal namoro, decidia com quem a B. se podia relacionar, que amigas e amigos ela podia ter e com quem falar, e que a dada altura a própria B. disse à testemunha que o arguido não queria que elas se continuassem a relacionar e, por isso, a B. afastou-se da testemunha.

Mais disse que após o arguido e a B. terem cessado o namoro entre eles a B. voltou a relacionar-se com os anteriores amigos que tinha.
Igualmente, a testemunha J. F., amigo da B. há 4 anos, reportou que quando a B. e o arguido namoraram aquela afastou-se dos amigos e amigas, pormenorizando que a B. lhe disse ter de se afastar dele por vontade do namorado (arguido).

Mais dizendo a testemunha que se apercebia que o arguido era ciumento e que não gostava que a B. estivesse com outras pessoas e que uma vez viu o arguido, ainda durante o namoro daqueles, a berrar com a B. e a agarrar o braço dela porque a mesma estava na companhia de amigos.

Relatou, ainda, que numa ocasião o arguido foi à escola frequentada pela B. e pela testemunha e pediu à professora da B. para falar com ela, estando a B., na ocasião, a fazer um teste, tendo a B. saído da sala de aulas e ido falar com o arguido.

A testemunha V. C., namorado da B. à data dos factos em causa nos autos, e atual amigo da mesma, referiu que no dia em causa nos autos ligou para a B. e achou que ela estava a falar com medo, com receio e a dada altura ela disse “ele já te ouviu” e disse à testemunha que o B. estava na casa dela e, nessa altura, a chamada telefónica caiu, e a testemunha ligou outras vezes para a ofendida mas o telemóvel já não chamava e, por isso, a testemunha deslocou-se de imediato a casa da ofendida.

Ali chegado bateu à porta e passado um tempo ouviu a B. a dizer (ao arguido) para abrir a porta e que a tinha acertado no estômago, apercebendo-se a testemunha que havia dor na voz da B..

Referiu que quando entrou na dita casa o arguido, na entrada daquela casa, lhe disse que deu uma facada à B. e que por isso a testemunha bateu no arguido.

Após dirigiu-se, a testemunha, à cozinha e ali viu a B., sentada numa cadeira, a chorar e a dizer que ia morrer e a pedir que a levasse para o hospital; pormenorizando, ainda, a testemunha, ter visto um buraco na blusa que a B. trajava e uma macha de sangue na mesma; e mais dizendo que nessa altura já o arguido não estava ali, tinha fugido.

Relatou, a testemunha, que dali levou a B. para o carro e foram à fábrica onde trabalha a mãe da ofendida, fábrica, essa, que dista da casa da ofendida cerca de 1 minuto; e que já na companhia da mãe da B. foram para os bombeiros de Vizela e que depois estes levaram a ofendida para o hospital.

Mais relatou a testemunha V. C. que durante o tempo em que namorou com a B. se apercebeu que o arguido ligava para ela muitas vezes e mandava-lhe sms (à B.) a ameaça-la dizendo a esta que se ela não voltasse para ele iria dizer ao pai dela que ela estava grávida (sendo que ela não estava grávida).

As três mencionadas testemunhas reportaram, ainda, os sofrimentos, dores, padecimentos, medos, receios, alterações do comportamento e de vivências de vida da ofendida mercê da condutas do arguido, demonstrando terem conhecimento de tais factos porque privaram com a ofendida, quer antes dos factos em apreço nestes autos quer nos momentos subsequentes àquela conduta, mormente no hospital onde ficou internada e, ainda, depois, em casa da ofendida até à presente data.

Aqui chegados, cumpre referir que as acima aludidas testemunhas prestaram os seus depoimentos de forma que se evidenciou credível, porque espontâneo, sereno, isento, pormenorizado, circunstanciado, e objetivo - e pese embora amigos da ofendida e sendo, ainda, que em tais depoimentos não revelaram qualquer hostilidade para com o arguido.
Igualmente cumpre referir que as demais testemunhas inquiridas em juízo - A. P., A. J. M., A. P.S., S. P. M., A. L., D. C., R. R., B. M., S. S. e J. F. -, revelaram desconhecer o comportamento do arguido em relação à ofendida aquando do namoro entre estes mantidos, assim como não presenciaram os factos ocorridos aos 11.8.2016, no interior da casa da ofendida e perpetrados pelo arguido contra esta; sendo, ainda, que exceção feita em relação à testemunha A., as demais testemunhas não privavam, nem privam, com a ofendida e, por isso, demonstraram nada saberem quanto aos danos (morais e/ou patrimoniais) por esta vivenciados mercê da conduta do arguido.

Com efeito, A. T., pai da B., e com ela e com a sua mulher, mãe da ofendida, residia (e reside) na casa onde decorreram os factos, referiu não ter presenciado os factos em causa na acusação e ter tido conhecimento dos mesmos por contacto telefónico quando estava a trabalhar.

Referiu não conhecer pormenores do relacionamento de namoro tido entre o arguido e a B..

No mais reportou, de forma que se evidenciou sincera, espontânea, pormenorizada, objetiva e credível, as consequências – dores, sofrimento, alteração de vivências e de comportamento – sofridas pela ofendida mercê da conduta do arguido e presenciadas pela testemunha.

A testemunha S. M., amiga do arguido há cerca de três anos, relatou ter trocado sms com o arguido, sendo o número do telemóvel dela o 9….

Referiu, saber que o arguido e a B. tinham namorado um com o outro, mas - disse - nunca o arguido falou com a testemunha sobre tal namoro.

Mais reportou que dias antes dos factos contactou com o B. e ele pareceu-lhe normal; que a dada altura, nas sms que trocaram, o arguido disse-lhe que a B. tinha arranjado um namorado e a testemunha disse, ao arguido, para ele “seguir em frente”.

Relatou, ainda, ter tido um relacionamento mais próximo com o arguido, embora, referiu, não tendo chegado a serem namorados e, nesta ocasião, quando questionada, em juízo, se o arguido para com ele, nessa altura de “amizade mais próxima”, foi controlador, a testemunha referiu que não, mas - cumpre dizê-lo - respondeu de forma que se revelou evasiva, ao que acresce que mais referiu, a testemunha, que nessa ocasião, o arguido não queria que ela fosse ao café ter com mais amigos, que lhe disse para ela não sair com uma rapariga porque ele não gostava dessa rapariga, não se recordando a testemunha da razão pela qual o arguido não gostava de tal cidadã e/ou lhe disse para não ir para determinado café ter com os seus amigos.

Referiu, ainda, que desde que ocorreram os factos em causa nos autos foi por três ou quatro vezes visitar o arguido e que o arguido se mostrou apreensivo com o que lhe pode acontecer.
A testemunha A. L., amiga do arguido há quatro anos, referiu ter trocado sms com o arguido, sendo o número de telemóvel dela o 9….
Referiu que por serem “melhores amigos” o arguido falava-lhe da B., embora não lhe tivesse falado do namoro com esta; que quando a testemunha e o arguido estagiaram juntos, já o arguido não namorava com a B., o arguido referiu-lhe que ia ter com a B. mas não dizia para quê.

Relatou que apesar do arguido nunca lhe ter dito que queria voltar a namorar com a B. a testemunha apercebia-se que essa era a vontade do arguido porque ele gostava muito da B.; e quando a testemunha soube que a B. tinha namorado novo disse ao arguido para seguir com a sua vida e o arguido referiu-lhe que ainda gostava da B..

E, se no início do seu depoimento, relatou que poucos dias antes dos factos em apreço nos autos o arguido pareceu-lhe que “andava normal”; já num segundo momento do seu depoimento, relatou que durante o estágio que ela e o B. fizeram e quando o arguido soube que a B. tinha outra pessoa, a testemunha apercebeu-se, pela forma como ele lhe falou (à testemunha), que o arguido não estava bem, estava triste.

Igualmente se num primeiro momento do seu depoimento reportou que para com ela (testemunha) o arguido nunca foi “controlador”, nunca lhe disse para não sair com certas pessoas ou para não frequentar certos sítios, nunca com ela se exaltou e/ou foi violento; já em momento ulterior do seu testemunho reportou que o arguido a aconselhava a não andar com certas pessoas dizendo-lhe, para tal, que tais pessoas não eram recomendáveis.

Por fim, resulta do depoimento da testemunha que apesar de ela e o arguido serem os “melhores amigos”, à data em que o arguido e a B. terem namorado e à presente data, o certo é que quando o arguido e a B. namoraram nunca a testemunha privou com eles, sendo que frequentavam a mesma escola, vendo a testemunha o arguido e a B. nos intervalos da escola; e, após os factos em causa nos autos, nunca a testemunha visitou o arguido.

A testemunha A. J. M., amiga do arguido desde a primavera de 2016, referiu ser amiga de A. P. e que esta última passou férias (em 2016) na sua casa e nessa ocasião, a A. P., utilizou o telemóvel da mãe da testemunha e trocou sms com o arguido através de tal telemóvel.

Relatou ter-se deslocado, com amigos, à polícia, onde o arguido estava e mercê dos factos em apreço nos autos, e ali chegada viu o arguido a chorar e a dizer que estava muito arrependido do que tinha feito e que não imaginava que poderia ter feito algo assim.

Mais disse que para com ela (testemunha) e para com as pessoas da instituição onde o arguido estagiou e prestou voluntariado - utentes e funcionários -, o arguido sempre teve um comportamento exemplar, nunca demonstrou qualquer violência e/ou agressividade, sendo o arguido um dos amigos que a testemunha mais gosta.

A testemunha A. P. S., amiga do arguido desde Julho de 2016, quando aquele estagiou na mencionada entidade, referiu não conhecer a B. nem ter conhecido o arguido quando ele e a B. namoravam.

Mais disse que no período de férias do verão, de 2016, passou uns dias na casa da testemunha A. J. e trocou sms com o arguido através do telemóvel da mãe da A. J., que utilizou, para tal, também, o seu próprio telemóvel e ainda o telemóvel da sua mãe que tem o número 9….

Relatou que nesse período o arguido andava “muito em baixo”, “triste”, “desconfiado que a B. tinha um namorado novo”; e mais disse que “talvez o B. quisesse reatar com a B.”.

Referiu, ainda, ter medo (a testemunha) nessa altura que o arguido ficasse alterado, tivesse uma discussão com a B.; mas – precisou, embora aqui se mostrasse evasiva e, diga-se, contraditória com o conteúdo das sms que ela própria enviou e mandou e trocou para e com o arguido B. - cfr. mensagens com os números 1960 nunca teve medo que ele fizesse mal à B., porque achava que ele era incapaz disso.

Disse que no dia dos factos em consideração nos autos o arguido trocou sms com ela – o que decorre do teor da transcrição daquelas sms a fls. 144 a 147 -; que nesse dia tinham combinado encontrarem-se após o arguido ir a Fafe, mas que o arguido não foi ao seu encontro e a partir de certa altura não lhe atendia as chamadas que ela lhe fazia, e que a dada altura o arguido enviou-lhe uma mensagem, por telemóvel, a dizer o que tinha feito e a pedir-lhe para ela ir ter com ele à GNR, o que ela fez.

Relatou que quando chegou à GNR o arguido estava a chorar e a dizer que não acreditava no que tinha feito, que tinha dado uma facada à B. e que estava muito arrependido.

Reportou que para com ela o arguido sempre foi “impecável”, “bem-disposto”, “educado”, nunca se alterou.

Referiu ser sua convicção que o arguido sempre gostou da B.; que três dias antes dos factos o arguido ligou à testemunha, a chorar e a dizer que estava muito triste, mas que ela não o notou violento.

Confrontada, em juízo, com a mensagem escrita e enviada aos 9.8.2016, 11:20:12, n.º 1984, com o texto “hj vais ter com ela.. em vez de fazeres algum disparate fala disso com ela.. com calma”, relatou já não se lembrar da mesma, mas o que queria dizer era para o arguido não dizer nada que magoasse a B., pois era sua convicção que o arguido não era capaz de agredir a B..

Por fim, referiu ainda hoje se relacionar com o arguido, visitando-o em casa dela, que o mesmo sempre se mostra muito arrependido e que diz que “não era ele quando fez isso” e que tem receio do que lhe possa acontecer, com o desfecho deste processo.

D. C., Professora de Educação Especial, relatou ter conhecido o arguido quando o mesmo estagiou na entendida na qual ela é professora e que após o estágio o arguido ali fez voluntariado e que, por isso, e nessa altura, com ele privou.

Referiu nada saber quanto aos factos em causa na acusação.
Relatou ter a convicção de que o arguido sempre foi um rapaz solidário, participativo nas atividades daquela associação, e muito bem-educado.

T. O., Professora de psicologia na entidade em que o arguido estagiou e fez voluntariado, relatou que o arguido naquela associação sempre teve um comportamento muito próximo e correto para com os utentes e funcionários, que não era problemático, era muito prestável, “uma mais-valia” para aquela associação.

R. R., cozinheira na aludida entidade em que o arguido estagiou e fez estágio, relatou conhecer o arguido há três anos, e desde que o mesmo estagiou em tal entidade.
Referiu considerar o arguido “calmo, meiguinho, muito educado, trabalhador e nada violento, uma pessoa exemplar” e que quando a testemunha soube dos factos em consideração nos autos ficou em estado de choque.

B. M. relatou ser amigo do arguido há cerca de 5 anos e que quando soube dos factos em causa nos autos ficou surpreendido.

S. S., Técnica de Serviço Social e Diretora da Instituição na qual o arguido estagiou e após tal estágio prestou voluntariado, relatou que a nota de estágio do arguido foi “excelente”, que tal estágio decorreu muito bem, ele era excelente, meigo, com os utentes, sendo que estes tinham idades compreendidas entre 18 anos e mais de 60 anos de idade; que o arguido queria sempre ajudar os demais colaboradores daquela instituição.

J. F., Inspetor da Polícia Judiciária – DIC de Braga, reportou as diligências efetuadas no âmbito da investigação dos factos em causa nos autos.
Relatou ter-se deslocado ao hospital para onde foi encaminhada a B., mercê dos factos em consideração neste processo, e ali ter contactado com o médico que examinou a operou aquela – reportando que o teor do RDE (relatório de diligencia externa) de fls. 39 corresponde ao relatado por tal médico.
Do mencionado RDE decorre, ainda, que foi entregue pelo Hospital o Diário Clínico da B. – e junto aos autos a fls. 41 -, e o espólio da ofendida que ali se encontrava, constituído por umas calças, uma blusa, um sutiã, umas cuecas e um par de meias, devidamente retratados nas fotografias juntas a fls. 42 e 43.
O tribunal considerou, também, o teor do Auto de Notícia, a fls. 5 e 6; o teor do Episódio de Urgência, a fls. 7; o Relatório de Exame Pericial de fls. 23 a 35; o teor da Perícia Forense realizada aos telemóveis da ofendida e do arguido, junta ao Apenso e a impressão das mensagens escritas enviadas e trocadas pelo arguido – cfr. fls. 143 a 156; os elementos clínicos de fls. 229 a 240; o relatório de exame pericial de fls. 23 a 35; o Relatório de exame pericial de fls. 172 a 177; os Relatórios de exame médico legais de fls. 221 a 224, 244 a 247, 551 a 557 – e os elementos clínicos que acompanham este último e constantes de fls. 558 a 562; o Relato Cirúrgico, junto a fls. 356; o Relatório de Psicologia e Orientação, junto a fls. 361 e o Registo de Avaliação escolar da demandante, a fls. 362 e 363; o print de fls. 364; o Relatório da Perícia Médico-Legal de Psiquiatria a fls. 607 a 609; os relatórios de execução da medida de coação aplicada ao arguido e juntos aos autos; o crc do arguido junto a fls. 487; o teor do Relatório Social, a fls. 528 a 531;

Pois bem.
Fazendo uma análise crítica e conjunta da prova assim produzida, o Tribunal baseando-se nas declarações da ofendida e do arguido, e acima exaradas, deu como assentes os factos que se descreveram no número 1 dos “Factos provados”; e alicerçado na análise crítica e conjunta das declarações da ofendida e das testemunhas B. L. e J. F., o Tribunal deu como provados os factos que se descreveram no número 2 dos “Factos provados”.

E, exceção feita à última parte mencionada no artigo 3º da acusação, o arguido não colocou em causa os demais factos ali em apreço (no artigo 3º da acusação), tendo sido os mesmos corroborados pelas declarações da ofendida e pelo depoimento da testemunha A. P., e mais precisamente do teor das sms escritas e enviadas/trocadas pelo arguido e pela testemunha em causa - e assim, o Tribunal deu como provados os factos mencionados no número 3 dos “Factos provados”, primeira parte.

O mais ali imputado ao arguido (última parte do artigo 3º da acusação) não ficou provado, uma vez que não foi feita prova bastante que o corroborasse, mas, apenas, foi produzida prova no sentido de que o arguido, pelo menos numa das ocasiões em que tentou reatar namoro com a ofendida, enviando-lhe sms e insistindo por conversar com ela, mas sem sucesso, verbalizou (a uma sua amiga) a intenção de tirar-lhe a vida – o que decorre do teor das sms que o arguido escreveu e enviou/trocou com a testemunha A. P. – cfr. mensagens números 1983, 1985, e cuja transcrição está junta a fls. 154 dos autos.

Da análise crítica e conjunta das declarações do arguido e da ofendida, e acima exaradas, e do teor dos Autos de Apreensão e de Exame, (da faca encontrada e apreendida na cozinha da casa da ofendida e que esta e o arguido reconheceram como sendo a utilizada por este contra aquele, e do telemóvel da ofendida), respetivamente a fls. 48, 49 e 175 a 177 - resultaram os factos que se deram como provados nos números 4 a 15.

Os factos dados como assentes nos números 16 a 20 alicerçaram-se na análise crítica e conjunta das declarações do arguido e da ofendida, do depoimento da testemunha V. C., e acima exarados.

Relativamente aos factos que se deram como provados nos números 21 a 23, o Tribunal baseou-se na análise crítica e conjunta das declarações da ofendida e do depoimento da testemunha V., do teor do episódio de urgência de fls. 7 – que confirma a entrada da ofendida no serviço de urgência do Hospital Senhora de Oliveira, Guimarães, no dia 11.8.2016, às 15h34m, e que foi para ali transporta pelos Bombeiros Voluntários de Vizela, indicando como causa da entrada “agressão” e como “destino” o “serviço de internamento” -; do teor do Diário Clínico do mesmo hospital, e junto a fls. 41, datado de 11.8.2016, 16h – constatando-se que o médico ali registou que a ofendida teria sido, alegadamente, vítima de agressão com arma branca, com cerca de 10 cm, e que se encontrava pálida, vigilante, com dores, sendo encaminhada para o bloco -; da nota de alta do referido Hospital, e junta a fls. 232 - de onde consta que a ofendida ali deu entrada aos 11.8.2016 e teve alta aos 19.8.2016, sendo referidos os ferimentos que a mesma apresentava à data daquela entrada, os tratamentos realizados à mesma, as intervenções a que a ofendida foi sujeita, as lesões por aquela sofridas -; o Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, realizado aos 7.9.2016, e junto a fls. 222 a 224 – de onde decorre a caracterização dos ferimentos, lesões e sequelas sofridas pela ofendida mercê da atuação do arguido -, e o da nova Perícia realizada aos 17.10.2016 e junto a fls. 245 a 247 v.º - deste último decorrendo, ainda, que a ofendida só não morreu por pronta e eficaz intervenção médica, por ter sido ajudada pela testemunha V. C., e que correu risco real de vida.

A materialidade factual dada como assente nos números 28 e 43, aquela reportada ao sofrimento padecido pela ofendida mercê da ação perpetrada pelo arguido contra o telemóvel da demandante, baseou-se nas declarações da ofendida que a relatou de forma que se mostrou espontânea, isenta, pormenorizada e credível, sendo que o próprio arguido declarou tal padecimento; e o prejuízo assim causado pelo arguido à ofendida baseou-se, ainda, na análise do documento junto a fls. 364 – do qual decorre o valor de mercado do aludido telemóvel -, ao qual, em rigor, o arguido não deduziu oposição.

A factualidade dada como provada no número 29 alicerçou-se nas declarações do arguido - que, em rigor, assumiu ter desferido um golpe com uma faca no corpo da ofendida -; e nas declarações desta que descreveu tal golpe desferido pelo arguido – decorrendo das regras da experiência que mercê de tal golpe assim desferido naturalmente que a roupa que a ofendida trajava sofreu dano no local daquela facada -; no depoimento da testemunha V. que referiu ter visto, ainda na cozinha da casa da ofendida, esta com um buraco na blusa que trajava na ocasião e por conta da facada que lhe foi desferida -; e na análise das fotografias de fls. 42 e 43, já acima mencionadas.

Quanto aos prejuízos alegados pela ofendida, no seu pedido de indemnização civil, e concernentes aos danos perpetrados pelo arguido na blusa e sutiã que a ofendida trajava aquando dos factos em causa nos autos, revelaram-se os mesmos consentâneos quer com aqueles danos quer com o valor peticionado pela ofendida, valor, este, consentâneo com o de mercado de tais peças de roupa e dentro de um critério de razoabilidade – assim se tendo dado como provada a factualidade descrita no número 44.

Os factos dados como provados nos números 30 a 32 basearam-se nas declarações da ofendida que os relatou, de forma que se evidenciou sincera, objetiva e crível; assim como no depoimento da testemunha V., que socorreu a ofendida em casa desta e dali a levou aos Bombeiros de Vizela e, por isso, constatou presencialmente tais factos, factos, esses, que descreveu em juízo e de modo pormenorizado, espontâneo, isento e objetivo e, por isso, credível.

A factualidade dada como assente nos números 33 a 35 e 37 alicerçou-se na análise crítica do Diário clínico, junto a fls. 41; dos Relatórios das Perícias, juntos a fls. 222 a 224 e a fls. 245 a 247 v.º; da Informação clínica, junta a fls. 229 a 231; da Nota de alta, junta a fls. 232; Informações de consultas externas, juntas a fls. 235, 236, 237; histórico dos tratamentos de enfermagem, juntos a fls. 238 a 240.

Os factos dados como provados nos números 36, 38 a 42 basearam-se nas declarações da ofendida que os descreveu de modo que se mostrou isento, objetivo e credível, e ainda nos depoimentos das testemunhas V. C. (namorado da ofendida à data dos factos e atual amigo daquela) A. T. (pai da ofendida), B. L. e J. F. (amigos da B.), e que com ela privaram e privam, e que por isso presenciaram e aperceberam-se pessoalmente dos factos em apreço e os descreveram de modo objetivo, pormenorizado e crível.
Danos morais, estes, que para além de referidos de modo isento e credível pela ofendida e pelas citadas testemunha, se mostram consentâneos à luz das regras da experiência comum com o aludido e descrito comportamento do arguido – assim tendo o tribunal dado como provados tais danos.

E, alicerçou-se, igualmente, a factualidade vertida no número 41, na análise dos documentos juntos aos autos a fls. 361 a 363.

A factualidade dada como assente nos números 45 a 47 alicerçou-se nos depoimentos das testemunhas V. C. - o qual por ser namorado da ofendida à data dos factos em apreço demonstrou saber de tais factos, relatando-os em juízo de modo que se mostrou isento, espontâneo e crível, embora não tivesse conseguido concretizar o montante auferido pela ofendida – e da testemunha A. T. – pai da demandante e que com ela sempre residiu e, por isso, é sabedor da factualidade em causa, tendo relatado a mesma de forma objetiva e credível e como foi dada como provada – isto é, com a precisão que a fábrica em questão não é da sua mulher, nem por esta explorada, mas sim do e pelo patrão da sua mulher.

Os factos dados como provados nos números 48 a 53 alicerçaram-se no teor do Relatório Pericial junto a fls. 551 a 557.

Os factos dados como provados nos números 54 e 55 basearam-se nas declarações do arguido e da ofendida que os relataram de forma coincidente.

A factualidade dada como assente nos números 56 a 59 baseou-se no teor do Relatório da Perícia Médico-Legal de Psiquiatria, junto a fls. 607 a 609.
O teor do relatório social junto aos autos serviu para motivar a convicção do Tribunal no que toca às condições económicas, familiares, pessoais e sociais do arguido – dando, assim, como provados os factos descritos nos números 61 a 74 - e, quanto à ausência de antecedentes criminais, relevou o certificado junto aos autos a fls. 304 – assim se tendo dado como provada a materialidade descrita no número 60.

A prova do elemento subjetivo ou resulta de uma confissão do mesmo por parte do agente da conduta em causa ou, na falta de tal confissão, é sempre indireta e deve ser extraída dos demais elementos existentes nos autos e das regras de experiência comum.
Desta perspetiva, e porque o arguido confessou ter atuado como ficou provado nos números 11 e 12 e que assim agiu querendo causar os mencionados estragos, efetivamente causados, no telemóvel da demandante, telemóvel, esse, que o arguido bem sabia não ser coisa dele mas sim da ofendida, e que assim agia contra a vontade e sem o consentimento da ofendida e bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei – o Tribunal deu como provados os factos que assim se descreveram nos números 25, 26 e 27.

E reportando-nos ao segmento da acusação em que está em causa a intenção do arguido quando desferiu o golpe, com a faca, contra e na ofendida, da análise crítica da prova produzida decorre, sem margem para dúvidas, que o arguido ao atuar como atuou agiu livre, deliberada e voluntariamente e com o propósito de tirar a vida à ofendida.

Tal propósito é ostensivo, desde logo, face ao objeto escolhido e utilizado à data pelo arguido contra a ofendida - uma faca de cozinha, constituída por um cabo de madeira e uma lâmina fina, com cerca de 12 cm de comprimento, de extremidade pontiaguda -, ou seja, um objeto corto-perfurante e com a aptidão de matar se utilizado contra zonas do corpo da vítima que alojam órgãos vitais, como é consabido e como o arguido bem sabia, e como sucedeu “in casu”, uma vez que o arguido desferiu um golpe com a lâmina da aludida faca em direção à zona central do corpo da ofendida, espetando a dita faca na zona central do tronco, entre o peito e o abdómen daquela, mantendo a faca na perpendicular em relação ao corpo dela.

Mais, após assim ter atuado e ter a ofendida ficado naquele estado, de que o arguido obviamente se deu conta, percebendo o arguido que tinha acedido àquela casa, onde ocorreram os factos, o V. C., o arguido, num primeiro momento, não abriu de imediato a porta da casa àquele - tudo a demonstrar uma forte e determinada intenção de matar a ofendida por banda do arguido, e revelando na atitude que teve para com o aludido terceiro e na presença dela também uma forte vontade para nada nem ninguém lhe fazer frente na execução do seu plano de matar a ofendida.

Tais comportamentos assim protagonizados pelo arguido afastam a existência do alegado “estado de choque” que o arguido defendeu ter sentido na ocasião.

O referido propósito de matar a ofendida na ocasião, e que era o do arguido, também se revelou quando este, logo após ter desferido com a faca contra a ofendida e como acima exarado, ter proferido (apenas) as frases “não acredito que fiz isto” e “a minha avó não me vai perdoar” – ou seja, centrou-se, naquele momento, em si mesmo e temendo que a sua avó não o perdoasse por “ter matado” a B.; e de, já que proferiu aquelas frases, não ter proferido qualquer frase de arrependimento pela atitude por si protagonizada contra a ofendida e/ou qualquer frase de perdão para com a mesma, ou ainda de ter pegado na vítima, de imediato, e de a levar para o hospital, como aliás fez a testemunha V. quando se deparou com a vítima.

Quanto aos factos não provados, cumpre referir que não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que nessa qualidade se descreveram.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1 – Do erro notório na apreciação da prova

3.1.1 - Imputando tal vício ao acórdão recorrido, o recorrente fá-lo, porém, em termos que revelam uma confusão nítida entre as duas formas perfeitamente distintas que existem de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto: por um lado, a invocação dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2 (a chamada revista alargada) e, por outro, a impugnação (ampla) da matéria de facto, a que se refere o art. 412º, n.ºs 3 e 4, ambos do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer referência.

No primeiro caso, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento qualquer dos seguintes vícios, previstos nas várias alíneas daquele primeiro artigo: - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al. a); - a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (al. b); - ou o erro notório na apreciação da prova (al. c).

Conforme resulta expressis verbis desse preceito legal, os vícios aí referidos, que são de conhecimento oficioso [3], constituindo um defeito estrutural da decisão, têm de resultar do respetivo texto, na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos a ela estranhos para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento [4]. Tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença, esta terá que ser autossuficiente quanto a eles, não se podendo recorrer à prova documentada.

No âmbito desta revista alargada, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla, o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto no sentido da reapreciação da prova, limitando-se a detetar os vícios que a sentença em si mesmo evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426º, n.º 1).

O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, bem como quando se violem as regras sobre prova vinculada ou as leges artis.

Existe, pois, tal vício quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, melhor dito, ao juiz “normal”, isto é dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente [5].

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou em dar-se como provado o que não pode ter acontecido [6]. É um erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.

Os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova. No âmbito do controlo ínsito na identificação desses vícios, o que releva é a convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.

3.1.2 - No caso dos autos, como claramente resulta das conclusões 1ª a 4ª e do item II do corpo da motivação, o recorrente faz assentar o invocado erro notório na apreciação da prova na alegação de que o segmento do ponto 2º dos factos provados, segundo o qual "durante o período de namoro, o arguido, por diversas vezes, manifestou um carácter e personalidade egocêntrica", não tem suporte em nenhuma prova produzida em audiência, pois que o facto de a ofendida e as testemunhas B. L. e J. F. referirem que o arguido era ciumento não permite ao tribunal concluir que o mesmo tem uma personalidade egocêntrica, critério indicador de um transtorno da personalidade narcisista, juízo este que carece de ser confirmado por perícia, sendo que do relatório médico-psiquiátrico junto aos autos não consta que o arguido padeça de semelhante perturbação, termos em que, ao considerar como provado aquele facto, o tribunal a quo excedeu os limites impostos pelo art. 127º, incorrendo em erro notório na apreciação da prova.

Porém, toda esta alegação se reconduz a uma insuficiência da prova produzida em audiência de julgamento para o tribunal poder dar como provada a matéria de facto impugnada, não se atendo o recorrente ao texto da decisão recorrida, para demonstrar que da mera leitura da mesma resulta que o tribunal a quo incorreu em erro, como se impunha que fizesse, o que afasta liminarmente a existência do vício decisório em apreço.

Pelo contrário, extravasando o âmbito da sua arguição, o recorrente socorre-se da prova por declarações e testemunhal produzida em audiência, alegando que a afirmação feita pela assistente e pelas testemunhas B. L. e J. F. de que o arguido era ciumento é insuficiente e não constitui suporte probatório para o tribunal concluir que o mesmo durante o namoro manifestava um carácter e personalidade egocêntrica, pelo que julgou incorretamente esse facto, que deverá ser dado como não provado.

Por outro lado, contrariamente ao que o recorrente parece pressupor, o facto de, por diversas vezes, durante o período de namoro com a assistente, ter manifestado um caráter e personalidade egocêntricos, não equivale nem significa necessariamente que padeça de um transtorno da personalidade narcisista, facto este, sim, que careceria de comprovação pericial.

É certo que, de acordo com a literatura médico-psiquiátrica, essa perturbação é marcada por um comportamento dramático, emotivo e extremamente egocêntrico.

No entanto, in casu, os traços de personalidade egocêntrica manifestados pelo arguido podem não assumir a expressão ou intensidade suficientes a ponto de integrar o referido transtorno da personalidade, tendo, aliás, sido dado como provado, com base no teor do relatório da perícia médico-legal de psiquiatria junto a fls. 607 a 609, que o mesmo não sofre de doença mental ou de alterações de comportamento (ponto 56º) e que não apresenta perturbação ao nível da sua personalidade (ponto 59º).

Ou seja, no seu relacionamento afetivo com a assistente, o arguido pode ter manifestações de egocentrismo, sem que padeça de um transtorno da personalidade narcisista, o que também afasta qualquer hipótese de contradição entre os pontos 2º, 56º e 59º da matéria de facto provada.

Em suma, o recorrente socorre-se da prova oralmente produzida em audiência e pericial junta aos autos para demonstrar que o tribunal recorrido a valorou erradamente, visando, assim, a reapreciação da mesma pelo tribunal de recurso, com vista a ser dado como não provado o facto que pretende impugnar.

Nos termos em que é invocado, tal erro, a existir, traduzir-se-ia antes em erro de julgamento, suscetível de ser objeto de impugnação alargada de decisão de facto ao abrigo do art. 412º, n.ºs 3 e 4, de que, porém, o recorrente não lançou mão, e não da impugnação restrita prevista no art. 410º, n.º 2.

Aquilo que o recorrente questiona é o modo como o Tribunal Coletivo valorou a prova produzida, ou seja, o uso que fez do princípio da livre apreciação da prova, sem apontar à decisão recorrida nenhum erro notório na apreciação da prova, no sentido em que este vício deve ser entendido, ou seja, como resultando do próprio texto da decisão posta em crise.

Com efeito, o recorrente invoca o apontado vício como corolário da sua própria apreciação da prova produzida, chamando à colação elementos externos ao texto da sentença recorrida, confundindo, pois, vício da decisão judicial com o erro de julgamento.

De todo o modo, uma vez que os vícios previstos no art. 410º, n.º 2, são de conhecimento oficioso, sempre diremos que, do texto da decisão sob escrutínio, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação do invocado erro notório na apreciação da prova, porquanto não se deteta ostensivamente que o tribunal tenha violado as regras da experiência comum ou feito uma apreciação da prova manifestamente incorreta, desadequada, ilógica, arbitrária ou contraditória, o que afasta a existência de qualquer vício de raciocínio nessa apreciação, que se evidencie aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que se traduza em ter-se dado como provado algo que não se provou ou que não pode ter acontecido.

Na perspetiva da lógica interna da decisão e em face do respetivo texto, o facto em apreço, dado como provado no ponto 2º, tem perfeito suporte na prova produzida, porquanto, de acordo com o teor da motivação da decisão de facto, o mesmo assentou nas declarações da assistente, vítima das manifestações comportamentais do arguido, e nos depoimentos das testemunhas B. L. e J. F., que também tiveram conhecimento direto delas. Por seu lado, em face das regras do normal acontecer, tal facto apresenta-se como de ocorrência perfeitamente possível, à luz das regras da experiência e da lógica.
Pelo exposto, improcede a questão do vício de erro notório na apreciação da prova.

3.2 - Da desqualificação do crime de homicídio

Em matéria de direito, o recorrente começa por discordar do acórdão recorrido na parte em que o Tribunal Coletivo considerou estar verificada a circunstância qualificativa do crime de homicídio prevista na al. e) do n.º 2 do art. 132º do Código Penal, no segmento segundo o qual é suscetível de revelar uma especial censurabilidade ou perversidade no cometimento do crime a circunstância de o agente ser determinado por motivo fútil.

Para concluir dessa forma, o tribunal a quo considerou o seguinte (transcrição):

«Revertendo ao caso dos autos, o encadeamento dos factos descritos no acervo factológico provado atestam que o arguido formou o propósito de tirar a vida da assistente (com quem já não namorava desde Abril de 2016) em função da confirmação por parte desta de que já mantinha namoro com outrem (o V. C.) e de não mais querer, a assistente, reatar namoro com o arguido e como este queria.

E, se assim é, estamos perante o preenchimento do aludido exemplo-padrão, mais precisamente, ter sido o arguido determinado por motivo fútil – precisamente aquele (e como acima exarado na análise que vimos de fazer) de egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral, que revela/estabelece uma “desproporção manifesta” entre a gravidade do facto e o motivo que impeliu à ação; aquele que “significa que o motivo da atuação, avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado repugnante, baixo ou gratuito”; que “é o notoriamente desproporcionado ou inadequado, do ponto de vista do homem médio, em relação ao crime praticado”; aquele que para além da desproporcionalidade, acresce a insensibilidade moral que tem a sua manifestação mais elevada em motivos subjetivos do agente que, pela sua frivolidade, sejam desproporcionados com a ação, que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reação homicida”; o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime de que se trate, o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da ação cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática; o que realça a inadequação e faz avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objetivou; que integra o móbil do crime da atuação despropositada do agente, sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação do facto, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente.

E, ao assim ter atuado, o arguido revelou uma censurabilidade especial, relativamente à que constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a conceção normativa de culpa, que se revela quando as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores; assim como revelou o arguido especial perversidade, isto é, uma atitude profundamente rejeitável, em que prevalecem as tendências egoístas do autor, atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente - cfr. Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Tipo de culpa e medida da pena, Almedina, pág. 63/64.»

Diferentemente, o recorrente sustenta (conclusões 5ª a 7ª) que na imagem global dos factos não se deteta a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, uma vez que, em suma, agiu no âmbito de uma situação de conflito consubstanciada na discussão travada com a ofendida, pelo facto de esta lhe ter confirmado manter uma relação com o V. C., tendo sido motivado pelo ciúme que lhe desferiu um único golpe com uma faca, exclamando de imediato "não acredito que fiz isto", não se podendo afirmar, como é feito na fundamentação do acórdão recorrido, que ao proferir essa afirmação, se centrou em si mesmo e, consequentemente, foi determinado por egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai à insensibilidade moral, de modo a revelar especial censurabilidade e perversidade.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, citando pertinente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, é de parecer que embora a conduta do arguido deva ser considerada muito reprovável, na medida em que a recusa do reatamento da relação era um direito da assistente, o certo é que o conjunto das circunstâncias do caso, mormente a vontade do arguido no reatamento da relação pela qual insistia, não permite qualificar de fútil, isto é, de irrelevante, insignificante, sem sentido, o motivo de que o homicídio tentado resultou.

Vejamos de que lado está a razão.

3.2.1 - Não se justifica aqui repetir ou complementar o que, acertadamente, vem referido no acórdão recorrido relativamente ao modo de funcionamento (não automático) das circunstâncias qualificativas do crime de homicídio, que antes carecem de revelar uma especial censurabilidade ou perversidade, constituindo, pois, elementos da culpa, nem quanto ao significado destas noções nem ainda, particularmente, quanto à forma como a doutrina e a jurisprudência têm entendido o conceito de motivo fútil.

Muito em suma, apenas diremos que a doutrina tem atribuído ao motivo fútil o alcance, segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, de uma razão incompreensível para a generalidade das pessoas, que não tem relevo, que é insignificante, gratuito, frívolo, leviano, sem valor, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) o crime, revelando o facto, inteiramente desproporcionado, inadequado e repudiado pelo homem médio, uma profunda insensibilidade e inconsideração pela vida humana, um egoísmo intolerante, prepotente e mesquinho [7].

Como dá nota o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-04-2016 [8], também a jurisprudência não se afasta desse entendimento, ao considerar como motivo fútil não tanto aquele que tem pouco valor ou importância, mas o que é notoriamente desproporcionado ou inadequado aos olhos do homem médio, denotando o agente egoísmo, intolerância, prepotência e mesquinhez. É, pois, fútil o motivo sem valor, frívolo, leviano, insignificante, ridículo, que não tem relevo, a ninharia, que revela uma inteira desproporção entre o motivo e a reação homicida. Embora nos crimes de homicídio haja sempre ou quase sempre uma certa desproporção entre o motivo e o resultado, no caso de motivo fútil essa desproporção é mais chocante, advindo um evento completamente distinto daquele que o cidadão comum esperaria [9].

3.2.2 - No caso dos autos, revisitando os factos dados como provados pela primeira instância sob os n.ºs 1 a 15, supra transcritos, parece evidente que a conduta homicida do arguido, ao desferir com uma faca de cozinha um golpe na zona central do tronco da assistente, entre o peito e o abdómen, foi motivada por ciúme, resultando do facto de ela se recusar em reatar a relação de namoro que tinham rompido quatro meses antes e que durara cerca de um ano e meio, e de a mesma, nesse momento, lhe ter confirmado que mantinha uma relação afetiva com outro indivíduo, facto de que o arguido suspeitava. Acresce que este nunca se conformou com o fim da relação, tendo, por diversas ocasiões, tentado reatar o namoro, insistindo em falar com a assistente.
Este circunstancialismo remete-nos para um crime passional.

Como o Supremo Tribunal de Justiça considerou no acórdão de 07-12-2011 [10], versando sobre um caso semelhante ao dos presentes autos e que, por isso, não resistimos a transcrever, «(…), o motivo do assassinato foi o ciúme exacerbado do arguido, o qual, teve uma relação de namoro durante cerca de 8 anos com a vítima, embora com algumas interrupções e que terminou por vontade exclusiva da ofendida (…), duas ou três semanas antes (…). Sucede que o arguido, (…), veio a saber, no próprio dia do crime, que ela iniciara um relacionamento com outro, com quem chegou a manter relações sexuais.

A paixão ou ciúme que leva a matar a pessoa que se diz amar é um sentimento muito reprovável, pois que não demonstra amor, que é uma dádiva, mas uma enorme frustração pelo sentimento de perda, como se o outro que se diz amar fosse uma coisa apropriável ou já apropriada. E conduz a uma contradição, pois que leva a não querer bem a quem se diz que mais se quer.

Mas, também sabemos que matar por ciúme é um tema clássico da arte (o do Otelo que mata Desdémona e as suas múltiplas réplicas na literatura, no cinema, no teatro), o que demonstra que tem sido universal e intemporal. Esperar-se-ia, porém, que hoje em dia, quando vivemos numa sociedade mais aberta, mais informada e mais democrática do que qualquer das anteriores, o ciúme – não podendo desaparecer, pois que é um sentimento natural e espontâneo – não fosse tão patológico e aberrante, ao ponto de alguém querer tirar a vida a outrem só porque essa outra pessoa não corresponde aos afetos que se desejam dar.

Todo o homicídio é reprovável, como reprováveis ou muito reprováveis são a esmagadora maioria dos motivos que levam a tal ato. Por isso se disse anteriormente que há que encontrar uma especial censurabilidade ou perversidade no ato para o crime ser legalmente considerado como homicídio qualificado, algo que seja particularmente reprovável no domínio da culpa do agente, que o faça distinguir dos homicídios mais comuns.

Ora, a relação afetiva entre o arguido e a ofendida ainda era próxima no tempo e terminara por vontade desta, o que era um direito, sem dúvida, que lhe assistia por inteiro e que não poderia ser contestado por quem quer que fosse, muito menos com violência.

Mas, o arguido descobrira, abusivamente, que o motivo (aparente) do fim do namoro fora a existência na vida da ofendida de uma outra pessoa por quem se enamorara. Também aqui o arguido teria de respeitar a vontade da sua ex-namorada, pois seria o que qualquer pessoa civilizada teria feito.

Não há, pois, que conceder que o motivo do crime foi de algum modo compreensível, pois não o foi. Foi mesmo um motivo muito reprovável, até porque não se provou que o relacionamento entre o arguido e a vítima tivesse passado para além da fronteira do «namoro», isto é, de uma fase do relacionamento em que ainda não há compromisso de vida em comum. Não eram casados, nem sequer viveram numa situação análoga, pelo menos pelo que consta dos factos provados.

Mas, embora o motivo tenha sido muito reprovável, não se deve qualificá-lo como «fútil», isto é, irrelevante ou insignificante, ou como «torpe», ou seja, vil e abjeto.

Teresa Serra, (…), refere que o ciúme, em certas condições, pode ser considerado como motivo torpe ou fútil. Será o caso, diremos nós, por exemplo, de um relacionamento já terminado há muito tempo e em que um dos indivíduos descobre que o outro tem agora uma nova companhia e decide, mais por despeito do que por ciúme, matar o seu ex-cônjuge.

Como também é o caso relatado no acórdão do STJ (…) (de 26-11-2008, proc. 08P3706), que se reporta a uma situação factual em que o ciúme que levou o marido a matar a sua mulher não tinha qualquer suporte nos factos e não passava de uma mera suspeita, completamente infundada. Nesse caso, que não é equiparável ao dos autos, o motivo foi considerado “fútil”, por ser imaginário e quase tresloucado.

Assim, o ciúme que o arguido sentiu e que o levou ao crime – o ciúme exacerbado de um namoro que findara ainda muito recentemente - não pode ser considerado como especialmente censurável, ao ponto de conduzir o crime ao de homicídio qualificado, embora seja muito censurável.»

O mesmo Supremo Tribunal, no acórdão de 31-01-2012 [11], tirado num caso em que havia circunstâncias a indiciar a motivação passional do crime, concretamente as tentativas de reatamento da relação marital e a situação de "obstáculo", enquanto "rival", da vítima para esse reatamento, sendo essa a explicação plausível para a conduta do arguido, entendeu que «contudo, daí não se poderá concluir automaticamente pela qualificação do crime. É que a motivação passional não constitui de forma nenhuma um motivo fútil. O estado de paixão (e concretamente o ciúme) envolve necessariamente as energias da pessoa, domina-a, determina em grande medida o seu comportamento, de forma que a “futilidade” do motivo não resulta, submetido à cláusula do nº 1 do art. 132º, especialmente censurável ou perverso.»

Neste contexto, para que o crime de homicídio tentado praticado pelo recorrente fosse qualificado com base numa atuação por motivo fútil, seria necessário que surgisse como resultado de um processo pautado pela ilógica ou de plena irracionalidade, em que uma culpa acentuada por um alto grau de censurabilidade o teria levado a tentar tirar a vida à assistente por razões fúteis.

Não é essa, porém, a situação concreta, em que, como vimos, o arguido agiu no âmbito de uma situação de conflito (discussão travada com a vítima e motivada pelo facto de esta, para além de recusar o reatamento da relação de namoro, conforme ele vinha insistindo há cerca de quatro meses, lhe confirmou que mantinha uma outra relação afetiva, facto de que o arguido suspeitava e que afastava a concretização da sua vontade de reconciliação, tendo, pois, agido motivado por ciúme passional).

Perante os elementos doutrinários e jurisprudenciais supra sintetizados, temos como seguro, em consonância com a posição defendida pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público nesta Relação, que o arguido não agiu determinado por motivo fútil, revelador de uma especial censurabilidade ou perversidade, não ocorrendo, por isso e contrariamente ao decidido pela primeira instância, a circunstância-padrão qualificativa do homicídio prevista na al. e) do n.º 2 do art. 132º do Código Penal.
Não se questionando que a motivação para o comportamento do arguido, ao tentar atentar contra a vida da assistente, foi bastante censurável e completamente desproporcionada à situação, o certo é que, no contexto global em que se inseriu, tal motivação não revela características que a façam considerar como tendo sido fútil.

Por conseguinte, procede este segmento do recurso, subsumindo-se a conduta do recorrente ao crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, n.ºs 1 e 2, 23º e 131º do Código Penal.

3.3 - Da aplicação do regime especial para jovens

Pugna também o recorrente pela aplicação do regime especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, previsto no DL n.º 401/82, de 23 de setembro, argumentando, para tanto, com o facto de ter suporte familiar e laboral estável, revelando consequente maturidade, encontrar-se socialmente integrado, estarem igualmente asseguradas as finalidades de prevenção geral, não sendo identificados sentimentos de rejeição no meio comunitário onde reside, apesar de aí ser conhecida a sua situação processual, e os factos em apreço terem um carácter excecional no seu trajeto de vida, não emergindo de um quadro disfuncional, não se podendo simplesmente retirar da gravidade dos mesmos a impossibilidade de reintegração social (conclusões 8ª a 12ª).
Vejamos se lhe assiste razão.

3.3.1 – O art. 9º do Código Penal dispõe que aos maiores de 16 anos e menores de 21 são aplicáveis normas fixadas em legislação especial, ou seja, o citado Decreto-Lei n.º 401/82.

Este regime especial visa criar um maior leque de alternativas à aplicação de penas de prisão a jovens que tiverem, à data da prática do crime, completado 16 anos sem terem ainda atingido os 21 anos (art. 1º, n.º 2, desse diploma).

Trata-se de uma opção político-criminal que se fundamenta essencialmente no entendimento de que a delinquência juvenil (quanto a jovens imputáveis), merece um tratamento diferenciado e especial em relação ao regime penal para adultos, por envolver um ciclo de vida correspondendo a uma fase de latência social que faz da criminalidade um fenómeno efémero e transitório.
Como é referido na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 45/VIII [12], com intenção de recompor o referido regime, nas sociedades modernas, o acesso à idade adulta não se processa, como antigamente, através de ritos de passagem, como eram o fim da escolaridade, o serviço militar ou o casamento, que representavam um “virar de página” na biografia individual. O que ocorre, hoje, é uma fase de autonomia crescente face ao meio parental e de dependência crescente face à sociedade que faz dos jovens adultos uma categoria social heterogénea, alicerçada em variáveis tão diversas como são o facto de o jovem ter ou não autonomia financeira, possuir ou não uma profissão, residir em casa dos pais ou ter casa própria. O acesso à idade adulta tende, desta forma, a realizar-se por patamares sucessivos. Este período de latência social – em que o jovem escapa ao controlo escolar e familiar sem se comprometer com novas relações sociais e profissionais – potencia a delinquência, do mesmo modo que, a partir do momento em que o jovem assume responsabilidades e começa a exercer os papéis sociais que caracterizam a idade adulta, regride a hipótese de condutas desviantes. Assim, o direito penal dos jovens surge como uma categoria própria, envolvendo um ciclo de vida, referente a um período de latência social, de descompromisso com a relação escolar, familiar e profissional, com um potencial de delinquência, em moldes efémeros, sob o signo de capacidade de mutação e regressão na fase de mais avançada idade.

Ao consagrar tal regime, o legislador acolheu o ensinamento de outros ramos do saber, que explicam que na adolescência e no início da idade adulta os jovens adaptam-se ou não, melhor ou pior, em maior ou menor grau, às várias transformações que vivenciam. E não sendo raro que nesse ciclo da vida os jovens enveredem por condutas ilícitas, o certo é que, em regra, essa criminalidade é um fenómeno efémero e transitório. Com efeito, embora uma elevada percentagem dos adolescentes participem, uma vez por outra, em atos levemente antissociais (cerca de 80%), só uma percentagem muito diminuta é que toma parte repetidamente em graves atos antissociais (aproximadamente 15%), e destes só uma pequena parte (cerca de 1/3) é que entra na criminalidade séria, semelhante a que se pode encontrar em certos adultos [13]. Importa, por isso, conforme refere o próprio legislador, evitar a estigmatização, o que só se consegue com o afastamento, na medida do possível, da aplicação da pena de prisão.

O regime especial para jovens tem, por outro lado, a vantagem de permitir uma transição gradual e menos abrupta e dramática entre a inimputabilidade e a imputabilidade, entre o direito dos menores e o dos adultos, reconhecido como é que o estabelecimento de limiares perentórios de imputabilidade constitui algo de controverso.

Assim, de acordo com o art. 4º do citado Decreto-Lei, no caso de ser aplicável pena de prisão, esta deve ser especialmente atenuada sempre que o juiz tiver “sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado”.

Como é sabido, essa reinserção pode ser injustificadamente dificultada ou mesmo comprometida por uma pena de reclusão em ambiente prisional que importe um período de afastamento da vida individual e social em liberdade desproporcionado relativamente às exigências de reintegração do jovem. Isso mesmo deve ser avaliado em cada caso, aquando da ponderação das finalidades da pena, por forma a que, quando for de concluir que aquele excesso resulta da determinação da pena concreta no quadro da moldura penal abstrata, se opte pela sua atenuação especial, em obediência ao espírito do citado artigo 4º. Isto porque a atenuação da pena implicará uma moldura penal abstrata que permitirá uma pena concreta provavelmente mais adequada a alcançar a reinserção social do condenado.

Para realizar tal juízo de prognose sobre o desempenho futuro da personalidade do jovem, impõe-se então ponderar, numa avaliação global dos factos apurados em cada caso concreto, a natureza e modo de execução do crime, a personalidade do arguido, a sua conduta anterior e posterior ao facto, bem como as suas condições de vida, tudo de forma a averiguar se a moldura penal do crime em questão (concretamente a moldura da pena de prisão) é ou não excessiva tendo em vista os fins de socialização do jovem condenado.

É através da ponderação das circunstâncias concretas de cada caso, que se pode chegar ou não à conclusão de que se está perante um desvio transitório e ocasional, próprio do período de latência social propiciador da delinquência juvenil, caso em que se poderá mostrar justificada a formulação de um juízo de prognose favorável à atenuação especial.

Esse juízo deve ser positivo quando as diversas variáveis a considerar (idade, situação familiar, educacional, vivências pregressas, antecedentes de formação) permitam uma prognose favorável (ou, com maior rigor, não empeçam uma prognose favorável) sobre o futuro desempenho da personalidade [14].

Assim, só se justifica a referida atenuação especial se houver vantagens de reinserção, mas, importa não o esquecer, sem prejuízo da defesa do ordenamento jurídico, ou seja, salvaguardadas que sejam, naturalmente, as exigências de prevenção geral ligadas à proteção de bens jurídicos, que, sendo acentuadas, poderão obstar a essa atenuação especial da pena.

No caso de absoluta incompatibilidade entre exigências de prevenção geral e especial, as exigências (mínimas) de prevenção geral funcionam como limite ao que, numa perspetiva de prevenção especial, podia ser aconselhável. De facto, nenhum ordenamento jurídico suporta pôr-se a si próprio em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal. A sociedade tolera uma certa perda de efeito preventivo geral, nomeadamente conformando-se com a aplicação do regime de jovens, mas, quando essa aplicação possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a aplicação do regime penal especial para jovens cedem, devendo aplicar-se a pena de prisão.

3.3.2 - No caso concreto, estando o arguido, objetivamente, em condições de beneficiar do regime em causa, visto que tinha 19 anos à data da prática dos factos em apreço, pelos quais será necessariamente punido em pena de prisão, cumpre averiguar se há razões sérias para crer que da atenuação especial da pena resultam vantagens para a sua reinserção social.

A decisão recorrida entendeu que não, aduzindo a seguinte fundamentação, que transcrevemos na parte relevante:
«Ora, é certo que o arguido à data da prática dos crimes em causa nos autos tinha 19 anos de idade; também é factual que o mesmo não tinha qualquer antecedente criminal à data do cometimento de tais ilícitos penais.

Decorre, porém e ainda, dos factos assentes que o arguido praticou dois crimes – um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, e um crime de dano consumado -, com dolo na forma de dolo direto, na mesma ocasião, contra a mesma ofendida.

E, pese embora tenha prestado declarações, no uso do direito processual que lhe assiste, o arguido, em bom rigor, apenas confessou a prática do crime de dano que lhe é imputada na acusação e a prática dos factos (objetivos) ali vertidos quanto ao crime de homicídio tentado, não assumindo, no entanto, o mesmo, a intenção de matar a ofendida (mais! nem sequer assumindo a intenção de lhe fazer mal, mormente de a agredir), intenção de matar, essa, que resultou provada e, por isso, o arguido não permitiu que o tribunal pudesse fazer um juízo acerca do arrependimento sincero e da autocensura do arguido perante tal crime e bem assim que o mesmo tivesse interiorizado a gravidade, censura e reprovação, da conduta praticada. (…)

Assim e face ao exposto, a simples ausência de antecedentes criminais e a idade não bastam para a aplicação do regime ora em consideração, sendo sempre necessário, para tal, um juízo de prognose favorável ou seja, o tribunal sempre tem de concluir que, por aquele regime se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Finalmente, estamos perante criminalidade grave (no que concerne ao crime de homicídio qualificado tentado), que cria forte sentimento de insegurança, repúdio e alarme na comunidade e que esta deposita e exige dos tribunais uma aplicação efetiva de penas que se ajustem e defendam os bens jurídicos em causa, de modo a que a insegurança não aumente nem se crie o sentimento de impunidade.
Isto posto, entendemos, in casu, que não é de aplicar o regime dos jovens delinquentes ao arguido, já que o conjunto dos crimes por ele praticados, a sua gravidade e modo de execução, a sua conduta em julgamento e em relação aos factos relativos ao crime de homicídio, desaconselham em absoluto a aplicação desse regime por (o mesmo) se não mostrar passível de prognose favorável à sua reinserção social.»

Conforme resulta deste excerto do acórdão recorrido, para afastar a aplicação do regime dos jovens delinquentes, o Tribunal Coletivo acentuou a gravidade do crime, as fortes exigências de prevenção geral que lhe estão associadas e a postura do arguido em julgamento, ao não assumir a intenção de matar a assistente, nem sequer de lhe fazer mal, o que afasta a hipótese de formular um juízo acerca de arrependimento sincero e de autocensura e bem assim sobre a interiorização da gravidade, censura e reprovação da sua conduta.

Apesar de haver uma posição que atribui à gravidade do ilícito e às necessidades da prevenção geral um papel mais preponderante, afigura-se-nos, na esteira do defendido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2017 [15], que o juízo sobre a existência de sérias razões para crer que da atenuação especial da pena resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado reverte essencialmente às condições pessoais e de carácter deste (condições de vida, familiares, educação, inserção e prognose sobre o desempenho da personalidade), mais do que à gravidade das consequências do facto.

Nesse sentido aponta claramente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-04-2005 [16], ao referir que «a atenuação especial da pena para jovens delinquentes não se aplica apenas à criminalidade menor, antes se torna mais necessária para crimes de moldura penal mais elevada, quando a imagem global que se forma dos factos e da personalidade do agente nos aponta no sentido de uma futura ressocialização».

Com efeito, o juízo de prognose sobre o comportamento futuro da personalidade do jovem deve ser feito sem qualquer consideração autónoma dos factos, que apenas deverão contribuir para ele no ponto em que revelam ou neles se manifeste uma projeção de personalidade especialmente desvaliosa.

Na verdade, mesmo não partindo da gravidade dos factos, o juízo sobre as vantagens para a reinserção social do arguido não pode olvidar a refração de duplo sentido da personalidade para os factos e destes para aquela.

No caso vertente, a reprovável motivação do arguido (centrada na recusa da assistente em reatar a relação de namoro), a forma grave e violenta de execução dos factos e o elevado desprezo pela vida humana revelado pelo mesmo, traduzem uma personalidade fortemente desvaliosa, a que acrescem as suas manifestações de carácter egocêntrico e de comportamentos excessivamente ciumentos em relação à assistente, propiciadores de reações violentas.

Por seu lado, como bem acentua a decisão recorrida, o arguido, ao refutar a intenção de matar a assistente ou sequer de lhe causar mal, não evidenciou um arrependimento sincero, de autocensura e de interiorização do mal do crime.

Significa isto que, apesar de a conduta do arguido anterior aos factos (ser primário) e de as suas condições pessoais, familiares e profissionais (viver ainda em casa do progenitor e ter iniciado a vida laboral apenas há um mês) apontarem no sentido de o mesmo ainda desempenhar um papel social de jovem, encontrando-se no referido período de latência social, sendo sensível a uma intervenção de ajustamento e de consolidação da personalidade, o certo é que, não só pela via da enorme gravidade do ilícito praticado e das fortes exigências de prevenção geral que lhe estão associadas, mas também, e sobretudo, por do conjunto dos fatores supra apontados e da própria natureza do crime (homicídio) ressaltar uma personalidade pouco juvenil ou pouco própria da imaturidade de um jovem, revelando perigosidade e, por isso, afastada da criminalidade típica dos jovens delinquentes, não existem razões sérias para crer que da atenuação especial da pena resultem vantagens para a reinserção social do arguido.

Pelo exposto, tal como decidiu a primeira instância, é de afastar a aplicação do regime especial dos jovens adultos, reclamada pelo recorrente, nesta parte improcedendo o recurso.

3.4 - Da medida da pena

Em decorrência da desqualificação do crime de homicídio tentado, com a consequente alteração da moldura abstrata da pena, impõe-se proceder à determinação da sua medida concreta, sendo certo que, nas conclusões 14ª a 16ª, o recorrente também se insurge contra a pena de seis anos de prisão aplicada pela primeira instância, considerando-a exagerada, por exceder a medida da culpa e não realizar nenhum dos fins da punição, mormente contribuir para a sua reinserção social.

Nos termos dos arts. 23º, n.º 2, 73º, n.º 1, als. a) e b), e 131º, todos do Código Penal, a moldura legal da pena aplicável ao crime de homicídio simples na forma tentada é de prisão de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses.

3.4.1 – De acordo com o disposto no art. 40º, n.º 1, do referido diploma, a aplicação de penas e de medidas de segurança, tem como finalidade “a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, se reporta à denominada prevenção especial.

O legislador quis, desta forma, oferecer ao julgador critérios seguros e objetivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa. Em conformidade, dispõe o n.º 2 do referido art. 40º que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Em consonância com estes princípios, dispõe o art. 71º, n.º 1, do mesmo código que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

De acordo com os ensinamentos de Anabela Miranda Rodrigues [17], a medida da pena há de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Mais adianta que é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – proteção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exata, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (ótima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral.

A mesma autora apresenta, então, três proposições em jeito de conclusões e de forma sintética: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas».

E finaliza, afirmando: «É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, diretamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente».

Em suma, o limite mínimo da pena deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral que no caso se façam sentir, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva, ao passo que o limite máximo não deve exceder a medida da culpa do agente revelada no facto, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do mesmo; e, dentro desses limites mínimo e máximo, a pena deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível, sendo, pois, as razões de prevenção especial que servem para encontrar o quantum de pena a aplicar [18].

Por seu lado, as várias alíneas do n.º 2 do art. 71º do Código Penal elencam, a título exemplificativo, as seguintes circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, devendo o tribunal abster-se de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido:

- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (al. a);
- A intensidade do dolo ou da negligência (al. b);
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c);
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica (d);
- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (al. e);
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f).
Assim, as circunstâncias e os critérios do art. 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (por exemplo, a natureza e o grau de ilicitude do facto impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente [19].

3.4.2 – No caso vertente, o grau de ilicitude e a gravidade da forma de execução do facto situam-se num nível acima de mediano, considerando que o arguido desferiu um único golpe, com um instrumento dotado de um forte poder agressivo (uma faca de cozinha, com 12 cm de lâmina fina), que se encontrava na banca da cozinha, atingindo a zona central do tronco da assistente, entre o peito e o abdómen.

É elevado o grau de violação dos deveres impostos ao arguido, ao atentar contra a vida de pessoa com quem mantivera uma relação de namoro durante cerca de um ano e meio, circunstância essa que, na recente alteração do Código Penal, operada pela Lei n.º 16/2018, de 27 de março, ainda não aplicável aos presentes autos, foi aditada à al. b) do n.º 2 do art. 132º daquele diploma, passando a integrar o elenco dos exemplos padrão qualificativos do crime de homicídio.

A gravidade das consequências da conduta foi bastante considerável, traduzindo-se numa lesão perfurante na zona do epigastro/hipocôndrio, que atingiu a totalidade da parede e com perfuração do fígado, provocando na assistente, quer na ocasião, quer durante algumas horas após os factos e até que lhe foi comunicado que estava fora de perigo, receio pela sua vida, tendo sofrido angústia, desespero e aflição, e necessitado de acompanhamento psicológico e orientação no agrupamento de escolas que frequenta, por não conseguir lidar com as consequências emocionais decorrentes da agressão, deixando-a insegura e com receio que o arguido lhe cause novamente algum mal, tendo chegado a alterar as suas vivências e a sentir reflexos negativos nos seus resultados escolares.

Acresce que a assistente foi submetida a uma intervenção cirúrgica e a transfusões de sangue, com internamento durante 9 dias, quatro dos quais em regime de observação, sendo que, para além do défice funcional temporário total naquele período, sofreu um défice funcional temporário parcial durante 194 dias, sendo o quantum doloris fixável no grau 5 (tendo em conta as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efetuados), o dano estético permanente fixável no grau 3 (atendendo aos aspetos e localização das cicatrizes e à idade da assistente), e a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 1 (tendo em conta a limitação dolorosa na corrida e em atividades de lazer fisicamente mais exigentes), todos numa escala de 7 graus de gravidade crescente, o que tudo é revelador da gravidade das consequências da conduta do arguido.

No que concerne à intensidade do dolo, a redação dada ao ponto 24º dos factos provados pode prestar-se a algum equívoco, ao referir que «o arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida à ofendida e de lesar o seu corpo e saúde, usando uma faca e atingindo-a numa zona do corpo que sabia alojar órgãos vitais para a vida, prevendo com isso que a poderia matar, (…) resultado com o qual se conformou e quis». Com efeito, se por um lado, aponta inequivocamente para o dolo direto, ao mencionar que o arguido teve o propósito de matar a ofendida, por outro lado, a alusão à previsão do resultado morte e à conformação do arguido com o mesmo corresponde à formulação do dolo eventual.

Todavia, a contradição entre a fundamentação que aí pudesse ser detetada nunca seria suscetível de integrar o vício previsto no art. 410º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal, por não ser insanável, devendo antes ser considerada meramente aparente.

Com efeito, face ao teor da própria descrição factual dada como provada nesse ponto 24º, mormente ao referir-se que o arguido quis o resultado morte, deve entender-se a referida referência à previsão e conformação com o mesmo como uma excrescência ou mero lapso do tribunal a quo, o que surge reforçado em face do que é mencionado em sede de motivação da decisão de facto e de determinação da medida da pena, onde expressamente se caracteriza o dolo como direto.

É, pois, de concluir pela verificação da forma de culpa dolosa, na sua forma mais intensa.

Todavia, apesar da atuação com dolo direto, no caso concreto, tal não se traduz, por isso, numa culpa de elevada intensidade. Com efeito, dolo direto não significa dolo intenso enquanto intenção criminosa de grande intensidade. Significa tão só que o agente atuou com vontade dirigida à realização do facto. Ora, neste aspeto, a materialidade provada evidencia uma mediana ou normal intensidade dolosa no cometimento dos factos, sem que nada de realce o distinga da normalidade, quer quanto à forma de cometimento do crime, quer quanto aos motivos subjacentes ao mesmo.

Com efeito, os factos ocorreram no decurso de uma discussão, na sequência de a assistente ter confirmado ao arguido que mantinha uma relação afetiva com outro indivíduo, facto de que ele já suspeitava, vendo, assim, inviabilizado o pretendido reatamento do namoro que tinham rompido cerca de quatro meses antes. Tratou-se, pois, de uma reação impulsiva e passional.

Porém, a personalidade plasmada no comportamento do arguido, ao ser incapaz de respeitar a decisão da assistente de terminar definitivamente a relação que com ele mantivera e de iniciar um outro relacionamento afetivo, revela um forte alheamento do respeito pelo valor jurídico violado, traduzindo uma indiferença para com a vida humana alheia.

Apesar de ser primário, esses traços de personalidade, aliados ao carácter egocêntrico e aos comportamentos excessivamente ciumentos do arguido para com a assistente, revelam a existência de algumas exigências de prevenção especial. Acresce a circunstância de, em julgamento, o arguido não ter demonstrado arrependimento sincero nem interiorização do desvalor, censura e reprovação da sua conduta, já que não assumiu a intenção de matar a assistente, facto este que ficou demonstrado.

Por seu turno, são fortes as exigências de prevenção geral, uma vez que a conduta assumida pelo arguido, para além de ser fortemente censurável e reprovável, é geradora de alarme social, pela sua gravidade, o que é revelador da necessidade de reafirmação da norma jurídica violada junto da comunidade, de modo a corresponder às expectativas desta.

Ponderando estes elementos, entende-se que uma pena de 5 anos de prisão satisfaz as exigências preventivas e não excede a medida da culpa.

3.5 - Da suspensão da execução da pena

Por último, nas conclusões 13ª, 16ª, parte final, e 17ª, o recorrente propugna pela suspensão da execução da pena, sujeita a regime de prova, por entender que a simples ameaça da prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, facilitando o seu processo de ressocialização e amortizando os efeitos negativos que podem advir do cumprimento efetivo da prisão, o que também é defendido pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, por entender que não é seguro que o sentimento da comunidade reclame uma pena de prisão efetiva, tendo em conta o condicionalismo que rodeou o cometimento do crime.

3.5.1 – De acordo com o disposto no art. 50º, n.º 1, do Código Penal, a pena de prisão fixada em medida não superior a cinco anos, como é o caso concreto, fruto da redução da pena aplicada pela primeira instância em consequência da desqualificação do crime de homicídio, deve ser suspensa na execução se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, for de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Estas finalidades são a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, n.º 1, do mesmo código).

A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na chamada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, se reporta à denominada prevenção especial.

Conforme refere Maria João Antunes [20], são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e de prevenção especial, que justificam e impõem a preferência por uma pena não privativa da liberdade, sem perder de vista que a finalidade primordial é a de proteção de bens jurídicos.

Por um lado, numa perspetiva de prevenção especial, a suspensão da execução da pena deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado. Com efeito, ela une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal ao chamamento, pela ameaça de executar no futuro a pena, à própria vontade do condenado em reintegrar-se na sociedade. É uma pena, porque oriunda de condenação produtora de antecedentes criminais. É uma medida de correção, enquanto busca, v.g., a reparação do delito ou “prestações socialmente úteis”. Aproxima-se das medidas de ajuda social se no domínio respetivo se desenham instruções que “afetam o comportamento futuro do condenado”. E tem uma coloração sociopedagógica ativa, pelo “estímulo ao condenado para que seja ele mesmo quem com as suas próprias forças possa durante o regime de prova reintegrar-se na sociedade” [21].

O pressuposto material da decisão suspensória da execução da pena é, assim, a existência de um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro.

A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, norteado pelo desiderato de afastar o delinquente da senda do crime, tendo em conta as concretas condições do caso. É necessário que o tribunal se convença, face à personalidade do arguido (inteligência e carácter), ao seu comportamento anterior (condenações sofridas) e posterior (arrependimento e reparação do dano) aos factos, às condições da sua vida (profissionais, familiares e sociais), à natureza e circunstâncias do crime (motivos e fins) e à sua adequação àquela personalidade, que o facto cometido não está de acordo com a mesma, que foi simples acidente de percurso, esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de comportamentos delituosos, afastando-o da criminalidade.

Para decidir sobre a suspensão da execução da pena, o tribunal começará, pois, por um juízo de prognose sobre o comportamento futuro do agente, decidindo depois em conformidade com o que resultar dessa previsão, só devendo decretar a suspensão da execução quando concluir, face aos apontados elementos, reportados ao momento da decisão, que essa é a medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade.

É certo que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, mas antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjetiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso [22]. O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa.

Por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal. Ou seja, é necessário que a suspensão da pena não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafática das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade.

Se, por um lado, a regra é o cumprimento efetivo da pena aplicada e não a sua suspensão, pois que esta só será decretada se se mostrarem verificadas as aludidas condições, por outro lado, a suspensão da execução da pena nunca poderá contender com as expectativas comunitárias na realização da justiça, pois que tal abalaria a estabilidade do ordenamento jurídico-penal. Como escreve Figueiredo Dias [23], «apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime. Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por essas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.»

Em síntese, exige-se que o tribunal, ponderando todas as referidas circunstâncias, esteja em condições de formular um juízo de prognose favorável, não podendo a suspensão, no entanto, beliscar as expectativas comunitárias e abalar a estabilidade do ordenamento jurídico-penal, uma vez que a comunidade deve rever-se nas decisões dos tribunais.
A suspensão da execução da pena surge, pois, como um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá de a decretar, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades da punição, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos.

3.5.2 – No caso vertente, estamos perante um crime de homicídio tentado, em que o bem jurídico tutelado é a vida humana, situado no ponto cimeiro da hierarquia dos direitos fundamentais de um Estado de direito, destacando-se o facto típico entre os crimes mais graves de qualquer ordenamento jurídico-penal civilizado.
Daí que, por gerar um sentimento justificado de revolta por parte da comunidade, este crime reclama uma reação firme e enérgica, no âmbito da qual só em casos excecionais deve ter lugar a suspensão da execução das penas [24].

Conforme referido supra, a personalidade do arguido, caracterizada por egocentrismo, comportamentos ciumentos em relação à assistente e incapacidade de, no caso concreto, aceitar a decisão desta em não reatar a relação de namoro, revela algumas exigências de prevenção especial. Saliente-se, contudo, que na perícia psiquiátrica que lhe foi efetuada em 26-10- 2017, o arguido não apresentava qualquer ideação ou expressão emocional de ciúme.

Acresce que, em julgamento, o arguido não se mostrou sinceramente arrependido nem demonstrou ter interiorizado devidamente o desvalor da sua conduta, uma vez que, admitindo a prática dos factos objetivos, não assumiu a intenção de atentar contra a vida da assistente.

Porém, face à idade do arguido à data dos factos delituosos (apenas 19 anos), ao seu percurso de vida perfeitamente estruturado, à dinâmica familiar funcional de que dispõe e à sua inserção social e laboral (entretanto interrompida com à sujeição ao estatuto coativo), afigura-se-nos que o cumprimento efetivo da pena, pelos seus efeitos estigmatizantes, terá relevantes reflexos perniciosos no processo de ressocialização do arguido, podendo até comprometê-la, por não ser seguro que, em casos com estes contornos, o ambiente prisional a consiga promover com sucesso.

Por seu lado, a ausência de qualquer antecedente criminal, o concreto contexto em que os factos foram perpetrados (como reação impulsiva e exasperada quando a assistente lhe confirmou que já mantinha outro relacionamento afetivo) e a experiência de reclusão com a sujeição a prisão preventiva e, posteriormente, à obrigação de permanência na habitação, leva-nos a crer que a ameaça da execução de uma pena de duração bastante considerável (5 anos), terá potencialidades para o arguido se consciencializar da gravidade do seu comportamento e da necessidade de não praticar factos semelhantes.

Por fim, apesar das fortes exigências de prevenção geral que se fazem sentir, derivadas da gravidade do crime, cremos que, tal como sustenta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, o referido circunstancialismo que rodeou a prática dos factos e a inserção familiar e social do arguido, que não suscita sentimentos de rejeição no meio comunitário, não vão ao ponto de reclamarem inelutavelmente o cumprimento efetivo da prisão, antes de compadecendo com a concessão da uma oportunidade de ressocialização em liberdade.

Pelo exposto, embora se reconheça estarmos perante um caso limite, afigura-se-nos que o mesmo ainda reveste características de excecionalidade suficientes para merecer um tratamento especial, permitindo a suspensão da execução da pena, pelo mesmo período da sua duração.

Para além de ser obrigatoriamente acompanhada de regime de prova (art. 53º, n.º 3, do Código Penal), assente no plano de reinserção social que os serviços de reinserção social venham a elaborar e que a primeira instância homologue (art. 494º, n.º 3, do Código de Processo Penal), nos termos do art. 51º, n.º 1, al. a), do Código Penal, a suspensão será ainda condicionada à obrigação de, no respetivo período, o arguido pagar à assistente parte do valor da indemnização civil que lhe foi arbitrada, parte essa que, atendendo aos dados disponíveis sobre a sua situação económico-financeira, se fixa em € 15.000, devendo comprovar nos autos o pagamento semestral da quantia de € 1.500.

Com efeito, o arguido integra o agregado familiar composto pelo pai e pela avó paterna, conta com o apoio dos progenitores e, embora o estatuto coativo a que foi sujeito o tenha impedido de continuar a trabalhar, auferindo cerca de € 620 mensais, é de crer que, uma vez em liberdade, conseguirá reintegrar-se laboralmente, conforme, aliás, foi dado como provado ser sua pretensão.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido, B. O., e, em consequência, decidem:

A) - Absolver o arguido do crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, n.ºs 1 e 2, 23º e 132º, n.ºs 1 e 2, al. e), do Código Penal.
B) - Condenar o arguido, como autor material de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, n.ºs 1 e 2, 23º e 131º do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.
C) - Suspender a execução dessa pena, por período igual ao da sua duração, com acompanhamento de regime de prova, assente no plano de reinserção social a elaborar pelos serviços de reinserção social e a homologar pela primeira instância, e subordinada à condição de o arguido, no prazo da suspensão, pagar à assistente a quantia de € 15.000 (quinze mil euros), por conta do valor arbitrada no pedido de indemnização civil, devendo comprovar nos autos o pagamento de € 1.500 (mil e quinhentos euros) em cada semestre.
D) - Manter, no mais, a decisão recorrida.

Sem custas, atenta a parcial procedência do recurso (arts. 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).
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Atenta a determinada suspensão da execução da pena de prisão, deixaram de subsistir as circunstâncias que justificaram a aplicação ao arguido da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização do seu cumprimento mediante recurso a meios de vigilância eletrónica.

Assim, ao abrigo do disposto nos arts. 212º, n.º 1, al. b), e 375º, n.º 4, do Código de Processo Penal, revoga-se tal medida coativa.
Solicite-se de imediato à DGRSP a desativação dos meios de vigilância eletrónica e remeta-se cópia do presente acórdão à primeira instância.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)

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Guimarães, 09 de abril de 2018


(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)


[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a formatação do texto e a ortografia utilizada, que são da responsabilidade do relator.
[2] - Conforme jurisprudência uniformizada pelo acórdão n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995).
[3] - Cf. o acórdão uniformizador de jurisprudência referido na nota anterior.
[4] - Vd. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., pág. 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pág. 77 e ss..
[5] - Vd. Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 341.
[6] - Vd. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74.
[7] - Vd. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 32-33; Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 8ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 545, Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal, Parte Geral e Especial, 2.ª Edição, 2015, Almedina, e Nelson Hungria, Comentário, V, pág. 164.
[8] - Proferido no processo n.º 61/15.8PFLRS.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt, onde são citados vários outros acórdãos do STJ, nomeadamente, entre os mais recentes, os de 19-02-2014 (processo n.º 168/11.0GCCUB.S1), de 16-10-2013 (processo n.º 455/12.0PCLSB.L1.S1), de 17-04-2013 (processo n.º 237/11.7JASTB.L1.S1), de 27-06-2012 (processo n.º 127/10.OJABRG.G2.S1) e de 31-01-2012 (processo n.º 894/09.4PBBRR.S1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[9] - Cf. ainda, com datas mais remotas, os acórdãos do STJ de 23-01-1991, in BMJ n.º 403, pág. 192, de 07-12-1999, in Coletânea de Jurisprudência-STJ, Tomo III, pág. 234, de 04-10-2001 (processo n.º 1675/01), de 15-12-2005 (processo n.º 05P2978), de 17-01-2007 (processo n.º 06P3845), de 26-09-2007 (processo n.º 07P2591), de 13-07-2009 (processo n.º 59/07.0GCVPA.S1) e de 27-05-2010 (processo n.º 58/08.4JAGRD.C1.S1), estes disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[10] - Proferido no processo n.º 830/09.8PBCTB.C1.S1), disponível em http://www.dgsi.pt., citado no parecer do Ministério Público nesta Relação.
[11] - Proferido no processo n.º 894/09.4PBBRR.S1, disponível em http://www.dgsi.pt. igualmente citado no referido parecer.
[12] - Diário da Assembleia da República, II série-A, de 21 de setembro de 2000.
[13] - Cf. Norman A. Sprinthall e W. Andrews Cllins, in Psicologia do Adolescente, Uma Abordagem Desenvolvimentista, 1994, pág. 501.
[14] - Cf. o acórdão do STJ de 07-11-2007 (processo n.º 07P3214), disponível em http//www.dgsi.pt.
[15] - Proferido no processo n.º 54/15.5JBLSB.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[16] - Proferido no processo n.º 05P658, disponível em http://www.dgsi.pt.
[17] - “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss.
[18] - Vd. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e ss..
[19] - Cf. o acórdão do STJ de 28-09-2005, in Coletânea de Jurisprudência-STJ, 2005, tomo 3, pág. 173.
[20] - As consequências jurídicas do crime, Coimbra Editora, 2013, nota 4, pág. 71.
[21] - Cf. Jescheeck, in Tratado, versão espanhola, vol. II, págs. 1152 e 1153.
[22] - Cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 344.
[23] - Ob. cit., pág. 344.
[24] - Cf. o acórdão do STJ de 11-04-2007 (processo n.º 07P521), disponível em http://www.dgsi.pt, onde são citados outros arestos.
[25] - Proferido no processo n.º 05P658, disponível em http://www.dgsi.pt.