Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4460/19.8T8BRG.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANO PATRIMONIAL
DANO NÃO PATRIMONIAL
DÉFICE FUNCIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO INDEPENDENTE E SUBORDINADA. APELAÇÃO INDEPENDENTE PARCIALMENTE PROCEDENTE. APELAÇÃO SUBORDINADA IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Não é de censurar a fixação em € 15.000,00 da indemnização pelo reflexo patrimonial futuro do dano biológico numa situação em que a autora, de 26 anos de idade, costureira, ficou a padecer de défice permanente da integridade física e psíquica de 4 pontos, sem repercussão permanente na actividade profissional, mas que sempre necessitará de recorrer regularmente a medicação analgésica e anti-inflamatória, e auferia uma remuneração mensal de € 557,00 à data do acidente e de € 600,00 à data da propositura da acção, em ambos os casos deduzida da taxa social única e acrescida de subsídio de alimentação.
2 – Na concreta determinação do quantitativo da compensação dos danos não patrimoniais, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo e procurar alcançar uma aplicação tendencialmente uniformizadora – ainda que evolutiva – do direito, devem ser considerados os padrões indemnizatórios geralmente adoptados pela jurisprudência em casos análogos.
3 – É adequada, segundo um juízo de equidade, a fixação da indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 17.000,00 a lesada de 26 anos de idade que ficou a padecer de défice permanente da integridade física e psíquica de 4 pontos, sem repercussão das sequelas nas actividades desportivas e de lazer, dores físicas quantificáveis de grau 3, numa escala de 1 a 7, dano estético de grau 3/7 e futura carência regular de ajuda medicamentosa analgésica e anti-inflamatória.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. C. R. intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra X – Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação desta:

«(i) no pagamento da quantia liquida de € 29.608,40 (vinte e nove mil, seiscentos e oito euros e quarenta e cêntimos) relativa aos prejuízos sofridos em resultado do acidente dos autos, e conhecidos neste momento,
(ii) e ainda em quantia a liquidar futuramente, seja em incidente de liquidação, seja em articulado de ampliação do pedido, seja ainda em liquidação por execução de sentença:
a. pelas despesas com os tratamentos a realizar, com os medicamentos a tomar, de deslocação;
b. para além da indemnização (ilíquida) que for devida em resultado da desvalorização funcional (Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-psíquica), a qual está naturalmente dependente de avaliação médico-legal, quer a título de dano não patrimonial, quer a título de dano biológico, quer ainda a título de dano patrimonial futuro, quer de perda de capacidade de ganho;
c. quer ainda da indemnização que seja devida pela necessidade de acompanhamento medico e medicamentoso, e tratamentos, no futuro, para alem das deslocações e ainda perdas salariais, tudo acrescido de juros a taxa legal supletiva calculados desde a citação».
Para o efeito, alegou ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais em consequência do acidente de viação que descreve, cuja ocorrência imputa à conduta culposa do condutor do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula CA, cuja responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o referido veículo se encontrava transferida para a Ré seguradora.
*
A Ré contestou, aceitando a dinâmica do acidente descrita na petição inicial, exceptuando a velocidade imprimida ao veículo CA, impugnando a matéria relativa às consequências do evento e alegando que a Autora contribuiu para os danos que alega ter sofrido por não usar cinto de segurança no momento do embate.
*
No decurso da acção, a Autora ampliou o pedido, solicitando que ao valor inicial acresça a quantia global de € 60.617,97.
*
1.2. Proferido despacho-saneador, definiu-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

Realizada a audiência final, proferiu-se sentença a «julga[r] a acção parcialmente procedente e, consequentemente, condena[r] a ré X – Companhia de Seguros, S.A. a pagar à autora C. R.:
1. A quantia de € 32,680,40, acrescida os juros de mora, à taxa legal de 4%, contados:
- Desde a data da presente sentença no que respeita ao valor de € 14.000,00;
- Desde a data da notificação da ré para o segundo incidente de liquidação no que respeita ao valor de € 90,00;
- Desde a data da notificação da ré para o primeiro incidente de liquidação no que respeita ao valor de € 395,01;
- Desde a citação para esta acção no que respeita ao valor de € 18.195,39.
2. A quantia que se vier a liquidar posteriormente relativamente ao custo da colocação de coroas fixas em zircónio nos dentes 21 e 22».
*
1.3. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1. A recorrente não pode conformar-se com a sentença proferida pelo tribunal da 1.ª instância, ao decidir como decidiu, motivo porque interpõe o presente recurso, discordando do quantum indemnizatório atribuído a título de danos patrimoniais e de danos não patrimoniais, os quais pecam por defeito.

QUANTO AO DANO BIOLÓGICO:
2. Um dos casos mais frequentes a que o tribunal tem de atender a danos futuros é o que se verifica no caso de lesões que atingem a capacidade física do lesado.
3. O que está aqui em causa não é o sofrimento ou a deformação corporal em si, mas antes a impossibilidade de utilizar o seu corpo de forma absoluta.
4. No caso dos autos há a considerar como dano futuro o dano biológico, já que a afectação da sua potencialidade física determina uma irreversível perda de faculdades da A..
5. O Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-psíquica de quatro pontos de que a A. ficou a padecer é pois um dano corporal, o chamado dano biológico, consistindo este “na diminuição ou lesão da integridade psico-física da pessoa, em si e por si considerada, e incidindo sobre o valor homem em toda a sua concreta dimensão” (João António Álvaro Dias, “Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios”, Colecção Teses, Almedina, Coimbra, 2001, página 272).
6. Não pode oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psicossomático do que, propriamente, um dano patrimonial.
7. Ora, o dano biológico é um dano autónomo tout court. É fácil de ver que o dano biológico consiste na perda genérica de potencialidades funcionais e deve, por isso, ser autonomizado, perspectivado e satisfeito.
8. O Tribunal a quo, incluiu o Dano Biológico na vertente de dano patrimonial, o que, com o devido respeito, que é muito, não o deveria ter feito, uma vez que este dano, como supra se referiu, deve ser autonomizado.
9. Com efeito, a lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afeta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”.
10. Assim, será devida uma quantia a título de dano biológico, quantia essa que nunca poderá ser inferior a € 20.000,00.
11. Caso assim não se entenda, e se entenda que o Dano Biológico se deverá incluir nos danos patrimoniais ou nos danos não patrimoniais, deverá essa quantia ser aumentada nos referidos € 20.000,00.

QUANTO AOS DANOS PATRIMONIAIS FUTUROS:
12. A sentença recorrida atribuiu, a este título, a quantia de € 15.000,00, embora, como já se referiu, resulte que tal valor compreenderá ainda uma indemnização pelo dano biológico.
13. A recorrente não concorda com o valor indemnizatório que lhe foi atribuído a este título.
14. No cálculo dos danos patrimoniais futuros decorrentes da perda da capacidade de ganho, deverá considerar-se a produção de um rendimento durante o tempo de vida previsível da vítima, adequado ao que auferiria se não fosse a lesão correspondente ao grau de incapacidade, e adequado a repor a perda sofrida.
15. Isto implica tomar em linha de conta a idade do lesado ao tempo do acidente, a esperança média de vida (apurada de acordo com os dados estatísticos disponíveis), os rendimentos auferidos ao longo desta, os encargos, o grau de incapacidade, e todos os outros elementos atendíveis.
16. A título de indemnização pelo dano patrimonial futuro, atendendo a:
a. que antes do acidente era saudável;
b. a sua idade (26 anos);
c. a incapacidade de que ficou a padecer: geral de 04,00 pontos,
d. o seu rendimento anual de, pelo menos, € 7.798,00;
e. que a taxa de juro do capital produtor de rendimento já é inferior a 2% ao ano, com tendência para baixar ainda mais, até se situar nos 1% ao ano (e quanto menor for a taxa de juro, maior terá de ser o capital produtor de rendimento para proporcionar a mesma renda mensal) e,
f. que está unanimemente aceite que o limite de idade activa se cifra nos 83,51 anos para as mulheres (segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, “Estatísticas Demográficas”, com tendência para aumentar até pelo aumento da longevidade da vida a nível europeu,
17. será sempre devida uma indemnização na ordem dos € 20.000,00 (vinte mil euros).
18. Este valor foi encontrado recorrendo a juízos de verosimilhança e de probabilidade, partindo da situação concreta e das suas especificidades próprias e seguindo trilhos de normalidade que somos impelidos, na busca do quantum respondeatur, a socorrer-nos de critério que arranca da ideia segundo a qual essa indemnização deve consistir na atribuição de uma quantia em dinheiro que elimine a sua perda patrimonial, alcançando tal objectivo com a atribuição de uma quantia em dinheiro que produz o rendimento mensal perdido mas que, ao mesmo tempo, lhe não propicie um enriquecimento ilegítimo, sendo necessário para tal que na data final do período considerado, se ache esgotada a quantia atribuída, mas que tem em conta o factos de os rendimentos futuros tenderem a subir em função não só da inflação, da taxa de juros, mas também em virtude de ganhos na produtividade e progressões na carreira – cfr. Ac. da RC de 4/4795, in CJ, não XX, Tomo II, pág. 23, e Ac. do STJ de 4/2/93, in CJ, Acórdãos dos STJ, ano I, tomo I, pág. 128 e ss, e de 5/5/94, in CJ, Acórdãos do STJ, Ano II, pág. 86 e ss.,
19. apoiando-se tanto em tabelas financeiras como em fórmulas matemáticas como meio de mais facilmente se obter um valor equitativo e equilibrado da indemnização por danos futuros (O critério de cálculo com recurso a tabelas financeiras é uma das várias fórmulas de se obter o valor da indemnização por danos futuros, embora esta deva ser sempre temperada segundo o prudente arbítrio do tribunal, com recurso à equidade (art.ºs 564.º n.º2, 566.º n.º3, e 496.º n.º 3 do Código Civil).
20. Há que considerar ainda a evolução da esperança média de vida à nascença em Portugal, a qual, de acordo com os mais recentes dados estatísticos revelados pelo I.N.E., se situa em 80,93 anos, sendo 77,95 anos para os homens e 83,51 anos para as mulheres, o que nos permite considerar como equilibrado, tendo em conta o cada vez maior avanço da medicina, um limite temporal provável de vida activa do lesado nos 70 anos de idade, no seguimento, aliás, de entendimento jurisprudencial que vem sendo ultimamente seguido (veja-se por todos, os Acs. da R.P. de 11/04/2000, 30/01/2001, 31/10/2001 e 28/11/2001, sumariados em www.dgsi.pt/jtrp.nsf, e mais recentemente o Ac. da R.P. de 22/01/2004, publicado no mesmo sítio) e até em face das actuais tendências de política legislativa ao nível da fixação do termo da vida profissional activa.
21. Finalmente, há que tomar em consideração igualmente, como o exige o recurso à equidade, outros factores (imponderáveis) como a incerteza sobre as alterações ao estado de saúde em cada momento e o tempo de vida, as alterações das taxas de remuneração do capital e da inflação, a evolução dos índices económicos (cfr. Ac. da R.P de 06/07/2000 e os já referidos Acs. de 30/01/2001 e de 31/10/2001, todos sumariados no mesmo sítio da Internet).
22. Pelo que será sempre devida uma indemnização na ordem dos € 20.000,00 (vinte mil euros).

QUANTO AOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS:
23. A sentença sob censura atribuiu, a este título, a quantia de € 14.000,00 (catorze mil euros)., quantia que peca manifestamente por escassa.
24. Os danos não patrimoniais são aqueles danos que, pela sua natureza, são de certo modo irreparáveis. São aqueles danos que sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização (De Cupis, II Dano, Teoria Generale della Responsabilitá Civile, Milano, 1996, págs. 44 e ss., A. Varela, Das Obrigações Em Geral, I Vol., pág. 486). A indemnização por danos não patrimoniais destina-se a compensar os desgostos e sofrimentos sofridos pelo lesado (Ac. do S.T.J., de 16/12/1993, in Ac. dos STJ, ano I, Tomo III, pág. 181), e por outro lado não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente (A. Varela, loc. E pág. Cit.).
25. O artigo 496º do CC determina que serão indemnizáveis os danos de natureza não patrimonial que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito. Assim, se, por um lado, o legislador prevê que estes danos devam ser ressarcidos, por outro, limita-se àqueles cuja gravidade imponha a intervenção do Direito. Além disto, impõe-nos igualmente este preceito legal que o montante da reparação seja proporcional à gravidade do dano. Como ensina Antunes Varela, devemos “na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”. O legislador determina “bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções com que o julgador deve decidir”.
26. O dano quantificar-se-á por um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos e a sua gravidade apreciar-se-á em função da tutela do Direito.
27. Como se refere no Ac. Relação Porto de 8/04/976 (Colectânea de Jurisprudência, Ano XXII, Tomo II, pág. 204, citando P. de Lima e A. Varela, C. C. Anot., 4ª edição, Vol. I, pág. 501), “na fixação do montante indemnizatório, devem tomar-se em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida”.
28. O Tribunal a quo atribuiu a este título a quantia de € 14.000,00, a qual, salvo o devido respeito, pecará por defeito.
29. Na verdade, atendendo à matéria dada como provada o dano de natureza não patrimonial deverá ser compensado em valor nunca inferior a € 30.000,00.

IV - AS DISPOSIÇÕES JURÍDICAS VIOLADAS:

30. A sentença em crise, aliás douta, violou, entre outras, as disposições legais constantes dos artigos 483º, 562º e 566º do Código Civil e 615º, nº 1, al. d) do Código de Processo Civil.».
*
A Recorrida X apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação da Autora.

1.4. A Ré X interpôs recurso subordinado da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1ª. Nunca é demais salientar que, com o presente recurso, a apelante não pretende, de modo algum, desconsiderar ou esquecer o sofrimento da Autora ou as sequelas de que ficou a padecer, sustentando-se o presente recurso subordinado unicamente nos princípios da proporcionalidade, da igualdade e da uniformização de critérios.
2ª. Como resulta da matéria de facto provada sob os nºs 58 e 60 e do exame perícia, as sequelas de que a Autora ficou a padecer não implicam esforços acrescidos, resultando expressamente dos factos provados que o défice de 4 pontos não têm qualquer repercussão na atividade profissional nem nas atividades lúdicas e de lazer.
3ª. Na verdade, o tribunal recorrido ao ficcionar os esforços acrescidos no desempenho da atividade profissional da autora que não foram, em momento algum, dados como provados em admitidos em sede de exame pericial, acaba por igualar a situação da autora àquelas situações em que o défice funcional, pese embora ser compatível com a profissão habitual, implica esforços acrescidos para o exercício da profissão, o que não é o caso.
4ª. Importa distinguir os casos em que o défice funcional é compatível com a profissão habitual, mas implica esforços acrescidos daquela situação em que o défice funcional não tem qualquer repercussão na atividade profissional do lesado, como é o caso.
5ª. Assim, e não obstante o tribunal ter valorizado o dano biológico na vertente de dano patrimonial, não poderá essa valorização equiparar e até superiorizar o valor atribuído àqueles sinistrados que viram afetada essa componente da sua vida profissional, sob pena de estarmos a cometer a injustiça.
6ª. Não se pode olvidar que princípios da igualdade e da equidade mandam atender às realidades do caso concreto e tratar de forma desigual o que é desigual. Porém, no caso vertente, acaba por se trata de forma igual o que é desigual.
7ª. Assim, tendo em consideração que o Défice Funcional Permanente de que a Autora ficou a padecer não acarreta qualquer constrangimento na sua atividade profissional nem que a mesma esteja condicionada no exercício de qualquer atividade lúdica, nunca a compensação pelo dano biológico, seja qual for a sua vertente, possa ascender a um montante superior a €7.000,00, pelo que se impõe a redução da indemnização pela incapacidade nos termos expostos.
8ª. Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida não teve na devida conta a matéria de facto provada nem o direito aplicável, tendo violado o disposto nos arts. 334.º, 562.º, 563.º, 564.º e 566.º do Código Civil».
*
A Recorrida C. R. apresentou contra-alegações relativamente ao recurso subordinado, pugnando pela improcedência da apelação da Ré.
*
Os recursos foram admitidos como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
**

1.5. Questões a decidir

Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, constituem questões a apreciar:

- Da apelação da Autora:
a) Fixação de indemnização autónoma pelo dano biológico no valor de € 20.000,00;
b) Caso se conclua que não há lugar a indemnização autónoma pelo dano biológico, se a aludida quantia de € 20.000,00 deve ser incluída nos danos patrimoniais ou nos danos não patrimoniais, acrescendo aos montantes já fixados (conclusão 11ª);
c) Aumento da indemnização pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica para o valor de € 20.000,00;
d) Aumento da compensação pelos danos não patrimoniais para € 30.000,00.

- Da apelação da Ré:
e) Redução para € 7.000,00 da indemnização pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica.
*
As questões identificadas em a) e b) serão apreciadas conjuntamente, assim como as referidas em c) e e).
***

II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto
2.1.1. Na decisão recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
«1. No dia 15 de Fevereiro de 2017, pelas 13:15 horas, ao Km 29,100 da Estrada Nacional n.º 205, na freguesia de … (...), do concelho de Barcelos, ocorreu um embate entre os seguintes veículos:
a) o veículo ligeiro de passageiros da marca Renault, modelo Mégane, com a matrícula CA, pertencente a C. F. e por ela conduzido no momento do embate, doravante designado por CA;
b) o veículo ligeiro de passageiros da marca Mercedes Benz, modelo E200, com a matrícula OI, pertencente a M. S. e na altura conduzido por S. T., doravante designado por OI;
c) o veículo ligeiro de passageiros da marca Renault, modelo Clio, com a matrícula PJ, pertencente a J. A. e na altura conduzido por M. F., doravante designado por PJ; e
d) o veículo ligeiro de passageiros da marca Audi, modelo A4, com a matrícula QR, pertencente a J. R. e na altura conduzido pela aqui autora, doravante designado por QR.
2. No momento do embate era dia e o tempo estava seco.
3. No local onde ocorreu o embate a via é ladeada por edificações de ambos os lados, com saídas para a mesma, e a velocidade está limitada a 50 km/h por sinalização vertical – sinal C13.
4. Nesse local existe uma passadeira destinada à travessia de peões e um estabelecimento de ensino, tudo assinalado por sinalização vertical – sinais A16a e A14.
5. Bem como marcas cromáticas no pavimento, para redução da velocidade – marca M20.
6. No mesmo local, a via configura uma recta com cerca de trezentos metros, antecedida de uma curva para a direita, com inclinação ascendente.
7. Tem a largura de seis metros e o pavimento é em betuminoso.
8. O eixo delimitador da via é constituído por uma linha longitudinal contínua – marca M1.
9. O trânsito de veículo fazia-se da seguinte forma: CA→OI→PJ→QR, no sentido Prado–Barcelos.
10. A autora circulava no referido sentido, a uma velocidade de 50 Km/h, a cerca de 0,50 m da berma direita, atento aquele sentido.
11. Ao deparar-se com um veículo pesado de passageiros imobilizado junto à berma que, do lado direito, margina a via, a “largar” passageiros e a receber outros, numa paragem sinalizada com o sinal H20a, o qual, pelas suas dimensões – largura na ordem dos 2,55 metros –, não permitia que procedesse à sua ultrapassagem sem transpor o eixo delimitador da via, a autora imobilizou o veículo que conduzia na retaguarda daquele pesado de passageiros.
12. Quando assim estava, o veículo conduzido pela autora foi embatido pelo veículo PJ, que circulava à sua retaguarda.
13. O qual, por sua vez, havia sido embatido na sua traseira pelo veículo OI, que seguia na sua retaguarda.
14. Após este ter sido embatido na sua retaguarda pelo veículo CA.
15. O primeiro destes embates em cadeia ocorreu entre os veículos CA e OI, o qual, por inércia, foi projectado contra a traseira do veículo PJ, o qual, por sua vez, acabou por ser projectado contra a traseira do veículo QR, conduzido pela autora.
16. Como consequência directa do embate supra descrito, a autora sofreu:
a. traumatismo da face, lado esquerdo;
b. traumatismo da região mandibular;
c. traumatismo alvéolo-dentário;
d. intenso edema labial superior;
e. dor à percussão dos dentes 21 e 22.
17. No dia seguinte ao embate, dia 16.03.2017, perante as dores que tinha e que se mantinham apesar da toma de Brufen 400 de 6/6 horas, a autora deslocou-se ao Serviço de Urgências do Hospital de Barcelos, onde foi atendida por médicos da especialidade de cirurgia, que lhe deram alta com medicação, conselhos apropriados e recomendação para voltar se piorasse.
18. Perante o agravamento das dores, a autora dirigiu-se no dia seguinte, 17.02.2027, à Clínica Dentária X, em Braga, na qual já tinha feito um tratamento ortodôntico em 2014 e 2015, onde foi realizada uma radiografia simples retroalveolar, que revelou processo inflamatório ósseo periradicular dos dentes 21 e 22, sem fracturas aparentes radiculares dos mesmos.
19. Perante a suspeita de uma complicação infeciosa, foi medicada com antibiótico, para além dos anti-inflamatórios que já se encontrava a fazer.
20. Poucos dias depois aconteceu a drenagem espontânea do conteúdo purulento, associada a alguma melhoria das queixas.
21. Em 01.03.2017, por se manterem as dores, a autora regressou àquela clínica dentária, onde se constatou que mantinha edema subnasal mediano, com intensa dor à percussão dos dentes 21 e 22.
22. Após RX pouco esclarecedor, a autora foi anestesiada e submetida a trepanação dos referidos dentes – perfuração para descomprimir o processo infeccioso e melhoria das dores e queixas – que confirmou infecção e consequente necrose do dente 21, tendo sido medicada com azitromicina (antibiótico).
23. Como mantinha edema e queixas intensas, a demandante regressou em 08.03.2017 àquela clínica, onde lhe foi realizada drenagem intra-oral da infecção, com colocação de dreno até resolução do edema.
24. Regressou uma semana depois, ainda com queixas e dores, tendo sido retirado o dreno e realizado pensos nos referidos dentes a fim de os preparar para tratamento endodôntico radical.
25. Depois de ter iniciado o tratamento endodôntico, como se mantinham as queixas, foi renovada a medicação antibiótica.
26. No dia 22.03.2017 a autora regressou à clínica, com dores e queixas, tendo sido realizada nova radiografia retroalveolar, que permitiu levantar a hipótese de um pequeno quisto do canal palatino ou de uma fractura aparente da tábua externa do maxilar superior, junto à linha média, de origem traumática, pelo que foi sugerido um estudo por TC (dentascan) e, a confirmar-se uma das hipóteses levantadas, o envio à consulta de Cirurgia Maxilo-Facial do Hospital de Braga.
27. O referido exame foi realizado em 23.03.2017 e revelou “quistos peri-apicais em relação com as peças dentárias representadas nos planos oblíquos nº 109 a nº 112 e nº 113 a nº 119” e “um quisto peri-apical em relação com as peças dentárias representadas nos planos oblíquos nº 76 a nº 81”.
28. Depois de ter realizado o tratamento endodôntico radical dos dentes 21 e 22, a autora sofreu novo edema labial após a obturação dos canais radiculares, tendo regressado à clínica e sido novamente medicada.
29. Antes do embate, na sequência do tratamento ortodôntico a que tinha sido sujeita em 2014/2015 para correcção da má oclusão da boca e da mordida, a autora usava contenção maxilar apenas de noite.
30. Após o acidente deixou de a usar, porque a pressão que aquela exerce sobre os dentes lhe causava dores insuportáveis.
31. Como deixou de usar a contenção, verificaram-se alterações no exame oral, traduzidas na recidiva da mordida aberta existente antes da correcção ortodôntica efectuada em 2014/2015.
32. Para corrigir esta recidiva do aperto do palato e da alteração na sua mordida seria necessário repetir o tratamento ortodôntico.
33. Para além da necessidade de colocação de coroas fixas em zircónio nos dentes 21 e 22, em virtude do escurecimento da cor do seu esmalte, devido aos tratamentos endodônticos.
34. Em 16.08.2027 a autora foi a nova consulta, na qual se confirmou a completa resolução das queixas, a aparente reversão total da destruição óssea inflamatória/infecciosa maxilar e o correcto tratamento endodôntico de 21 e 22 em radiografia retroalveolar, tendo realizado destartarização e polimento dentário e tendo sido agendado o reinício da correcção ortodôntica com aparatologia fixa,
35. A qual teve início em 03.03.2018, data em que foram cimentados os braquetes.
36. Em virtude do embate e das lesões dele decorrentes, a autora teve a boca inchada durante mais de um mês após o embate.
37. Nesse período teve dificuldades de mastigação, apenas comendo alimentos líquidos e ralados.
38. Tendo perdido cerca de 7 ou 8 kg de peso.
39. A deformação causada pelo inchaço da boca criou na autora um sentimento de angústia, de perda de auto-estima e de insegurança.
40. Durante cerca de 3 meses após o embate, em consequência das dores que sentia, a autora teve dificuldades em dormir.
41. Durante esse período teve de tomar anti-inflamatórios, nomeadamente Brufen, e analgésicos, nomeadamente Clonix, Tramadol e Dol-U-Ron forte, para além de protectores gástricos.
42. Bem como um antidepressivo, Fluoxetina.
43. Decorridos mais de 18 meses após o início do tratamento ortodôntico, a autora ainda usava o aparelho fixo.
44. Durante esse período a autora sentiu dores, tomando Clonix e Brufen em SOS, nomeadamente nas mudanças de tempo e 2 ou 3 dias por mês, quando ia fazer tratamentos dentários.
45. Durante esse período a autora não conseguia abrir a boca para trincar fruta como maçã ou pêssego e tinha borrachas a prender a arcada superior à arcada inferior.
46. A autora casou no dia 22.08.2017.
47. Nesse dia, por apresentar a ligeira proeminência infra referida em 50 e por estar a usar o aparelho ortodôntico, sentiu-se triste.
48. No período antecedente, pelos mesmos motivos, a aproximação do casamento provocou-lhe um estado depressivo, manifestado por humor lábil e choro.
49. Em virtude do uso prolongado do aparelho ortodôntico fixo, a autora adquiriu pequenas e múltiplas cáries dentárias, que foram tratadas.
50. Em virtude do embate e das lesões sofridas a autora sente dor à pressão digital dos dentes 21 e 22 e apresenta uma proeminência ligeira da gengiva dos mesmos dentes, geradora de alteração da mímica facial e expressão.
51. Em virtude do embate e das lesões sofridas, a autora padeceu de défice funcional temporário total entre 15.02.2017 e 16.02.2017, num total de dois dias.
52. De défice funcional temporário parcial entre 10.02.2017 e 14.05.2017, num total de 87 dias.
53. Com repercussão temporária na actividade profissional entre 15.02.2017 e 14.05.2017, num total de 89 dias.
54. Período durante o qual a autora esteve de baixa, sem trabalhar, não auferindo então qualquer rendimento.
55. A consolidação médico-legal das lesões sofridas pela autora em consequência do embate ocorreu em 14.05.2017.
56. Entre a data do embate e a consolidação das lesões, o quantum doloris da autora foi de grau 3 numa escala crescente de 7.
57. Antes do embate a autora era saudável.
58. Em virtude do embate e das lesões sofridas, a autora ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 0,04 (4 pontos).
59. E de um dano estético permanente de grau 3 numa escala crescente de 7.
60. As sequelas e o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica acima referidos não têm repercussão permanente na actividade profissional nem nas actividades desportivas e de lazer.
61. Em virtude do embate e das lesões sofridas, a autora despendeu em despesas/honorários médicos a quantia de € 3450,01.
62. E em despesas medicamentosas a quantia de € 112,16.
63. Até 3 de Junho de 2017, a autora fez 23 deslocações para tratamentos à clínica dentária, de 38 Km cada, num total de 874 Km.
64. Posteriormente a autora teve que se deslocar, pelo menos, mais 19 vezes à clínica, tendo percorrido 722,00 quilómetros.
65. A autora teve ainda de se deslocar ao Hospital …, no Porto, no que percorreu 160 quilómetros.
66. Para além do tratamento ortodôntico iniciado em 03.03.2017 e da necessidade de colocar coroas fixas em zircónio nos dentes 21 e 22 referida em 33, no futuro a autora irá necessitar de recorrer regularmente a medicação analgésica e anti-inflamatória.
67. A autora nasceu no dia - de Janeiro de 1991.
68. À data do acidente a autora auferia a remuneração mensal de € 557,00, deduzida da taxa social única e acrescida de subsídio de alimentação.
69. Na data da propositura desta acção auferia a remuneração mensal de € 600,00, deduzida da taxa social única e acrescida de subsídio de alimentação.
70. A ré pagou à autora, a título de perdas salariais por ITA, as quantias de € 630,00 e de € 618,91, num total de € 1248,91.
71. A autora recebeu a título de subsídio de doença a quantia de € 238,28.
72. A ré pagou à autora a quantia de € 262,20 relativa a deslocações (23 deslocações de 38 Km x 0,30).
73. E, até Maio de 2017, as quantias de € 278,95, € 330,00 e € 48,17 relativas a tratamentos médicos/hospitalares, num total de € 657,12.
74. Mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ……, a ré assumiu a responsabilidade civil perante terceiros pela circulação do veículo matrícula CA».
*

2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo considerou que «[n]enhum dos restantes factos alegados pelas partes com interesse para a decisão da causa resultou provado, designadamente:

a. Que a condutora do veículo CA imprimisse ao mesmo uma velocidade de cerca de 90/100 Km/h;
b. Que no momento do embate a autora não usasse cinto de segurança;
c. Que como consequência directa do embate supra descrito a autora tenha sofrido dores pelo corpo;
d. Que os cirurgiões que atenderam a autora no dia 16 de Fevereiro pretendessem submetê-la a uma ortopantomografia, mas que não fizeram por não ser comparticipada pelo SNS;
e. Que a autora tivesse formado uma contractura no músculo do maxilar inferior esquerdo;
f. Que a autora ainda tivesse a cara inchada no dia do seu casamento;
g. Que no dia do seu casamento a autora tivesse sentido dores;
h. Que nesse dia tivesse tomado antidepressivos;
i. Que a autora ainda tenha dificuldades na mastigação, na mordida, na oclusão.».
**

2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Indemnização pelo dano biológico questões a) e b)

Nas conclusões 2ª a 10ª das suas alegações, a Recorrente C. R. sustenta que «será devida uma quantia a título de dano biológico, quantia essa que nunca poderá ser inferior a € 20.000,00», alegando que «é um dano autónomo tout court», apresentando essencialmente os seguintes argumentos:
a) «O que está aqui em causa não é o sofrimento ou a deformação corporal em si, mas antes a impossibilidade de utilizar o seu corpo de forma absoluta»;
b) «a afectação da sua potencialidade física determina uma irreversível perda de faculdades da A.»;
c) «O Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-psíquica de quatro pontos de que a A. ficou a padecer é pois um dano corporal, o chamado dano biológico»;
d) «a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psicossomático do que, propriamente, um dano patrimonial»;
e) «a lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afeta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”».

Efectuado o confronto entre as referidas conclusões e a decisão recorrida, verifica-se que todos os aludidos argumentos foram considerados na sentença, seja na fixação da indemnização por danos patrimoniais, seja na determinação do valor da compensação pelos danos não patrimoniais.
O factor indicado no argumento enunciado supra sob a alínea d), sobre o «sofrimento psicossomático», foi considerado na indemnização por danos não patrimoniais. Mais: o Tribunal recorrido considerou expressamente todos os factos que directa ou indirectamente geram o aludido sofrimento, indicando os «descritos nos pontos 16 a 28, 30 a 52 e 55 a 59 dos factos provados». Aliás, como forma de objectivar os danos não patrimoniais, partindo de elementos tangíveis, levou em conta o défice mencionado no argumento c), as lesões e as consequências das mesmas, designadamente das que traduzem uma afectação da integridade física e psíquica ou, noutra perspectiva, ofensa do seu bem “saúde”, tal como enunciado no argumento e). Por conseguinte, a aludida dimensão (insusceptível de avaliação pecuniária) do dano biológico foi considerada na fixação dos danos não patrimoniais, designadamente enquanto referência caracterizadora e concretizadora da situação da Autora.
O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica mencionado em c), com as inerentes «perda de faculdades da A.» (v. b), afectação da «potencialidade física» (v. b), «necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia» (v. d) e «impossibilidade de utilizar o seu corpo de forma absoluta» (v. a), foram expressamente consideradas na determinação da indemnização por danos patrimoniais. Aliás, foram especificamente esses os factores que o Tribunal recorrido valorou para poder fixar tal indemnização, na medida em que se demonstrou, sob o ponto nº 60 da factualidade apurada, que «as sequelas e o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica acima referidos não têm repercussão permanente na actividade profissional nem nas actividades desportivas e de lazer». Quer isto dizer que a sentença, apesar de não resultar do défice de que a Autora padece uma directa perda patrimonial (conforme se refere na decisão recorrida, «a autora não ficou impossibilitada de prosseguir a sua actividade profissional, nem foi afectada por uma efectiva perda de rendimentos»), valorou precisamente o dano biológico na vertente da sua repercussão patrimonial futura. Com efeito, ponderou-se «que o referido défice funcional permanente da integridade físico-psíquica lhe impõe esforços acrescidos para manter a sua ocupação profissional», decorrendo o défice «das dores de que a autora ficou a padecer», «a sua ocorrência torna necessariamente mais penoso o exercício de qualquer profissão, incluindo a de costureira», e, nessa medida, «a lesada ficou efectivamente afectada ou diminuída enquanto “factor produtivo”».
Portanto, o dano biológico foi devidamente valorado e dele se retiraram as devidas repercussões patrimoniais e não patrimoniais.
Sendo verdade que o Sr. Juiz não autonomizou uma indemnização por dano biológico, a esse singelo título, nos termos propugnados pela Autora, a realidade é que considerou todos os reflexos patrimoniais e não patrimoniais do dano biológico. Valorou e expressou as duas apontadas vertentes na indemnização global, não tendo autonomizado um valor nos termos defendidos pela Recorrente.
Acresce que a própria Recorrente não indica como se calcularia o valor autónomo do dano biológico. Apenas aponta para um montante de € 20.000,00, sem indicar os factores, parcelas ou premissas de conteúdo objectivo, diferentes das consideradas nas demais vertentes das indemnizações parcelares fixadas na sentença, que permitiriam efectuar o cálculo e concretizar patrimonialmente um tal dano de forma autónoma, mesmo com um forte recurso a um juízo de equidade.
A circunstância de a Autora não apontar os elementos susceptíveis de permitir o cálculo autónomo de uma tal indemnização também está intimamente ligada à dificuldade que se continua a sentir, tanto na doutrina como na jurisprudência, na delimitação da natureza de tal dano e da forma de o ressarcir, sendo certo que se trata de um conceito importado do ordenamento italiano e que ainda não atingiu, pelo menos entre nós, a devida maturação.
A indemnização do denominado dano biológico é na actualidade uma das questões mais debatidas e que maiores dificuldades coloca ao aplicador do direito. A discussão tem duas dimensões, necessariamente interligadas: por um lado, é objecto de controvérsia a sua natureza e a respectiva qualificação como dano patrimonial, não patrimonial ou como um tertium genus a demandar indemnização por si, independentemente dos danos patrimoniais ou não patrimoniais que lhe estejam associados; por outro lado, não é de menor grau de dificuldade o problema da determinação dos critérios a que deve obedecer a quantificação do dano biológico. Como as duas dimensões não estão dissociadas, em teoria, pode até discutir-se se o dano biológico é uma facti species específica de dano ou uma modalidade especial de cálculo do dano, entre várias outras hipóteses.
Porém, uma questão preliminar se suscita: o que é o “dano biológico”? Importa saber do que estamos a falar quando aludimos a tal conceito (2).
O artigo 25º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa tutela o bem jurídico integridade física e moral das pessoas, que considera inviolável. Por sua vez, o artigo 70º, nº 1, do Código Civil, dispõe que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
Por isso, o dano biológico está necessariamente associado a uma violação da integridade física e psíquica da pessoa. Daí que actualmente seja predominante a ideia de que o dano biológico constitui uma lesão da integridade psicofísica, susceptível de avaliação médico-legal e de indemnização/compensação (3).
Não é este o local adequado para desenvolver exaustivamente a questão da natureza e qualificação do dano biológico, mas parece-nos inequívoco que tal dano tanto tem reflexos patrimoniais como consequências de ordem não patrimonial, ou seja, incidências negativas não susceptíveis de avaliação pecuniária. Como o nosso Código Civil adopta uma fórmula “binária”, que distingue entre danos patrimoniais (v. artigo 562º e seguintes) e danos não patrimoniais (v. artigo 496º), a indemnização das vertentes, incidências ou reflexos do dano biológico – lesão da integridade psicofísica – tem necessariamente de ser realizada dentro dessas duas categorias normativas, com os critérios próprios de cada uma delas, os quais carecem de ser observados. Não é possível atribuir uma indemnização por “dano biológico” fora do quadro estabelecido no Código Civil, como se nele tivesse sido consagrada uma terceira categoria normativa, diferenciada quer dos danos patrimoniais quer dos não patrimoniais, como a certo ponto parece defender a Recorrente.
Também não é possível, como faz a Recorrente noutra parte da motivação das suas alegações, colher, conforme melhor aprouver, elementos patrimoniais e outros não patrimoniais, para construir a indemnização por dano biológico.
Aliás, essa dualidade e incoerência está bem patente quando se confrontam as diversas partes das alegações: por exemplo, na conclusão 6ª sustenta que o dano biológico «mais traduz um sofrimento psicossomático do que, propriamente, um dano patrimonial», apontando – se bem a interpretamos – para a sua qualificação como um “dano não patrimonial”; porém, na motivação das alegações delineia tal dano como susceptível de avaliação pecuniária, fazendo apelo a critérios de cálculo de natureza patrimonial, designadamente quando argumenta que deve ser fixada «uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico – Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica que lhe fixado em 4,00 pontos, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida». Esta vertente patrimonial é ainda mais patente na parte em que afirma tratar-se «de um “dano primário”, do qual, podem derivar, além de incidências negativas não suscetíveis de avaliação pecuniária, a perda ou diminuição da capacidade do lesado para o exercício de atividades económicas, como tal suscetíveis de avaliação pecuniária».
A seguir-se a tese da Recorrente, indemnizar-se-ia duas vezes o mesmo dano. Basta atentar que a possibilidade de privação de futuras oportunidades profissionais e a diminuição da capacidade da Autora para o exercício de actividades económicas esteve precisamente na gênese da fixação em € 15.000,00 da indemnização por défice funcional permanente da integridade físico-psíquica. Isto num caso em que, por um lado, a Autora não ficou impossibilitada de prosseguir a sua actividade profissional, nem foi afectada, ressalvado o período de baixa médica, por uma efectiva perda de rendimentos, pois as sequelas e o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica acima referidos não têm repercussão permanente na actividade profissional nem nas actividades desportivas e de lazer. Não obstante, tal indemnização foi fixada, e bem, de modo a considerar o dano biológico na vertente da sua repercussão patrimonial futura. Este circunstancialismo, por si só, demonstra a falta de razão da Recorrente, pois, a conceder-se uma nova indemnização pela vertente patrimonial do dano patrimonial, estar-se-ia a indemnizar duas vezes a mesma realidade.
Por essa razão, também não pode ser acolhido o argumento subsidiário constante da conclusão 11ª, no sentido de a indemnização por danos patrimoniais «ser aumentada nos referidos € 20.000,00». O mesmo se diga da alternativa constante da mesma conclusão (11ª), quanto ao acréscimo de tal valor aos danos não patrimoniais, pois nesta indemnização já foram consideradas as consequências negativas do dano biológico, conforme atrás expusemos.
Termos em que improcedem as conclusões formuladas sobre estas questões.
*
2.2.2. Indemnização pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica – questões c) e e)

Na sentença arbitrou-se uma indemnização no montante de € 15.000,00 pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica.
Tanto a Autora como a Ré insurgem-se contra o valor fixado a esse título. A Autora pretende que o valor dessa indemnização seja aumentada para € 20.000,00, enquanto a Ré propugna pela sua redução a € 7.000,00.
Está em causa a indemnização devida pelo reflexo patrimonial do dano biológico, na medida em que as sequelas das lesões sofridas no acidente de viação determinaram para a Autora um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 4 pontos, embora sem repercussão permanente na actividade profissional nem nas actividades desportivas e de lazer.
A incapacidade que implica perda de capacidade para o exercício de actividades económicas tem expressão patrimonial (4) e por isso constitui um inequívoco dano patrimonial, que se projecta no futuro de quem o sofre.

A nossa lei refere-se ao dano futuro no artigo 564º do CCiv., nos seguintes termos:

«1. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.
2. Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior».

Como é sabido, em matéria de danos patrimoniais, o princípio geral é o da reconstituição natural, expresso no artigo 562º do CCiv. e, quando esta seja impossível ou inviável (artigo 566º, nº 1, do CCiv.), vale a indemnização em dinheiro, a fixar de acordo com a teoria da diferença, nos termos do artigo 566º, nº 2, do mesmo Código, segundo a qual a indemnização tem como medida, em princípio, a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal (encerramento da discussão em 1ª instância) e a situação hipotética que teria nessa data se não tivesse ocorrido o facto lesivo gerador do dano.
Porém, nos termos do nº 3 do artigo 566º do CCiv., «se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados».
Portanto, a ressarcibilidade dos danos futuros assenta na sua previsibilidade, sendo que a sua determinabilidade ou averiguação do valor exacto dos danos já é um problema distinto, para o qual a lei também tem solução.
No nosso entender, em regra é previsível a ocorrência de danos patrimoniais futuros decorrentes de um défice funcional da integridade físico-psíquica, pelo que a tarefa principal do julgador acaba por ser a do apuramento do valor desses danos.
Como se observa no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 19.04.2018 (5), proferido no processo 196/11.6TCGMR.G2.S1 «a lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afecta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”, dano primário, do qual podem derivar, além de incidências negativas não susceptíveis de avaliação pecuniária, a perda ou a diminuição da capacidade do lesado para o exercício de actividades económicas, como tal susceptíveis de avaliação pecuniária».
Uma incapacidade, desde que não seja em grau despiciendo, dificilmente não gera uma desvantagem para a pessoa que dela sofre. As limitações do corpo ou da mente representam uma perda de aptidão da vítima para se realizar enquanto pessoa nas suas diferentes dimensões e existem sempre, em cada caso concreto, elementos objectivos que nos permitem concretizar, com maior ou menor dificuldade, a expressão patrimonial deste tipo de dano, partindo da avaliação médico-legal. Por isso, o problema não reside propriamente na constatação da existência de uma expressão patrimonial de tal dano, mas sim na definição de critérios que sejam tendencialmente uniformes na quantificação da indemnização a atribuir.
Mais do que tudo, há que tomar uma posição pragmática que não se deixe enredar em discussões axiomáticas sem verdadeira aptidão para resolver os problemas concretos.
Porém, também não podemos deixar de salientar que, segundo o acórdão do STJ de 01.03.2018 (6), «a fixação da indemnização por danos patrimoniais resultantes do “dano biológico” não pode seguir a teoria da diferença (art. 566º,2 do CC) como se tais danos fossem determináveis, devendo antes fazer-se segundo juízos de equidade (art. 566º, 3 do CC)». Como equidade não significa discricionariedade, devem ser levados em conta os factores objectivos que o processo revela, os elementos que são acessíveis à generalidade das pessoas e do conhecimento público como é o caso da esperança média de vida, e os montantes indemnizatórios fixados pelos Tribunais superiores para casos semelhantes, dada a necessidade de segurança jurídica, que exige uma tendencial homogeneidade de decisões e rejeita a disparidade aleatória dos valores das indemnizações.

Nesta conformidade, sendo certo que na fixação da indemnização devida pelos reflexos patrimoniais do dano biológico deve ser ponderada a situação global do lesado, no concreto caso dos autos são especialmente relevantes os seguintes factos:

- (67) A Autora nasceu no dia - de Janeiro de 1991;
- (50) Em virtude do embate e das lesões sofridas, a Autora sente dor à pressão digital dos dentes 21 e 22 e apresenta uma proeminência ligeira da gengiva dos mesmos dentes, geradora de alteração da mímica facial e expressão;
- (55) A consolidação médico-legal das lesões sofridas pela Autora em consequência do embate ocorreu em 14.05.2017;
- (57) Antes do embate a Autora era saudável;
- (58) Em virtude do embate e das lesões sofridas, a Autora ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 0,04 (4 pontos);
- 60) As sequelas e o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica acima referidos não têm repercussão permanente na actividade profissional nem nas actividades desportivas e de lazer;
- (66) No futuro a Autora irá necessitar de recorrer regularmente a medicação analgésica e anti-inflamatória;
- (68) À data do acidente (15.02.2017) a Autora auferia a remuneração mensal de € 557,00, deduzida da taxa social única e acrescida de subsídio de alimentação;
- (69) Na data da propositura desta acção auferia a remuneração mensal de € 600,00, deduzida da taxa social única e acrescida de subsídio de alimentação.

Ponderando todos os apontados elementos, consideramos que bem andou o Tribunal recorrido ao fixar a indemnização pelo reflexo patrimonial do dano biológico no montante de € 15.000,00.
Não existem razões substanciais nem para aumentar aquele quantum indemnizatório, como defende a Recorrente C. R., nem para o reduzir, como sustenta a Recorrente X.

Quanto ao aumento, aduz a Autora que o montante fixado é insuficiente para indemnizar os «danos patrimoniais futuros decorrentes da perda da capacidade de ganho» (conclusão 14ª) e que no seu cálculo «deverá considerar-se a produção de um rendimento durante o tempo de vida previsível da vítima, adequado ao que auferiria se não fosse a lesão correspondente ao grau de incapacidade, e adequado a repor a perda sofrida» (idem).
Esta argumentação é manifestamente improcedente, na medida em que está provado, tal como consta do ponto nº 60 da factualidade apurada, que «as sequelas e o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica acima referidos não têm repercussão permanente na actividade profissional». Significa isto que a Autora não ficou impossibilitada de prosseguir a sua actividade profissional, como costureira, nem foi afectada por uma efectiva perda de rendimentos (desconsiderando os períodos de incapacidade temporária para o trabalho – baixa médica – que se seguiram ao evento danoso, os quais foram objecto de indemnização autónoma e que não se mostra impugnada por via dos recursos em apreciação).
Por isso, ao contrário do sustentado pela Recorrente, a indemnização não visa «repor a perda sofrida» ou a «atribuição de uma quantia em dinheiro que elimine a sua perda patrimonial», pois que não se verificou uma directa perda de rendimentos pelo facto de possuir o apontado défice funcional de 4 pontos. Não se verifica, no sentido exposto, uma diminuição do “ganho”.
Daí que o recurso a tabelas financeiras ou fórmulas matemáticas, preconizado nas conclusões 15ª a 22ª, com base nos elementos aí enunciados, careça absolutamente de justificação. Podendo uma tabela financeira ou fórmula matemática dar algum contributo para «a atribuição de uma quantia em dinheiro que produz o rendimento mensal perdido», como aduz a Autora, já o seu relevo será nulo numa situação como a dos autos em que inexiste «rendimento mensal perdido».

No que respeita à redução da indemnização fixada na sentença, a Recorrente X alicerça-a na alegação de que «as sequelas de que a Autora ficou a padecer não implicam esforços acrescidos, resultando expressamente dos factos provados que o défice de 4 pontos não têm qualquer repercussão na atividade profissional nem nas atividades lúdicas e de lazer» (conclusão 2ª). Como «o Défice Funcional Permanente de que a Autora ficou a padecer não acarreta qualquer constrangimento na sua atividade profissional nem que a mesma esteja condicionada no exercício de qualquer atividade lúdica, nunca a compensação pelo dano biológico, seja qual for a sua vertente, possa ascender a um montante superior a €7.000,00» (conclusão 7ª).
É inteiramente conforme com a realidade espelhada nos autos a alegação de que as sequelas e o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de que a Autora ficou a padecer não têm repercussão permanente na sua actividade profissional.
Porém, essa é uma parte da realidade, mas não traduz toda a realidade.
Em primeiro lugar, o que se deu como provado foi que as lesões e o apontado défice não têm “repercussão permanente”, ou seja, sempre – a todo o tempo e em qualquer circunstância –, o que não afasta a possibilidade de ter alguma repercussão não permanente.
Em segundo lugar, foi dado como provado outro facto muito relevante e que complementa aquele: no futuro a Autora irá necessitar de recorrer regularmente a medicação analgésica e anti-inflamatória (ponto nº 66 da factualidade provada). Como tal recurso a medicação será regular, irá manter-se previsivelmente durante toda a vida e não terá natureza esporádica ou simplesmente ocasional. Por conseguinte, necessitará regularmente dessa medicação.
Mas também um leigo sabe que a medicação analgésica se destina a reduzir a percepção da dor (acalma ou reduz a dor), pelo que desde já se pode dar por adquirido que a Autora, em razão das sequelas das lesões sofridas no acidente, padecerá regularmente de dores. Uma vez que a medicação anti-inflamatória, como resulta da sua própria designação, se destina a combater a inflamação de tecidos do corpo, daí podemos deduzir que durante a sua vida futura a Autora vai recorrentemente – “regularmente” se nos quisermos cingir ao texto do próprio ponto factual aqui em causa – desenvolver processos inflamatórios.
Ora, se a Autora vai regularmente ter inflamações e dores, com a inerente necessidade de tomar medicação para as debelar ou atenuar, é possível presumir, como qualquer homem de mediana inteligência e discernimento faria, que essas patologias, quando se manifestarem, «lhe impõe[m] esforços acrescidos para manter a sua ocupação profissional», tal como se concluiu na sentença. Se tem e terá regularmente inflamações e dores ao trabalhar, naturalmente que isso afecta a Autora, em termos de sofrimento físico, e obriga-a a fazer um esforço acrescido para desenvolver a sua actividade laboral.
Daí que nos pareça inteiramente curial o juízo valorativo formulado na sentença: «ainda que estas dores possam não ter um carácter permanente, a sua ocorrência torna necessariamente mais penoso o exercício de qualquer profissão, incluindo a de costureira».
Por isso, salvo o devido respeito, é imerecida a crítica constante da conclusão 3ª, sobre o «ficcionar os esforços acrescidos no desempenho da atividade profissional da autora». Atente-se que a conclusão extraída pelo Tribunal recorrido está em consonância com o resultado do relatório pericial, onde se afirma que as sequelas, com base nas quais se avaliou a perda funcional, «não afectando a examinada em termos de autonomia e independência, são causa de sofrimento físico».
Em suma: os dois factos – pontos nºs 60 e 66 – são complementares e estão interligados, pelo que é indispensável considerar ambos para conseguirmos ter inteira percepção da globalidade da situação da Autora.

Posto isto, importa não perder de vista que a aludida indemnização foi fixada em € 15.000,00 tendo em vista o ressarcimento global do reflexo patrimonial do dano biológico e não para apenas indemnizar a singela componente destacada no recurso subordinado. A indemnização tem duas componentes e não apenas uma, ao contrário do que a Recorrente parece pressupor.
Por um lado, ponderou-se, com inteiro acerto, que «a lesada ficou efectivamente afectada ou diminuída enquanto “factor produtivo”» e que essa incidência negativa tem efeitos económicos, pois, se «perder o seu emprego (…) e pretender candidatar-se a outro lugar, é muito provável que fique, logo à partida, em situação de desvantagem relativamente a outros candidatos que não padeçam do mesmo défice funcional. No já referido contexto de crise económica e escassez de empregos, isto pode mesmo inviabilizar ou dificultar seriamente a obtenção de novo emprego. Mas mesmo num quadro de manutenção do emprego esta asserção mantém a sua validade, na medida em que o défice funcional poderá constituir um entrave sério (ou mesmo decisivo) na obtenção de prémios de produtividade, promoções profissionais, etc.» (7).
Portanto, o défice funcional da Autora, ponderadas as sequelas que estão na base da sua fixação, emergentes, essencialmente, das dores de que ficou a padecer, representa uma desvantagem e previsivelmente determinará, com grande probabilidade, dificuldades quer na progressão na sua actual carreira profissional de costureira e na obtenção de acréscimos salariais (realização de trabalho suplementar, obtenção de prémios de produtividade, entre outros), quer numa eventual mudança para um outro emprego, tudo se resumindo a uma perda de oportunidades profissionais. Como é evidente, trata-se de um dano que, sendo previsível que ocorra durante a vida activa da Autora (recorde-se que tem agora 30 anos e que tinha 26 anos de idade à data do acidente, pelo que se está a falar de um período de cerca de 40 anos), não é concretamente determinável, pois ninguém consegue agora dizer quando e como se efectivará essa desvantagem resultante das sequelas. Por isso, essa componente do dano patrimonial deve ser fixada recorrendo a um juízo de equidade (art. 566º, nº 3, do Código Civil).
Por outro lado, como dano futuro, a integrar a indemnização ora em apreciação, o Tribunal recorrido considerou o valor da medicação analgésica e anti-inflamatória de que a Autora irá necessitar regularmente, até ao fim da sua vida, ou seja, atendendo à actual esperança de vida das mulheres, durante um período superior a 50 anos.
Trata-se de um dano perfeitamente previsível à luz dos factos provados, mas cujo valor é indeterminável, pois, como bem se destacou na sentença, «além de se desconhecer quantas vezes por mês ou por ano terá de fazer tal medicação, bem como os respectivos preços, seria totalmente desrazoável, por se traduzir num ónus desproporcionado para ambas as partes, aguardar por cada aquisição de um analgésico ou de um anti-inflamatório para exigir o respectivo valor à ré».
Além disso, «não se justifica distinguir este dano patrimonial futuro do dano patrimonial decorrente do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de que a autora ficou a padecer, o qual, como decorre do relatório pericial efectuado, assenta precisamente no sofrimento físico causado pelas sequelas».
Daí a inteira justificação da fixação de uma única indemnização para ressarcir os danos patrimoniais futuros, enquanto reflexo do dano biológico de natureza económica.
Tendo a indemnização por base as duas mencionadas bases factuais, o valor de € 15.000,00 é o adequado a indemnizar o reflexo patrimonial futuro do dano biológico, segundo juízos de equidade, numa ponderação global de todos os factores, entre os quais aqueles que as partes salientaram no recurso.
Se é certo que um tal montante seria em princípio exagerado enquanto compensação à Autora pela desvantagem patrimonial que as sequelas lhe vão causar no exercício de uma actividade económica, já nos parece adequado se destinado a também indemnizar a lesada pelo valor da medicação analgésica e anti-inflamatória que terá de despender até ao fim da sua vida, durante um período previsivelmente superior a 50 anos.
Não encontramos na jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça casos idênticos ao dos autos, mas apenas alguns em que é possível estabelecer um certo paralelismo, com o inerente risco de se estar a comparar situações que não são iguais.
Por isso, a mero título de exemplo, aponta-se o acórdão de 16.11.2017, proferido no processo 9142/13.1TBVNG.P1.S1, relatado por Fonseca Ramos, assim sumariado na parte relevante: «Tendo em conta que (i) como consequência do acidente, o autor sofreu vários traumatismos (no punho direito e na região lombar); (ii) ficou, a partir da alta clínica, com um grau de incapacidade permanente parcial de 5% pela tabela nacional de incapacidades para acidentes de trabalho; (iii) tinha, à data do acidente, 34 anos de idade; (iv) auferia a retribuição anual de € 46 667,50 e (v) necessita de ajuda medicamentosa permanente; é de atribuir, pelo dano biológico sofrido, na vertente de dano patrimonial, a indemnização de € 20 000 (rejeitando, assim, o entendimento vertido no acórdão recorrido que considerou inexistir dano)».
Sendo a situação dos autos menos grave, tanto no que respeita à incapacidade, às sequelas (naquele acórdão estão em causa sequelas ao nível do punho direito e da região lombar) como à ajuda medicamentosa (que ali é permanente e aqui é simplesmente regular, face às recorrentes inflamações e inerentes dores) e que o lesado auferia uma retribuição de € 46.667,50 (que compara com a retribuição anual da aqui Autora/Recorrente no valor de € 7.798,00 – a retribuição mensal à data do acidente era de € 557,00 e de € 600,00 à data da propositura da acção), o valor da indemnização fixada nos presentes autos parece estar em consonância com o critério do nosso mais alto Tribunal.
O mesmo paralelismo pode ser estabelecido relativamente ao acórdão do STJ de 22.05.2018, proferido no processo 1032/11.9TVLSB.L1.S1, relatado por Pedro Lima Gonçalves, sumariado do seguinte modo na parte referente ao dano biológico: «Mostra-se razoável, adequado e justificado, o montante indemnizatório do dano biológico, encontrado pela Relação, com recurso à equidade, de € 17 500, considerando que, em consequência do acidente, o autor ficou afetado de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em cinco pontos, o qual representará um dispêndio de maior esforço diário no desempenho das mais diversas tarefas da vida e das tarefas profissionais».

Termos em que improcedem as conclusões de ambos os recursos sobre esta matéria.
*

2.2.3. Indemnização por danos não patrimoniais – questão d)
A Autora, no âmbito do seu recurso, defende que deve ser aumentada a compensação pelos danos não patrimoniais, para o valor de € 30.000,00, alegando que a quantia fixada a esse título, no montante € 14.000,00, «peca manifestamente por escassa» (conclusão 23ª).

Segundo o nº 1 do artigo 496º do CCiv., são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objectivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade humana.
Cumprido o critério da gravidade dos danos, o montante da indemnização, nos termos do nº 4 do artigo 496º, deve ser fixado pelo tribunal com recurso à equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494º, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos.
Os danos não patrimoniais, por natureza insusceptíveis de avaliação em dinheiro devido a não atingirem bens integrantes do património do lesado, incidem sobre bens como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a beleza, a liberdade, a honra, o bom-nome, a reputação, da afectação dos quais resulta o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação. Na feliz síntese feita no acórdão do STJ de 15.01.2002 (proc. 4048/01 - 2ª Secção), os componentes mais importantes do dano não patrimonial, são os seguintes: o “dano estético” - que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; o “prejuízo de afirmação social” - dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissio­nal, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica); o prejuízo da “saúde geral e da longevidade” - em que avultam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valo­riza os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida; e o “pretium juventutis” - que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida; e o “pretium doloris” - que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária.
Como os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados mesmo por equivalente, sendo possível, todavia, em certa medida, compensar o dano mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro, isto é, trata-se de proporcionar ao lesado uma compensação monetária que, de algum modo, alivie os sofrimentos que o facto lesivo lhe provocou, ou lhos faça esquecer. O seu ressarcimento assume, por isso, uma função essencialmente compensatória.
Na concreta determinação do quantitativo da compensação, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo e procurar alcançar uma aplicação tendencialmente uniformizadora – ainda que evolutiva – do direito, devem ser considerados os padrões indemnizatórios geralmente adoptados na jurisprudência em casos análogos (8).

No caso dos autos, há que considerar o conjunto de factos descritos nos pontos nºs 16 a 67 dos factos provados.
Merecem particular relevo, para a fixação do valor da indemnização por danos não patrimoniais, (i) as concretas lesões sofridas pela Autora no acidente (a. traumatismo da face, lado esquerdo; b. traumatismo da região mandibular; c. traumatismo alvéolo-dentário; d. intenso edema labial superior; e. dor à percussão dos dentes 21 e 22); (ii) os exames médicos e tratamentos a que foi submetida, assim como as deslocações que teve de fazer para o efeito; (iii) o período que mediou entre o acidente (15.02.2017) e a consolidação médico-legal das lesões (14.05.2017); (iv) o défice funcional temporário total entre 15.02.2017 e 16.02.2017, num total de dois dias; (v) défice funcional temporário parcial entre 10.02.2017 e 14.05.2017, num total de 87 dias; (vi) o défice da integridade física e psíquica de 4 pontos de que ficou a padecer permanentemente; (vii) as dores físicas sofridas pela Autora (e as que vai continuar a sofrer), quantificáveis como de grau 3, numa escala de 1 a 7 no período entre a data do embate e a consolidação das lesões, sendo de destacar que durante mais de um mês teve a boca inchada (ponto nº 36) e, nesse período, teve dificuldades de mastigação, apenas comendo alimentos líquidos ou ralados (ponto nº 37), originando uma perda de peso de cerca de 7 ou 8 kg (ponto nº 38), que durante os 3 meses posteriores ao acidente, devido às dores, teve dificuldades em dormir (ponto nº 40) e que durante mais de 18 meses após o início do tratamento ortodôntico continuou a sentir dores, tomando Clonix e Brufen em SOS, nomeadamente nas mudanças de tempo e 2 ou 3 dias por mês, quando ia fazer tratamentos dentários (ponto nº 44); (viii) a desfiguração inicial da sua face devida ao inchaço do lábio e a ligeira saliência da gengiva de que ficou a padecer, geradora de alteração da mímica facial e expressão, consubstanciando um dano estético de grau 3 numa escala de 7; (ix) a dificuldade em controlar o processo infeccioso desencadeado pelo embate e os tratamentos, incluindo medicação, a que teve de se sujeitar, bem como a regressão dos resultados do tratamento ortodôntico a que se havia submetido em 2014/2015 e a necessidade de novo e prolongado tratamento, gerador de cáries dentárias; (x) a tristeza que lhe causou a circunstância de, no dia do seu casamento, em 22.08.2017, ostentar a já referida proeminência e usar aparelho ortodôntico; (xi) o processo depressivo ocorrido nos três meses subsequentes ao embate e no período antecedente ao casamento, que a levaram a tomar medicação antidepressiva; (xii) a actual e futura necessidade de recorrer regularmente a medicação analgésica e anti-inflamatória (ponto nº 66); (xiii) a idade da Autora à data do acidente, que era de 26 anos (nasceu a 3 de Janeiro de 1991); (xiv) a inexistência de repercussões das sequelas nas actividades desportivas e de lazer.


Para situações parecidas ou comparáveis com a dos autos ou que, pelo menos, nos permitem estabelecer algum paralelismo, apontam-se os seguintes exemplos de valorização de danos não patrimoniais pelo Supremo Tribunal de Justiça (sendo um dos exemplos menos grave que o caso dos autos e os demais mais graves):

- O acórdão do STJ de 16.12.2020, proferido no processo 6295/15.8T8SNT.L1.S1, relatado Maria da Graça Trigo, confirmou a indemnização de € 25.000,00 fixada na Relação a um sinistrado em acidente de viação que à data do acidente tinha 43 anos, que sofreu fratura da tíbia e do perónio, com dores de grau 5 numa escala de 7, dano estético de 4, 17 meses de incapacidade (total e parcial), tendo ficado afectado com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6 pontos.
- O acórdão do STJ de 06.12.2017, proferido no processo 559/10.4TBVCT.G1.S1, relatado Maria da Graça Trigo, confirmou a indemnização de € 15.000,00 fixada na Relação a uma sinistrada em acidente de viação ocorrido em Dezembro de 2008 que na altura tinha 31 anos, que sofreu traumatismo cervical; realizou fisioterapia até Abril de 2009; incapacidade temporária durante 5 + 106 + 111 dias; usou colar cervical durante dois meses; vai ter necessidade de ingerir medicação analgésica e anti-inflamatória, ao longo de toda a sua vida, num máximo de 2 comprimidos por dia e durante 15 dias em cada mês; o quantum doloris ascendeu ao grau 4, numa escala de 1 a 7; não resulta da análise dos factos um dano estético; ficou afectada com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 2 pontos; apresenta cervicalgias; as sequelas são, em teremos de repercussão permanente na actividade profissional, compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicam esforços suplementares ligeiros.
- O acórdão do STJ de 25.02.2021, proferido no processo 3014/14.0T8GMR.G1.S1, relatado por Bernardo Domingos, confirmou a indemnização de € 25.000,00 fixada na Relação a um autor que em consequência de acidente de viação sofreu um traumatismo crânio-encefálico com ferida na testa e lesão no tornozelo esquerdo, subsistindo, mesmo após intervenção cirúrgica, cicatriz na testa e a falta de total recuperação do tornozelo; teve um período de incapacidade temporária absoluta de 113 (dias) e 194 (dias) de incapacidade temporária parcial; foi-lhe fixada uma incapacidade permanente parcial de 6% que lhe afecta as suas capacidades gerais físico-psíquicas, exigindo-lhe maior esforço na execução das suas atividades pessoais e profissionais; quantum doloris de 5 pontos numa escala de 7; 4 pontos de dano estético; afetado nas suas atividades desportivas e de lazer em 2 pontos; sofreu, no momento do acidente, a angústia de vir a morrer e tem desgosto de ter ficado com a cicatriz na testa, o que o inibe, socialmente.
- No acórdão do STJ de 25.09.2018, proferido no processo 2172/14.8TBBRG.G1.S1, relatado por Roque Nogueira, foi atribuída a quantia de € 20.000,00, respeitante a danos não patrimoniais, a uma lesada com 28 anos de idade à data do acidente de viação, politraumatizada com múltiplas lesões e contusões traumáticas, fractura da extremidade distal do úmero direito; 253 dias de repercussão temporária na actividade profissional (ajudante de acção educativa); défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 5 pontos, que implica esforços acrescidos e suplementares no seu dia-a-dia, conquanto não a impeça de exercer a sua atividade normal, implica esforços suplementares, o que é de molde a influir negativamente na sua produtividade; quantum doloris de grau 4 numa escala de 7; dano estético de grau 2, uma vez que em consequência das fracturas e lesões, advieram para a autora cicatrizes e deformidades a nível do ombro e cotovelo direitos, que causam à autora desgosto e inibição e a desfavorecem esteticamente, designadamente quando se desloca no verão à praia, quando coloca uma camisa de manga curta, quando coloca um fato de banho, quando se coloca ao sol e quando se relaciona amorosamente com o seu marido.

Comparada a situação da Recorrente C. R. com a dos lesados a que se referem os acórdãos supra mencionados, detecta-se uma ligeira divergência, para menos, em relação aos padrões indemnizatórios seguidos pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Por isso, o quadro factual que acima enfatizamos – destacando-se, sobretudo, as lesões que a Autora sofreu em resultado do acidente, com as inerentes dores e incómodos que teve de suportar em consequência das mesmas e dos tratamentos a que teve de se submeter, e bem assim as sequelas de que ficou a padecer (v. sobretudo as inflamações e dores que continuará regularmente a ter e o dano estético emergente da saliência da gengiva de que ficou a padecer, geradora de alteração da mímica facial e expressão) – justifica que a compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela Autora seja fixada em € 17.000,00 (dezassete mil euros).
**

2.3. Sumário

1 – Não é de censurar a fixação em € 15.000,00 da indemnização pelo reflexo patrimonial futuro do dano biológico numa situação em que a autora, de 26 anos de idade, costureira, ficou a padecer de défice permanente da integridade física e psíquica de 4 pontos, sem repercussão permanente na actividade profissional, mas que sempre necessitará de recorrer regularmente a medicação analgésica e anti-inflamatória, e auferia uma remuneração mensal de € 557,00 à data do acidente e de € 600,00 à data da propositura da acção, em ambos os casos deduzida da taxa social única e acrescida de subsídio de alimentação.
2 – Na concreta determinação do quantitativo da compensação dos danos não patrimoniais, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo e procurar alcançar uma aplicação tendencialmente uniformizadora – ainda que evolutiva – do direito, devem ser considerados os padrões indemnizatórios geralmente adoptados pela jurisprudência em casos análogos.
3 – É adequada, segundo um juízo de equidade, a fixação da indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 17.000,00 a lesada de 26 anos de idade que ficou a padecer de défice permanente da integridade física e psíquica de 4 pontos, sem repercussão das sequelas nas actividades desportivas e de lazer, dores físicas quantificáveis de grau 3, numa escala de 1 a 7, dano estético de grau 3/7 e futura carência regular de ajuda medicamentosa analgésica e anti-inflamatória.
***
III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em:
3.1. Julgar parcialmente procedente a apelação da Autora e, em consequência, alterando-se o ponto 1 do dispositivo da sentença, condena-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 35,680,40 (trinta e cinco mil, seiscentos e oitenta euros e quarenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar desde a data desta decisão e até integral pagamento no que respeita ao valor de € 17.000,00 (dezassete mil euros), e mantendo-se em tudo o mais a sentença.
3.2. Julgar improcedente o recurso subordinado da Ré.
Custas da apelação da Autora na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário.
As custas da apelação da Ré serão suportadas por esta.
*
*
Guimarães, 30.09.2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)



1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. O conceito de “dano biológico” não é inteiramente unívoco, sendo por vezes usado para designar diferentes realidades. Por exemplo, há quem o use para designar uma realidade restrita, que é a lesão na integridade física ou psíquica do indivíduo que não produz consequências negativas sobre o seu rendimento. Nesse sentido conceptual restrito, há quem defenda que a respectiva indemnização – em rigor, compensação – deve ser liquidada de igual modo para todos os lesados, distinguindo-os apenas em função da idade e da gravidade da incapacidade, temporária ou permanente. Esta tese igualitária está a fazer o seu caminho e já conta em Portugal como vários defensores (v., a título de exemplo, Rita Mota Soares, O dano biológico quando da afectação funcional não resulte perda da capacidade de ganho – o princípio da igualdade, Revista Julgar, nº 33, págs. 121-135).
3. Ac. da Relação de Lisboa de 22.11.2016, proc. 1550/13.4TBOER.L1-7, relator Pires de Sousa.
4. No sentido de ter consequências patrimoniais, susceptíveis de avaliação pecuniária.
5. Relatado por António Piçarra, disponível em www.dgsi.pt, tais como todos os demais que se citarem sem indicação da respectiva fonte.
6. Relatora Maria da Graça Trigo.
7. Uma limitação funcional ou fisiológica resulta, em regra, numa perda de utilidade proporcionada pelo bem corpo e isso tem implicações patrimoniais, actuais e futuras, emergentes, por exemplo, da necessidade de escolha de profissão mais adequada à incapacidade existente, da dificuldade em estabelecer uma carreira profissional e em progredir nela, da perda de oportunidades profissionais e, em geral, de todos os actos que sejam afectados pela diminuição da condição física, resistência e capacidade de realizar esforços por parte do lesado.
8. Deve considerar-se preponderante a jurisprudência do STJ, dada a natureza da sua intervenção e a função de uniformização da jurisprudência.