Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4289/20.0T8BRG-A.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: LEGITIMIDADE DAS PARTES
ACTOS DE ADMINISTRAÇÃO ORDINÁRIA DO CÔNJUGE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

Conforme decorre do art. 30º, do Código de Processo Civil, a (i)legitimidade das partes será apurada em função do pedido e da causa de pedir (tal como os apresenta o autor), pois só em função desses dois elementos é possível averiguar do interesse directo, da utilidade ou prejuízo resultantes da acção.
Apesar da instrumentalidade e dependência da providência cautelar em relação à acção definitiva, é acertado pressupor o apuramento autónomo dessa legitimidade para a mesma, à luz da causa de pedir e pedido exclusivos daquela.
Se essa providência se concretiza em pedidos que se inserem nos actos de administração ordinária do cônjuge, tal como a admite, v.g., o art. 1678º, nº 3, do Código Civil, ou cabe na previsão residual do art. 1679º, do mesmo Código, estamos fora do âmbito da norma do art. 34º, nº 1, do Código de Processo Civil, ou seja, não existe litisconsórcio necessário e qualquer um dos cônjuges pode, isoladamente, demandar outrem para os exercitar judicialmente.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

Recorrente(s): C. S.,

Recorrido(s): CONDOMÍNIO DO PRÉDIO SITO NA RUA … Braga

1. RELATÓRIO

A Autora/Requerente instaurou o processo principal, processo comum contra o Réu, aqui Recorrido, pedindo, entre o mais, a sua condenação a: “a) realizar as obras de reparação/supressão/rectificação e eliminação da causa das infiltrações nas partes comuns do prédio, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, a contar da citação para a presente acção, com todas as consequências legais; b) realizar as obras de reparação/supressão/rectificação e eliminação das manifestações dos danos existentes na fracção da Autora, supra identificados, colocando-a no estado em que se encontrava antes das referidas manifestações, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, a contar da citação para a presente acção com todas as consequências legais; 1) Ou, em alternativa ao peticionado em a) e b), caso se comprove que tais danos não podem ser eliminados, ser o Réu condenado a pagar à Autora a quantia que vier a ser apurada na supra referida Perícia e, posteriormente, liquidada em execução de sentença, a título de danos patrimoniais sofridos com a sua descrita actuação, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, com todas as consequências legais; c) pagar à Autora, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos e causados com a sua descrita actuação, a quantia de €55,00 (cinquenta e cinco euros), relativos aos danos no casaco da Autora e respectiva limpeza, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, com todas as consequências legais; d) pagar à Autora, a título de indemnização pela privação do uso do quarto, quantia nunca inferior a €5.000,00 (cinco mil euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, com todas as consequências legais; e) pagar à Autora, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos e causados com a sua descrita actuação, a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, com todas as consequências legais; f) pagar à Autora, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na realização das obras supra referidas, a contar do prazo fixado em 50.º, a quantia de €50,00 (cinquenta euros)/dia, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, com todas as consequências legais.
Nessa instância a Autora alegou que habita na fracção referida desde 1997, juntamente com o seu marido e um filho, maior, e reconheceu que a fracção em causa é um bem comum do casal.

Nesta providência, que agora corre por apenso a essa acção, formula a mesma Demandante/Apelante os seguintes pedidos:

NESTES TERMOS, e nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, e não só pelo alegado, mas também pelo mais alto critério de V. Exa., se requer a V. Exa. se digne ordenar ao Réu/Requerido:

a) a imediata realização das obras de reparação/supressão/rectificação e eliminação da causa das infiltrações nas partes comuns do prédio, designadamente, no telhado e nas fachadas do edifício, sem prejuízo de outras onde tal reparação seja necessária, com todas as consequências legais;
b) a imediata realização as obras de reparação/supressão/rectificação e eliminação das manifestações dos danos existentes na fracção da Autora, supra identificados, colocando-a no estado em que se encontrava antes das referidas manifestações, com todas as consequências legais;
c) no pagamento à Autora, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na realização das obras referidas em a) e b), a contar da presente data, a quantia de €50,00 (cinquenta euros)/dia, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, com todas as consequências legais;
d) MAIS SE REQUER que a presente providência seja decretada e, consequentemente, imediatamente deferida, dispensando-se a audição prévia do Réu/Requerido.

Em oposição, o Requerido invocou a excepção dilatória de ilegitimidade passiva da Requerente/Apelante, invocando o dispositivo do art. 34º, nº 1, do Código de Processo Civil.
A Requerente respondeu alegando que estamos perante responsabilidade civil extracontratual que não cabe no referido preceito e ainda o disposto nos arts. 1682º-A, nº 2, e 1679º, do Código de Processo Civil e, por isso, defende a improcedência da excepção invocada.

No processo principal, a Ré/Apelada suscitou a mesma excepção.
Em contraditório a Autora/Apelante pediu a intervenção provocada do ainda marido, o que foi deferido pelo Tribunal, argumentando, além de mais, que, sic: “a legitimidade da autora está dependente da intervenção do comproprietário do imóvel identificado na petição inicial. A intervenção do comproprietário do dito imóvel é, assim, indispensável para a legitimidade activa da autora.”

Neste autos, o Tribunal recorrido decidiu, sic:

“Neste contexto, recusando a requerente, por meras razões de celeridade processual, a intervenção do seu marido nos presentes autos, apenas nos resta julgar procedente a invocada excepção dilatória da ilegitimidade activa e, em consequência, absolvo o requerido da instância - cfr. artigos 30.º, 34.º, nº 1 e 278º, nº1, al. d), do C.P.C.. Custas pela requerente.

Inconformada com esta decisão, a Requerente, acima identificada, apresentou recurso da mesma, que culmina com as seguintes
Conclusões.

1a - No entender da requerente, assiste-lhe legitimidade para demandar na presente providência cautelar desacompanhada do seu marido, vista a regra contida no artº 34°, nº 1 do C.P.Civil;
2a - Como ensina o Prof. Lebre de Feitas, por este preceito exige-se "por um lado, que normas de direito substantivo exijam a intervenção de ambos em negócios jurídicos de disposição, ou semelhantes, do direito a que a acção se reporta e, por outro, que considerado o objecto do processo, a eventual improcedência do pedido tenha (em virtude da formação de caso julgado) um resultado equivalente à perda ou oneração (ou a certas limitações) desse direito (no pressuposto de que existisse), seja ele um direito real ("perda ou oneração de bens'; ou um direito de outra natureza ''perda de direitos'; (cf. Antunes Varela, Manual cit., ps. 174-175 r
3a Ora, não é o caso dos presentes autos: estamos na presença de factos que fundamentam a responsabilidade civil extra contratual, de que resultaram danos (de natureza patrimonial), que se pretendem ver reparados por via cautelar;
Não ocorre qualquer risco de perda da casa de morada de família ou de direitos que só por ambos (casal) relativamente a ela possam ser exercidos, antes, verificado os pressupostos processuais do decretamento da providência, se pede sejam reparados danos que se verificam.
4a Por outro lado, Considerando as regras de direito substantivo respeitantes aos poderes de administração de bens do casal, a exigência de efectivação da responsabilidade civil tal qual consta do processo, reveste a natureza de um ato de administração ordinária ¬Cfr. art° 1682°-A, nº 2, do C. Civil "à contrario sensu" -.
5a Mas, ainda por outro lado, mesmo a não entender assim, o art° 1679° do C. Civil, sempre legitimaria a posição processual da Recorrente para os autos, visto a urgência de uma providência que suste e repare os danos alegados e a impossibilidade de, em tempo útil, se fazer intervir o cônjuge dada a sua ausência, como ficou articulado no requerimento inicial.
6a Acresce que o Tribunal "A Quo" ao decidir pela procedência da excepção de ilegitimidade sem que, previamente, interpelasse a requerente para suprir tal irregularidade processual, cometeu uma nulidade.
7a Com efeito, por força das disposições dos art-s 6°, nº 2 e 590°, nº2, a) do CPC., o Juiz esta obrigado a promover o suprimento da falta de pressupostos processuais, em ordem à realização da justiça material que o direito visa.
8a A omissão de um ato que a lei determina, é causa de nulidade - art° 195°, nº 1, do CPC-.
9a Por tal, a entender-se carecer a requerente de legitimidade, deverá a douta decisão ser revogada, para que a requerente seja convidada a fazer intervir o seu cônjuge em ordem à regularização da instância.
10a A decisão em recurso fez errada ou deficiente interpretação e violou as normas previstas nos art°s 34°, nº 1, 6°, nº 2, 590°, nº 2, a) e 195°, nº 1, todas do CPC, e dos art°s 1679° e 1682°-A, nº 2 "a contrario sensu", do C. Civil.
Nestes termos e nos que melhor, por certo, V.Exas suprirão, deve o presente recurso ser provido, julgando-o em conformidade à alegação exposta, na certeza de que se fará, como sempre

A Apelada não alegou.

2. QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. (1) Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas (2) que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas. (3)
As questões enunciadas pelo/a(s) recorrente(s) podem sintetizar-se da seguinte forma: saber se a Requerente tem legitimidade activa para aqui demandar o Requerido.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.2. FACTOS A CONSIDERAR

Resulta dos autos o seguinte factualismo relevante:
A Requerente identifica-se como sendo casada, no regime de comunhão de adquiridos, separada de facto há vários anos do marido, residente no estrangeiro.

Alega urgência em requerer a presente providência desacompanhada do marido e ainda, que, sic:
“7. Ademais, tal qual se deixou expresso em sede de acção principal, a Autora/Requerente actua sobre o referido imóvel com animus de verdadeira e exclusiva proprietária, como se tal imóvel lhe pertencesse por inteiro, apesar de não ter havido ainda partilha dos bens comuns do casal.
8. A corroborar tal facto, está a circunstância de ser a Autora/Requerente a suportar todos os encargos inerentes à conservação e manutenção daquele imóvel e, bem assim, à circunstância de ter sido sempre a Autora/Requerente a estar presente nas reuniões de condomínio e ter sido, ela própria, a denunciar os danos verificados no seu imóvel.
9. Na verdade, é a Autora/Requerente que tem suportado e visto agravar os danos que a água da chuva tem causado ao seu imóvel, mais concretamente, ao quarto do seu filho, e é a Autora/Requerente que tem suportado o risco que tais danos causam à sua saúde, conforto e bem-estar.”
12. A Autora/Requerente é dona e legítima possuidora da fracção autónoma, designada pela letra "Q”, correspondente a um apartamento, no ..º andar …, lado nascente, tipo T3, destinado a habitação, sito no n.º 20 do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número … da Freguesia de Braga (…) e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo …, cfr. Doc.1 junto com a Petição Inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
13. Conforme se deixou descrito na Petição Inicial, a partir de Março de 2018, começaram a verificar-se infiltrações de águas pluviais no imóvel da Autora/Requerente, provindas do exterior do prédio, designadamente, do telhado e da fachada correspondente do edifício.
14. Tais infiltrações têm causado na fracção, designadamente, no quarto do filho da Autora/Requerente, fissuração nas paredes e tectos, manchas de humidade, pintura descascada, bolores, fungos, maus cheiros e vestígios de humidade nos aros da janela do quarto (cfr. Doc.2 junto com a Petição Inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido).
15. Uma vez que o imóvel da Autora/Requerente se encontra implantada no piso superior do edifício (último andar), a água que atingiu o telhado e a fachada infiltrou-se para o referido quarto,
16. danificando-o da forma descrita em 14.) e,
17. impedindo que o filho da Autora/Requerente, desde essa data e até hoje, lá possa permanecer, descansar ou dormir.
18. Com efeito, o filho da Autora/Requerente, desde muito jovem, sofre de problemas de asma e rinite alérgica, sendo gravemente prejudicial à sua saúde qualquer permanência naquela divisão, ainda que de curta duração, sob pena de ver piorado o seu estado de saúde.
19. Tal qual previsto pela Autora/Requerente, o desenrolar do Inverno e a chuva que tem caído nas últimas semanas, agravaram de forma manifesta aquelas referidas infiltrações, estando já a chegar junto do roupeiro (no lado oposto), conforme melhor decorre das fotografias que se juntam sob o Doc.1 a 8.
20. Do referido registo fotográfico, é possível ver que a água já escorre abundantemente pelas paredes do quarto, formando uma linha de água que, em dias de chuva intensa, flui sem cessar.
21. É possível ver, igualmente, o agravamento das fissuras nas paredes e a larga extensão da humidade que começa a alastrar por todas as paredes e tecto do quarto.
22. Não tendo havido, até ao momento, qualquer intervenção no telhado, nem na fachada do edifício, as referidas infiltrações estão, como se vê, a afectar sobremaneira o quarto do filho da Autora/Requerente, temendo-se que estejam já a afectar, de forma irreversível, a própria estrutura interna daquelas paredes e tecto.
23. Nos últimos dias, com o avolumar da chuva que se faz sentir, é evidente a evolução daqueles danos, que a cada dia vão circunscrevendo uma área maior do tecto e das paredes do quarto, tudo fazendo aumentar a humidade, os bolores, os maus-cheiros, as fissuras e o descascamento da pintura, com todas as consequências que isso traz para a saúde e segurança de quem lá habita, para a salubridade do lugar e para a própria estrutura do imóvel.
24. A situação que vem de ser descrita, manifestamente insustentável, afecta gravemente e, de forma irremediável, a qualidade de vida da Autora/Requerente e demais residentes, sobretudo do seu filho que era quem dormia naquele compartimento, diminuindo consideravelmente as condições de conforto e salubridade do respectivo compartimento.”

3.3. DO DIREITO APLICÁVEL

Dispõe um fundamental art. 30º, do Código de Processo Civil que (1) o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer. 2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Posto isto, a (i)legitimidade das partes será apurada em função do pedido e da causa de pedir (tal como os apresenta o autor), pois só em função desses dois elementos é possível averiguar do interesse directo, da utilidade ou prejuízo resultantes da acção.
Tal como no campo do direito material, há que a aferir, em regra, pela titularidade dos interesses em jogo (no processo), isto é, como dizem os n.ºs 1 e 2, pelo interesse directo em demandar, exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da acção, e pelo interesse directo em contradizer, exprimido pela desvantagem jurídica que resultará para o réu da sua perda.
Contudo, há que não confundir essa aferição da legitimidade adjectiva ou processual com a substantiva ou material que lhe dá corpo.
Assim como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-11-2003 (4), a legitimidade processual, que se não confunde com a denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido, afere-se pelo pedido e causa de pedir, tal como os apresenta o autor, independentemente da prova dos factos que integram a última. Assim, a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efectivamente seu titular.
Assim, "ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última". (5)
Na verdade, "a relação controvertida, tal como a apresenta o autor e forma o conteúdo jurídico da pretensão deste é que é - em orientação jurídica - o objecto do processo, em face do qual (e, por isso, quase sempre determinável por simples exame da petição inicial) se aferem a legitimidade e os outros pressupostos que desse objecto dependam". Concluindo, "a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efectivamente seu titular". (6)
Este regime geral é aplicável às providências cautelares, que têm uma relação umbilical com o processo principal que lhes serve de mote. (7)
Com efeito uma das principais características das providências cautelares é a sua instrumentalidade face ao processo principal.
“Piero Calamandrei referia que as providências cautelares são um instrumento do instrumento, na medida em que as providências cautelares são instrumento da acção principal e esta, por sua vez, instrumento do direito material e substantivo. (…) Tradicionalmente identificada como uma característica das providências cautelares, consequência da característica da instrumentalidade, a dependência traduz-se no facto de o procedimento cautelar apenas poder ser instaurado quando a respectiva acção principal já se encontrar pendente ou quando estiver na iminência de ser instaurada. Caso contrário, isto é, na falta de existência da acção principal, a medida cautelar caducará e consequentemente será decretada a extinção do procedimento cautelar. Ademais, a dependência também se repercute no objecto da providência cautelar, que será conjugado com o objecto da acção principal, embora não tenha de existir total identidade entre ambos.” (8)
A propósito e como se escreveu no Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães acima citado, recorrendo às palavras de Abrantes Geraldes (in Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 2010, 4ª Edição, Almedina, pág. 152 e 153)
“(…) o objecto da providência há-se ser conjugado com o objecto da causa principal. Embora não se pressuponha na acção e no procedimento uma total identidade de direitos que se pretendem acautelar, nem tão pouco se exija a alegação do mesmo circunstancialismo fático integrador da causa de pedir na acção definitiva e nos fundamentos da providência solicitada, a função instrumental que a lei atribui aos procedimentos não é compatível com um total divórcio entre os respectivos objectos. A identidade entre o direito acautelado e o que se pretende fazer valer no processo definitivo impõe, pelo menos, que o facto que serve de fundamento à providência integre a causa de pedir da acção principal.”
Assim, em sintonia com o ficou expresso nesse Acórdão, consideramos, que é acertado pressupor o apuramento autónomo da legitimidade, à luz da causa de pedir e pedido da própria providência cautelar.
Em face do exposto, merecerá a decisão da primeira instância a impugnação em apreço?
A fim de respondermos a essa questão teremos de começar por identificar o objecto da providência e, desde logo, salta à vista desarmada que o mesmo não coincide inteiramente como processo de que depende, se isso fosse para aqui relevante. Não será o caso, porque o objecto desta providência é parcialmente coincidente com o da acção principal.
Na verdade, esse objecto, cuja identificação está prejudicada pela recorrente falta de indicação do direito aplicável deste articulado inicial, não deixa de poder ser reconduzido, pelo menos relativamente ao pedido da al. b), desse requerimento, à mesma responsabilidade civil extracontratual que a Requerente invoca no processo principal, ou seja, ao regime previsto nos arts. 483º e ss., em especial o citado art. 493º, todos do Código Civil.
No caso do pedido da al. a), estamos perante a exigência do cumprimento de uma obrigação que onera a administração do condomínio (enquanto órgão executivo das deliberações da assembleia de condóminos quanto às partes comuns, nomeadamente quanto a eventuais obras de reparação dessas partes do edifício), como, ainda, sobretudo, sobre os condóminos através da respectiva assembleia, enquanto órgão deliberativo integrado pelo conjunto de todos os condóminos, relativamente à administração e conservação das partes comuns (arts. 1424º, n.º 1 e 1430º), por forma a que de tais partes comuns não decorram danos para terceiros, ou, ainda, para outro condómino, ao nível da sua própria fracção autónoma, como é o caso dos autos (9).
No caso da al. c), a ser admissível, estamos perante a singela exigência do cumprimento de uma acessória sanção pecuniária visando a realização coactiva das restantes prestações de facto positivo, prevista no art. 829º-A, do Código Civil.
Estes pedidos já foram formulados pela Requerente/Autora no processo principal e os demais aí expressos e acima enunciados enquadram-se também na causa de pedir que se reconduz ao regime da mencionada responsabilidade civil não contratual.

Perante este objecto, que, no essencial, se traduz na petição do ressarcimento de danos patrimoniais (no processo principal estende-se a outros relacionados com a titularidade do imóvel em causa e bens pessoais) e à exigência do cumprimento daquela obrigação legal do condomínio, o Requerido repete aqui a invocação do disposto no art. 34º, nº 1, do Código de Processo Civil, argumento que o Tribunal a quo secunda para fundamentar a decisão em crise.
Todavia, essa leitura não tem sustento nessa norma processual, na qual o que está dito é pura e simplesmente que (1) devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as acções de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as acções que tenham por objecto, directa ou indirectamente, a casa de morada de família.
Sucede que, no caso, quer a oposição do Requerido, quer a decisão recorrida, invocam esse preceito sem sustentaram a sua aplicação na verdadeira e distinta natureza dos actos em causa (na acção principal essa variedade é ainda maior) e no que preceituam as normas substantivas aplicáveis.
É que, à ab initio e atendo-nos a esta instância cautelar, das providências requeridas, que por natureza são provisórias, não se vislumbra que possa resultar a perda ou oneração do imóvel que se assume como bem comum do suposto casal, nem a perda de quaisquer direitos que só por ambos possa ser exercida.
Acresce, como argumentado pela Apelante, que das normas substantivas aplicáveis não resulta que estejamos perante direitos que só pelo casal possam ser exercidos, ainda que se classifique o imóvel em causa como casa de morada de família, se ela ainda existir como tal.
Isto porque, por um lado, dita o art. 1678º, nº 3, do Código Civil, fora dos casos previstos no número anterior, cada um dos cônjuges tem legitimidade para a prática de actos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal; os restantes actos de administração só podem ser praticados com o consentimento de ambos os cônjuges.
Por outro, dita o art 1679.º, do mesmo Código, que, ainda que assim não fosse, o cônjuge que não tem a administração dos bens não está inibido de tomar providências a ela respeitantes, se o outro se encontrar, por qualquer causa, impossibilitado de o fazer, e do retardamento das providências puderem resultar prejuízos.
Por fim, atente-se que os actos em causa, repete-se, não importam alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre o imóvel em causa, pelo que, ainda que este seja considerada morada de uma família, não estamos perante actos ou acções que estejam vedadas ao cônjuge que aqui demanda, como decorre da leitura dos arts. 1682º-A e 1682º-B, do Código Civil.
Com efeito, estamos sim perante actos de administração ordinária.
Como se deixou escrito no Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 21.2.2018 (10): Como salienta CARVALHO FERNANDES, o legislador não nos fornece um critério rigoroso para apurar o que sejam actos de administração ordinária e extraordinária e só casuisticamente se poderá estabelecer a sua delimitação.
No sentido de procurar um critério operativo que permita densificar tais conceitos indeterminados, a doutrina pátria vem definindo actos de administração ordinária como aqueles que visam a conservação do bem ou a sua frutificação normal, sem alterarem a substância da coisa, e que podem ser efectuados sem sacrifício económico relevante e sem recurso às reservas financeiras, isto é, utilizando só uma parte dos rendimentos correntes, enquanto os actos de administração extraordinária serão “aqueles que ainda se incluem nos poderes de administração mas que abrangem a feitura de obras que alteram a integridade do património” ou “actos de conservação, uso e fruição mas anormais e particularmente importantes”, ou seja, abrangem os actos de frutificação anormal ou a realização de benfeitorias ou melhoramentos nos bens. A esta luz, no domínio do direito da família, afigura-se-nos constituírem actos de administração ordinária, que cada cônjuge pode praticar isoladamente, aqueles que atendam às necessidades ordinárias e quotidianas da família, que não comportem decisões de fundo, susceptíveis de impedir ou condicionar a sua direcção conjunta; já constituirá ato de administração extraordinária, aquele que implique uma alteração da composição que o património tinha no momento em que a administração se iniciou.
Nas palavras de Antunes Varela, a administração pode ser ordinária ou extraordinária: é ordinária quando se destina a prover à conservação dos bens ou a promover a sua frutificação normal; é extraordinária quando visa a realização de benfeitorias ou melhoramentos nas coisas ou a frutificação anormal dos bens. (11)
Segundo Manuel A. Domingues de Andrade “Actos de mera administração serão pois os que correspondem a uma gestão patrimonial limitada e prudente em que não são permitidas certas operações – arrojadas e ao mesmo tempo perigosas – que podem ser de alta vantagem, mas que podem ocasionar graves prejuízos para o património administrado. (…) É doutrina pacífica que entra na mera administração, ou administração ordinária tudo quanto diga respeito: 1) a prover a conservação dos bens administrados; 2) a promover a sua frutificação normal. (…) “Actos de conservação dos bens administrados são os destinados a fazer quaisquer reparações necessárias nesses bens, tendentes a evitar a sua deterioração ou destruição.” (12)

No caso, quer no que diz respeito à parte comum do imóvel em causa, quer no tocante à fracção alegadamente pertencente ao casal em apreço, as providências requeridas inserem-se, a nosso ver, no âmbito de actos de conservação ou manutenção assim descritos e, portanto, no seio dos poderes de administração da Apelante, ainda que isoladamente e sem prejuízo da responsabilização perante o outro cônjuge (art. 1681º, do Código Civil) mas que em nada obsta à sua acção neste caso.
Ainda que assim não se entendesse, é necessário ter em conta neste caso que a Requerente alegou nesta providência a aquisição de um direito exclusivo à propriedade do imóvel em causa que exigiria alguma ponderação e poderia ser melhor concretizada em sede de prova, sendo também alegada alguma dificuldade de envolver prontamente o outro cônjuge nesta demanda o que, ainda que não se considerasse a previsão do citado art. 1678º, nº 3, do Código Civil, teria que ser atendido como configuração embrionária da lide cautelar que poderia admitir, nos termos do citado art. 1679º, do mesmo Código, a actuação singular da aqui Requerente, já que foi alegado prejuízo na demora das providências requeridas.
A ponderação sustentada de todos os argumentos aduzidos pela Requerente deve ser cuidadosa porque a decisão sobre este direito adjectivo pode colocar, mesmo a título definitivo, em causa o direito previsto no art. 2º, do Código de Processo Civil.

Pelas razões apontadas supra, discordamos da posição defendida pelo Tribunal a quo, julgamos que inexiste litisconsórcio necessário e que a Requerente é parte activa legítima na providência por si configurada, coisa distinta do mérito dos seus argumentos substantivos, a ponderar oportunamente.
Note-se que, apesar de no processo principal se ter admitido a intervenção provocado do outro cônjuge com o argumento da ilegitimidade da aqui Requerente, julgamos que isso não constitui caso julgado sobre essa excepção no processo principal, desde logo porque a questão aí apreciada era o incidente de intervenção de terceiros e não a excepção dilatória invocada.
Fica, por isso, prejudicado o conhecimento dos demais argumentos aduzidos (art. 608º, nº 2, do Código de Processo Civil).

4. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, julgando improcedente a excepção deduzida pelo Requerido e declarando a Requerente parte legítima nesta providência, determinando-se o prosseguimento dos autos.

Custas da apelação pelo Recorrido (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
*
Guimarães,

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. José Flores
1º Adj. - Des. Sandra Melo
2º - Adj. - Des. Conceição Sampaio


1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
2. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
3. Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
4. In http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/0/486a2f8bf6d2c0ec80256f48004c3951?OpenDocument
5. José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 1º, Coimbra, 1999, pag. 52.
6. Castro Mendes, "Manual de Processo Civil", Coimbra, 1963, pags. 260, 261, 262.
7. Cf. nesse sentido Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 25.5.2017, in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/F9AD90DF6A1567CF802581550055C52C
8. As Providências Cautelares e os Requisitos para o seu Decretamento Confronto entre o Processo Administrativo e o Processo Civil Joana Maria Coimbra Castanheira, p. 33/37 e 38, in https://eg.uc.pt/bitstream/10316/86628/1/Tese%20Joana%20Castanheira.pdf
9. Cf. nesse sentido Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 23.4.2008, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/0360E314DAF8684080258289003CE81B
10. In http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/26CE577BD5FA460C80258256004F80FF 11. In Código Civil Anotado, IV, p. 289).
12. InTeoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1992, p.61 e 62