Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4022/07.2TBBRG-CV.G1
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTINUAÇÃO DA ATIVIDADE APÓS DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS SOBRE A MASSA INSOLVENTE
DÍVIDAS DA MASSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- Tendo sido decidido na Assembleia de Credores, sob proposta do Administrador da Insolvência, que a insolvente continuaria em atividade após a declaração de insolvência, os créditos respeitantes a salários e outras contraprestações do trabalho prestado pelos respetivos trabalhadores, que se venceram após a declaração de insolvência, devem ser qualificadas como créditos sobre a massa insolvente, ao abrigo do art. 51º, nº 1, als. d) e e) e nº 2 do CIRE.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Sumário:

- Tendo sido decidido na Assembleia de Credores, sob proposta do Administrador da Insolvência, que a insolvente continuaria em atividade após a declaração de insolvência, os créditos respeitantes a salários e outras contraprestações do trabalho prestado pelos respetivos trabalhadores, que se venceram após a declaração de insolvência, devem ser qualificadas como créditos sobre a massa insolvente, ao abrigo do art. 51º, nº 1, als. d) e e) e nº 2 do CIRE.

Relatório:

No apenso de liquidação do ativo do processo de insolvência em que é Insolvente X – Telecomunicações e Assistência, Lda, foi proferido o seguinte despacho:

“Nos presentes autos de insolvência foi determinado por despacho, já transitado em julgado, o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente para satisfação das custas e demais dívidas da massa.
Pagas as custas, informou o AI a existência de 610.799,75€ para distribuir pelos credores da massa insolvente - como previsto o nº 3 do art. 232° nº 3 do CIRE.
Solicitada a colaboração do AI para elaboração de mapa tendente à distribuição de tal quantia, foram apresentadas reclamações pelos credores/trabalhadores não incluídos no mesmo e pelo fundo garantia salarial, também, não incluído no mesmo.
Desde já, cumpre esclarecer que não estamos no âmbito do rateio final, outrossim, e face ao encerramento do processo por insuficiência da massa, estamos perante distribuição do produto obtido pelos credores da massa e não pelos credores da insolvência, daí que não tenha cabimento falar em créditos privilegiados, nem na graduação efetuada, a mesma só seria tida em conta se estivéssemos perante pagamento aos credores da insolvência, o que não se verifica, uma vez que o produto da liquidação não se mostra sequer suficiente para pagamento das dividas da massa, daí o encerramento nos termos do art. 232º do CIRE.
Ora, independentemente da nossa concordância com a argumentação expendida nos requerimentos apresentados pelos trabalhadores não contemplados na lista, o certo é que por despacho proferido, a 3.6.2016, foi considerado que o montante de 1.076.619,91€, resultante das 43 ações interpostas pelos trabalhadores contra a massa, constituía divida da massa, tendo tal despacho, há muito transitado em julgado, razão pela qual, nos está vedada qualquer alteração que ponha em causa a decisão proferida nos autos a este respeito.
Nesta conformidade, bem andou o AI em considerar aqueles credores no mapa, aliás, nem de outro modo podia proceder, atenta a decisão proferida, que não foi objeto de recurso por banda dos que ora vem reclamar dessa inclusão e da sua exclusão do mapa.
Do mesmo modo, nenhuma censura podemos dirigir à não inclusão do fundo de garantia salarial, uma vez que o mesmo é detentor de crédito sobre a insolvência e não sobre a massa insolvente, sendo o produto a distribuir atento o fundamento do encerramento do processo apenas pelos credores da massa insolvente.
No entanto, quanto aos créditos dos trabalhadores não incluídos no mapa (quanto aos créditos dos trabalhadores ali constantes e atento o trânsito em julgado do despacho que os considerou, na íntegra, dividas da massa, nada podemos modificar) sempre diremos, que os constituídos antes da declaração da insolvência são dívidas sobre a insolvência, a graduar segundo o privilégio mobiliário e/ou imobiliário que lhes confere o artigo 333° do Código de Trabalho (aqui já não considerados para este efeito atento o encerramento do processo nos termos do art. 232° do CIRE), enquanto os constituídos após a declaração de insolvência são dívidas sobre a massa sabendo-se que, de acordo com o disposto no artigo 347°, nº 1 do Código do Trabalho, "a declaração de insolvência do empregador não faz cessar o contrato de trabalho, devendo o administrador da insolvência continuar a satisfazer integralmente as obrigações para com os trabalhadores enquanto o estabelecimento não for definitivamente encerrado" o que implica que o trabalhador continue a prestar serviço à empresa da massa falida após a declaração da insolvência, sob as ordens e a direção de quem a representa (o administrador judicial).
Nesta conformidade, deverá o AI incluir a parte dos créditos de todos dos trabalhadores que constitua dívida da massa, ou seja, aqueles créditos que se constituíram e venceram já na pendência do processo de insolvência, entendendo este tribunal que só os créditos remuneratórios (salários, subsídios de férias e de Natal, subsídio de alimentação), podem ser nesta sede considerados, já não os compensatórios (por cessação do contrato de trabalho) ou indemnizatórios (devidos pela resolução do contrato de trabalho com justa causa por iniciativa do trabalhador ou pela cessação do contrato de trabalho que resulta de um despedimento ilícito) sendo estes créditos sobre a insolvente e não sobre a massa.
Notifique.”
*
Inconformados vieram, A. M., A. P., I. B., J. J., M. M., M. P., M. F., M. D., M. L., V. F., ex-trabalhadores/credores da insolvente, recorrer formulando as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso de apelação interposto do douto despacho (refª nº 160351409) que indeferiu a reclamação ao mapa de rateio, apresentado pelos Recorrentes. Isto porque não podem os Recorrentes conformar-se com o teor do mesmo.

Vejamos porquê:

DO OBJECTO DO RECURSO

2. O despacho recorrido indeferiu uma reclamação dos Recorrentes ao mapa de rateio apresentado pelo Sr. Administrador de Insolvência, mantendo a distinção entre credores-trabalhadores detentores de dívidas sobre a massa e credores-trabalhadores detentores de dívidas sobre a insolvência.
3. Entendem, todavia, os Recorrentes, que se impunha uma decisão diversa da recorrida.

DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO

4. Os ora Recorrentes, credores laborais e ex-trabalhadores da Insolvente, foram confrontados com um mapa de rateio final no qual não constam os seus nomes, ao contrário dos nomes de outros ex-trabalhadores da Insolvente.
5. Os Recorrentes por serem considerados credores da insolvência e os outros ex-trabalhadores constantes do mapa de rateio por serem considerados credores da massa insolvente.
6. Ora, tal não é aceitável e não tem apoio moral, ético, legal e constitucional!
7. Por isso mesmo, não resta outra alternativa que não apresentar o presente recurso, "exigindo" que os seus nomes constem do mapa de rateio!
8. Na verdade, não há trabalhadores de primeira e trabalhadores de segunda, uns privilegiados e outros discriminados, que é o que resulta do entendimento do Sr. Administrador de Insolvência, lavrado no mapa de rateio. Quando, como sabemos, todos foram trabalhadores da Insolvente e todos são iguais perante a Lei!
9. Na prática, com o mapa de rateio apresentado, os trabalhadores lá constantes recebem praticamente todo o montante dos seus créditos e os restantes trabalhadores, todos eles preteridos daquele mapa sem qualquer motivo ou fundamento, recebem nada!
10. Tudo isto porque o Sr. Administrador de Insolvência entende que os créditos dos trabalhadores cujos nomes constam do mapa de rateio constituem dívidas da massa e os de todos os outros serão dívidas sobre a insolvência.
11. Ora, tal é inaceitável e a vingar tal tese muito mal andaria a nossa Justiça!
12. Aliás, pergunta-se: qual o interesse que há em classificar, nos presentes autos, os créditos de alguns trabalhadores como dívidas da massa, uma vez que se os mesmos fossem singelamente classificados como privilegiados, conforme resulta da lei, nenhum outro lhes precederia? O que ganham estes, para além de apenas prejudicarem os seus ex-colegas de trabalho, iguais a eles e com os mesmos direitos?
13. Além de que tal mapa de rateio, elaborado dessa forma, viola claramente o princípio constitucional da igualdade (artigo 13º da CRP) e ofende o princípio da proporcionalidade e o princípio do Estado de Direito (artigo 2º da CRP).
14. Assim, apela-se a Vs. Exas. se dignem corrigir tal ilegalidade e injustiça, colocando todos os credores, ex-trabalhadores da Insolvente, em plano de igualdade, ordenando a elaboração de novo mapa de rateio do qual constem os nomes de todos (sem exceção) os ex-trabalhadores da Insolvente.

DO DIREITO

15. Como é sabido, a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 59.°, nº 1 al. a), eleva o direito à retribuição à categoria de direito, liberdade e garantia de natureza análoga, beneficiando do regime de proteção privilegiado próprio desta categoria de Direitos Fundamentais (artigo 18° da C. R. P.) e, no nº 3 do citado artigo 59°, o legislador constituinte instrui o legislador ordinário no sentido de prever para os salários dos trabalhadores um conjunto de garantias especiais.
16. Por outro lado, o processo de insolvência é um processo de execução universal, sujeito ao princípio par conditio creditorium (cfr. artigo 604.° do Código Civil). Trata-se de um processo consursal (embora especial) pelo facto de no mesmo existir o risco de não satisfação completa dos credores, inerente à situação de crise económica do devedor.
17. No processo de insolvência podem existir dois tipos de dívidas: dívidas sobre a massa e dívidas sobre a insolvência.
18. As primeiras são pagas nas datas dos respetivos vencimentos, qualquer que seja o estado do processo (artigo 172.°, nº 1 e 3 do CIRE), e sempre com precipuicidade, ou seja, com precedência em relação aos créditos sobre a insolvência (artigo 46.° do CIRE). Como afirma CATARINA SERRA (Lições de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2018, p. 277), neste tipo de dívidas os trabalhadores estão dispensados «do ónus da sua reclamação».
19. Em caso de não pagamento, as dívidas da massa não são objeto de reclamação de créditos, mas seguem antes o tipo de ação prevista e regulada no artigo 89°, nº 2 do CIRE.
20. Já as dívidas da insolvência, terão de ser reclamadas pelos credores, nos termos do disposto nos artigos 128.° e ss. do CIRE (reclamação de créditos tout court) ou nos termos do disposto no artigo 146° do CIRE (verificação ulterior de créditos). Num caso e no outro, os créditos serão reclamados, verificados e, depois, graduados no lugar que lhes competir.
21. Ora, foi precisamente isto que fizeram os credores que constam do mapa de rateio e que, ao contrário do que por si foi feito e alegado, vêm os seus créditos reconhecidos como dívidas da massa, precedendo todos os outros seus ex-colegas de trabalho, credores da mesma natureza.
22. Na verdade, aqueles credores fizeram uma reclamação ulterior de créditos (ao abrigo do artigo 146.° do CIRE, normativo invocado expressamente nos seus articulados) e não instauraram qualquer ação ao abrigo do artigo 89°, nº 2 do CIRE.
23. Mais, alegaram cada um deles, que os seus créditos gozavam de privilégio mobiliário geral e do privilégio imobiliário especial previsto no artigo 377° do Código do Trabalho então em vigor. Aliás, tiveram inclusivamente o cuidado de alegar a concreta localização e identificação do imóvel onde cada um deles prestava trabalho, que, como se sabe, é requisito essencial para que se possam prevalecer do privilégio imobiliário especial supra citado.

SEM PRESCINDIR,

24. Em termos doutrinais, esta questão da qualificação dos créditos laborais vencidos após a declaração de insolvência tem tido uma assinalável e crescente corrente - na esteira daquilo que é defendido pela maioria da Jurisprudência -, que defende que tais créditos serão dívidas sobre a insolvência e não sobre a massa.
25. JÚLIO GOMES entende que a recondução dos créditos laborais, designadamente os vencidos com a cessação do contrato de trabalho, a dívidas da massa insolvente geradora de uma desigualdade de tratamento injustificável e, portanto, inaceitável, entre os trabalhadores de uma mesma empresa cujos contratos cessaram antes da declaração de insolvência e os que viram os contratos extinguirem-se depois daquela.
26. Segundo este autor, ainda que entre as duas hipóteses mediassem poucos dias ou semanas, os primeiros teriam um crédito sobre a insolvência, enquanto os segundos teriam um crédito cobre a massa, o que é inaceitável, ilegal e injusto.
27. Para sustentar esta sua tese, JÚLIO GOMES sugere uma interpretação teleológica e restritiva da alínea d) do nº 1 do artigo 51° do CIRE.
28. Este entendimento já teve acolhimento jurisprudencial, nomeadamente no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.07.2017 (relator: Jorge Teixeira).
29. Também JOANA COSTEIRA sustenta uma posição idêntica. Para o efeito invoca que não obstante a cessação do contrato de trabalho ocorrer após a declaração de insolvência, ainda será «consequência daquele estado de insolvência, uma vez que a compensação é um direito adquirido com referência à duração do vínculo laboral, cujo contrato de trabalho perdurou enquanto a empresa insolvente esteve em atividade».
30. Para fundamentar a sua posição, JOANA COSTEIRA refere que existem outros créditos que se vencem no decurso do processo de insolvência, que são reclamados depois da declaração de insolvência e que, apesar disso, são créditos sobre a insolvência (cfr. artigo 51° n.º 1, alíneas e) e f) e artigo 102°, nº 3 alíneas c) e d), todos do CIRE).
31. A Professora CATARINA SERRA, Juíza Conselheira do STJ, acolhe também esta posição e, aproveitando os argumentos da jurisprudência e desta corrente doutrinal que se vem desenhando e ganhando força, coloca o problema nos termos em que deve ser posto: qual a razão de ser das dívidas da massa insolvente que justifica serem merecedoras de um regime privilegiado de pagamento, no confronto com os demais créditos constituídos anteriormente? Na procura de resposta a esta questão, esta autora afirma que há que reter duas ideias centrais e que respeitam, por um lado, à teleologia das dívidas da massa e, por outro lado, à consciencialização de que a classificação dos créditos como créditos da massa é excecional.
32. Finalmente, LEONOR PIZARRO MONTEIRO, entende também que estes créditos são sobre a insolvência e não sobre a massa.
33. Em seu entender, «para prevenir a instrumentalização da qualificação dos créditos e impedir que ocorra uma subversão total do sistema e dos princípios estruturantes do Direito Insolvencial, parece-nos muito interessante esta ideia de ter presente o carácter excecional dos créditos da massa e o apelo a uma qualificação dos créditos especialmente criteriosa. A igualdade de tratamento dos credores é um pilar fundamental do processo de insolvência».
34. Em termos jurisprudenciais, temos assistido também a uma crescente marona de entendimento - dir-se-ia quase unânime-, que considera igualmente que os créditos laborais vencidos após a declaração de insolvência serão dívidas sobre a insolvência e não dívidas sobre a massa.
35. Neste sentido, entre outros, vejam-se: Ac. do TRG, de 14.07.2010 (Barateiro Martins); Ac. do TRG, de 09.07.2015 (Carvalho Guerra); Ac. do TRG, de 09.07.2015 (Manuel Bargado); Ac. do TRG, de 09.07.2015 (Heitor Gonçalves); Ac. do TRG, de 11.08.2017 (Maria Melo Nogueira); Ac. do TRG, de 11.07.2017 (Jorge Teixeira); Ac. do TRP, de 23.02.2012 (Ana Paula Amorim); Ac. do TRP, de 01.02.2010 (Soares de Oliveira); Ac. do TRP, de 07.06.2010 (Soares de Oliveira); Ac. do TRC, de 14.07.2010 (Barateiro Martins); Ac. do TRL, de 15.10.2015 (Ondina Carmo Alves); Ac. do STJ, de 20.10.2011 (Alves Velho); e Ac. do STJ, de 05.07.2016 (Ana Paula Boularot).
36. O sumário do Acórdão do TRC, de 14.07.2010, (relator: Barateiro Martins) é paradigmático e esclarecedor:

«1. Numa insolvência, um mesmo crédito não pode ser tratado e qualificado, ao mesmo tempo, indistintamente, como "crédito sobre a massa" e como "crédito sobre a insolvência ".
2. Quem se arrogar titular de um crédito sobre a massa não preenche a previsão do artigo 128. o do CIRE e não pode reclamar o seu crédito nos termos de tal preceito; devendo antes aguardar/requerer que tal crédito, sobre a massa, lhe seja liquidado, com precipuidade, nos termos do artigo 172º do CIRE.
3. Deve ser considerado como "crédito sobre a insolvência" o crédito resultante e emergente da cessação de contrato de trabalho declarado cessado pela administração da devedora/insolvente, que, ao abrigo do artigo 224º nº 1 do CIRE, está a administrar a massa insolvente.
4. Os créditos consistentes na compensação/indemnização por cessação do contrato de trabalho, correspondentes às vicissitudes/encerramento da empresa insolvente, são créditos da insolvência; não preenchendo alguma das alíneas do artigo 51º do CIRE.».
37. Termina-se com uma passagem do recente Acórdão do TRP, de 11.07.2017, (relator: Jorge Teixeira), que aqui se subscreve com a devida vénia, por entendermos aplicar-se ipsis verbis ao presente caso: «( ... ) não é a mera existência de ações contra a Massa Insolvente que torna os respetivos Autores iguais entre si mas diferentes dos demais trabalhadores da sociedade insolvente, pois que, imperando sempre num processo de insolvência o respeito pelo princípio par conditio credito rum (o tratamento igualitário em relação a todos os credores de mesma categoria). Todos os trabalhadores têm forçosamente que ser tratados da mesma forma. quer tenham ou não intentado qualquer ação, tanto mais que, mesmo que estes créditos [de todos os trabalhadores da insolvente e não apenas do(a) Recorrente fossem «considerados como um crédito sobre a massa, não teriam «de ser reclamados, mas requerida a liquidação precípua nos termos do artigo 172º do CIRE», não enfermando, por isso, a decisão recorrida de qualquer ambiguidade ou contradição.»
38. A sentença recorrida violou, assim, o disposto nos artigos do artigo 2.°, 13.°, 18.° e 59.° da CRP, 604.° do Código Civil, 377.° do Código do Trabalho e 46.°, 51.°, 89.° e 172. ° do CIRE.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas, no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado e substituído, em conformidade com o supra alegado, o despacho que indeferiu a reclamação, apresentada pelos Recorrentes, ao mapa de rateio, ordenando a alteração/retificação do mesmo, nos termos supra expostos, colocando os ora Recorrentes em igualdade com os Credores/ ex-trabalhadores cujos nomes constam do mapa de rateio apresentado, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.
*
Questões a decidir:

- Se os créditos dos ora Apelantes devem ser considerados no mapa elaborado pelo Administrador da Insolvência relativo aos créditos da massa insolvente.
*
Factos com interesse para a decisão da causa:

1 – X – Telecomunicações e Assistência, Lda foi declarada insolvente por sentença proferida a 6/7/2007.
2 – Nessa sentença foi fixado o prazo de 30 dias para as reclamações de créditos.
3 – Findo o prazo das reclamações o AI veio juntar aos autos a lista dos créditos conhecidos e por si reconhecidos nos quais se incluem os créditos dos ora Apelantes, que eram trabalhadores da insolvente.
4 – Por sentença proferida em 12/3/2008, no apenso de reclamação de créditos, foram os créditos dos ora Apelantes graduados em 1º lugar.
5 – No processo principal de insolvência, foi determinado, por despacho já transitado em julgado, o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa.
6 - Por despacho proferido nesses autos, com a data de 3/6/2016, já transitado, foi considerado que o montante de 1.076.619,91€, reclamado por vários trabalhadores, que não os Apelantes, e reconhecido em 43 ações que correram por apenso ao processo de insolvência, diz respeito a dívidas da massa insolvente.
7 – Pagas as custas, informou o AI da existência de 610.799,75€ para distribuir pelos credores da massa insolvente, tendo elaborado uma proposta de mapa final que contém uma lista dos credores da massa insolvente, nos quais se incluem os trabalhadores, que não os ora Apelantes, referidos no ponto anterior.
8 – Os credores, ora Apelantes, na sequência da elaboração do mapa referido no ponto anterior, vieram apresentar reclamação ao mesmo por não terem sido contemplados no mencionado mapa, em sequência da qual foi proferido o despacho recorrido.
9 – Na sequência dessa reclamação foi proferida, em 2/11/18, a decisão recorrida e acima transcrita.

O Direito:

Conforme resulta do disposto no art. 46º do CIRE, a massa insolvente destina-se ao pagamento dos credores da insolvência e das dívidas desta.

O conceito de crédito sobre a insolvência vem previsto no art. 47º do CIRE e o conceito de créditos correspondentes a dívidas sobre a massa insolvente vem referido no art. 51º do mesmo Código.

Os créditos sobre a insolvência são aqueles cujo fundamento já existe à data da declaração de insolvência e os créditos sobre a massa são os constituídos no decurso do processo (v. Catarina Serra in O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 3º ed., pág. 30).

Na verdade, preceitua o art. 47º, nº 1 referido que “Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantido por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio”.

Acrescenta o seu nº2 que “Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respetivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência”.

O art. 51º do CIRE, que tem como epígrafe “Dividas da massa insolvente”, dispõe no seu nº 1 que:

Salvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código:

a) As custas do processo de insolvência;
b) As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores;
c) As dívidas emergentes dos atos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente;
d) As dívidas resultantes da atuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções;
e) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência;
f) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração;
g) Qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objeto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório;
h) As dívidas constituídas por atos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes;
i) As dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente;
j) A obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do artigo 93º.

O processamento da reclamação e reconhecimento das dívidas do insolvente encontra-se previsto no disposto nos arts. 128º a 140º do CIRE, prevendo-se, nomeadamente, a reclamação dos créditos por parte dos credores do insolvente, a elaboração de uma lista dos créditos reconhecidos e não reconhecidos pelo Administrador da Insolvência e a prolação pelo juiz de sentença de verificação e graduação desses créditos.

A distinção entre dívidas do insolvente e dívidas da massa insolvente é importante pelo especial regime de pagamento de que beneficiam estas últimas dívidas, na confrontação com a generalidade das dívidas da insolvência que, como elas, concorram aos bens do insolvente, pois aquelas são suportadas prioritariamente pela massa insolvente, antes de todos os créditos verificados, independentemente da natureza destes (v. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª ed., pág. 308).

Com efeito, os créditos da insolvência são pagos com precipuidade, conforme resulta do preceituado nos arts. 46º, nº 1 e 172º, nº 1, ambos do CIRE.

No caso, os Recorrentes insurgem-se contra o facto de os créditos mencionados no mapa no ponto 7 terem sido considerados créditos da massa insolvente em vez de terem sido considerados créditos da insolvência, no entanto, quanto a isso nada há a fazer.

Com efeito, a decisão referida no ponto 6, transitou em julgado (v. art. 635º, nº 5 do C. P. Civil), impondo-se pois aos ora Apelantes por força do caso julgado.

Os ora Recorrentes tiveram oportunidade de recorrer de tal decisão pois tiveram conhecimento da mesma, tanto que na sequência dessa decisão vieram apresentar requerimentos alegando que não tinham sido identificados em tal decisão e pedindo que na graduação de créditos fosse aplicado um critério igualitário entre todos os trabalhadores e que os créditos dos trabalhadores fossem considerados créditos da insolvente e não créditos da massa.

Mas não recorreram da mesma, limitando-se a apresentar os requerimentos a que acima se faz referência, deixando que tal decisão se tornasse definitiva, vinculando-os.

Aliás, a qualificação dos créditos reclamados nas ações que correram por apenso como créditos da massa insolvente ocorreu já no âmbito das mencionadas ações, pois analisando as respetivas petições iniciais, verifica-se que os credores aí autores, não obstante não terem formulado pedido expresso no sentido da qualificação dos seus créditos como créditos da massa insolvente, alegaram nesses articulados que os créditos aí reclamados deveriam ser considerados créditos da massa insolvente. Não houve contestação aos mencionados pedidos e a sentença, aderindo aos fundamentos expostos na petição, concluiu pela procedência das mencionadas ações.

A decisão recorrida nada decidiu sobre essa matéria, ou seja, nada decidiu sobre a qualificação de determinados créditos como créditos da insolvência ou da massa insolvente, limitando-se a constatar a existência da anterior (a referida no ponto 6) e a impossibilidade de alteração da mesma.

Deste modo, neste ponto, falece a argumentação dos Recorrentes no sentido da alteração da qualificação como créditos da massa insolvente dos créditos contemplados no mapa elaborado pelo A.I..

Alegam os ora Recorrentes que o facto de os créditos de uns trabalhadores terem sido considerados créditos da insolvência e os de outros terem sido considerados créditos da massa, viola os princípios constitucionais, designadamente o da igualdade.

Independentemente de assistir ou não razão aos Apelantes, o que é certo é que a ter havido violação de princípios constitucionais, tal ocorreu com a prolação da decisão referida no ponto 6 dos factos provados ou com a prolação das sentenças em cada uma das ações que correram por apenso a estes autos, pois como acima se referiu a decisão recorrida nada decidiu relativamente à qualificação dos créditos de determinados trabalhadores como créditos da massa ou créditos da insolvência, limitando-se a providenciar pela efetivação da decisão anterior em termos que nada acrescentam à economia dessa decisão.

Deste modo, a decisão recorrida não violou qualquer preceito legal ou constitucional, designadamente o princípio da igualdade.

No entanto, tal como implicitamente se admite na decisão recorrida, cabe referir que se entende que o mapa elaborado pelo Sr. AI não se encontra bem elaborado. Com efeito, verifica-se da análise dos autos que a insolvente continuou a laborar após a declaração de insolvência (na Assembleia de Credores ocorrida em 22/7/07, na sequência da aprovação do relatório do A.I., foi determinada a “manutenção em atividade do estabelecimento e consequentemente a suspensão da liquidação”). Mantiveram-se, pois, em vigor os contratos de trabalho até 5/12/08, altura que que cessaram por despedimento coletivo determinado pelo Administrador da Insolvência, tendo a insolvência sido declarada em 6/7/07.

Ora, tal como se refere na decisão recorrida, os créditos remuneratórios dos trabalhadores que se constituíram e venceram na pendência do processo de insolvência (salários, subsídios de férias e Natal e subsídios de alimentação) constituem dívidas da massa insolvente.

Na verdade, tais créditos surgiram depois da declaração judicial de insolvência e reportam-se a trabalho prestado depois de tal declaração, pelo que são de qualificar como dívidas da massa ao abrigo do disposto no art. 51º, nº 1 – d) e e) do CIRE (v. neste sentido Ac. RL de 22/6/17, Ac. RC de 6/7/10, ambos em www.dgsi.pt ).

Assim, os créditos remuneratórios dos ora Apelantes, vencidos após a declaração de insolvência, são créditos da massa insolvente e como tal devem ser contemplados no mapa elaborado pelo Sr. A.I.

Desta forma, o Sr. Administrador da Insolvência deve reformular o mapa apresentado, em conformidade com o exposto e tal como implicitamente se determinou na decisão recorrida.

Decisão:

Nos termos expostos, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos Apelantes.
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Guimarães, 2 de maio de 2019

Alexandra Rolim Mendes
Maria de Purificação Carvalho
Maria dos Anjos Melo Nogueira