Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
133/13TBEPS-O.G2
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: CRÉDITOS RECLAMADOS
DIREITOS DE RETENÇÃO
CONTRATOS EM CURSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº.4/2014 apenas tem aplicação aos contratos celebrados pelo insolvente que estejam em curso à data da declaração da insolvência nos termos e para os efeitos do artigo 102º do CIRE (ou seja, aqueles contratos que o administrador judicial possa optar pela sua execução ou pela recusa do seu cumprimento), estando por isso fora da sua alçada os contratos promessa que à data da declaração de insolvência se encontrem resolvidos ou tenham entrado na fase do incumprimento definitivo.
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes da 1ª Secção do tribunal da relação de Guimarães

I. Declarada a insolvência da sociedade “(…) -Imobiliária, SA, o Administrador de Insolvência apresentou a lista dos créditos em conformidade com o disposto no artigo 129.º do CIRE (1), e o Banco ... impugnou a existência dos créditos e o direito de retenção dos credores José (…) e (…), alegando não estarem demonstrados os pagamentos efetuados à insolvente e que os contratos se encontravam suspensos nos termos do artigo 102º.

A sentença final foi objecto de recurso por banda desses credores, e no acórdão de 29 de junho de 2018 esta Relação decretou o seguinte:

a) A anulação da sentença na parte em que apreciou a impugnação deduzida pelo Banco ... ao crédito reclamado por José (…), devendo o tribunal como acto prévio do novo julgamento enunciar os temas de prova por referência a toda a matéria de facto alegada pelo reclamante que se prende com o contrato promessa; e
b) A anulação da sentença relativamente à impugnação deduzida ao crédito da (…), e com fundamento e para os efeitos previstos no artigo 662º, nº 2, alíneas c) e d), do C.P.C. ordenou a ampliação da matéria de facto alegada nos artigos 11º, 39º, 40º, 41º e 45º da reclamação de créditos.

II. A nova sentença reconheceu os créditos de José (…) e (…) - Aquecimento Ambiente Unipessoal Lda. nos montantes de €216.459,49 e €123.397,80, respetivamente, e que são créditos garantidos por beneficiarem do direito de retenção.

III. O Banco ..., S.A., interpôs recurso, pretendendo que o crédito reconhecido a (…) - Aquecimento Ambiente Unipessoal, Lda., seja classificado como créditos comum e graduado em conformidade, terminando com as seguintes conclusões:

1. Foi reconhecido à credora (…) – AQUECIMENTO AMBIENTE UNIPESSSOAL, LDA. um crédito do montante de € 61.698,90 com a natureza de garantido por beneficiar de direito de retenção.
2. Seguindo entendimento do douto Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, entendemos que no caso em apreço não cabia o reconhecimento do direito de retenção à Recorrida por não estarem preenchidos os requisitos legais para esse efeito, segundo aquele aresto: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.
3. É que a aqui Recorrida não reveste a qualidade de consumidora, de acordo com o conceito de consumidor plasmado na Lei n.º 24/96 de 31/07, no seu artigo 2.º, n.º 1, segundo o qual: “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
4. A Recorrida trata-se de uma pessoa coletiva, de uma empresa que adquiriu o imóvel aqui em litígio para a prossecução da sua atividade comercial, designadamente como escritório e showroom – facto 5 dos factos provados da audiência de discussão e julgamento datado de 12.01.2017.
5. A mens legislatoris da atribuição do direito de retenção a um promitente-comprador foi a proteção do consumidor, no sentido de tutelar o promitente-comprador consumidor na outorga de um contrato-promessa cujo objeto seja um imóvel para habitação própria (neste sentido o preâmbulo do Decreto-Lei 236/80 de 18 de Julho), seguido da traditio
6. Também o Relatório do Decreto-Lei n.º 379/86 de 11/11 refere-nos no seu ponto n.º 4 que no conflito de interesses que tantas vezes há entre as entidades bancárias e os promitentes-compradores, “afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconhecem os esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de créditos e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras”.
7. Conclui-se que terá de existir uma finalidade de consumo para que alguém seja qualificado como consumidor (vide também outros instrumentos de proteção ao consumidor, por exemplo, o Decreto-Lei n.º 67/2003 de 08.04 e o Decreto-Lei n.º 84/2008 de 21-05).
8. Este tem sido o entendimento da jurisprudência que tem acolhido uma interpretação restritiva relativamente ao conceito de promitente-comprador, para efeitos de tutela e benefício do direito de retenção, defendendo que é necessário que este seja um consumidor, vide por exemplo o Acórdão do STJ, na Revista n.º 986/12.2TBFAF-G.G1.S1 de 17-10-2014, acessível in www.dgsi.pt; o Acórdão do TRP, no Processo n.º 11/10.8TBGDM.P1, datado de 15-09-2014; Acórdão do STJ e ainda, entre outros, os Acórdãos do STJ de 27.11.2007 – Processo 07A3680 e de 14.06.2011 – Processo 6132/08.0TBBRG-J.G1.S1; e Acórdão do TRP de 31.03.2009 – Processo 708/07.0TBPRD-G.P1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
9. O Acórdão de Uniformização e Jurisprudência n.º 4/2014 deve aplicar-se ao caso concreto, pois ainda que a doutrina dos acórdãos uniformizadores de jurisprudência seja entendida como meramente orientador e não vinculativa, o Juiz deve acatar esta jurisprudência para que não se cai numa situação de caos jurisprudencial, em que sobre uma mesma questão recaia duas ou mais correntes jurisprudenciais, tudo em respeito da certeza e segurança da ordem jurídicas.
10. Acresce que o Acórdão de Uniformização e Jurisprudência n.º 4/2014 tem aplicação imediata e não deve ser tido como uma decisão surpresa e frustradora das expectativas das partes, já que um acórdão uniformizador decorre de uma querela jurisprudencial, já existente na data da assinatura do contrato promessa discutido nos autos.

IV. Cumpre apreciar e decidir.

Contrariamente ao decidido na 1ª instância, a recorrente entende que a (…) Lda, não tem a qualidade de consumidora razão por que não beneficia do direito de retenção à luz da doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº.4/2014.

Secundando o sentido da decisão proferida pelo tribunal a quo, a recorrida defende nas contra-alegações a sua qualidade de consumidora, pois na esteira do acórdão do STJ de 29.05.2014 proferido no proc. 1092/10.0TBLSB só é excluído do conceito de “consumidor” o que adquire o bem no exercício da sua actividade comercial de comerciante de imóveis; e, ainda que assim não fosse, jamais isso lhe retiraria o estatuto de retentora, pois o contrato-promessa encontrava-se definitivamente incumprido à data da declaração da insolvência, e o aludido AUJ só é aplicável aos casos em que o A.I. intervém ao abrigo do artigo. 102º.

Factos provados com interesse para a decisão:

1- A credora (…) é uma sociedade comercial que com intuito lucrativo se dedica, entre outras, às atividades de comércio, instalação de sistemas de aquecimento de ambiente e assistência técnica.
2- Por documento particular datado de 11-11-2009 que as partes denominaram de contrato promessa de compra e venda, a devedora prometeu vender a (…), Lda, que lhe prometeu comprar, pelo valor de 124.600,00, a fração autónoma do tipo T1 com garagem e arrumo nº 63, identificada pela letra “…”, sita na freguesia de …, concelho de Esposende, descrita na CRP sob o nº … e inscrito na matriz sob o artigo …, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
3- A credora procedeu ao pagamento da quantia de € 61.698,90 à insolvente, correspondente a parte do preço estipulado naquele acordo, por cessão de um crédito que detinha sobre a sociedade JA …, SA.
4- Foram-lhe entregues pela insolvente as chaves do imóvel.
5- A credora instalou os serviços de água na fração em causa, sendo que a mesma serviria como showroom e escritório para a credora.
6- A credora marcou a escritura de compra e venda para o dia 17 de agosto de 2011, à qual a insolvente não compareceu.
7- Até à presente data o contrato promessa de compra e venda em causa não foi cumprido.
8- Na sequência da insistência da (…) para que a escritura fosse marcada, foi celebrado um aditamento ao contrato-promessa por documento particular datado de 3-5-2011. Doc3
9- No dia 11-7-2011 a (…) e a insolvente lavraram um documento intitulado “auto de obra” com a inventariação dos trabalhos a executar e a previsão de um prazo de 30 dias para esse efeito. Doc 26 auto e 3 fotografias
10- A (…) interpelou a insolvente por carta registada expedida a 2-8-2011, intimando-a formalmente a cumprir as suas obrigações contratuais (comparecendo à escritura em condições de cumprir integralmente o contrato-promessa), fixando um prazo para o efeito (dia 17-8-2011) e advertindo expressamente para a cominação em que incorreria caso o não fizesse (a de se considerar o contrato-promessa como definitivamente incumprido por culpa da insolvente). Carta doc 27 e talão aceitação postal doc 28
11- No mesmo dia 2-8-2011 a (…) enviou ainda à insolvente a mesma interpelação por correio eletrónico. Doc 29
12- A (…) por intermédio do seu legal representante, Sr António (…), contactou telefonicamente o Sr José (…), avisando-o da marcação da escritura pública e das consequências em que a insolvente incorreria caso a mesma não fosse outorgada.
13- A insolvente foi citada a 11-11-2011 no âmbito da ação de processo ordinário proposta pela (…) e que tramita no juízo do Tribunal Judicial de Esposende sob o nº 1193/11.7TBEPS. doc 32;
32- A (…)- Imobiliária, SA foi declarada insolvente por sentença de 3-4-2013.

Vejamos:

O Decreto-Lei 379/86 de 11/11, alargou o direito de retenção à situação da al. f), do nº1 do artº 755º, nº1/, do Cód. Civil: “beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º”.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº.4/2014, de 20 de março de 2014 fez uma interpretação restritiva dessa norma no âmbito da graduação de créditos nos processos de insolvência, uniformizando jurisprudência no seguinte sentido:

No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.

Mas tem-se consolidado na jurisprudência do STJ o entendimento de que o referido AUJ tem apenas aplicação aos contratos celebrados pelo insolvente que estejam em curso à data da declaração da insolvência nos termos e para os efeitos do artigo 102º (ou seja, aqueles contratos que o administrador judicial possa optar pela sua execução ou pela recusa do seu cumprimento), estando por isso fora da sua alçada os contratos promessa que à data da declaração de insolvência estavam resolvidos ou tinham entrado na fase do incumprimento definitivo – entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29.07.2016 (Júlio Gomes), de 19.01.2018 (Pinto de Almeida) e de 11.09.2018 (Graça Amaral).

Como refere o citado acórdão do STJ de 29.07.2016, ainda que o artigo 102º “não contenha um princípio tão geral como a sua epígrafe sugere e a solução que consagra tenha que ser integrada e completada pelos artigos seguintes – mormente em matéria de contrato-promessa pelo artigo 106.º - o certo é que o regime aí estabelecido é fundamentalmente um regime para contratos em curso ou em fase de execução, em que não há ainda cumprimento total do contrato por qualquer uma das partes. É essa execução que é suspensa e é o cumprimento, que ainda seria exigível ao devedor insolvente que o administrador pode recusar – quer essa recusa seja uma resolução ou antes deva ser concebida como uma reconfiguração contratual”.

E não sendo caso de aplicação do AUJ nº.4/2014, refere o mesmo acórdão que deve aplicar-se, estritamente, os preceitos do Código Civil, mais precisamente os artigos 755.º n.º 1 alínea f) e 442.º do Código Civil, tendo ou não o promitente comprador a qualidade de consumidor, e “a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica a interpretação restritiva proposta por um sector da doutrina: o legislador pode ter tomado a parte pelo todo e ter-se limitado a referir uma das situações socialmente mais relevantes. No entanto qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção. O legislador terá sido sensível à grande repercussão do contrato-promessa como um passo muito frequente no iter negocial que conduz à transmissão da propriedade – sendo que, de resto, o contrato-promessa pode estar associado a uma execução específica e em certos casos o promitente-comprador é mesmo um possuidor”.

Na mesma linha de orientação, também os indicados acórdãos do mesmo tribunal de 11 de Setembro de 2018 e de 9 de Janeiro de 2018 defendem que o regime geral da alínea f) do nº1 do artigo 755º do Código Civil tutela os promitentes compradores em geral, e que a interpretação restritiva segundo a qual o direito de retenção do promitente comprador depende da sua qualidade de consumidor não tem apoio na letra e no espírito da lei (2).

A recorrente não questionado os segmentos da decisão que reconheceu o crédito da recorrida e considerou definitivamente incumprido o contrato promessa em 17 de abril de 2011 por culpa da insolvente (ou seja, o contrato promessa não estava em curso à data da declaração de insolvência da promitente vendedora – 03.04.2013), e também não impugnou os factos que anunciam a traditio do imóvel para a promitente compradora, e nesse contexto a conclusão a extrair é inequivocamente no sentido da atribuição à credora recorrida do direito de retenção nos termos do artigo 755º, nº1, alínea f), do Código Civil, independentemente de ter ou não a qualidade de consumidor.

Face às considerações expendidas, impõe-se a improcedência das conclusões de recurso e, consequentemente, a manutenção da sentença recorrida.

Decisão.

Acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação.
Custas pela recorrente.
TRG. 21.02.2019

Heitor Pereira Carvalho Gonçalves (relator)
Amílcar José Marques Andrade (adjunto)
Maria da Conceição Correia Ribeiro Cruz Bucho (adjunta)

1. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas aprovado pelo Decreto-Lei nº.53/2004, de 18 de março, a que se referem as demais disposições que seguidamente são indicadas sem expressa referência a outro diploma legal.
2. O preâmbulo do Decreto-Lei 379/86 (diploma que acrescentou a referida alínea f) ao artigo 755º, do Código Civil) diz o seguinte: “tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida de que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança”.