Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
105/17.9T9CMN-A.G1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: PEDIDO CÍVEL
INSTÂNCIA CRIMINAL
CAUSA DE PEDIR
NÃO ADMISSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1- O PIC deduzido em processo penal tem que fundar-se na prática de um crime, do qual emergem (intimamente relacionadas e não só reflexamente) as perdas e danos peticionados.
2- A causa de pedir (no PIC) - atentas as razões de economia processual que fundamentam o princípio da adesão - tem que ser constituída pelos factos integradores da infração criminal..
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - Relatório

1. Em processo comum (singular) com o nº 105/17.9T9CMN a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – Juízo de Competência Genérica de Caminha, no dia 09/02/2021 foi proferido despacho de saneamento do processo, ao abrigo do disposto no art. 311º do CPP, que não admitiu o pedido cível de indemnização deduzido pela lesada, C. S., do seguinte teor (transcrição parcial):

Do pedido de indemnização civil:
C. S. deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, alegando, em súmula, que as obras que esta realizou e que concluiu, em desacordo com o licenciado, após e não obstante o seu embargo total, agravam as condições de salubridade e segurança do seu imóvel, descrito no artigo 54º e obstaculizam à iluminação, arejamento e insolação, quer do seu prédio, quer do prédio da demandada, tendo igualmente reduzido o valor do prédio urbano de que a demandante é proprietária, e bem assim tendo lesado a sua saúde física e psíquica., pela forma que concretizou. Concluiu, peticionando o ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais, que quantificou.
O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo (cf. artigo 71º do Código de Processo Penal).
De acordo com o artigo 74º nº 1 do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime.
Nos termos do artº 129º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos é regulada nos termos da lei civil, remetendo, pois, para os artºs 483º e 562º do Código Civil.

É sabido que a ilicitude civil, pode revestir, à luz do artigo 483º nº 1 do Código Civil, uma de duas modalidades:
a) – a violação do direito de outrem, abrangendo esta forma de ilicitude, os direitos subjetivos absolutos, definindo-se estes “…como o poder jurídico (reconhecido pela ordem jurídica a uma pessoa) de livremente exigir ou pretender de outrem um comportamento positivo (acção) ou negativo (omissão) ou de por um acto de livre vontade, só de per si ou integrado por um acto de uma autoridade pública, produzir determinados efeitos jurídicos que inevitavelmente se impõem a outra pessoa (contraparte ou adversário).” (cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição Actualizada, Coimbra Editora, pág. 169, sombreado nosso);
b)- a violação de norma destinada a proteger interesses alheios ou disposição legal de proteção, tratando-se, nesta modalidade, da infração “…das leis que, embora protejam interesses particulares, não conferem aos respectivos titulares um direito subjectivo a essa tutela (1); e de leis que, tendo também ou até principalmente a protecção de interesses colectivos, não deixam de atender aos interesses particulares subjacentes (de indivíduos ou de classes ou grupos de pessoas)”, aqui se integrando, desde logo, as normas penais que tutelam interesses particulares ou valores “como a vida, a integridade física, a honra, a saúde, a liberdade, a autenticidade dos documentos e das assinaturas”, as que protegem “interesses particulares, mas sem conceder ao respectivo titular um direito subjectivo, só porque um outro interesse particular mais forte se lhe sobrepõe”, e, por fim, as normas de direito económico, administrativo, fiscal ou contra-ordenacional sempre que visem “proteger interesses dos particulares, sem lhes conferir um verdadeiro direito subjectivo” (cfr. A. Varela, Das Obrigações Em Geral, Almedina 2ª Edição, Vol. I, pág. 414 a 416),
Sendo que, nos casos deste segundo tipo de ilicitude, para que o lesado tenha direito à indemnização, torna-se necessário que:
a) – à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal, compreendendo-se nesta expressão, em termos amplos, à luz do preceituado no artigo 1º, nº 2, do C.C., todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes;
b) – a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada, isto é, que não seja por simples reflexo da tutela de interesses gerais indiscriminados que a respetiva proteção ocorre; e, por último;
c) – o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar, ou seja, que se produza no próprio bem jurídico ou interesse privado que a lei protege.

Ora, no caso concreto, a arguida está acusada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, alínea b) do Código Penal, por referência ao artigo 107º, n.º 1 do Regime da Edificação e Urbanização aprovado pelo DL 555/99, de 16.12.
No crime de desobediência, o interesse protegido é a autonomia funcional do Estado, o interesse público do Estado em que as autoridades ou os seus agentes sejam obedecidos nos seus mandatos legítimos.
Assim sendo, não se trata de uma norma penal que tutele interesses particulares ou valores “como a vida, a integridade física, a honra, a saúde, a liberdade, a autenticidade dos documentos e das assinaturas”.
Impõe-se, pois, concluir que inexiste ab initio um pressuposto para a procedência do pedido de indemnização civil formulado, sendo forçoso concluir que, por tal motivo, de acordo com o artigo 74º nº 1 do Código de Processo Civil, não é legalmente reconhecida legitimidade à requerente para o deduzir e intervir nestes autos na qualidade de lesada.
Pelo exposto, não admito o pedido de indemnização civil formulado nestes autos.”
***
2 – Não se conformando com a decisão, a lesada/demandante supra identificada interpôs recurso da mesma, oferecendo as seguintes conclusões (transcrição):

“1. O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente. (Art.º 74.º n.º 1 CPP)
2. Apesar do bem jurídico protegido pela incriminação no crime de desobediência ser a autonomia intencional do funcionário, tenha ou não autoridade pública,
3. não se tutelando apenas a autonomia intencional do Estado, uma vez que o conceito de funcionário inclui os gestores e trabalhadores das empresas privadas concessionárias de serviços públicos,
4. o conceito de lesado não se confunde com o ofendido, no sentido do art.º 68.º n.º 1 al. a) CPP.
5. Ofendido é apenas o que for titular dos interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação, enquanto o lesado é toda e qualquer pessoa que, segundo as normas do Direito Civil, tenha sido prejudicada em interesses seus juridicamente protegidos, ou seja, todos aqueles que sofreram danos e que, segundo as regras do Direito Processual Civil tiverem legitimidade para formular o pedido de indemnização.
6. O lesado pode confundir-se com o ofendido – titular dos interesses especialmente protegidos com a incriminação – quando o ofendido sofra danos indemnizáveis segundo o Direito Civil,
7. mas pode haver pessoas lesadas com o crime e, por isso, titulares do direito a indemnização civil, que não sejam titulares dos interesses especialmente protegidos com a incriminação.
8. Apesar de a norma penal prevista no crime de desobediência não tutelar interesses particulares ou valores “como a vida, a integridade física, a honra, a saúde, a liberdade, a autenticidade dos documentos e das assinaturas”,
9. isso não significa que a ora Recorrente não tenha sofrido danos ocasionados pela prática do crime.
10. Apesar de se poder entender que a ora Recorrente não é ofendida, por não ser titular dos interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação no crime de desobediência,
11. ter-se-á de considerar a mesma enquanto lesada, atento que, segundo as normas do Direito Civil, foi prejudicada em interesses juridicamente protegidos, tendo sofrido danos, em particular, patrimoniais e não patrimoniais,
12. assistindo-lhe, por isso, segundo as regras do Direito Processual Civil, legitimidade para formular o pedido de indemnização.
13. A violação do direito de outrem previsto no art.º 483.º CC diz respeito à violação de direitos subjectivos, entre outros, os de propriedade e de personalidade.
14. Daí que a modalidade da ilicitude em apreço nos autos, seja a violação do direito de outrem e não a violação de norma destinada a proteger interesses alheios.
15. Os direitos absolutos da ora Recorente i) de propriedade e
16. ii) de personalidade sobre a sua integridade física, saúde física e psíquica, de tranquilidade, de bem-estar físico e psíquico e de liberdade física e psicologica pela prática do crime sub judice, foram violados e pela sua gravidade merecem a tutela do direito. (Art.º 70.º CC)
17. E, por ter sofrido prejuízos (danos patrimoniais e não patrimoniais) com a prática do crime de desobediência, apesar de neste (crime) não ter intervenção,
18. assiste o direito à Recorrente de lhe ver ser reconhecida legitimidade para deduzir pedido de indemnização e intervir na qualidade de lesada nos presentes autos.
19. Face ao exposto, nada mais é necessário alegar a V. Ex.as para que se demonstrar que o Tribunal a quo ao considerar que não é legalmente reconhecida legitimidade à ora Recorrente para deduzir pedido de indemnização e para intervir nos presentes autos na qualidade de lesada, violou o disposto nos art.os 68.º n.º 1 al. a), 71.º, 74.º CPP, 129.º CP, 70.º, 483.º, 487.º, 496.º, 562, 563.º e 566.º CC.

O recorrente indica, ao abrigo do disposto nos art.os 646.º n.os 1 e 3 CPC ex vi 4.º CPP, as seguintes peças do processo, disponibilizadas por via electrónica, de que pretende certidão para instruir o recurso:
- decisão proferida pelo Tribunal a quo no dia 09.02.2021, ref.ª 46400972;
- pedido de indemnização civil formulado pela recorrente no dia 12.06.2020.
- acusação deduzida pelo MP no dia 09.01.2020;

Termos em que, e no que mais Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, alterar-se a decisão sobre a matéria de direito nos termos expostos e revogar-se o despacho recorrido, tudo de molde a que seja admitido o pedido de indemnização formulado pela demandante, ora Recorrente, com o que se fará
INTEIRA JUSTIÇA.”
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3 – A recorrida/demandada, E. M., apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição):
” 1- Através do ilícito típico consubstanciado no crime de desobediência, p. e p. no artigo 348.º do Código Penal, pretende tutelar-se a autonomia intencional do Estado na vertente da subordinação às ordens legalmente emanadas das autoridades – Estado e seus agentes – sem que tenha de considerar-se a violação de quaisquer direitos de outrem (particulares) ou interesses alheios.
2- No crime em apreço, tal como vem configurado, não estamos sequer perante a violação de uma norma penal que tutele interesses de particulares e designadamente valores como a vida, a saúde, a integridade física, a honra, a liberdade ou a autenticidade de documentos ou assinaturas, ou ainda perante um crime decorrente do incumprimento de uma ordem de embargo judicial que tivesse sido suscitado pela recorrente.
3- A recorrente nunca deduziu, de forma atempada e no uso das prerrogativas que a lei lhe conferia, qualquer providência cautelar, nomeadamente de embargo judicial para travar a edificação que entende que a prejudica e também não apresentou queixa-crime contra a arguida pelos factos que sustentam a sua pretensão indemnizatória, enquadráveis em concretos tipos legais de crime, como sejam, nomeadamente, o de dano e/ou ofensa à integridade física/saúde.
4- A recorrente pretende ser admitida como lesada e que o seu pedido cível seja admitido, numa tentativa de colmatar as consequências da sua inércia e consequente preclusão do direito de queixa que não exerceu atempadamente, para conseguir uma condenação cível a que de outro modo não teria direito.
5- Ao optar pelo Princípio da Adesão, consagrado no artigo 71.º do CPP, o legislador não pretendeu acolher o titular do direito de queixa que não exerceu adequada e atempadamente o seu direito no processo próprio, de acordo com os elementos do tipo legal de crime em que os factos se enquadram e são geradores de responsabilidade civil, mas os lesados que tenham na base da sua pretensão uma conduta criminal de que decorram necessariamente os danos reclamados.
6- Não é o caso dos autos, pois como a recorrente refere e reconhece os seus alegados danos e lesões decorrem da edificação em si (“decorrerem das obras que esta realizou e que concluiu em desacordo com o licenciado e após em desrespeito da ordem legitima que lhe fora regularmente comunicada de embargo de tal obra”) e não da desobediência ao embargo de que a ora recorrida vem acusada.
7- Deste modo, a pretensão da recorrente consubstancia um manifesto abuso de direito, pois lança mão deste expediente para inverter as consequências da sua inércia, decorrentes do não exercício do direito de queixa que lhe assistia.
8- Finalmente, a recorrente conformou-se com a decisão que não admitiu a sua intervenção nos presentes autos na qualidade de assistente.

Nestes termos e melhores de direito que V.ªs Ex.ªs melhor e doutamente suprirão, não deve ser concedido provimento ao recurso interposto e, em consequência, deverá manter-se a douta decisão recorrida que indeferiu o pedido cível formulado por C. S. não lhe reconhecendo legitimidade para intervir na qualidade de lesada, com todas as consequências legais, por não conter qualquer violação das normas apontadas nas doutas conclusões.
Assim decidindo, V.ªs Ex.ªs farão a habitual JUSTIÇA!”
4 – Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, considerando que o recurso se restringe a matéria cível, não emitiu parecer.
5 – Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, al. b), do Código de Processo Penal.
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II - Fundamentação

1 - O objeto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extraiu da respectiva motivação (artº 412º, nº 1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas (artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal) – cf. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48.
2 - A única discordância da recorrente consiste na não admissão do pedido cível de indemnização deduzido, por entender que devia ter sido recebido.
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III - Apreciação do recurso

Como é entendimento uniforme, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
Assim, o tribunal de recurso somente tem que apreciar as questões suscitadas pelo recorrente e constantes das respectivas conclusões. Isto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam nulidades não sanadas e vícios decisórios (artigo 410º, nºs. 2 e 3, do CPP).
No caso em apreço não se vislumbra qualquer nulidade ou vício que devam ser conhecidos oficiosamente.
A recorrente apenas questiona a decisão do Tribunal a quo de não admissão do pedido cível de indemnização que deduziu.
Em síntese, a recorrente entende que mesmo não sendo titular dos interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação no crime de desobediência e que o bem protegido com a incriminação seja a autonomia intencional do Estado, não significa que a lesada/recorrente não tenha sofrido danos ocasionados pela prática do crime.
Tendo sido prejudicada em interesses juridicamente protegidos e sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais, segundo as regras do Direito Processual Civil, a lesada tem legitimidade para formular o pedido cível de indemnização.
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Analisemos a situação processual dos autos:

- A arguida foi acusada da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348°, n° 1, alínea b), do Código Penal, por referência ao artigo 107°, n° 1, do Regime da Edificação e Urbanização aprovado pelo DL 555/99, de 16.12;
- A demandante/recorrente formulou pedido cível de indemnização contra a arguida/demandada E. M., alegando que as obras feitas por esta, em desacordo com o licenciado e apesar de terem sido embargadas, agravam as condições de salubridade e segurança do seu imóvel, afectando a iluminação, arejamento e insolação do mesmo, tendo reduzido o valor deste e lesado a saúde física e psíquica da demandante.

Apreciando.
O ilícito criminal imputado à arguida está inserido no Capitulo II – “Dos crimes contra a autoridade pública”, Secção I – “Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública”, do Título V – “Dos crimes contra o Estado”, do Livro II do Código Penal.
Neste Capítulo estão tipificados os crimes de “Resistência e coacção sobre funcionário” (art. 347º), de “Desobediência” (art. 348º) e de “Falsas declarações” (art. 348º-A).
Segundo a estatuição legal, comete o crime de desobediência: “1 – Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, (…) se: (…); b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação. “.

Como salienta Cristina Líbano Monteiro, in “Comentário Conimbricense do Cód. Penal”, “(…) o artigo que se comenta incrimina a pura desobediência, a desobediência em si, desligada de quaisquer consequências; a desobediência sem violência, sem distúrbio da ordem e tranquilidade públicas, sem propósito de subversão da ordem democrática constituída.”, considerando significar afinal “um poderoso alargamento da área de protecção da autonomia intencional do Estado”.

Com relevo para a decisão, importa recordar o preceituado:
- no art. 129º do Cód. Penal, sob a epígrafe “Responsabilidade civil emergente de crime”: “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.”;
- no art. 71º do Cód. Proc. Penal, sob a epígrafe “Princípio da adesão”: “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, (…)”;
- no art. 74º, nº 1, do Cód. Proc. Penal, sob a epígrafe “Legitimidade e poderes processuais”: “O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, (…).” – todos os sublinhados são nossos.
Estando a legitimidade definida em norma específica do CPP, não se justifica o recurso às normas estabelecidas no CPC, como faz a recorrente, por inexistência de qualquer lacuna que haja de preencher.
Apesar da diversidade de conceitos usados pela lei (ocasionado, fundado e emergentes), não podem restar dúvidas que o fundamento, a causa de pedir do pedido cível tem que ser matéria intimamente ligada ao crime objecto do processo, isto é, constituída pelos factos que integram a infracção criminal.
Como se refere no sumário do Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 17/04/2013 (proc. 897/06.0TAOVR.P1 - relator: Desemb. Castela Rio): “IV- A causa de pedir do pedido de indemnização civil objecto, posto que deduzível, em processo penal é única e exclusivamente o facto tipicamente ilícito e culpável integrado por todos os seus elementos objectivos e subjectivos constitutivos de um tipo legal previsto e punido como crime concomitantemente consubstanciador de um facto tipicamente ilícito civil extra contratual ou extra obrigacional culposo e causalmente danoso responsabilizante criminal e civilmente do agente singular ou (…). V- Assim, padece da nulidade insanável «violação das regras de competência do tribunal» todo o processado desde o momento da dedução de pedido de indemnização civil, inclusive a Decisão Final condenatória que sobre ele recair, quando fundado em causa de pedir diversa daquela.”

No caso em apreço, a factualidade a apurar para o preenchimento dos elementos típicos do crime de desobediência fica limitada à demonstração da ordem legítima emanada por entidade competente (embargo da obra) e ao não acatamento/violação da mesma por parte da arguida, de modo doloso, prescindindo do apuramento das concretas obras levadas a cabo.
Pode até imaginar-se o caso de a violação ter natureza meramente estética, sendo “inócuas” para a recorrente, mas não deixando de beneficiar da tutela legal (v.g., o caso em que o projecto definisse a colocação de janelas com caixilho em madeira e fossem aplicadas com caixilho em alumínio).
Como refere a demandada/recorrida “(…) a modalidade de ilicitude em apreço nos autos não é a violação do direito de outrem, mas sim a violação da ordem emanada da autoridade competente, consubstanciada no embargo, que por sua vez não tem que ter subjacente a violação de qualquer interesse de terceiros, designadamente de particulares, para ser ordenado e decretado, bastando-lhe a violação das normas da construção para ser imposto.”.
Como bem salienta a Mma. Juíza: ““No crime de desobediência, o interesse protegido é a autonomia funcional do Estado, o interesse público do Estado em que as autoridades ou os seus agentes sejam obedecidos nos seus mandatos legítimos.
Assim sendo, não se trata de uma norma penal que tutele interesses particulares ou valores “como a vida, a integridade física, a honra, a saúde, a liberdade, a autenticidade dos documentos e das assinaturas”.””
Em suma, a causa de pedir no pedido cível deduzido pela demandante não é constituída pelos factos integradores da infracção criminal, não está intimamente ligada a esta, mas apenas com ela relacionada de modo reflexo, pelo que a recorrente carece de legitimidade para deduzir o pedido cível de indemnização no processo penal.
Demais a mais quando a recorrente não apresentou queixa pelos factos ilícitos, nem foi admitida a intervir nos autos como assistente (conformando-se com esta decisão).
Ora o “princípio da adesão” justifica-se por razões práticas de economia processual (bem como de prevenção de eventual contradição de julgados), aproveitando a prova produzida quanto à parte penal para a decisão civil, evitando a necessidade de renovar provas já produzidas.
No presente caso, o ressarcimento dos prejuízos alegadamente sofridos pela lesada exigiria a demonstração não só da natureza e dimensão das concretas obras realizadas, em toda a sua dimensão (para apuramento dos danos invocados), ultrapassando as finalidades visadas com o princípio da adesão.
O recurso improcede.
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IV – DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pela demandante C. S., confirmando o despacho recorrido.
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Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 3 UC (três unidades de conta) – artigos 523º do CPP e 8º, nº 9 e tabela III anexa ao RCP.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
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Guimarães, 27 de Setembro de 2021

(Mário Silva - Relator)
(Maria Teresa Coimbra - Adjunta)