Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3455/07.9TBGMR-A.G2
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator)

1) Sendo nulo o contrato de crédito ao consumo (nos termos do Decreto-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro) no âmbito de cuja negociação pelo mutuário foi assinada e entregue uma livrança dada à execução, preenchida pela mutuante/exequente ao abrigo de invocada cláusula contratual que a tal a autorizava, cláusula esta sempre de considerar excluída e inexistente (nos termos do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro) e, assim, dado que a assinatura e a entrega da livrança pelo embargante não correspondem a uma vontade, livre e esclarecida, de contrair uma obrigação cambiária e que o seu preenchimento pela embargada não se funda, muito menos se ajusta, a qualquer pacto de preenchimento, “é forçoso concluir que a livrança dada à execução deixou de incorporar qualquer dívida” – como se diz na sentença – a cujo pagamento aquele esteja obrigado, não podendo servir de título executivo, com a fatal consequência de a execução dever ser julgada extinta, como foi.

2) A tal não obsta o, pela embargada, invocado abuso de direito. Estando em causa, nos embargos, apenas a validade e exequibilidade de tal livrança e apesar de o embargante ter pago 58 das 72 prestações convencionadas e não ter reagido à comunicação de resolução do contrato por incumprimento, o certo é que, só tendo sido citado para a execução, com base naquela deduzida, cerca de 10 anos depois de ter deixado de cumprir, não se demonstra que antes tivesse consciência daqueles vícios e direito deles adveniente nem da cláusula relativa à autorização de preenchimento da livrança e consequente criação do título válido e apto a poder ser com base nele executado nem que, pelo passar do tempo, tivesse contribuído, em atitude de má-fé, para gerar na embargada a crença de que não os invocaria.

3) De resto, é necessário, para proceder o abuso de direito, que quem o invoca (o financiador) também esteja de boa fé e não, como parece suceder no caso, “a agir de má fé no âmbito da mesma base factual na qual alega a má fé do consumidor”.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Em 07-08-2007, a exequente (…) SA, instaurou, no Tribunal de Guimarães, com base numa livrança, execução para pagamento da quantia de 5.368,24€, contra o executado (…) (e esposa), seu subscritor.

Este foi citado nela, em 16-12-2017.

Na sequência, em 24-01-2018, beneficiando de apoio judiciário, deduziu embargos de executado, por apenso.

Pediu, neles, que sejam julgadas procedentes as excepções e, em consequência julgada extinta a instância executiva com os devidos efeitos.

Alegou, para tal, resumindo, que o requerimento executivo é inepto (por dele não se aferir a legitimidade do exequente e nele não se referirem factos que sustentem o pedido).

O valor aposto na livrança é exorbitante (pois estão prescritos os juros vencidos no período de cinco anos que antecedeu 2013).

Encontrando-se doente, não se recorda de ter subscrito qualquer livrança, muito menos esta (dado o tempo decorrido).

Assentando o preenchimento da mesma num pretenso contrato, o certo é que este foi elaborado e redigido pela exequente, a qual definiu os dizeres dele constantes para ser apresentado a todos aqueles que com ela negociassem um crédito daquele tipo.

Em nenhum momento lhe foi conferida a possibilidade de intervir na respectiva negociação ou de modificar qualquer das suas cláusulas. Interveio apenas aquando da assinatura “dos referidos documentos”, tendo-se limitado a apô-la nos locais que lhe foram indicados para esse efeito, sendo que tal contrato é composto por um vasto clausulado escrito em letras muito minúsculas, pouco ou nada perceptíveis, que comporta um exigente conhecimento de conceitos técnico-jurídicos.

Contudo, quer antes, quer aquando da sua assinatura, ou mesmo depois, a exequente não lhe entregou qualquer documento “relacionado com aqueles escritos”, não lhe comunicou qualquer das cláusulas que os integram e também não lhe prestou qualquer informação sobre esse assunto, sequer lhos leu ou explicou.

Acresce que, no momento da suposta subscrição da livrança não foi aposto qualquer valor, nem foi indicada qualquer data de emissão ou vencimento, desconhecendo também em que condições, mormente vencimento e valores, podia ser preenchida, bem como o propósito da sua alegada assinatura.

A livrança foi, assim, preenchida após ter sido assinada em branco (item 17), e sem consentimento, muito menos válido, do embargante, limitando-se a embargada, na pessoa do seu funcionário/representante, “após assinaturas”, a referir que, dentro de dias, lhe seria enviada toda a documentação.

Nunca, designadamente, aquela o esclareceu do real significado e implicações dos dizeres apostos na cláusula 14ª, ponto 3, das Condições Gerais do Contrato (relativa a autorização para preenchimento da livrança e respectivas condições), como era sua obrigação, nos termos do Decreto-Lei nº 446/85 (maxime artºs 1.º e 5.º, n.ºs 1 e 2), de modo a formar e a ter a sua vontade livre e esclarecida no momento da subscrição ou adesão, o que acarreta a exclusão de tais cláusulas (art. 8.º, do aludido DL n.º 446/85).

Assim, o título dado à execução, além de assentar numa relação viciada, foi assinado em branco mas abusivamente preenchido, nunca o embargante a tendo autorizado a fazê-lo, designadamente quanto ao valor e data de vencimento.

Indicou prova testemunhal, requereu depoimento e declarações de parte e pediu a notificação da parte para juntar diversos documentos e prestar informações.

Foram recebidos os embargos.

Uma vez notificada, a exequente/embargada contestou, impugnando toda a factualidade, designadamente por falsa, refutando a ineptidão (por a livrança, enquanto título executivo, atentos os princípios que regem as relações cartulares, ser suficiente e dispensar qualquer referência à relação jurídica subjacente, embora nela se identifique o respectivo contrato) e a prescrição (pois que o requerimento executivo deu entrada em 14-08-2007 e a sua data de vencimento era 15-02-2007).

Quanto ao dito contrato, alegou, que, entre o exequente e o executado e a esposa deste, foi celebrado, em 29-08-2001, o acordo intitulado contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouro (contrato n.º 123311, cujo teor consta, por cópia, do doc. n.º 1 junto (fls. 18 vº e 19) e original a fls. 83, mediante o qual lhes concedeu um empréstimo, no montante de 5.461.800$00 (€27.243,34), para aquisição de um veículo, obrigando-se eles a pagar-lhe 72 prestações.

Ambos o assinaram.

Foi, ainda, convencionado e nele consta que o embargante teria que assinar uma livrança – o que fez na data de outorga do contrato - e autorizar, em caso de não cumprimento do mesmo, o mutuante a preenchê-la pelo valor devido, em caso de incumprimento – cláusula 14ª nº 3.
Foi, pois, no pleno conhecimento de todos estes factos que o Embargante/Executado assinou o referido contrato de financiamento e a aludida livrança em branco, que, aliás, está unida ao contrato de mutuo e do qual faz parte integrante, sendo que, na parte superior do respectivo destacável (cfr. cópia junta ora a fls. 21), estão transcritos os dizeres da clausula 14ª, nº 3, da convenção de preenchimento inserta nas Condições Gerais do Contrato.

Salientou que o embargante, afinal, não põe em causa que subscreveu a livrança, a qual contém todos os requisitos essenciais (artºs 28º, 75º e 78º, da LULL), ficando vinculado como tal ao seu pagamento (tal como a co-executada).

O embargante autorizou o preenchimento da livrança, nos termos em que a embargada o fez, bem como a sua imediata apresentação a pagamento na hipótese de incumprimento do contrato.

Conforme refere a alínea 3, do n.º 14, das Condições Gerais do Contrato de financiamento: “Os mutuários… sem necessidade de novo consentimento, autorizam expressamente a Crédito ... a preencher e completar os títulos de crédito que este(s) lhe entregar(em), devidamente subscritos pelos mutuários mas não integralmente preenchidos, nomeadamente quanto a data, local de pagamento e valor, o qual corresponderá ao saldo em dívida de capital, juros e demais encargos e despesas emergentes do contrato, podendo a Crédito ... fazer de tais títulos o uso que entender, na defesa do seu crédito”.

Tal possibilidade de preenchimento posterior, assim autorizada, corresponde, aliás, à prática bancária.

Como o embargante/executado apenas pagou 58 das 72 prestações mensais previstas, não obstante as diversas interpelações para o efeito, o contrato foi resolvido (conforme comunicação, por carta registada, datada de 02-02-2007, dirigida ao embargante e esposa, dando-lhes conta disso, do valor das obrigações vencidas, de que as mesmas se encontravam tituladas pela livrança por eles subscrita e de que, na falta de pagamento, seria instaurada execução (cfr. cópia junta a fls. 23).

Assim, o valor da livrança 1.056.227$00 (€5.268,44) e a respectiva data de vencimento foram-lhes devidamente comunicados e o seu preenchimento foi feito respeitando a lei e as condições contratadas, inexistindo preenchimento abusivo (cláusulas 9ª e 14ª), não havendo preenchimento abusivo.

Quanto à alegada falta de explicação do clausulado e de entrega do mesmo, salienta (retoricamente) o que entende serem incongruências da alegação do embargante sobre isso ao dizer ora que não se recorda ora que se recorda de tais omissões, e defende que a aposição da assinatura pelo embargante no contrato e livrança é uma forma de manifestar a vontade de se vincular nos termos que constam desse documento, sabendo ele da dívida que deu origem à livrança dada à execução e na sequência de cujo contrato ela foi entregue ao exequente, estando mencionado nela o respectivo número.

De resto, os executados, durante o tempo em que cumpriram o contrato (pagaram 58 das 72 prestações), nenhuma dúvida tiveram sobre a existência e conhecimento do contrato, tão pouco sobre isso contactaram a exequente, não entregaram o veículo, pelo que agem em abuso de direito, pretendeno apenas eximir-se da sua obrigação e litigando de má-fé.
Concluiu que os embargos devem ser julgados improcedentes.

Indicou prova testemunhal e juntou os documentos alusivos ao contrato, a livrança e a carta/comunicação.

Notificado, o embargante respondeu que “desconhece a veracidade, autoria, letra e assinatura dos documentos n.ºs 2 e 3 – o contrato e a livrança –, o que equivale a impugnação para os devidos efeitos legais, impugnando ainda os demais documentos juntos na contestação, não só por desconhecer a veracidade da letra e teor mas também quanto aos efeitos e consequente prova que com os mesmos a exequente pretende fazer”, bem como o alegado sobre a litigância de má fé, defendendo que esta deve ser julgada improcedente.

Subsequentemente, por decisão de 21-03-2018, foi dispensada a audiência prévia, fixado o valor da causa e proferido saneador, no qual, além do mais, foram julgadas improcedentes a ineptidão e a prescrição (da obrigação cambiária e dos juros) e, considerando que o estado dos autos – “atentos os factos já firmados pelo acordo das partes e o teor do título executivo e demais documentos juntos” – permitia decisão de mérito, foi esta logo proferida, julgando-se improcedentes os embargos e a arguida litigância de má-fé.

O embargante não se conformou e apelou a esta Relação, que, por Acórdão de 04-10-2018 (fls. 50 a 73), julgou procedente tal recurso e, dando-lhe provimento, revogou aquela decisão na parte do saneador que conhecera logo do mérito e determinou o prosseguimento para audiência final nos termos do artº 596º.

Baixados os autos, foi dispensada, ao abrigo do artº 597º, a identificação do objecto do litígio, bem como a enunciação dos temas da prova, resolvidos os requerimentos de prova e marcada a audiência de discussão e julgamento.

Esta realizou-se, nos termos e com as formalidades descritas na acta respectiva (fls. 85 a 87), no seu decurso tendo sido tomadas declarações de parte ao embargante e o depoimento de quatro testemunhas arroladas pelo embargado.

Após, com data de 09-01-2019, foi proferida a nova sentença, desta feita julgando procedentes os embargos e declarando extinta a instância executiva (fls. 88 a 94).

Não se conformou a embargada que, por isso, apelou a esta Relação no sentido de que revogue a sentença e julgue improcedente a oposição, tendo alegado (fls. 97 a 106) e apresentado como conclusões:

“I - Concretos pontos de facto de que se consideran incorrectamente julgados

- a) O executado/embargante autorizou o preenchimento do referido título de crédito pela Exequente/Embargada, pelo valor de capital, juros, despesas € outros encargos que estivesse em divida à data do incumprimento, bem como a sua imediata apresentação a pagamento, na falta de cumprimento de qualquer uma das obrigações contratuais da executada/embargante.
- b) A exequente, aquando a assinatura do contrato e subscrição da livrança, entregou um exemplar do contrato ao embargante.

II - Concretos meios probatórios constantes do processo ou da gravação nele realizada que impunha decisão diversa

C) O teor da contestação apresentada pelo recorrido/embargante;
D) O depoimento de parte do recorrido e o depoimento de parte da testemunha

III - Decisão que no entender da recorrente deve ser proferida sobre as questões impugnadas:

F) Resulta inequívoca da prova supra indicada que a matéria de facto em cima referida como não provada deve ser transitada para a matéria provada nos seguintes termos:
G) O executado/embargante autorizou o preenchimento do referido título de crédito pela Exequente/Embargada, pelo valor de capital, juros, despesas € outros encargos que estivesse em divida à data do incumprimento, bem como a sua imediata apresentação a pagamento, na falta de cumprimento de qualquer uma das obrigações contratuais da executada/embargante.
H) A exequente, aquando a assinatura do contrato e subscrição da livrança, entregou um exemplar do contrato ao embargante.
I) Face à matéria de facto provada com o aditamento ora requerido fica claro que o recorrido/embargante não tem qualquer fundamento capaz de opor à execução pelo que a mesma deve improceder.

Sem Prescindir

J) Mas ainda que se entenda que a exequente não logrou fazer prova da entrega ao executado/opoente da cópia ou duplicado do contrato sempre o comportamento do recorrido ao longo de 18 anos foi no sentido de criar na recorrente a convicção que jamais invocaria qualquer nulidade capaz de obstar á validade do contrato e a sai consequente resolução por incumprimento.
L) O embargante procedeu ao pagamento de 58 prestações das 72 contratualizadas.
M) Está provado que o recorrido recebeu o financiamento que lhe permitiu a aquisição do veiculo automóvel referido no ponto 23 da matéria de facto
N) Está provado ainda que o embargante e a executada se obrigou a pagar a exequente 72 mensalidades e que subscreveu e entregou a recorrente a livrança junta nos autos de execução,
O) Está provado que o embargante apenas pagou 58 prestações.
P) Não existe por parte dos embargantes qualquer invocação da falta de entrega de um exemplar ao longo de um largo período de tempo, bem como de facto nunca invocou tal ao recorrente apesar dos inúmeros contactos ocorridos entre o embargante e a executada.
Q) A qual refere:
R) Nem tão pouco foi transmitido à exequente, em qualquer desses contactos, que o executado desconhecia o contrato, sequer a exequente foi contatada pelo executado/opoente questionando o teor das cláusulas do contrato;
S) O incumprimento contratual deveu-se à falta de condições económicas, como resulta dos depoimentos quer do embargante quer da esposa do mesmo.
T) Ora, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.».
U) Refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2008 (n.º convencional JTRP00041575; n.º de documento RP200806260833784), disponível na íntegra na base de dados do ITIJ da internet -http://www.dgsi.pt/jtrp. -«(...) pretender(...)[o executado/opoente] servir-se da alegada nulidade emergente a falta de entrega do exemplar do contrato, depois de pagas as primeiras (...) [58] prestações mensais, e ---pior ainda--decorridos... (...)[quase 17 anos](!!) sobre a celebração do contrato de financiamento--naturalmente porque a situação financeira deixou de ser de molde a poder sustentar-se esse encargo (...)-, consubstancia, sem dúvidas para nós (salvo sempre o devido respeito, obviamente, por diferente opinião), uma situação de exercício ilegítimo de um direito (o aludido direito de anulação...), por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé(...)»
V) provou-se que: ( “..foi remetida para a morada indicada nesse contrato pelo embargante, a carta de resolução do contrato , junta a fls 23 , cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos”) .
X) Desde 02-02-2007, data da referida carta, que o executado/opoente tinha conhecimento do valor que permanecia em dívida e, no entanto, não resulta dos autos que tenha então tido qualquer reação (nomeadamente suscitando então a questão do desconhecimento das cláusulas do contrato, face à comunicação do valor em dívida).
Y) A falta de pagamento das restantes prestações se deveu apenas e tão só à precária situação económica do embargante,
Z) Refere o acórdão da Relação de Lisboa processo n.º 603-06.0TBPTS-A.L1-6 -Data do Acordão: 14-09-2017:…”Podendo deduzir-se com segurança dos factos concretos dos autos que o incumprimento dum contrato de crédito ao consumo nenhuma relação teve com a aplicação de qualquer cláusula desconhecida para o mutuário em função da não entrega de um exemplar do contrato, a invocação da nulidade decorrente da não entrega do exemplar constitui abuso de direito.”
AA) O embargante beneficiou de todo o capital mutado e da viatura que o mesmo permitiu adquirir, utilizou-a em seu proveito exclusivo dispondo dela como entendeu.
AB) Podendo mesmo aliená-la. E pagou 58 prestações referente ao capital mutuado.
AC) Deixando de pagar as demais por razões pessoais que se inserem em eventual dificuldade financeira e à qual a recorrente é completamente alheia
AD) Este comportamento do embargante criou a convicção séria na recorrente que jamais viria invocar uma qualquer irregularidade /formalidade para obstar aos pagamentos em falta.
AE) Bem sabe o embargante que os tem e que contratualmente os devia liquidar, até porque nunca esteve e causa a posse ou a propriedade do veículo que adquiriu com o capital mutuado.
AF) Tal formalidade no entender do recorrente incapaz de abalar a convicção gerada pelos inequívocos comportamentos do embargante perante o recorrente de que jamais invocaria a nulidade como forma de obstar aos pagamentos em falta.
AG) Impõe-se, pois, o reconhecimento e declaração do exercício abusivo pelo executado/opoentes do direito de invocar a nulidade do contrato por falta de entrega de cópia, com a consequente obstaculização ao exercício em abuso desse direito –in casu, determinando que a consequência (nulidade do contrato) da ausência da comunicação e da entrega de duplicado deixem de funcionar, pelo que improcede, por força da exceção do abuso de direito, a arguida nulidade do contrato.

TERMOS EM QUE, E sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a douta sentença recorrida, substituindo-se a mesma por outra douta decisão que, julgando improcedente a oposição à execução, determine o prosseguimento dos normais termos da execução correspondente, até final, com todas as legais consequências,
Como é de Inteira e Sã Justiça!”

Não foi apresentada resposta.

Em despacho tabelar, o recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, e declarou-se não se vislumbrar qualquer irregularidade ou nulidade.

Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.

Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, importa apreciar e decidir se:

a) Deve alterar-se a matéria de facto;
b) Devem, em consequência, julgar-se improcedentes os embargos;
c) Deve, em todo o caso, proceder a excepção de abuso de direito.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido decidiu assim quanto à matéria de facto:

3.1-. Factos provados com relevância para a decisão da causa:

1.- Entre o ora Exequente/ embargado, por um lado, e A. F. (ora Embargante) e M. S. (esposa do embargante), por outro lado, foi celebrado, em 29-08-2001, o acordo intitulado contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouros, contrato n.º 123311, junto a fls. 83, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
2.- Nos termos do contrato identificado em 1., a Embargada/Exequente lhes concedeu um empréstimo tendo em vista a aquisição do veículo automóvel de marca MITSUBISHI, modelo L 200, matricula LL, no montante global de 5.461.800$00. (€ 27243,34 (vinte sete mil duzentos e quarenta e três euros e quarenta e quatro cêntimos), tendo o embargante e a executada aí aposto a sua assinatura na qualidade de mutuários.
3.- Nos termos do clausulado no referido contrato, o embargante e a co executada obrigaram-se a pagar à exequente 72 mensalidades no montante de 75.692$00, [€377,55] sendo a primeira mensalidade e nunca superior a 75.691$66, conforme resulta do contrato de financiamento.
4.- Aquando a celebração desse contrato, o embargante subscreveu e entregou à exequente a livrança junta a fls. 10 dos autos de execução, mas em branco.
5.- Acontece que o embargante/executado apenas pagou 58 das 72 prestações mensais previstas.
6.- Tal situação veio a determinar a resolução do contrato e preenchimento da livrança pelo valor contante da mesma.
7.- Foi remetida para a morada indicada nesse contrato pelo embargante, a carta de resolução do contrato, junta a fls. 23, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
8.- Após, a exequente procedeu ao preenchimento da livrança pelo valor de 1.056.227$00 (€5268,44), opondo-lhe ainda a como data de vencimento o dia 29-08-2001.
9.- Refere o contrato identificado em 1., na alínea 3 do n.º 14 das condições gerais, que: “Os mutuários … sem necessidade de novo consentimento, autorizam expressamente a Crédito ... a preencher e completar os títulos de crédito que este(s) lhe entregar(em), devidamente subscritos pelos mutuários mas não integralmente preenchidos, nomeadamente quanto a data, local de pagamento e valor, o qual corresponderá ao saldo em dívida de capital, juros e demais encargos e despesas emergentes do contrato, podendo a Crédito ... fazer de tais títulos o uso que entender, na defesa do seu crédito”.
**
3.2.- Factos não provados com relevância para a decisão da causa:

Não se provaram os demais factos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes, nomeadamente, os seguintes:

- O executado/embargante autorizou o preenchimento do referido título de crédito pela Exequente/Embargada, pelo valor de capital, juros, despesas e outros encargos que estivesse em dívida à data do incumprimento, bem como a sua imediata apresentação a pagamento, na falta de cumprimento de qualquer uma das obrigações contratuais da executada/embargante.
- A exequente, aquando a assinatura do contrato e subscrição da livrança, entregou um exemplar do contrato ao embargante.
**
3.3.- Convicção do tribunal:

Para além dos factos firmados pelo acordo das partes, expressos nos respetivos articulados, o tribunal formou a sua convicção no conjunto da prova documental junta aos autos e testemunhal produzida na audiência de julgamento, apreciada à luz das regras de experiência comum e de normalidade, nomeadamente na conjugação do teor do contrato junto a fls. 83, com o teor da livrança junta a fls. 10 dos autos de execução, com o teor da missiva junta a fls. 23.

Com efeito, os factos provados apenas foram sustentados nos documentos juntos aos autos porquanto nenhuma das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento, funcionários da exequente, A. G., F. B. e V. F., presenciou a celebração desse contrato entre o embargante e o intermediário da exequente (stand de automóveis “XX”) e, por conseguinte, não logrou convencer julgador se alguma vez foi entregue algum exemplar desse contrato, confessadamente assinado pelo embargante – cfr. declarações de parte deste e petição de embargos -, a este.

Por sua vez, o embargante (em declarações de parte) e a co executada, sua mulher, M. S., não se recordam se alguma vez tiveram na sua posse um exemplar desse contrato, apesar de cumprido durante 58 meses.

Os demais factos não provados resultaram da inexistência de qualquer prova quanto à sua ocorrência.

E quanto a este aspeto podemos deixar de reiterar, mais uma vez, que a exequente não cumpriu o ónus de provar que aquando da celebração desse contrato, ou mesmo posteriormente, entregou ou enviou um exemplar desse contrato ao embargante.
Por essa razão, o tribunal deu como não provada essa factualidade. ”

IV. APRECIAÇÃO

Enquadramento

A execução que por meio deste procedimento o executado A. F. pretendeu embargar baseia-se numa livrança (título cambiário).

Em tal título executivo (ou de crédito) o embargante figura como subscritor e obrigado principal (devedor), ao passo que a embargada aí tem a posição de tomadora e beneficiária (credora).

Como é sabido, na relação cambiária ou cartular, pontificam os princípios da literalidade, da abstracção, independência e autonomia, com tudo o que isso significa e implica relativamente à pressuposta relação fundamental ou subjacente.

Da original fonte da obrigação causal normalmente pressuposta (concreta e substantiva) aparta-se e passa a girar de per si a obrigação cambiária (formal e abstracta).

É a subscrição do título que vincula o signatário, mormente perante terceiros que, por via da sua circulação, acedam à respectiva posse, embora nada tenham a ver com as convenções extracartulares que precederam a emissão e subscrição.

Por isso, nas relações mediatas, como resulta do artº 17º, da LULL, as pessoas accionadas pelo portador de uma letra ou livrança e exclusivamente com base nela (na relação jurídica cambiária), não podem eximir-se da inerente obrigação opondo-lhe as excepções que porventura subsistam fundadas sobre as relações delas com o sacador ou com os portadores anteriores (salvo se aquele tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor).

Nem mesmo o preenchimento, posterior à sua subscrição e passagem, da livrança até então incompleta, eventualmente na ausência de qualquer acordo nesse sentido ou contra os acordos realizados (o chamado preenchimento abusivo) pode ser motivo de oposição ao portador (salvo se este a tiver adquirido de má fé ou cometendo falta grave) – artº 10º, LULL.

Porém, tal preenchimento, pelo tomador, do título que estava incompleto (ou em branco) no momento em que lhe foi passado, ainda que não havendo convenção para tal ou com inobservância do nela precedentemente acordado (relações pessoais) com o subscritor (atraiçoando a sua vontade), pode ser oposto por este àquele, estando-se no domínio das relações imediatas (cambiária e subjacente) – artº 17º, LULL.

A letra, bem como a livrança, têm de, no seu conteúdo literal, obedecer a certos requisitos – artºs 1º e 75º, LULL.

Faltando algum dos considerados essenciais, o escrito não valerá como tal – artºs 2º e 76º, LULL.

Será ineficaz.

Pode, no entanto, a letra (ou a livrança) ser criada (e posta em circulação) mediante a simples aposição da assinatura de qualquer subscritor.

Importa, nessa hipótese, distinguir a letra em branco da letra incompleta.

A primeira (letra em branco) pressupõe que a sua subscrição foi feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária. Normalmente subjaz a tal acto um contrato de preenchimento que pode ser expresso ou tácito [1].

Este define-se como o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá fixar-se a obrigação cambiária, tais como o seu montante, a data do seu vencimento ou o lugar de pagamento [2].

O preenchimento posterior pode e deve ser feito (para ser válido) de harmonia e nos limites acordados. De contrário, cometer-se-á abuso de preenchimento (excepção).

Pode não haver acordo prévio (subsistindo aquela intenção). Neste caso, o preenchimento está sujeito a limites, uns derivados da relação fundamental que determinou a sua criação e outros da lei supletiva e dos usos da praça.

A segunda (letra incompleta) pressupõe a existência de um escrito, assinado, mas a ausência da referida intenção de contrair a obrigação cambiária, logo de qualquer possibilidade de válido preenchimento posterior, seja pela falta de qualquer acordo que lhe sirva de critério balizador seja, mais ainda, porque enferma de originária nulidade que, em absoluto, a fulmina e impede de existir e circular como título cambiário [3].

Será o caso de um escrito elaborado falsamente ou sem autorização ou contra a vontade (de por ele se obrigar cambiariamente) do pretenso subscritor.

No citado artº 10º, da LULL, ao referir-se a “letra incompleta no momento de ser passada” contempla-se a “letra em branco”. Ao prever-se o seu preenchimento abusivo, pressupõe-se a existência de “acordos realizados” para tal: o abuso traduz-se na inserção de requisitos “contrariamente” ao convencionado.

No presente caso, estando-se no domínio das relações imediatas, o embargante (subscritor da livrança accionada) pôs em causa – mais do que a violação pelo embargante, ao completar a letra apenas por aquele subscrita, do pacto de preenchimento, ou abuso – a própria existência jurídica e validade não só do “contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouros” mas, sobretudo, a existência jurídica e validade da cláusula 14ª, ponto 3, das respectivas condições gerais, que consubstancia a pretensa convenção a que a embargante se arrima para justificar a licitude dos termos em que completou o escrito.

Com efeito, ultrapassadas que foram as questões da ineptidão do requerimento executivo, da prescrição dos juros e assente que o embargante (apesar de sobre tal ter tergiversado invocando a sua falta de memória do facto) subscreveu (assinou) a livrança (em branco), invocou ele que o seu preenchimento, pela tomadora/credora/exequente foi abusivo.

Abusivo, na sua tese, porque, segundo os termos da petição de embargos, levado a cabo ao abrigo de uma cláusula contratual geral (14ª, ponto 3), consubstanciadora de alegado pacto, inserta num contrato (tipicamente de adesão, na acepção do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro):

-que se limitou a assinar onde lhe foi indicado;
-de que nenhum exemplar lhe foi entregue;
-de cujas cláusulas não foi esclarecido, uma vez que não lhe foram comunicadas, informadas, lidas nem explicadas;
-designadamente, quanto à referida (14ª, ponto 3), de cujo significado e implicações a embargada não o esclareceu, assim desconhecendo as condições em que a livrança foi preenchida, aliás sem seu consentimento válido.

Daí que, além de se estar perante uma relação contratual “viciada” (a subjacente), deve, pelo menos, ser considerada “excluída” de tal contrato a referida cláusula (ao abrigo do artº 8º, daquele invocado Decreto-Lei) em consequência do que, inexistindo qualquer autorização sua para a exequente a ter completado como completou, ocorre – sempre segundo a sua expressão –, preenchimento abusivo.

Não podendo, enfim, tal livrança em branco valer como título executivo, deve a execução ser julgada extinta – concluiu e pediu.

Ao invés, a embargada além de impugnar os 27 itens da petição de embargos, alegou, entre o mais, que:

-que foi “celebrado o acordo intitulado contrato de financiamento”;
-que de tal “celebração” do contrato “ficou também contratualizado” que o embargante teria que assinar – e assinou – uma livrança em branco e autorizar o seu preenchimento nos termos da cláusula 14ª, ponto 3, conforme documento;
-que ele assinou o contrato e a livrança com “pleno conhecimento”;
-que “autorizou” o preenchimento (autorização consistente – já que nada mais alega que materialize tal acto ou declaração – na mera subscrição do contrato onde consta impressa a referida cláusula);
-que a mesma foi preenchida em conformidade com o convencionado;
-que “não colhe o argumento da falta de explicação do clausulado do contrato bem como da falta de entrega do mesmo” e que tal “não é verdade”.

No entanto, além de o refutar com contra-argumentos marginais, jamais alega, a embargada, clara e incisamente, que procedeu a tal entrega e que cumpriu os deveres de comunicação e de informação.

Cremos não oferecer relevantes dúvidas que o ónus de alegação e prova dos factos integrantes do preenchimento abusivo tout court, ou seja, daquele que porventura seja executado “contrariamente aos acordos realizados” – pressupondo não só a existência e validade destes mas também o seu desrespeito –, nos termos do artº 10º, da LULL, impende, enquanto facto consubstanciador de excepção peremptória extintiva da obrigação cartular – sobre o devedor embargante, conforme artº 342º, nº 2, do Código Civil [4].

Cremos também que, no caso de o executado, ao embargar, pretender – no âmbito das relações imediatas – questionar a existência e validade da relação causal, logo da obrigação subjacente à cambiária, é, de igual modo, sobre ele que recai o ónus de alegar e provar as inerentes circunstâncias.

No caso – focando a aludida cláusula 14ª, ponto 3, consubstanciadora do invocado mas negado e questionado pacto de preenchimento e partindo do pressuposto consensual de que ela é uma cláusula contratual geral integrante de contrato de adesão – importa ter em conta o especial regime do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro (LCCG).

Com efeito, devendo tais cláusulas ser comunicadas aos aderentes, na íntegra, de modo adequado e com a antecedência necessária para possibilitar o seu conhecimento completo e efectivo, cabe ao proponente o ónus da prova da comunicação em tais termos – artº 5º, nº 3.

Deve também este informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos compreendidos nas cláusulas gerais cuja aclaração se justifique – artº 6º, nº 1.

A ele (proponente) cabe semelhantemente o ónus de provar que cumpriu tal dever [5]

Nos termos do artº 8º, consideram-se excluídas dos contratos singulares as cláusulas que: i) não tenham sido comunicadas nos termos do artº 5º; ii) que, tendo-o sido, se verifique violação do dever de informação previsto no artº 6º, de molde a que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo; iii) as que, pelo contexto em que surjam, pela epígrafe que as precede ou pela sua apresentação gráfica, passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real; iv) e, ainda, as que se encontrem inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes. [6]

Acresce que, estando-se perante contrato de crédito ao consumo e sendo-lhe aplicável, face à data da subscrição, o Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro (LCCC) [7], o mesmo, conforme estipula o artº 6º, deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, “sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura” (nº 1), devendo ainda dele constar as garantias, incluindo as condições da sua utilização (alínea g), do nº 2).

No termos do artº 7º é nulo o contrato quando não for observado o prescrito no citado nº 1 (nº 1), sendo inexigível a garantia cujos elementos não constem dele incluídos (nº 3). [8]

A inobservância de tais requisitos presume-se imputável ao credor e a invalidade do contrato só pode ser invocada pelo consumidor (nº 4, do mesmo artigo).

Naturalmente, o ónus da prova da entrega do referido exemplar e da inclusão neste da garantia e respectivas condições de utilização impende sobre o credor, enquanto factos constitutivos do seu direito (artº 342º, nº 1, CC) – no caso de preencher a livrança incompleta.

Posto isto, vamos ao recurso.

Impugnação da matéria de facto

Tendo o tribunal recorrido, no saneador, dispensado a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova e, na sentença, confinado as questões a decidir ao incumprimento da obrigação de entrega do exemplar do contrato, ao preenchimento abusivo da livrança e aos deveres de informação e de comunicação, deu ele como relevante e provado, em síntese:

-no ponto 1, que entre as partes “foi celebrado… o acordo” intitulado contrato de financiamento;
-nos pontos 2 e 3, alguns dos “termos do contrato” e que o embargante nele apôs a sua assinatura como mutuário;
-nos ponto 4 a 8, que, em simultâneo com a subscrição daquele, o embargante “subscreveu e entregou” a livrança, mas “em branco”, e que (após incumprimento e resolução), a embargada preencheu a livrança com o valor referido e data de vencimento da mesma;
-no ponto 9, o texto da cláusula 14ª, ponto 3, das condições gerais do contrato.

Ao passo que, quanto aos demais factos “com relevância para a decisão da causa”, decidiu que:

“Não se provaram os demais factos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes, nomeadamente, os seguintes:

- O executado/embargante autorizou o preenchimento do referido título de crédito pela Exequente/Embargada, pelo valor de capital, juros, despesas e outros encargos que estivesse em dívida à data do incumprimento, bem como a sua imediata apresentação a pagamento, na falta de cumprimento de qualquer uma das obrigações contratuais da executada/embargante.
- A exequente, aquando a assinatura do contrato e subscrição da livrança, entregou um exemplar do contrato ao embargante.”

Não se provaram, portanto, por exclusão, os demais, apesar de relevantes, não mencionados no elenco, nem os que se apresentem em contradição com estes.

E, exemplificativamente – numa técnica que dificilmente se pode considerar conforme à exigência do nº 4, do artº 607º, do CPC –, declarou-se como não provado que o embargante autorizou o preenchimento da livrança pela embargada (nos termos em que esta o fez) e que a mesma, no momento da assinatura do contrato e subscrição da livrança, entregou um exemplar dele ao executado.

Em geral, assentes as assinaturas do embargante no contrato e na letra, como documentos particulares que são, estes, nos termos do nº 1, do artº 376º, CC, fariam prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (uma vez que não foi arguida a falsidade daqueles).

E, nos termos do nº 2, do mesmo artigo, os factos compreendidos em tais declarações considerar-se-iam provados na medida em que contrários aos interesses do declarante.

Seria o caso das cláusulas respeitantes à garantia (ponto 4 – entrega de livrança em branco; e cláusula 14ª, ponto 3, das condições gerais – convenção de preenchimento pelo mutuante).

Com propriedade se poderia, pois, dizer e dar como assente que entre as partes “foi celebrado, em 29-08-2001, o acordo” cujos termos, mormente as inerentes declarações vinculativas, constam do teor do documento respectivo junto a fls. 83 dos autos.

É o que consta, aliás, do ponto provado nº 1 (expressão repetida no nº 4).

Sucede que o embargante, para afastar a regularidade e bondade do preenchimento da livrança entregue em branco e completada pelo mutuante e, portanto, de qualquer acordo que tal a este permitisse, pôs em causa não só a entrega de um exemplar de tal contrato continente das cláusulas por ele invocadas para justificar a sua actuação como também que tivessem sido cumpridos os deveres de comunicação e de informação – condições especialmente exigíveis, segundo o regime jurídico da LCCG e da LCCC.

Como se viu, recaindo sobre o predisponente tais deveres bem como, uma vez negados pelo aderente, o ónus de provar que os cumpriu, caso tal não consiga tais cláusulas serão pura e simplesmente ineficazes, não poderão produzir qualquer efeito (maxime a 14ª, ponto 3), quer porque terão de haver-se por excluídas (artº 8º, da LCCG) quer porque nulas (artº 7º, da LCCC).

Para serem válidas e eficazes – e, assim, se poder dizer verdadeiramente “celebrado” o acordo – é necessário que se mostrem cumpridas aquelas exigências.

Sendo os factos a este respeito controvertidos e deles dependendo o juízo de direito sobre a eficácia e validade do contrato e especialmente daquela cláusula, a expressão referida de que “foi celebrado o acordo” literalmente expresso no dito documento – pressupondo, em termos técnico-jurídicos, que foi válida e eficazmente concluído o negócio – não pode ali interpretar-se, sob pena de contradição, com outro significado que não seja o de que ele foi “assinado”, como aliás consta do ponto 2.

Tal “celebração” (conclusão perfeita, válida e eficaz do negócio) é, pois, questão jurídica a resolver posteriormente em função do que resultar da prova dos factos atinentes às circunstâncias que rodearam a assinatura do documento.

Comportando ela, ainda, assim, uma dimensão fáctica, relativa à solenidade formal utilizada pelas partes para negociarem, concluírem, materializarem e demonstrarem o acordo, a verdade é que sobre isso e concernentes circunstâncias nada mais se sabe a não ser que aquele documento foi assinado, já que a entrega do mesmo e a comunicação e explicação das cláusulas enquanto passos essenciais para assegurar a sua existência, validade e eficaz vinculação, com as respectiva consequências – designadamente, no caso, quanto à questionada declaração de autorização para preenchimento da livrança – são controversas e, portanto, não confluíram na proclamada “celebração”.

Com esta reserva devendo ser consideradas as expressões respectivas insertas nos pontos de facto nºs 1 e 4 – “foi celebrado” e “aquando da celebração” – idêntica cautela se coloca quanto à “autorização” ora referida no ponto provado 9, ora no primeiro dos pontos não provados.

Essa “autorização” foi negada pelo embargante não porque lhe tivesse sido imputada uma específica declaração emitida com tal sentido ou com tal significado mas apenas porque, podendo inferir-se a mesma da cláusula 14ª, ponto 3, ele questionou, nos termos que já se viram, a existência, validade e eficácia desta.

Negada, portanto, não como facto mas como efeito conclusivo susceptível de ser colhido a partir da referida cláusula.

Sendo, pois, verdade, como resulta do ponto provado 9, que o documento de fls. 83 referido no ponto 1 – ou o “contrato”, em termos formais ou vulgares, e não, própria e verdadeiramente, “o contrato” cuja materialidade é controversa – contém, sob o nº 14, ponto, 3 uma cláusula geral com o texto aí transcrito, não era facto alegado e controverso a instruir, discutir, decidir e declarar, nos termos do artº 607º, nº 4, se provado ou não provado, saber se “o embargante autorizou o preenchimento” da livrança (primeiro ponto não provado), em aparente contradição com a cláusula assente no ponto 9 (provado).

Factos controversos a instruir, discutir, decidir e declarar provados ou não provados – temas da prova – eram, positivamente, os relativos à entrega do exemplar do documento contratual, ao cumprimento do dever de comunicar as cláusulas e ao de prestar informações (particularmente da 14ª, ponto 3).

Ainda que se considere não ter o predisponente o ónus de alegar tais factos e que, portanto, a simples negação dos mesmos pelo aderente desencadeie a necessidade de eles serem provados, é indiscutível, como se viu, que sobre aquele recai o ónus da prova respectiva.

Ora, nas conclusões do seu recurso, o credor apelante Banco … Crédito, em concreto, como exige o artº 640º, CPC, apenas impugnou os aludidos dois pontos declarados como factos não provados.

O primeiro, respeitante à já abordada “autorização”, que considerámos não ser um facto controvertido no sentido dos artºs 5º, nº 1, 552º, nº 1, d), 572º, c), 574º, 583º, nº 1, e 607º, nºs 3 e 4, CPC [9], e tal como a Jurisprudência sempre tal entendeu e continua a entender [10].

O segundo, esse sim, relativo a um facto essencial: a entrega do exemplar do contrato.

Preconiza que ambos devem ser declarados provados.

Sucede que, quanto àquele, na linha do que referimos e certamente confrontada pela dificuldade de o tratar e impugnar como facto, a apelante apenas refere tal ponto e o seu texto mas nem sequer o especifica – nem, logicamente, podia fazê-lo – como incorrectamente julgado, nem indica concretos meios probatórios que impusessem decisão diversa.

Os meios e os fundamentos que, a propósito da respectiva apreciação e valoração, indica e com que esgrime para tentar modificar a decisão no sentido pretendido são, apenas, os concernentes ao segundo ponto e tendo-o como alvo.

Tratemos então deste e analisemos aqueles, não sem relembrar e voltar a salientar que, tratando-se de facto tão simples quanto objectivo e que lhe compete provar e, para tanto, alegar, jamais o afirmou em termos objectivos, inequívocos e peremptórios.

Ora, para julgar não provado, que “a exequente, aquando da assinatura do contrato e subscrição da livrança, entregou um exemplar do contrato ao embargante”, ajuizou o tribunal recorrido que se valeu dos documentos juntos aos autos – dos quais nada consta sobre tal entrega – e que “nenhuma das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento, funcionários da exequente, A. G., F. B. e V. F., presenciou a celebração desse contrato entre o embargante e o intermediário da exequente (stand de automóveis “XX”) e, por conseguinte, não logrou convencer julgador se alguma vez foi entregue algum exemplar desse contrato, confessadamente assinado pelo embargante – cfr. declarações de parte deste e petição de embargos -, a este.
Por sua vez, o embargante (em declarações de parte) e a co executada, sua mulher, M. S., não se recordam se alguma vez tiveram na sua posse um exemplar desse contrato, apesar de cumprido durante 58 meses.”

Reiterou, aliás, em acrescento, que “…a exequente não cumpriu o ónus de provar que aquando da celebração desse contrato, ou mesmo posteriormente, entregou ou enviou um exemplar desse contrato ao embargante.
Por essa razão, o tribunal deu como não provada essa factualidade. ”

Por sua vez, a recorrente contrapõe com o teor da petição de embargos do recorrido A. F., com o seu depoimento de parte, o da testemunha sua esposa e o da testemunha F. B..

Quanto àquela, destaca o teor do item 19º, segundo o qual “…a exequente nunca esclareceu ao executado o real significado e as implicações dos dizeres apostos na cláusula 14 ponto 3”, daí extraindo que tal “afirmação demonstra de forma inequívoca que o embargante conhece o teor do contrato e por isso terá que ter o texto consigo, o que ele reclama é apenas o esclarecimento…”.

Ora, desde logo esta alusão é inverdadeira: como se viu, o embargante recorrido questionou o cumprimento do dever de informação ou de esclarecimento mas alegou, negando peremptoriamente, que jamais lhe foi entregue um exemplar do contrato ou qualquer outro documento relacionado (item 13) e que se limitou a apôr a sua assinatura, daí desconhecendo o teor e significado das cláusulas impressas, sobretudo quanto à livrança e autorização para seu preenchimento que, por isso, refere nunca ter prestado voluntária e esclarecidamente.

O facto de se referir, ao deduzir os embargos, à cláusula, significando embora que dele teve algum conhecimento, não permite concluir, com certeza e segurança, que nessa ciência se compreendem o significado e as consequências dela, muito menos deduzir-se que o contrato lhe foi entregue na altura da subscrição.

Remontando o mesmo a 2001, tendo sido instaurada a execução em 2007, para ela sido citado em 16-12-2017, é lógico que, seja na própria execução seja por qualquer outro meio ou circunstância, pode saber, entretanto, daquela ou ter-lhe sido chamada a atenção para a mesma.

Porém, a assinatura, como acto rotineiro, efémero, ante o intermediário do financiamento, permitindo-lhe saber que assinou tais documentos e que por meio deles obtinha um empréstimo para a compra do veículo, não assegura que lhe foi feita a comunicação devida, prestadas as informações necessárias, que se deteve a analisá-lo, a percebê-lo e que de tudo adquiriu consciência perfeita, plena e esclarecida, muito menos que, então, lhe foi feita entrega de um exemplar, como era devido, e que, desde ali, tenha tal texto consigo.

Para tal esclarecer muito contribuiria, por certo, o depoimento testemunhal do referido intermediário protagonista do negócios que, em nome da sociedade dona do Stand e vendedora do veículo financiado, o agenciou com o embargante. Contudo, dele se não dispõe nem de justificação alguma para a recorrente o não ter apresentado.

Depois, esta, além de nunca ter afirmado, como facto real, que entregou o exemplar do contrato, mesmo em relação ao depoimento prestado pelo embargante – jamais confessório – apenas extrai que ele “não afasta a possibilidade de ter sido entregue”.

Todavia, mera possibilidade não é demonstrada realidade.

Confrontado, pelo Mº Juiz, com “o papel” (ou seja, o documento de fls. 83 relativo ao contrato), tal depoente limitou-se a admitir que lhe “parece” que o “papel” que assinou “era assim”, que “é o papel da Credito …”, confirmando as assinaturas, mas que de nada se recorda.

Embora – presume-se que honestamente já que nada aponta nem se alega em sentido contrário – não negue a possibilidade de tal papel lhe ter sido entregue e até verbalize tal hipótese, a pretexto de o ter assinado, o certo é que de tal não se recorda e não corrobora afirmativa e seguramente tal entrega, sendo que os termos e tom em que depôs, o tempo decorrido, as circunstâncias que, segundo as regras da experiência, especialmente naquele tempo, são conhecidas quanto ao modo como se entabulavam os contactos para realizar tais negócios (de termos complexos e dificilmente perceptíveis e compreensíveis para os vulgares consumidores), sobretudo entre intermediários ávidos de os concretizar e contabilizar, pouco sensibilizados para os deveres envolvidos, e aderentes com reduzido grau de exigência e de preocupação e para mais avassalados pelo objectivo de alcançar o crédito para o carro, não permitem concluir que o seu pretexto é falho de seriedade e de plausibilidade nem, sem outros elementos adjuvantes, presumir que o documento lhe foi, então, comunicado, entregue e prestados todos os esclarecimentos.

O mesmo se diga quanto ao depoimento da esposa M. S..

Limitando-se esta a dizer que assinou “um papel”, a reconhecer que, embora já não se lembre do acto, a reconhecer que é sua a assinatura do que lhe foi mostrado no decurso da audiência e a confirmar que o negócio se concretizou na compra do veículo e que ficaram a pagar as prestações por meio de débito na sua conta bancária, nada mais daí se pode extrair quanto ao facto em questão.

Mesmo que, como referiu a testemunha F. B., fosse verdade que, após incumprimento das prestações, em contactos havidos, a esposa do embargante chegou a fazer uma proposta para pagar a dívida e sem por em causa o conhecimento do contrato, igualmente daí não se retira que, como entendeu e expressou na motivação o tribunal a quo, conjugando toda a prova (sobretudo a oral cuja prestação presenciou) e avaliando-a à luz das regras da experiência e da normalidade, se possa certa e seguramente afirmar a convicção de que foram cumpridos pela recorrente os deveres exigidos, designadamente o de entrega de um exemplar do contrato, tal como o de comunicação e informação, factos estes também não provados por “inexistência de qualquer prova quanto à sua ocorrência” e de que, afinal, o apelante apenas visou o da referida entrega.

Não existe qualquer outra prova, designadamente documental, da questionada entrega, v.g., no próprio contrato de fls. 83.

De qualquer modo, se dúvidas irremovíveis persistissem, atentas as referidas regras do ónus da prova e nos termos dos artº 414º, CPC, e 442º, nº 3, do CC, sempre deve decidir-se contra a parte a quem o facto em causa aproveitaria, ou seja, a embargada/recorrente.

Deste modo, deve improceder a impugnação deduzida e – ressalvadas as reservas acima postas –, mantida a decisão de facto.

Matéria de direito

Da alteração pretendida dependia, segundo os termos do recurso, o afastamento dos fundamentos dos embargos e a almejada improcedência consequente.

Não a tendo conseguido, permanece incólume a decisão do tribunal recorrido que os julgou verificados e deles extraiu as respectivas consequências.

Com efeito, na linha do que acima expusemos, considerou também e correctamente o tribunal recorrido que se está ante contrato de crédito ao consumo, nulo devido à falta de entrega do documento respectivo, nos termos da legislação apontada (LCCC).

De resto, sempre e pelo menos a cláusula respeitante à convenção de preenchimento, teria, de acordo com o artº 8º, da LCCG, de haver-se por excluída, logo inexistente.

E, assim, dado que a assinatura e a entrega da livrança pelo embargante não correspondem a uma vontade, livre e esclarecida, de contrair uma obrigação cambiária e que o seu preenchimento pela embargada não se funda, muito menos se ajusta, a qualquer pacto de preenchimento, “é forçoso concluir que a livrança dada à execução deixou de incorporar qualquer dívida” – como se diz na sentença – a cujo pagamento aquele esteja obrigado, não podendo servir de título executivo, com a fatal consequência de a execução dever ser julgada extinta, como foi.

A tal não obsta o, pela embargada, invocado abuso de direito.

A esse respeito, referiu-se na sentença, depois das comuns considerações e citações sobre a noção e pressupostos do instituto:

“Acontece que, no caso em apreço, como muito bem sobressai do douto acórdão já proferido nos autos, a circunstância do opoente ter pago prestações, não significa, só por si, que tenha abdicado de arguir a nulidade do contrato, se se verificassem os seus pressupostos, como acontece.
Deste modo, dos factos apurados não se pode extrair que houve um alimentar de qualquer confiança em que fizesse crer à exequente que o embargante não poderia invocar a nulidade comprovada.
Estamos perante uma situação normal de execução dum contrato, onde o consumidor, tendo-se apercebido da sua nulidade, a invoca em sua defesa.
E fá-lo dentro da teleologia do preceito, que lhe confere o direito, pois, é uma norma que o visa proteger perante o credor. ”

A apelante, para tentar reverter este juízo, sustenta que a conduta do embargante, ao longo do tempo em que o contrato subsistiu e pagou 58 das 72 prestações nele previstas e mesmo quando contactado a respeito da resolução por incumprimento, nada questionou, mormente quanto à falta de entrega do exemplar do contrato e ao desconhecimento das respectivas cláusulas, devendo-se a falta de pagamento apenas à sua precária situação económica.

Ora, está aqui em causa a validade e exequibilidade do título cambiário invocado e, assim, da relação abstracta inerente.

Sendo certo que o embargante, apesar de tudo, pagou as 58 prestações relativas ao contrato que assinou e ao financiamento para a compra do veículo automóvel que por meio deles obteve, não o é menos que de todo se ignoram as verdadeiras razões por que deixou de pagar.

O que se sabe é que tal sucedeu nos princípios de 2007 e que, embora tendo a execução sido instaurada em Agosto desse ano, o embargante só para ela foi citado 10 anos depois (Dezembro de 2017).

Tendo agora questionado, no contexto dos embargos, a validade do título executivo, com base nas vicissitudes do contrato subjacente e da livrança, que, de acordo com os factos, apenas está provado que assinou, mormente as relativas ao seu preenchimento, não se tendo apurado que das mesmas e inerentes direitos tomara conhecimento antes e que, apesar disso, optara por não as suscitar e agir como se não existissem, não parece estar demonstrado ter havido um comportamento conformado, por parte dele, objectivamente gerador, na esfera jurídica da embargada, da crença sólida de que jamais viria a invocá-las, contradizendo-se censuravelmente e lesando, em atitude de má-fé, a confiança por ela entretanto porventura legitimamente adquirida e alimentada e segundo a qual também se teria norteado.

Sobretudo quando só mais de dez anos após o incumprimento foi citado para a execução da livrança e teve oportunidade de se defender alegando as referidas vicissitudes, particularmente as relacionadas com tal título e sua valia executiva, sendo certo que nem sequer está demonstrado que tivesse recebido (dadas as diferentes moradas) a carta de resolução expedida em 02-02-2007 para a morada do contrato celebrado em 2001 nem que tivesse, por via dela, percebido as advertências no respectivo texto constantes e sua relação com as circunstâncias questionadas, de modo a poderem considerar-se branqueados, face à sua aparente passividade, os efeitos das falhas (da embargada) ocorridas na altura do negócio e a dirigir-se-lhe (a ele) qualquer censura pela reacção só de agora.

Não se justifica, pois, que as consequências daquelas em tais circunstâncias sejam paralisadas e assim contornadas as exigências do legislador resultantes do indicado regime e consequências sancionatórias nele previstas em protecção dos consumidores.

A obrigatoriedade de entrega do exemplar do contrato e de cumprimento dos deveres de comunicação e de informação têm, é certo, uma expressão formal mas visam, em substância, proteger eficazmente os consumidores, parte mais débil na negociação. A desvalorização do incumprimento daquelas por parte das entidades credoras não pode facilitar-se a qualquer preço e em nome do abuso de direito perspectivado como de franca aplicação.

Certo que variados arestos parecem acolher a posição a este respeito defendida pela recorrente [11].

Não parece, porém, sempre e em todos os casos aparentados, correcto pensar-se que “nada obsta” à invocação do abuso de direito.

Com efeito, é necessário também que quem o invoca (o financiador) esteja de boa fé e não, como aqui parece suceder, “a agir de má fé no âmbito da mesma base factual na qual alega a má fé do consumidor”. [12]

Conforme, de resto, resulta a este propósito dos Acórdãos da Relação de Lisboa, de 29-06-2017, e de 14-09-2017 [13]:

I – A prova da comunicação das cláusulas contratuais cabe ao predisponente delas e não se basta com o facto de os executados aderentes terem tido o contrato em seu poder.
II - Não constitui abuso de direito a conduta do aderente do contrato que, decorridos vários anos após a celebração do contrato, pretende a exclusão de cláusulas contratuais por falta do cumprimento dos deveres de comunicação e de informação, “sendo completamente natural e nada contraditório, que o cidadão assine o contrato, confiando que não vai encontrar percalços na sua execução, e reaja apenas quando esses percalços, normalmente imprevisíveis na data da celebração do contrato, surgem.”
III. Para além de que, para se provar o abuso de direito, outros factos teriam que estar dados como provados e, para o poder invocar, a predisponente das cláusulas não poderia ter dado causa à situação que está na origem da exclusão das CCG.

III– Não tendo sido comunicadas as CCG que constam do verso de um documento assinado no rosto, elas têm-se por excluídas do contrato, por força do art. 8-a-d da LCCG.
IV– Não constitui abuso de direito a conduta do aderente do contrato que, decorridos vários anos após a celebração do contrato, invoca a exclusão de CCG por falta do cumprimento dos deveres de comunicação e de informação ou por elas estarem inseridas depois da assinatura dele, “sendo completamente natural e nada contraditório, que o cidadão assine o contrato, confiando que não vai encontrar percalços na sua execução, e reaja apenas quando esses percalços, normalmente imprevisíveis na data da celebração do contrato, surgem.
V– Para além de que, para se provar o abuso de direito, outros factos teriam que estar dados como provados e, para poder invocar o abuso de direito, a predisponente das cláusulas não poderia ter dado causa à situação que está na origem da exclusão das CCG.
VI– Mas a questão do abuso de direito nem sequer se deve colocar, pois que a exclusão das CCG, imposta pelo art. 8 da LCCG, resulta de uma inexistência jurídica, que é um vício mais grave que a nulidade. Sendo a nulidade de conhecimento oficioso (art. 286 do CC), também a inexistência o deve ser. Pelo que, mesmo que os aderentes não o pudessem fazer, sempre o juiz poderia e deveria excluir as CCG “desconhecidas”.

Não parece, pois, ser abusiva e ilegítima a defesa oposta pelos embargos à execução a pretexto de exceder manifestamente os limites da boa-fé – artº 334º, CC.

Daí que, também nesta parte, a sentença deva manter-se, sendo, em conclusão, de julgar totalmente improcedente o recurso.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela recorrente – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
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Notifique.
Guimarães, 19 de Junho de 2019

Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes:

Relator: José Fernando Cardoso Amaral
Adjuntos: Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
Pedro Damião e Cunha



1. Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 27-06-2018, processo 4368/15.6T8LOU-A.P1 (Jorge Seabra) – ponto VI do sumário
2. Cfr. Acórdão do STJ, de 13-11-2018, processo 2272/05.5YYLSB-B.L1 (Paulo Sá) – pontos I e II do respectivo sumário.
3. No Acórdão do STJ, de 11-02-2010, tratou-se caso em que o preenchimento foi feito “ao completo arrepio do pacto de preenchimento antes celebrado”, visando garantir outro empréstimo que não aquele para o qual tal pacto foi firmado, pelo que se considerou que a livrança não vale como título executivo.
4. Neste sentido, v.g., Acórdão do STJ, de 28-09-2017, processo nº 779/14.2TBEVR-B.E1.S1 (Tomé Gomes), Acórdão da Relação do Porto, de 27-06-2018, processo 4368/15.6T8LOU-A.P1 (Jorge Seabra) e Acórdão da Relação de Coimbra, de 07-02-2017, processo 3775/12.0TJCBR-A.C1 (Fernando Monteiro),
5. Cfr. José Manuel Araújo de Barros, Cláusulas Contratuais Gerais, Coimbra Editora, 2010, páginas 94 e 110, e Acórdão do STJ, de 28-04-2009, processo nº 2/09.1YFLSB (Fonseca Ramos).
6. Tal exclusão equivale à inexistência jurídica – cfr. ob. citada na nota anterior, página 110.
7. Este Diploma foi revogado pelo artº 33º, do Decreto-Lei nº 133/2009, de 02 de Junho. Porém, o artº 34º ressalvou que aos contratos de crédito concluídos antes da data da entrada em vigor deste se aplica o regime vigente ao tempo da sua celebração.
8. No Decreto-Lei nº 133/2009 continuou a prever-se que a falta de entrega do exemplar do contrato implica a nulidade deste (artºs 12º, nº 2, e 13º, nº 1). Acrescentou-se que que a garantia prestada é nula se, em relação ao garante, também não for entregue um exemplar do contrato (nº 2, do artº 13º), que devendo ele especificar, de forma clara e concisa, as eventuais garantias, sob pena de inexigibilidade (artº 12º, nº 3, alínea g), e artº 13º, nº 4), assim como que a inobservância dos requisitos referidos, tal como de outros elencados no artº 12º, presume-se imputável ao credor e a invalidade do contrato só pode ser invocada pelo consumidor.
9. Uma coisa são os “temas de prova” e outra são os “factos”. Daqueles pode fazer-se uma enunciação temática (sempre criteriosa) ou até dispensar-se essa tarefa (em certas circunstâncias legalmente previstas e em função da ponderação das necessidades e adequação ao caso). Como escreveu Paulo Pimenta, in “Os Temas da Prova”, páginas 29 e 30, “…a maleabilidade ou plasticidade que a enunciação dos temas da prova confere à instrução não dispensa o juiz de, no momento em que proceder ao julgamento da matéria de facto – o que ocorrerá na sentença –, indicar com precisão os factos provados (e os factos não provados).” Como refere, a seguir, “O que importa mesmo é que a decisão de direito a proferir tenha por base a realidade tal como esta se revelou nos autos por via da instrução. Esta realidade é constituída por factos concretos. São esses os factos a expressar no julgamento de facto. Tais factos serão objecto de valoração jurídica, o que é feito de seguida, pelo mesmo juiz e na mesma peça processual (a sentença)“.
10. Ou seja: factos simples e concretos, objectivos ou subjectivos, enquanto ocorrências da vida, perceptíveis pela experiência, narrados em linguagem singela e vulgar, sem recurso a figuras literárias ou de estilo, não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos, devendo evitar-se palavras conclusivas, valorativas, polissémicas, eivadas de subjectivismo, de sentido misto e equívoco – cfr., v.g., Acórdão da Relação do Porto, de 23-11-2017, processo 3811/13.3TBPRD.P1, e desta Relação de Guimarães, de 19-04-2018, processo 9/12.1TBFAF-B.G1.
11. Nesse sentido, v.g., o Acórdão desta Relação de 09-04-2015, processo 6718/07.0YYLSB-B.G1 (relatado pelo Desemb. António Santos).
12. Assim, Anotação, de Jorge Morais Carvalho e Micael Teixeira, ao Acórdão da Relação do Porto, de 14-11-2011, nos Cadernos de Direito Privado, nº 42, Abril/Junho 2013, página 51.
13. Proferidos, respectivamente, no processo 78/15.2T8VFC-A.L1-2 e 9065/15.0T8LSB-2, ambos relatados pelo Desemb. Pedro Martins.