Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1477/14.2T8VCT-D.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: EXECUÇÃO
HABILITAÇÃO DE ADQUIRENTE OU CESSIONÁRIO
TERCEIRO NÃO DEVEDOR
DIREITO REAL DE GARANTIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O incidente de habilitação de adquirente ou cessionário visa produzir modificação nos sujeitos da lide, produzindo efeitos de natureza meramente processual ao nível das partes que se defrontam na lide.
II - O art. 54.º, n.º 2, do CPC abrange tanto as situações em que o terceiro, não devedor, onerou uma coisa de que é proprietário para garantir o pagamento de uma dívida alheia, como os casos em que o terceiro adquiriu a propriedade já onerada com uma garantia em benefício de outrem. Nesta segunda hipótese, a alienação é plenamente eficaz, passando o bem a pertencer ao património de um terceiro mas o credor continua a poder realizar o seu direito de crédito à custa da coisa onerada, na medida em que a prévia constituição da garantia fez nascer sobre o imóvel um vínculo de natureza real que é oponível erga omnes.
III - O direito real de garantia de que se é titular pode ser exercido livremente, sem prejuízo de terceiro adquirente, uma vez que a venda em processo executivo implica o cancelamento de quaisquer ónus e encargos que impendam sobre o bem.
IV - Contudo, os termos da execução não podem ir além da garantia resultante da hipoteca do bem, uma vez que o mesmo só pode responder por dívida a que o seu titular é alheio, em virtude de estar vinculado por aquela garantia.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – Relatório

O Magistrado do Ministério Público, em nome do Estado-Administração, veio deduzir oposição à penhora efectuada em 10.11.2021, referente a depósitos bancários existentes na Caixa …, nos termos do artº 784º nº 1 al. a) e c) e 732º do Cód. Proc. Civil na parte aplicável, invocando, para o efeito, e em suma, que o acto de transmissão da embarcação X para o Estado em sede de processo crime, por ter sido declarada perdida, é posterior à hipoteca, bem como à instauração da execução, pelo que não podem ser penhorados outros bens do Estado, uma vez que não é devedor (nem devedor subsidiário, já que o exequente não desfruta de título executivo contra ele), nem fiador, mas apenas o adquirente do bem dado em garantia pelo devedor ao exequente, a qual caduca com a venda executiva (o que pressupõe a penhora da embarcação), por força do art. 824.º, n.º 2 e 3, do Código Civil.--
Termina peticionando que a oposição seja julgada procedente, por provada, com a consequentemente extinção e levantamento da penhora.---
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O Exequente apresentou contestação, pugnando pela improcedência da pretensão formulada pelo Oponente.---
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Após, foi proferida decisão que julgou a oposição à execução totalmente procedente, determinando, em consequência, o levantamento da penhora incidente sobre os saldos bancários, titulados pela Autoridade Tributária e Aduaneira na Caixa ..., S. A., atinente ao depósito à ordem, no valor de € 236.491,77, na conta nº ..................00, depósito à ordem, no valor de € 45.699,34, na conta nº ..................00, depósito à ordem, no valor de € 68.399,76, na conta nº ..................00, e depósito à ordem, no valor de € 5.366,45, na conta nº ..................00.---
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II- Objecto do recurso

Não se conformando com a decisão proferida, veio o exequente interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões:

1. Inconformado com a decisão do Tribunal “A Quo”, vem o ora Apelante da douta sentença interpor recurso, para o Tribunal da Relação de Guimarães, a processar como de Apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos, com efeito devolutivo.
2. Na verdade, o Apelante entende, salvo melhor opinião, que a decisão deveria ser precisamente a contrária, ou seja deverá antes a douta sentença ser revogada e julgar-se totalmente improcedente o incidente de Oposição à Penhora, devendo prosseguir as diligências executivas nos seus precisos termos, mantendo-se a penhora sobre os saldos bancários.
3. Sucede que faz a decisão do Tribunal “a quo”, uma erradainterpretação do direito.
4. É insofismável, no caso concreto, que a penhora pode e deve ir além da garantia resultante da hipoteca da embarcação X, devendo estender-se às contas bancárias do Estado.
5. Conforme resulta dos autos, foi a Execução requerida contra a sociedade Y, sendo o Estado chamado aos autos por incidente de Habilitação de Cessionário, na decorrência da decisão de perdimento da embarcação hipotecada a favor do Estado.
6. Já na fase da venda foi o processo avocado pela Instância Central Criminal da Comarca de Viana do Castelo, através autos 142/14.5JELSB, onde a embarcação viria a ser declarada pedida a favor do estado nos termos do artigo 35.º e ss. do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro- cfr. despacho de 06-10-2017 foi comunicado pelo Processo 142/14.5JELSB aos autos de Execução: “Cumpre-me solicitar a V. Exª se digne mandar remeter aos nossos autos acima identificados certidão do teor de fls. 10 a 15, 24, 33 verso, 34 e 38 a 42 dos vossos autos de Execução Ordinária, bem como do teor de fls. 19 verso a 51 e da sentença de fls. 63 a 65 do apenso. Mais me cumpre informar Vª. Exª. que tendo a embarcação "X" transportado estupefaciente é elevadíssimo o grau de probabilidade da respectiva perda a favor do Estado nos nossos autos.
7. Ao longo do processo tudo tem feito o Apelante para acelerar a tramitação processual, aportando todos os elementos por si recolhidos, cumprindo assim o seu dever de colaboração.
8. Foram os autos e AE sempre informados das diligências em outros processos e remetidas as decisões para os autos – cfr. requerimento de 11.04.2018 mediante o qual o Apelante informou os autos que foi revogada a decisão de apreensão da embarcação a favor doestado, nos autos do processo 142/14.5JELSB-BL.
9. Ora, como resulta à saciedade dos presentes autos, a Embarcação X, onerada com a hipoteca, é insuficiente para garantir o crédito do Exequente, porquanto para além de judicialmente ter sido declarada insuficiência, a mesma insuficiência veio reforçada pela informação prestada pela Autoridade Portuária de Almeria que já declarou o abandono da embarcação, sem que o Estado Português, jamais tenha agido por forma a recuperar a referida embarcação.
10. A inação e incoerência da actuação processual do Estado é flagrante. 11. Como é sabido a aquisição pelo Estado ocorreu nos termos do artigo 35.º e ss. do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, tendo sido determinada por sentença e posteriormente confirmado pelo Acórdão proferido nos autos n.º 142/14.5JELSB-BL.G1, já transitado em julgado.
12. Resulta do citado aresto que ficou o Estado onerado com todos os ónus e encargos mercê do decretamento do perdimento a seu favor, transferindo-se consequentemente a hipoteca para o Estado, passando este a ter esse encargo, tornando-se consequentemente devedor.
13. Enquanto terceiro de boa-fé, o Apelante deve ver garantido o seu crédito, bem como o seu pagamento.
14. Por sentença proferida nos autos do apenso B, que aqui se transcreve para todos e devidos efeitos legais, foi declarado procedente o incidente e consequentemente habilitado Estado Português, passando a assumir a posição de Apelado nos autos principais: “Declara-se procedente o incidente, julgando habilitado como adquirente o Estado Português, para com ele prosseguirem termos os autos.”
15. Sucede que a penhora das contas do Apelado Estado é decorrência da declaração judicial de insuficiência do bem penhorado, para a qual, concorreu com culpa o Apelado.
16. Na verdade, em momento algum e até presente o Apelado pôs em causa a actual insuficiência do bem penhorado e o prosseguimento da execução contra outros bens do Estado, nem demonstrou o seu contrário (artigo 342.º do Código Civil).
17. Assim, reconhecida e sobejamente demonstrada a insuficiência dobem sobre o qual recaia a garantia, a penhora podia e pode prosseguir contra outros bens que nos termos do artigo 735.º, n.º1, estejam sujeitos à execução, sem que se verifique qualquer ilegalidade da mesma, por violação do disposto no artigo 752.º, n.º1 do CPC.
18. Acresce que, o perdimento (aquisição derivada translativa) decorrente da prévia apreensão em sede do processo- crime 142/14.5JELSB, ocorreu em data posterior à instauração da acção executiva, tendo sido arrestado nos termos do artigo 10.º, n.º1, da Lei 5/2002 em finais de 2014, entrando assim na sua posse.
19. Tendo o processo executivo sido avocado pelo processo-crime respectivo em 20-09-2017 Ref Citius 1659179 (suspendendo a venda), em momento algum pode o Apelado afirmar que ignorava que sob a embarcação incidia o direito de crédito do Exequente, cujo Registo é Público e por si organizado.
20. Aliás, é o próprio Estado no seu douto recurso à decisão que revogou a decisão de perdimento a seu favor nos autos 142/14.5JELSB-BL, que reconhecendo o direito do Exequente afirma o seguinte: “Actualmente, o valor de tal “interesse” ou direito do terceiro de boa-fé, ou seja, o requerente do incidente computou-se em cerca de €215.000,00.Tal valor é inferior ao da embarcação, sendo certo que em caso de perdimento da mesma, o interesse do terceiro de boa-fé pode e deve ser assegurado através de consideração pelo direito do mesmo a esse valor”.
21. Malogradamente, vem agora ao Estado, de forma desleal e ao arrepio do que afirmara, tentar furtar-se à sua obrigação, chegando a afirmar no seu último requerimento que o Exequente nada fez para promover a venda.
22. Na verdade é o Estado que nada fez para a salvaguarda da exequibilidade da hipoteca, envolvendo o Apelado numa teia de burocrática de gabinete em gabinete, adiando-se sucessivamente a sua resolução da Execução.
23. Pese embora as reiteradas interpelações, ora nos presentes autos (a exemplo dos despachos de 19/09/2019 e 04/11/2019), ora no processo-crime, o Estado não conservou o bem, nunca o apresentou para que o mesmo fosse vendido, ou tomou posição, tendo-o deixado perecer ao ponto de se tornar insuficiente para cumprimento obrigação creditícia.
24. Ora, tal como qualquer outro sujeito processual, o Estado deve pautar a sua atuação pela boa-fé, cumprindo e salvaguardando as suas obrigações, nos termos do artigo 762.º, n.º 2 do Código Civil, cooperar na célere e justa composição do litígio nos termos do artigo 7.º do Código de Processo Civil, e não deve colocar-se numa posição que sérios prejuízos ao credor.
25. A verdade é que se impunha ao Estado, que sabendo do paradeiro da embarcação desde a sua apreensão judicial, conhecendo os ónus que sobre ela impendiam e das obrigações daí decorrentes, não ignorando a lei, designadamente o preceituado na Lei 45/2011, de 24 de junho, zelasse pela conservação e recuperação da embarcação e não a abandona-se ao ponto da mesma se tornar insuficiente para a satisfação da obrigação hipotecária.
26. Para além disso, com o devido respeito por melhor opinião, lavra em erro o Apelado na sua interpretação do artigo 824.º, n.º2 do CC, pois o Estado não é terceiro por venda em execução, mas sim veio assumir a posição de apelado por aquisição derivada de bem onerado por decisão transitada em julgado.
27. Pelo que, ao invocar o artigo 824.º n.º2 do Código Civil, ainda que de forma errónea, age o Estado, em nosso modesto entender, com má-fé, constituindo “venire contra factum proprium”.
28. Por outro lado, sabendo e reconhecendo que o bem por si adquirido tinha valor superior à hipoteca constituída, poderia e deveria o Estado ter expurgado, em tempo útil, a hipoteca nos termos do artigo 721.º, n.1 do CC, possibilitando-lhe, assim, libertar-se do encargo sem prejuízo para o credor, o que não fez e não pretende.
29. Ora, aquando da sua constituição e aquisição pelo Estado, o bem hipotecado tinha superior ao crédito que se pretendeu garantir, conforme é expressamente reconhecido pelo próprio Estado nas suas alegações de recurso nos autos 142/14.5JELSB-BL.G1.
30. Por outro lado, contrariamente ao que nos parece ser o entendimento do Apelado, não resulta da penhora das contas bancárias uma vantagem desproporcionada para o Exequente.
31. Pelo que, a admitir-se o entendimento apresentado pelo Apelado premiar-se-ia a sua incúria e violar-se-ia o princípio da boa-fé em detrimento do direito do Apelante, atribuindo-se injustificadamente ao Estado a desoneração da sua obrigação creditícia e o seu consequentemente locupletamento à custa do Exequente.
32. Pelo que, porque agora confrontado com a insuficiência do bem, circunstância da qual é responsável e causador, não pode o Apelado querer furtar-se à sua obrigação.
33. Entendimento contrário redunda numa justiça ad hoc que desfere uma injustiça, violando os pilares da segurança e certeza jurídica.
34. Pelo que a penhora efectuada sobre as contas bancárias do Estado para satisfazer os fins da execução não está ferida de qualquer ilegalidade, não tendo o preceito citado pelo Apelado aplicação aos presentes autos, devendo a execução prosseguir nos termos do artigo 752.º do CPC.
35. Na verdade, mercê da sua conduta culposa na depreciação do bem hipotecado, leva a que o Estado responda pela dívida com todo o seu património, sendo que a garantia geral que é representada por todo o património do devedor (artigo 601º do Código Civil), se encontra fortalecida mercê da existência de uma garantia especial, a hipoteca, que permite ao credor escapar ao princípio da par conditio creditorum (artigo 604º), gozando de preferência no pagamento em relação ao valor da coisa hipotecada.
36. Ou seja, não foge à regra do artigo do 601.º do Código Civil o caso dos autos, devendo todos os bens do devedor responder pelo cumprimento da obrigação, tornando-se essa garantia efectiva por meio da execução (artigo 817.º do Código Civil).
37. Assim, deve a penhora prosseguir sobre as contas bancárias do Estado, no estrito cumprimento do princípio da proporcionalidade, por forma a garantir de formar célere o escopo da acção excutiva.
38. Por último e em última análise, sempre deveria o Estado, que deu causa à insuficiência do bem, indemnizar o credor hipotecário, os termos do artigo 692.º n.º1 e 3, do Código Civil, ou nos termos do artigo 701.º do CC reforçar a garantia, ou nos termos conjugados com o artigo 780.º do CC, cumprir imediatamente com o a obrigação, o que não fez.
39. Mais uma vez, a culpa da diminuição da garantia é alheia à vontade do Apelante.
40. Outrossim, nada fez o Estado para a recuperação e preservação da sua embarcação, nem diligenciou no sentido de expurgar a hipoteca em tempo útil, por forma a não prejudicar o direito do credor hipotecário.
41. Ora, quando o Estado afirma que “o interesse do terceiro de boa-fé pode e deve ser assegurado através de consideração pelo direito do mesmo a esse valor”, esperar-se-ia que a consequência dessa declaração se verificasse.
42. Mais uma vez se afirma, competia à autoridade judiciária, nos termos do artigo 185.º, n.º4, do Código de Processo Penal, ter nos trinta dias que se seguiram à apreensão do X, proferir despacho determinando a sua remessa para o GAB.
43. Nada sucedeu, ficando o barco abandonado em Almeria, não se tendo dado cumprimento ao n.º1 e 3 do artigo 10.º, da Lei 45/2011 de 24 de junho, não se tendo procedido, consequentemente, à protecção, conservação e gestão da embarcação X, pese embora o Estado afirmasse que: “Tal valor é inferior ao da embarcação, sendo certo que em caso de perdimento da mesma, o interesse do terceiro de boa-fé pode e deve ser assegurado através de consideração pelo direito do mesmo a esse valor”.
44. Várias vezes notificado o IGFEJ e próprio Ministério Público pelo Tribunal “a quo”, estes remeteram-se reiteradamente ao silêncio, ou empurraram de um para o outro, não se procedendo à avaliação da embarcação, conforme determina o artigo 12.º da citada Lei 45/2011 de 24 de junho.
45. Bem poderia o GAB ter agilizado a venda, mas também assim não o fez, nem colaborou com o Apelante para a célere resolução e minoração das consequências económicas para ambas as partes.
46. A descoordenação e falta de comunicação entre os diversos intervenientes foram e são manifestos, sendo o credor o prejudicado imediato.
47. Conclui-se que as diligências tendentes à venda executiva resultam, hoje, de todo inúteis e dilatórias, pois a embarcação que está aparentemente atracada no porto de Almeria tornou-se insuficiente para o cumprimento da obrigação hipotecária e para fazer face ao crédito das autoridades Espanholas.
48. Pelo que, não tendo sido expurgada a hipoteca em tempo útil e não pretendendo o Apelado reforçar a garantia, não há outra forma para efectivar de forma coativa o direito de crédito do Apelante que não a penhora dos saldos bancários Estado, sob pena de se cair na flagrante injustiça.
49. Como nos ensina a Professora Isabel Menéres de Campos que ora se cita: “Que diria o tribunal no caso de destruição total da coisa por motivo não imputável ao credor? Os devedores ficariam desonerados da sua obrigação por se ter frustrado o resultado?” in IPSO JURE, Conselho Distrital do Porto da AO.
50. Destarte, tal direito vê a sua consagração no artigo 725.º do Código Civil, pois por culpa do Estado/Devedor Hipotecário viu a segurança do seu crédito falecer.
51. A não ser assim, periga igualmente a gestão processual e a adequação formal prevista no atual Código de Processo Civil que permitem densificar suficientemente um princípio de eficiência processual que traduz a ideia de realização da justiça material com um menor custo de tempo e de meios, humanos e físicos.
52. Pelo que, atentas as normas supra citadas, é fundamentado o entendimento do Apelante quanto à penhorabilidade dos bens do Estado para além da garantia da hipoteca, porquanto o Estado deu causa à insuficiência do bem de forma culposa.
53. No entanto, parece ficcionar o Tribunal “A quo” que da venda da embarcação X em sede executiva, resultaria satisfeito o crédito do exequente, o que é contraditório com a decisão da insuficiência do bem penhorado.
54. Errou assim o Tribunal “A quo” ao fazer uma interpretação literal dos artigos 54., n.º2 do Código de Processo Civil, descurando, assim o elemento sistemático do Código Civil, designadamente os artigos 762.º n.º2 e 725.º do Código Civil.
55. Mais descuidou o tribunal o conhecimento oficioso da Lei 45/2011, de 24 junho e do artigo 185.º do CPP, quanto à actuação que deve pautar o Ministério Público e as entidades do Ministério da Justiça no âmbito das apreensões em sede de processo-crime.
56. Destarte, ao não aplicar e conjugar as normas citadas nas presentes conclusões, redunda numa justiça “ad hoc” que desfere uma injustiça, violando os pilares da segurança e certeza jurídica, empobrecendo-se injustificadamente o Apelante e nessa mesma medida enriquecendo o Apelado.
NESTES TERMOS e com o douto suprimento de Vs. Exs.ª deverá ser dado provimento ao recurso e no sentido das conclusões, assim se fazendo J U S T I Ç A.
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O M.ºP.º veio apresentar as suas contra-alegações, concluindo que a decisão de primeira instância deverá manter-se tal como foi proferida, por se mostrar condizente com a razão factual e jurídica exposta, por forma a fazer-se JUSTIÇA,
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Recebido o recurso, foram colhidos os vistos legais.
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III - O Direito

Como resulta do disposto nos artos. 608º., nº. 2, ex vi do artº. 663º., nº. 2, 635º., nº. 4, 639º., n.os 1 a 3, 641º., nº. 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.
Deste modo, e tendo em consideração as conclusões acima transcritas cumpre apreciar e decidir da admissibilidade da penhora do saldo das contas bancárias tituladas pela ATA.
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- Fundamentação de facto

Factos dados como provados

3.1. J. C. intentou a execução para pagamento de quantia certa, que constitui os autos principais, contra Y-Pescas, Unipessoal, Ld.ª, apresentando à execução acordo com a designação de “Confissão De Dívida Com Hipoteca Naval”, de acordo com o qual a segunda se confessa devedora do primeiro do valor de 215.000,00 (duzentos e quinze mil euros), decorrentes da amortização feita por este num contrato de mútuo celebrado entre aquela sociedade e o Banco ..., S.A. (hoje Banco …, S.A.), sendo que, como garantia das obrigações pactuadas com a predita sociedade, esta constitui uma hipoteca a favor do ora exequente sobre o barco com a designação “X”, sendo que barco e hipoteca se encontram inscritos na Conservatória do Registo Comercial de ….---
3.2. Por douto Acórdão proferido nos autos do processo nº 142/14.5JELSB, que correu termos no Juiz 1 do Juízo Central Criminal da Comarca de Viana do Castelo, foi decretada, ao abrigo do artigo 35º e segs. do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, a perda da embarcação X a favor do Estado.---
3.3. O Exequente deduziu Incidente de Direitos de Terceiros, o qual, conforme teor do Acórdão da Relação de Guimarães com o número de processo 142/14.5JELSB-BL-G1, foi aquele considerado terceiro de boa-fé, nos termos do art.º 36.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, bem como declarado perdido a favor do Estado o barco.---
3.4. Por decisão transitada em julgado proferida no apenso B, foi o Estado julgado habilitado na Execução, aí assumindo a posição processual de Executado.---
3.5. Entretanto, nos autos principais procedeu-se à penhora dos seguintes saldos bancários, tituladas pela Autoridade Tributária e Aduaneira na Caixa ..., S. A.: depósito à ordem, no valor de € 236.491,77, na conta nº ..................00; depósito à ordem, no valor de € 45.699,34, na conta nº ..................00; depósito à ordem, no valor de € 68.399,76, na conta nº ..................00; depósito à ordem, no valor de € 5.366,45, na conta nº ..................00.---
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Outros factos:

3.6. Pese embora a consignação feita constar no ponto 3.4. pelo tribunal a quo, o que resulta especificamente e textualmente da decisão proferida no apenso B, é que o Estado Português foi habilitado como adquirente.
3.7. No apenso A de reclamação de créditos, para pagamento com o produto do navio penhorado na execução, foi graduado em 1.º lugar, o crédito reclamado pelo Banco ... no montante de 708.140,87€, e, em segundo lugar, a quantia exequenda.
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- Fundamentação jurídica

Como se sabe, a acção executiva visa assegurar ao credor a satisfação da prestação que o devedor não cumpriu voluntariamente, seja através do produto da venda executiva de bens ou direitos patrimoniais daquele devedor ou da realização, por terceiro devedor, em favor da execução, da prestação (artºs 10.º, nº 4, do CPC e 817.º do Código Civil).
Com esse objectivo e dado que o património do executado constitui a garantia geral das suas obrigações, procede-se à apreensão de bens ou direitos patrimoniais do executado ou à colocação à ordem da execução dos créditos daquele sobre terceiros, de modo a que se proceda, ulteriormente, à venda executiva daqueles bens e direitos patrimoniais ou à realização, a favor da execução, das prestações de que são devedores aqueles terceiros (artºs 601.º do Código Civil e 735.º, n.º 1 do CPC).
Acresce que o direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito (cfr. Art. 818.º, 1.ª parte, do Cód. Civil).
No capítulo das garantias especiais das obrigações, preceitua-se no art. 686.º, do Cód. Civil, que ‘a[A] hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo’.
Dispõe-se, por sua vez, no art. 697.º, do mesmo diploma, que ‘o[O] devedor que for dono da coisa hipotecada tem o direito de se opor não só a que outros bens sejam penhorados na execução enquanto se não reconhecer a insuficiência da garantia, mas ainda a que, relativamente aos bens onerados, a execução se estenda além do necessário à satisfação do direito do credor’.
A hipoteca é, assim, um direito real de garantia, inerente à coisa (cf. parecer de Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, sobre Expurgação da Hipoteca, na CJ. Ano XI, tomo 5, pág. 37 e segs), conferindo ao credor o direito de ser pago pelo valor das coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artigos 686º, nº. 1, e 687º do Código Civil).
In casu, perante o gozo desse privilégio e da prioridade de registo, foi o crédito do exequente graduado em segundo lugar.
Acontece que, por força do disposto nos arts. 35.º e 36.º do Dec-Lei nº 15/93 de 22/1, o bem que serve de garantia ao crédito do exequente e dado à penhora, foi declarado perdido a favor do Estado por ter sido relacionado com a prática de um facto ilícito típico previsto nesse diploma.
O que está em causa nesse regime é um propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado à ideia de necessidade de «aniquilamento do benefício patrimonial ilicitamente conseguido» e, consequentemente, de o Estado «não tolerar uma situação patrimonial antijurídica» operando a «restauração da ordenação dos bens correspondente ao direito»” ( Cfr. Prof. Figueiredo Dias in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas de Crimes, Noticias editorial, pg. 632).
Contudo, quando tal se verifique, nos termos do n.º 1, do citado art.36.º-A, o terceiro que invoque, entre o mais, a titularidade de coisas, direitos ou objectos sujeitos a apreensão ou outras medidas legalmente previstas aplicadas a arguidos por infracções previstas no referido diploma, pode deduzir no processo a defesa dos seus direitos, através de requerimento em que alegue a sua boa-fé, tal como o fez o aqui exequente, vindo a ser-lhe reconhecida essa qualidade de terceiro de boa fé.
Assim, decorrente do confisco decretado, o bem passou para a esfera patrimonial do Estado, com todos os ónus e encargos, mantendo-se, assim, activo o crédito hipotecário.
Ora, dispõe-se no art. 54.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, que
«a[A] execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue directamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor.».

O normativo em referência constitui um desvio à regra geral da legitimidade contida no art. 53.º, do CPC, a qual estabelece uma relação de coincidência entre as pessoas que figuram no requerimento executivo e aquelas que são mencionadas no título executivo.
Em consonância com esse normativo prevê-se no art. 356.º, do Cód. Proc. Civil, a habilitação do adquirente, tal como ocorreu no caso dos autos, tendo-se julgado o Estado Português habilitado como adquirente.
Ora, como se consignou já no Acórdão desta Relação, de 21.6.18, no proc. 7135/15.1T8GMR-B.G1, in dgsi, ‘o incidente de habilitação de adquirente ou cessionário visa, apenas, produzir modificação nos sujeitos da lide, produzindo efeitos de natureza meramente processual, ao nível das partes que se defrontam na lide, sem interferir com a discussão do direito que constitui o objecto da causa, tal como é configurado pelo pedido e pela causa de pedir’.
Aliás, de acordo com o disposto no art. 817.º e no art. 818.º, ambos do CC, o direito de execução pode incidir quer sobre os bens do devedor da obrigação exequenda (art. 817.º), quer sobre os bens de terceiro (não devedor da obrigação exequenda), neste caso quando estejam vinculados à garantia do crédito, tal como decorre do disposto no art. 818.º, do mesmo diploma e se dispõe no art. 735.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Assim, caso o exequente pretenda prosseguir actos executivos no património daquele terceiro, ou seja, se o exequente quiser fazer actuar a garantia (real) prestada, tem que demandá-lo no processo executivo (ou suscitar a sua intervenção na acção).
O art. 54.º, n.º 2, do CPC abrange tanto as situações em que o terceiro, não devedor, onerou uma coisa de que é proprietário para garantir o pagamento de uma dívida alheia, como os casos em que o terceiro adquiriu a propriedade já onerada com uma garantia em benefício de outrem. Nesta segunda hipótese, a alienação é plenamente eficaz, passando o bem a pertencer ao património de um terceiro mas o credor continua a poder realizar o seu direito de crédito à custa da coisa onerada, na medida em que a prévia constituição da garantia fez nascer sobre o imóvel um vínculo de natureza real que é oponível erga omnes.
O art. 819.º do CC sob a epígrafe disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados, dispõe que «s[S]em prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados».
O normativo em causa aplica-se quer às situações em que os bens penhorados pertenciam ao(s) executado(s), quer àquelas em que os bens penhorados pertenciam a terceiro estando vinculados à garantia do crédito do exequente.
Resulta do art. 819.º, do Cód. Civil, que não obstante os actos ali mencionados (alienação/oneração/arrendamento), a execução prossegue como se os bens penhorados continuassem a pertencer ao devedor/executado, desde que a penhora haja sido registada em data anterior àquela em que ocorreu o registo daqueles actos.
A inoponibilidade ali prevista significa que o terceiro adquirente não se pode opor a que a execução prossiga contra o seu bem (onerado com a penhora). Por conseguinte, não há que fazê-lo intervir como “parte”, ainda que, como se refere na decisão recorrida, aquele terceiro possa ter interesse na escolha da modalidade da venda ou em intervir na apreciação das propostas de venda.
Daí que se tenha já entendido que tendo a alienação dos bens imóveis ocorrido posteriormente à data da realização da penhora daqueles bens e do respectivo registo, não há que fazer intervir os terceiros adquirentes na acção executiva porquanto, em face do disposto no art. 819.º, do CC, a transmissão dos bens é inoponível ao exequente, dado que a execução prossegue sobre os bens como se estes continuassem a pertencer ao executado (cfr. Ac.RE, de 6-12-18, proferido no proc. 978/09.9TBSTR.E1, in dgsi).
Acresce que o direito real de garantia de que se é titular pode ser exercido livremente, sem prejuízo de terceiro adquirente, uma vez que a venda em processo executivo implica o cancelamento de quaisquer ónus e encargos que impendam sobre o bem (art.° 13.°, do Código de Registo Predial).
Assim, da conjugação do exposto, é possível concluir-se que a penhora apenas pode incidir sobre os bens do devedor e só, excepcionalmente, sobre bens de terceiro, nos casos especialmente previstos na lei, como acontece no caso dos autos, em que o bem hipotecado para garantia do crédito passou para a esfera patrimonial de outrem, ou seja, do Estado.
Contudo, nesse caso, os termos da execução não podem ir além da garantia resultante da hipoteca do bem, uma vez que o mesmo só pode responder por dívida a que o seu titular é alheio, em virtude de estar vinculado por aquela garantia.
Como tal, tendo o Estado assumido apenas a qualidade de habilitado nos presentes autos, enquanto terceiro adquirente da coisa hipotecada, não devedor da obrigação exequenda, não podem ser penhorados outros bens que lhe pertençam para além do abrangido pela garantia, por não ser ele o devedor da obrigação exequenda.
Resta ao exequente, pois, ou prosseguir a execução com o bem hipotecado, sem esquecer a graduação de créditos e os respectivos valores que são devidos ao primeiro graduado antes de si, ou fazer-se pagar por via de outros bens que pertençam ao devedor da quantia exequenda e não à custa de bens de terceiros não abrangidos pelos casos previstos na lei.
Nestes termos, julgando-se carecer o exequente de qualquer razão e fundamento, dos por si invocados, para ver alterada a decisão proferida, deve, antes, esta ser mantida.
Deste modo, tem, pois, de improceder o recurso
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IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª secção cível, deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso, mantendo, consequentemente a decisão proferida.
Custas pelo exequente/recorrente.
Registe e notifique.
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Guimarães, 30 de Junho de 2020
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária, sem observância do novo acordo autográfico, a não ser nos textos transcritos com adesão ao mesmo, e é assinado electronicamente)