Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
972/17.6T9GMR-A.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: FASE DE INQUÉRITO
OMISSÃO NOTIFICAÇÃO LESADO
DESPACHO DO ARTº 311º DO CPP
REPARAÇÃO DA IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) É na fase de inquérito que se impõe o cumprimento do dever de informação a que alude o art. 75º,nº1, do Código de Processo Penal.

II) Omitido tal cumprimento, mas prevendo-se no nº 2 do art. 123º do Cód. Proc. Penal, a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação”, tal apenas poderá significar que a autoridade judiciária que detectar a irregularidade pode tomar a iniciativa de a reparar, determinando que os respetivos serviços diligenciem nesse sentido.

III) Não faz sentido, uma vez detectada a irregularidade quando o processo é concluso para os efeitos do art. 311º, do C.P.P. e entendendo-se ser possível repará-la, optar por remeter os autos à fase anterior para o seu suprimento, o qual se resume a uma mera notificação ao lesado.

IV) Razões de economia processual deveriam logo ter sopesado na opção tomada, as quais impunham a determinação imediata à respectiva secretaria judicial do cumprimento da notificação omitida.

V) Acresce que o inquérito mostra-se encerrado, estão em causa duas fases processuais autónomas – a do inquérito e do julgamento – dirigidas respetivamente por autoridades judiciárias distintas e autónomas.

VI) Ao ordenar a remessa dos autos ao Ministério Público, com vista ao cumprimento do dever de informação, tal não deixa também de ter implícita uma “ordem”, que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.
Decisão Texto Integral:
Desembargadora Relatora: Cândida Martinho
Desembargador Adjunto: António Teixeira

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1.
Nos presentes autos de processo comum singular nº972/17.6T9GMR-A, na sequência de requerimento dirigido aos autos pelo Banco ..., SA, no qual foi invocada a omissão do dever de informação do lesado, constante do disposto no art.75º,nº1, do C.P.P., foi proferido o despacho de 28/9/2018, que a título de questão prévia julgou verificada uma irregularidade processual decorrente do não cumprimento do citado preceito legal e determinou a remessa dos autos ao Ministério Público com vista ao seu suprimento, dando-se a competente baixa na distribuição.

2.
Não se conformando com essa decisão veio o Ministério Público recorrer da mesma, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:

«1º Nos autos identificados em epígrafe foi deduzida acusação, em processo comum, contra o arguido D. P. pela prática de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375.°, n.° 1, conjugado com o artigo 386.°, n.° 1, alínea d), ambos do Código Penal.
2° - Remetidos os autos à distribuição, a Mm.ª Juiz a quo, proferiu despacho declarando irregular a não notificação do Banco ..., S.A., nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 75º n.° 1 do CPP e determinando a devolução dos autos ao Ministério Público, com vista ao suprimento da irregularidade.
3° - Não pode, porém, em nosso entender, conformar-se o Ministério Público com esta decisão.
4.° O juiz não pode determinar, como o fez, a devolução dos autos ao Ministério Público para que seja sanada uma irregularidade.
5° - Com efeito, ao proceder dessa forma, viola não só o princípio do acusatório consagrado no artigo 32.°, n.°5 da Constituição da República Portuguesa, como a autonomia do Ministério Público (relativamente ao juiz) estabelecida igualmente na Constituição da República Portuguesa no artigo 219°, n.°2 (ver neste sentido os recentes acórdãos da Relação de Lisboa e do Porto, respectivamente de 5/6/2014 in Colectânea de Jurisprudência, tomo 111-2014 e de 4/6/2014 in www.dgsi.pt).
6.° - Pelo que, a existir irregularidade essa irregularidade deve ser suprida pela secção judicial, sendo contrária à autonomia do Ministério Público a ordem judicial de suprimento da mesma por parte dos serviços deste.
- Assim, inexistindo questão prévia nos autos que obste o conhecimento do mérito da causa (e que possa conhecer), só restava à Mm.ª Juiz designar data para audiência de julgamento, pelo que omitindo tal despacho, devolvendo ao invés os autos ao Ministério Público, violou o disposto no artigo 312.° do CPP.
- Nesta conformidade, em consequência e perante todo o antes exposto, deverá ser revogada a decisão recorrida e ser substituída por outra que receba a acusação pública deduzida e que designe data para audiência de discussão e julgamento, atenta a violação do disposto nos arts. 113.°, 118.°, 123.°, n.° 1 e 2, 312.° do Código de Processo Penal e 32.°, n.° 5 e 219.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa».
3.
Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procuradora-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo pela procedência do recurso.
4.
Foi cumprido o art.417º,n2, do C.P.P..
5.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser ai julgado, de harmonia com o preceituado n art.419º,nº3,al.c), do diploma citado, cumprindo agora decidir.

II. Fundamentação

A) Delimitação do Objeto de Recurso.

Dispõe o art. 412º,nº1, do Código de Processo Penal ( diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer referência) que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

O objeto do processo define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º- naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cf.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, VolIII, 1994,pág.340, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).

O âmbito do recurso é dado, assim, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior ad quem, as questões a decidir e as razões que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam.

No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir é a seguinte:

- Saber se o juiz do julgamento pode determinar a remessa dos autos ao Ministério Público com vista à reparação de uma irregularidade cometida na fase de inquérito.

B) Apreciação do Recurso

No caso vertente, após os autos terem sido distribuídos e concluídos para prolação do despacho a que alude o artigo 311º do C.P.P., a Mma Juiz, a título de questão prévia, considerou verificada a irregularidade decorrente do não cumprimento em fase de inquérito do disposto no art. 75º, do C.P.P., e, em conformidade, invocando o disposto no art. 123º,nº2, do mesmo diploma, o qual prevê a reparação oficiosa de qualquer irregularidade no momento em que da mesma se tomar conhecimento, determinou, com vista ao seu suprimento, a remessa dos autos ao Ministério Público, dando baixa da distribuição.

Dispõe o citado art.75º, no seu nº1, que “Logo que no decurso do inquérito, tomarem conhecimento da existência de eventuais lesados, as autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal devem informá-los da possibilidade de deduzirem pedido de indemnização civil em processo penal e das formalidades a observar”.

É pois na fase de inquérito se impõe o cumprimento do dever de informação omitido.

Mas, detectada a sua omissão na fase do julgamento e optando a Mma Juiz por determinar o seu suprimento nos termos do citado art. 123º,nº2, não vemos, de facto, porque razão, ao invés de determinar à sua respectiva secção a notificação omitida, evitando delongas processuais, optou por remeter os autos ao Ministério Público para tal efeito.

Na verdade, ao prever-se no nº 2 do art. 123º do Cód. Proc. Penal, a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação”, tal apenas poderá significar que a autoridade judiciária que detectar a irregularidade pode tomar a iniciativa de a reparar, determinando que os respetivos serviços diligenciem nesse sentido.
O que não parece fazer sentido é que detectando a Mma juiz oficiosamente a irregularidade quando o processo lhe é concluso para os efeitos do art. 311º, do C.P.P. e entendendo – e bem - ser possível repará-la, tivesse optado por remeter os autos à fase anterior para o seu suprimento, o qual se resume a uma mera notificação ao lesado.

Razões de economia processual deveriam logo ter sopesado na opção tomada, as quais impunham a determinação imediata à respectiva secretaria judicial do cumprimento da notificação omitida.

Acresce que o inquérito mostra-se encerrado, estão em causa duas fases processuais autónomas – a do inquérito e do julgamento – dirigidas respetivamente por autoridades judiciárias distintas e autónomas.

Ora, ao ordenar a remessa dos autos ao Ministério Público, com vista ao cumprimento do dever de informação, tal não deixa também de ter implícita uma “ordem”, que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.

Como defende Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do C.P.P., UCP, 2ª edição, pág. 790/791, em anotação ao art. 311º, “…pelos motivos (…) atinentes ao princípio da acusação, o juiz do julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao M.P. (…) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito (…)».

Ainda que a propósito das fases de inquérito e instrução, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de abril de 2006, em que foi relator o juiz conselheiro Pereira Madeira, proc. nº 06P1403, in www.dgsi.pt, “não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção”.

No mesmo sentido, entre outros, cfr, acórdãos da R.L. de 26/2/2013, proferido no âmbito do Proc. 406/10.7GALNH-A.L1-5 e da RG. de 5/12/2016, proferido no processo 823/12.8PBGMR.G1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt .

Cremos assim que deveria a Mma Juiz do tribunal a quo ter ordenado a reparação da irregularidade em causa, da qual conheceu oficiosamente, pelos seus próprios serviços e não ordenar a remessa dos autos aos serviços do MP, como o fez, com essa finalidade, dando sem efeito a distribuição.

Em conformidade, procede assim o recurso do MP..

III. Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Publico, revogando-se o despacho recorrido na parte em que deu sem efeito a distribuição e determinou a remessa dos autos aos Serviços do MP, o qual deverá ser substituído por outro que ordene aos próprios serviços a reparação da irregularidade em causa, seguindo-se os regulares termos do processo em função do que vier, ou não, a ser requerido na sequência da notificação em falta.
Sem custas.
Guimarães, 25 de Fevereiro de 2019