Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
422/14.0JAPRT.G2
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: REENVIO PARCIAL
NOVA DECISÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO
OBJECTO DO RECURSO
PROIBIÇÃO DUPLA VALORAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Quando a relação determina o reenvio do processo, é efetuado novo julgamento e proferida nova sentença pelo tribunal de primeira instância. Sendo diferentes os factos das duas sentenças, é perante os termos da segunda que os sujeitos processuais têm de argumentar, se pretenderem a alteração da decisão. Têm de interpor recurso da segunda sentença, não podendo limitar-se a declarar que mantêm o recurso que interpuseram da primeira.

II – Se for determinado o reenvio parcial, o novo julgamento está limitado aos factos relevantes para a decisão da questão concreta identificada.
Se a relação, além do reenvio parcial, também tiver decidido sobre os demais factos impugnados no primeiro recurso, os sujeitos processuais, no novo recurso, só podem impugnar os factos relevantes para a decisão da questão que motivou o reenvio parcial.

III – Há violação do princípio da proibição da dupla valoração, quando o tribunal toma em consideração, na medida da pena, uma circunstância que já fundamentou a qualificação do crime de homicídio.
Porém, tal “não obsta a que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico e, portanto, da concretização deste, segundo as especiais circunstâncias do caso” – As Consequências Jurídicas do Crime, ed. 1993, pag. 234.
Igualmente, concorrendo no homicídio mais de uma circunstância qualificativa (ou «exemplo-padrão»), só deve ser considerado para o efeito da aplicação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Na Comarca de Vila Real (Vila Real – Inst. Central – Secção Criminal – J3), em processo comum com intervenção do tribunal coletivo (Proc.nº 422/14.0JAPRT), foi proferido acórdão que, além de indemnizações cíveis, condenou o arguido Manuel, por crimes de homicídio e homicídio qualificado, na forma tentada, na pena única de 20 anos de prisão.
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Constituíram-se assistentes e deduziram pedidos cíveis Maria, António, Nuno e Alexandra.
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Interpostos recursos, este Tribunal da Relação de Guimarães decidiu o reenvio parcial do processo para novo julgamento.
Efetuado novo julgamento, foi proferido novo acórdão, que decidiu (transcreve-se):

a) Absolver o arguido Manuel como autor material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131º, nº. 1 e 132º, nºs. 1 e 2, al.s e) – motivo fútil e j) – frieza de ânimo, ambos do Código Penal;
b) Condenar o arguido Manuel como autor material e na forma consumada, de um crime de homicídio p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 131º, nº. 1 do Código Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão;
c) Condenar o arguido Manuel como autor material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 131º, nº. 1 e 132º, nºs. 1 e 2, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão;
d) Em cúmulo jurídico, na pena única de 19 (dezanove) anos e 6 (seis) meses de prisão.
e) Condenar, ainda, o arguido no pagamento dos encargos do processo, fixando-se em 5 (cinco) UC´s a taxa de justiça devida (cf. artºs. 513º, nºs. 1 e 2, 514º, nº. 1, ambos do C.P.P. e artigo 8º, nº. 9 e Tabela III do R.C.P.).
f) Condenar o demandado a pagar a sua mãe Maria a quantia total de 30.026,50 €; acrescida de juros, sobre a quantia de € 26,50 contados desde a notificação do demandado e sobre a quantia de € 30.000,00, contados desde a presente decisão, absolvendo-o do demais peticionado;
g) Condenar o demandando a pagar aos demandantes António e seus filhos Nuno e Alexandra a quantia de 50.000,00 euros, pelo direito à vida e a quantia de € 20.000,00 pelo sofrimento da vítima pela morte iminente. Mais se condena o demandado a pagar a cada um dos demandantes em causa (António, Nuno e Alexandra) a quantia de € 30.000,00, pelo sofrimento passado, presente e futuro dos demandantes em causa, em decorrência da morte de Liliana. Condena-se ainda o demandado a pagar ao demandante António a quantia de € 1.743,00, correspondente ao valor que gastou com o funeral da vítima. Às quantias em causa acrescem juros de mora, contados desde a data da presente decisão até integral pagamento, sobre as quantias de € 50.000,00; € 20.000,00 e € 30.000,00; e contados desde a data da notificação do pedido de indemnização civil ao demandado, sobre a quantia de € 1.743,00. Condeno ainda o demandado a pagar aos demandantes Nuno e Alexandra, a quantia que vier a liquidar-se em incidente de liquidação de sentença, correspondente ao valor das despesas médicas e medicamentosas relativas aos tratamentos psiquiátricos que os demandantes têm frequentado. Absolvo o demandado do demais peticionado.
h) Custas dos pedidos civis na proporção dos respectivos decaimentos.
i) Mais, condenar o demandando Manuel a pagar ao demandante Centro Hospitalar X, E.P.E., a quantia de €1316,48 (mil trezentos e dezasseis euros e quarenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data da notificação do demandado para contestar o pedido e vincendos até integral pagamento;
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O arguido Manuel interpôs recurso deste acórdão.

Suscita as seguintes questões:

- impugna a decisão sobre a matéria de facto;
- invoca a violação do princípio non bis in idem e a violação do art. 29 nº 5 da CRP, na determinação da pena concreta do crime de homicídio qualificado, na forma tentada;
- a pena parcelar pelo crime de homicídio consumado não deve ser superior a 10 anos de prisão;
- a pena parcelar pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, não deve ser superior a 4 anos de prisão;
- a pena única não deverá ser superior a 8 anos de prisão;
- a indemnização pelos danos não materiais sofridos pela vítima do homicídio consumado, Liliana, não deverá ser superior a € 10.000,00;
- é suficiente para compensar os danos não materiais próprios dos demandantes António, Nuno e Alexandra, marido e filhos da Liliana, o montante global de € 30.000,00 (€ 10.000,00 para cada um); e
- a indemnização pelos danos materiais sofridos pela vítima do homicídio qualificado, na forma tentada, Maria, deve ser fixada em € 7.000,00.
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Responderam ao recurso o magistrado do Ministério Público e os assistentes/demandantes cíveis.
O magistrado do Ministério Público defendeu a improcedência do recurso;
Os assistentes/demandantes cíveis declararam, em resumo que:

- dão por reproduzida a resposta que apresentaram ao recurso do arguido do primeiro acórdão (fls. 2485 – vol. 8); e
- declaram “manter o seu recurso que instauraram quanto à desqualificação do crime de homicídio qualificado, convolado para simples, praticado na pessoa/vítima Liliana…”.

Nesta instância, o sra. procuradora-geral adjunta emitiu parecer no mesmo sentido da magistrada da primeira instância.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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I – No acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):

1. O arguido Manuel é irmão da ofendida Liliana e são ambos filhos da ofendida Maria.
2. O arguido Manuel teve a sua residência habitual na Alemanha e, quando em Portugal, reside na Rua …, Montalegre.
3. Esta residência é contígua à residência da ofendida Liliana, sita no n.º 6 da mesma rua, existindo entre ambas as residências acessos comuns e espaços exteriores comuns.
4. O arguido Manuel e a ofendida Liliana, deixaram de se falar entre si, cerca de três anos antes dos factos infra descritos.
5. O arguido Manuel criou em si um sentimento de animosidade para com a sua irmã Liliana e a sua mãe Patrícia.
6. No dia 8 de Março de 2014, cerca das 12:00horas, o arguido Manuel chegou à sua residência sita em Montalegre e apercebeu-se da presença da sua irmã Liliana que se encontrava sozinha junto do alpendre que serve de garagem à residência desta.
7. Dirigiu-se junto da sua irmã Liliana.
8. O arguido Manuel brandiu uma faca, de características não concretamente apuradas e com ela atingiu o corpo de Liliana, desferindo-lhe seis golpes, melhor descritos no relatório de autopsia-médico legal junto a fls. 916 a 926 e que aqui se dá por integralmente reproduzido, sendo estes dois golpes na zona dorsal, um na zona do ombro, dois no abdómen e um no membro superior direito, ou seja:

A) No tórax:

- Lesão identificada no relatório de autópsia com a letra A: corresponde a uma solução solução de continuidade linear com 1 cm de comprimento; de bordos lisos, irregulares, infiltrados e ligeiramente macerados; disposta na horizontal a nível da linha axilar anterior direita no 7º espaço intercostal, com a extremidade mais posterior angulosa e a extremidade mais anterior romba. As características morfológicas desta lesão são compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto-perfurante, sendo no entanto superficial, atingindo apenas a pele e o tecido celular subcutâneo.
- Lesão identificada no relatório de autópsia com a letra B: corresponde a uma solução de continuidade linear com 4 cm de comprimento e escoriação terminal de 0,5 cm de comprimento; de bordos lisos, irregulares, infiltrados e escoriados; disposta obliquamente de cima para baixo e da esquerda para a direita a nível da linha axilar média direita no 8º espaço intercostal, apresentando a extremidade mais posterior angulada e a extremidade mais anterior romba. As características morfológicas desta lesão são compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto-perfurante.
- Lesão identificada no relatório de autópsia com a letra C: corresponde a uma solução de continuidade linear com 3 cm de comprimento; de bordos lisos, regulares e infiltrados; disposta obliquamente de cima para baixo e da esquerda para a direita no terço superior da face posterior do hemotórax esquerdo, a 2 cm da linha média, apresentando a extremidade mais posterior angulada e a extremidade mais anterior romba. As características morfológicas desta lesão são compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto-perfurante.
- Lesão identificada no relatório de autópsia com a letra D: corresponde a uma solução de continuidade linear com 3 cm de comprimento; de bordos lisos, regulares e infiltrados; disposta obliquamente de cima para baixo e da esquerda para a direita no terço superior da face posterior do hemotórax direito, a 2 cm da linha média, apresentando a extremidade mais superior angulada e a extremidade mais inferior romba. As características morfológicas desta lesão são compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto-perfurante.
- Lesão identificada no relatório de autópsia com a letra E: corresponde a uma solução de continuidade linear com 1 por 0,5 cm de maiores dimensões; de bordos lisos, irregulares, infiltrados e ligeiramente macerados; localizada 2 centímetros à esquerda da linha média torácica anterior, a 22 cm do umbigo e a 10 cm da linha axilar anterior esquerda, com a extremidade mais inferior angulosa e a extremidade mais superior romba. As características morfológicas desta lesão são compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto- perfurante.
• Várias escoriações irregulares de coloração avermelhada, com 2 por 1,5 cm de maiores dimensões, ao nível da região supra-escapular esquerda.

B) No membro superior direito:

- Lesão identificada no relatório de autópsia com a letra F: corresponde a uma solução de continuidade linear com 2,5 cm de comprimento; de bordos lisos, regulares e infiltrados; localizada no terço superior da face póstero-lateral do braço, com a extremidade mais superior angulosa e a extremidade mais inferior romba. As características morfológicas desta lesão são compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto-perfurante.
• Duas escoriações irregulares de coloração avermelhada, uma com 1 cm e outra com 0,5 cm de comprimento, localizadas respectivamente na eminência tenar e no dorso da mão junto à falange proximal do 2º dedo.

9. Em consequência de tal actuação, Liliana padeceu das seguintes lesões:

A) No tórax:

Clavículas, Cartilagens e Costelas Direitas: A lesão identificada como F2 corresponde à fractura dos 3º e 4º arcos costais médios direitos, ao nível da linha axilar média direita, com infiltração hemorrágica dos topos fracturados e dos tecidos moles adjacentes, em continuidade com as lesões F e F1, que condiciona solução de continuidade a nível da pleura parietal. Esta lesão tem características morfológicas compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto-perfurante.
Clavículas, Cartilagens e Costelas Esquerdas: A lesão identificada como C1 corresponde à fractura dos 3º e 4º arcos costais posteriores esquerdos, a nível da 3ª e 4ª costelas esquerdas, com infiltração hemorrágica dos topos fracturados e dos tecidos moles adjacentes, em continuidade com a lesão C. Esta lesão tem características morfológicas compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto-perfurante.
Artéria Aorta: A lesão identificada como C2 corresponde a solução de continuidade com 3 por 1 centímetros de maiores dimensões, de bordos lisos e irregulares, infiltrados de sangue, localizada a nível da transição entre a crossa da aorta e a aorta descendente, encontrando-se em continuidade com as lesões C e C1. Esta lesão tem características morfológicas compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto-perfurante.
Pleura parietal e cavidade pleural direita: Duas soluções de continuidade da pleura parietal, uma delas com 3 centímetros de comprimento, com bordos regulares e infiltrados de sangue, em correspondência com a lesão D, localizada imediatamente à direita dos corpos 7ª e 8ª vértebras torácicas (D1); e outra com 3,5 centímetros de comprimento, no 4º espaço intercostal direito a nível da linha axilar média direita, em correspondência com a lesão F2. Esta lesão tem características morfológicas compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto-perfurante.
Pleura parietal e cavidade pleural esquerda: Solução de continuidade da pleura parietal com 2,5 centímetros de comprimento, com bordos regulares e infiltrados de sangue, localizada a nível do 4º espaço intercostal esquerdo entre as cabeças das 3ª e 4ª costelas esquerdas, em correspondência com a lesão C1. Esta lesão tem características compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto-perfurante.
Pulmão direito e pleura visceral: Pulmão atelectasiado. Superfície pulmonar pálida, de coloração rosada nos segmentos anteriores e coloração mais escura nas partes posteriores devido a fenómeno de hipóstase, com pigmento antracótico disperso. A lesão identificada como D2 corresponde a solução de continuidade com forma linear e 2,5 cm de comprimento, bordos irregulares e infiltração sanguínea do parênquima associada, localizada na face anterior do lobo médio, em correspondência com as lesões F, F1 e F2. Estas lesões têm características morfológicas compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto-perfurante.

B) Na coluna vertebral e medula:

Vertebras e estruturas articulares: A lesão identificada como D1, corresponde ainda com a fractura incompleta não desalinhada dos corpos vertebrais da 7ª e 8ª vertebras dorsais, com infiltração hemorrágica dos bordos ósseos e dos tecidos moles adjacentes. Esta lesão tem características morfológicas compatíveis com mecanismo de produção de natureza corto- perfurante.

C) Nos membros:

Membro superior direito: infiltração hemorrágica dos tecidos moles em correspondência com a lesão F.
10. As lesões identificadas no ponto 8. com as letras C, D, F e subsequentes, por terem atingido a aorta, o pulmão direito e a coluna vertebral, foram causa directa, adequada e necessária da morte de Liliana, certificada às 13:45 horas do dia 8 de Março de 2014.
11. Entretanto, Maria, alertada por gritos que reconheceu terem sido emitidos pela sua filha Liliana, dirigiu-se ao exterior da residência desta e encaminhou-se na direcção do local de onde provieram tais gritos.
12. Todavia, no passeio de acesso da residência às garagens, foi surpreendida pelo arguido Manuel que a interceptou em tal percurso munido de uma faca.
13. De imediato e sem lhe dirigir qualquer palavra, brandiu a faca que trazia consigo pelo ar e com ela atingiu o corpo de Patrícia, desferindo-lhe um golpe na mão esquerda, um no antebraço direito e outro na região escapular direita e esquerda e na coluna dorsal superior.
14. Em consequência de tal actuação, padeceu Patrícia de pneumotórax esquerdo e efisema subcutâneo da parede torácica esquerda, apresentando em 23.03.2014, as seguintes lesões:

A) No tórax: Na região inter-homoplática uma cicatriz traumática, resultante da agressão, medindo 2,5 cm; na região da axila esquerda uma cicatriz cirúrgica medindo 1cm.
B) Membro superior esquerdo: cicatriz traumática, resultante da agressão, ao longo da face palmar da base do 1º dedo medindo 5 cm.
15. Tais lesões determinaram em Patrícia de forma directa e necessária 15 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional pelo mesmo período de tempo.
16. Apenas não tendo a esta sobrevindo a morte por mero acaso e por razões alheias à vontade do arguido.
17. Após, o arguido Manuel dirigiu-se à sua mãe e ofendida
Patrícia e disse: “matei as duas, vou-me entregar”.
18. Apesar de ter visto que Liliana e Patrícia ficaram prostradas no chão, se ter apercebido do estado de saúde em que estas se encontravam e de estar convencido de que corriam perigo de vida, o arguido dali se ausentou sem dar conhecimento do sucedido a ninguém, sem prestar socorro às ofendidas nem promover este socorro.
19. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que ao desferir golpes com uma faca sobre o corpo de Liliana e Patrícia este era um meio idóneo e adequado a provocar lesões de que poderiam advir a morte, como efectivamente se concretizou quanto a Liliana e apenas não se concretizou quanto a Patrícia por mero acaso.
20. O arguido cessou a sua actuação quando entendeu ter consumado os intentos a que se dispôs, isto é, tirar-lhes a vida.
21. Sabia o arguido das relações de parentesco próximas que o uniam às ofendidas, respectivamente irmã e mãe.
22. Sabia ainda a idade que a sua mãe Maria já contava, sendo esta de 85 anos, o que tornava difícil se não mesmo impossível a sua rápida fuga e a sua defesa face aos actos de que foi vítima.
23. Não obstante, o arguido não se coibiu de agir da forma acima descrita, manifestando um total desprezo pela vida humana.
24. Sabia ainda o arguido Manuel que toda a sua actuação era proibida e punida por lei, e não obstante não se absteve de agir.

Factos atinentes às condições de vida e à personalidade do arguido:

25. O arguido é originário de …, Montalegre, onde cresceu numa família de média condição socioeconómica.
26. Após ter cumprido serviço militar incluindo a mobilização para a Guiné, organizou-se profissionalmente na Alemanha, tendo trabalhado numa empresa de produtos químicos e numa clínica em Frankfurt, cerca de 35 anos.
27. Em 2009 reforma-se e passa a residir, alternadamente, em Portugal e na Alemanha, local onde ainda hoje permanece a cônjuge do arguido, uma vez que se encontra activa profissionalmente, como auxiliar de acção médica numa clínica em Frankfurt.
28. Em Portugal, reside numa habitação própria com boas condições de habitabilidade, inserida num contexto rural.
29. A vivência familiar é caracterizada por laços afectivos sólidos e um forte espírito de solidariedade e de entreajuda, mantendo o arguido uma relação de grande proximidade do cônjuge e filho, apesar de este ter vindo para Portugal aos 20 anos para dar início aos estudos universitários.
30. Economicamente, o agregado apresenta uma situação económica estável, dado de que vive do vencimento da mulher do arguido e da reforma deste perfazendo o montante aproximado de 2 400,00€, apresentando como despesas, em Portugal e na Alemanha, cerca de 700€ por mês.
31. No meio local o arguido beneficia de uma imagem positiva, sendo considerado trabalhador e pessoa idónea, relativamente ao qual não existe qualquer sentimento de rejeição.
32. Em reclusão o arguido tem tido um comportamento adequado, cumpridor das regras e sem quaisquer registos de incidentes.
33. O arguido não tem antecedentes criminais.
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Da contestação:

34. O arguido concluiu a 4ª classe.
35. Desde cedo começou a trabalhar no amanho e cultivo de terras.
36. Emigrou para França aos 18 anos trabalhando na construção civil.
37. Regressou a Portugal para cumprir serviço militar obrigatório, tendo sido mobilizada para ao Guiné, participando na guerra colonial.
38. Em 1973 emigrou para a Alemanha onde trabalhou numa empresa de serviço de limpeza, onde conheceu a mulher com quem casou cerca de um ano depois.
39. Dessa união nasceu um filho, de nome Daniel, médico de profissão.
40. Em 2009 reformou-se depois de ter estado a trabalhar na Hoechst, onde atingiu a categoria de chefe das normas de segurança.
41. Desde então, dividiu-se entre Portugal e a Alemanha onde a sua mulher continuou a trabalhar, embora nos últimos anos passasse maiores períodos de tempo em Portugal.
42. O seu relacionamento com a irmã, cunhado e sobrinhos era próximo e bom, passando e gozando férias juntos.
43. Quando o filho do casal veio estudar Medicina em Portugal, ficou a residir na casa da falecida, sendo então mais frequentes as visitas do arguido e mulher a Portugal.
44. Durante os períodos em que permaneciam em Portugal ficavam instalados em sua casa, uma moradia que construíram em 1977/78 num terreno onde viria a ser construída também a casa da irmã, sendo o acesso a ambas as moradias feito pelo mesmo portão e partilhando um logradouro comum.
45. O arguido sempre foi pessoa considerada e bem vista por todos quanto o conheceram e conhecem.
46. É tido por quem o conhece como um homem educado, respeitador, disponível a ajudar os outros, pacífico e dotado de personalidade sensível.
47. A falecida era pessoa de feitio difícil, gerando conflitos familiares com a família de sangue do marido, com quem este deixou de manter contacto.
48. Há cerca de três anos a falecida e o arguido deixaram de se falar e aquela chegou a desconsiderá-lo.
49. Por força dessa circunstância o relacionamento entre o arguido e o cunhado bem como com os sobrinhos passou a ser mais distante, sem se perder.

Dos pedidos de indemnização civil

50. No dia 8 de Março de 2014, Liliana faleceu, vítima de homicídio qualificado, no estado de casada com António, tendo deixado como seus sucessores, o referido seu marido, António e os seus dois filhos Nuno, Alexandra, maiores de idade.
51. Maria, é mãe da vítima Liliana, que com ela, marido e seus netos viviam na mesma casa.
52. A vítima Liliana, à data dos factos, tinha a idade de 61 anos, nasceu em 21/10/1952.
53. Era uma pessoa robusta, saudável, energética, muito activa, trabalhadora apesar de professora reformada, bem-disposta, alegre, criativa, cheia de confiança nos projectos que estava a realizar e pretendia ainda fazer quer para si e os seus, quer na União das freguesias de Padornelos e Meixedo, onde era membro da Assembleia de Freguesia.
54. Não se lhe conheciam doenças, gozava de excelente saúde, sendo mulher saudável.
55. A morte inesperada, cerceou-lhe a possibilidade de fruir tudo o que a caracterizava como ser humano e de gozar com o seu marido, filhos e sua mãe, o que tanto lhe custara a granjear numa vida de professora do ensino básico que foi.
56. Estava já no início da sua reforma, auferindo o montante líquido de 2.561,76 Euros.
57. Liliana, ao ver o arguido a empunhar a faca e a desferir-lhe várias facadas directamente ao seu corpo, teve consciência plena, que a sua vida ia terminar, como, de facto, terminou.
58. Esta compreensão, angustiou-a profundamente.
59. A certeza, de que deixava, para sempre, a vida, seu querido marido, filhos, mãe amados e demais familiares, amargurou-a com certeza, pois eram uma família muito unida e feliz, a Liliana era o leme e o amor dos demandantes.
60. O casal composto pela vítima e António, eram muito felizes, estando casados em plena harmonia, respeito e amor.
61. A demandante Maria era com eles que residia, reside agora e por mera sorte e razões alheias à vontade do arguido, de também não ter falecido (já que foi alvo de várias facadas, também desferidas no seu corpo pelo arguido) com o seu genro António com ajuda dos seus netos e tal como eles também sofrem diariamente, e tentam ultrapassar (o que não conseguem) evento tão violento.
62. Os seus filhos, o Nuno a residir em Montalegre, ia lá a casa diariamente, sozinho ou com a sua companheira e filho menor, a Alexandra reside em Braga onde trabalha, mas telefonava sempre à mãe, vinha aos fins-de-semana e sempre que podia.
63. Ambos os filhos mantinham com os seus pais – e com a sua mãe vitimada, contactos diários a quem eram muito dedicados e chegados.
64. A vida dos demandantes com a sua perda abrupta e de forma violenta e não natural, alterou-se de forma irremediável, que revivem dia a dia, com imensa dor, tristeza, angústia e profunda depressão.
65. Existia entre todos, grandes laços de afecto, carinho e amor, que se estendiam por todos os que com ela conviviam, demais familiares e amigos, que ela sempre soube bem receber em sua casa.
66. A morte da sua, respectivamente, esposa, mãe e filha, representou para eles uma perda irreparável, sendo grande a dor, desgosto, sofrimento e saudade que sofreram, sofrem e sofrerão para sempre, tão fortes eram os vínculos que os uniam.
67. Agravado este golpe rude e emocional na vida dos ofendidos pela forma como a vítima faleceu, de forma tão brutal e violenta, que lhes deixaram sequelas graves a nível do foro psicológico.
68. A demandante Alexandra e António, têm frequentado consultas de psiquiatria, sendo que por cada uma pagam o valor de 70,00 euros e não se prevê quanto tempo ainda terão de as frequentar, face à depressão causada por tão brutal evento.
69. A Demandante Maria, também começou a frequentar essas consultas com psiquiatra.
70. O demandante António teve que suportar as despesas do funeral da sua amada esposa, no valor de 1.743,00 euros.
71. A ofendida Maria esteve hospitalizada no Centro Hospitalar X, durante 15 dias, ou seja, desde o dia 8 de Março de 2014, até ao dia 23 de Março de 2014, tendo sofrido diariamente com as lesões.
72. Não pagou as taxas moderadoras, uma vez que estava isenta, por ser reformada,
pese embora os seus tratamentos e assistência tenham importado em 1.316,48€.
73. A ofendida, à data dos factos, com 85 anos de idade, era pessoa relativamente saudável, atendendo à sua idade, alegre e confiante.
74. Movimentava-se bem para a sua idade, era independente para os actos do seu dia a dia, fazendo trabalhos, nomeadamente de costura, para a cruz vermelha, e ajudava a sua filha Liliana.
75. O que, logo após os factos, deixou de suceder, durante o internamento hospitalar a que foi sujeita e durante algum tempo após ter tido alta hospitalar. Posteriormente, com incentivo do seu genro e dos seus dois netos, começou a levantar-se, mas andando inicialmente numa cadeira de rodas, o que ocorreu, pelo menos até ao dia 7 de Abril de 2014, dia em que se deslocou ao Tribunal Judicial de Montalegre e prestou declarações para memória futura, tendo então sido auxiliada pelo seu neto.
76. Durante algumas semanas, necessitou de ajuda para se movimentar, sendo o seu genro, com o qual vivia na altura dos factos e ainda continua a viver, que a auxiliava, nas tarefas diárias, como tomar banho, alimentar-se e vestir-se. E sempre que os netos se encontravam lá em casa, também eles ajudavam a sua avó, que ainda agora necessita de ajuda para tomar banho.
77. Atendendo á sua idade e por causa dela, necessitará até aos últimos dias da sua vida, de algum auxílio de terceiro, designadamente para tomar banho.
78. O seu médico de família, Dr. F., receitou-lhe, umas vitaminas “Centrum Select” para tomar diariamente, para ter apetite, e aumentar o seu estado energético, uma vez que a mesma desde a data dos factos, não se conseguia alimentar, porque perdeu apetite, devido ao sofrimento que passou.
A ofendida despendeu o montante de 26,50 €, para adquirir as vitaminas e um creme que teve de usar, de marca “Avene Corpo Cicalfate”, que é para cicatrizar.
79. É muito difícil para a ofendida, enfrentar cada dia que passa, porque habita na casa onde ocorreram os factos, que diariamente revive, e que representam momentos horríveis da sua vida, com os quais se sentiu em choque.
80. Precisou de algum auxílio psicológico, tendo chegado a frequentar um psiquiatra.
81. A ofendida sentiu dores e profundo mau estar físico e psíquico.
82. Sente-se chocada e profundamente traumatizada com os factos ocorridos em 08/03/2014, que alteraram a sua vida.
83. A actuação do arguido, limitou-lhe, durante algumas semanas, a possibilidade de se movimentar e deslocar, tornando-a, durante esse período de tempo, carecida de tratamentos e de terceiras pessoas para a auxiliarem nos actos da sua vida diária.
84. Patrícia, ao ver o arguido a empunhar a faca e a desferi-la, directamente no seu corpo, teve a consciência plena, que o arguido a ia matar e que a sua vida ia ali terminar.
85. Tal como a angustiou, o facto de saber que a sua filha tinha sido atingida e que a mesma não a podia socorrer e com a consciência que esta ia morrer.
86. Esta compreensão, angustiou-a profundamente, principalmente, quando o arguido proferiu as expressões: “ matei as duas, vou-me entregar”.

Considerou-se não provado:

Da acusação:

a. Que em virtude da utilização de tais espaços comuns às residências e terrenos anexos, desde há cerca de dois anos até esta data repetiam-se as discussões entre os dois irmãos: o arguido Manuel e a ofendida Liliana, as quais se agravaram em meados de Janeiro de 2014, tendo estes, em tal data, deixado de se falar entre si;
b. Que o arguido trazia a faca consigo quando se dirigiu a Liliana;
c. Que o arguido tenha desferido três golpes na região escapular esquerda e direita e na coluna dorsal de Patrícia;
d. Que agiu de forma calma e reflectida [entende-se não respondível a “frieza de ânimo”, por ser conceito de direito] ao desferir por diversas vezes e de forma ininterrupta, golpes com a faca sobre os corpos, em especial na zona das costas, da sua irmã Liliana e da sua mãe Patrícia;
e. Que o arguido agiu conformando-se com as possíveis consequências da sua actuação, designadamente a morte de Liliana, que se concretizou, e a morte de Patrícia.

Da contestação

f. Que apenas tenha sido proporcionado ao arguido concluir a 4ª classe.
g. Que o arguido tenha crescido sem nenhum carinho e que recorda de em criança lhe baterem muito.
h. Que a vítima fosse intriguista, e tivesse feito com que o marido deixasse de visitar a mãe (sua sogra) e tivesse cortado relações com ela.
i. Que tivesse sido fruto do seu carácter as más relações que propiciava que a falecida criou condições para que se tivessem criado os laços familiares com os familiares da nora, sendo ilustrativo que no dia do baptizado do neto (deles Liliana) o almoço dessa celebração tenha sido festejado por ambas as famílias em locais diferentes.
j. Que a falecida passou deliberadamente a ocupar espaços do logradouro que anteriormente e por acordo estavam destinados à utilização do arguido.

Do pedido civil:

k. Que a ofendida Maria continua e continuará a sofrer diariamente com as lesões que sofreu.
l. Que a ofendida Maria, antes dos factos, era pessoa totalmente independente, robusta, e não lhe eram conhecidas doenças;
m. Que a ofendida tenha sofrido dores fortíssimas e intensas;
n. Que agora necessite da ajuda de terceiro para se poder movimentar;
o. Que agora esteja dependente de tratamentos sucessivos, e de terceiras pessoas para alimentar-se e vestir-se.

FUNDAMENTAÇÃO
A – Questões prévias

1 – A al. c) da parte decisória do acórdão recorrido tem a seguinte redação (transcreve-se):

c) Condenar o arguido Manuel como autor material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 131º, nº. 1 e 132º, nºs. 1 e 2, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão;
Apenas é mencionada, como circunstância qualificativa do crime, a al. a) do nº 2 do art. 132 do Cod. Penal, mas tal deve-se a mero lapso de escrita, pois resulta do contexto do acórdão recorrido que o coletivo considerou igualmente verificada a qualificativa da al. c) do mesmo nº 2 do art. 132 do Cod. Penal.
Para o demonstrar, transcreve-se de fls. 3358.

Depois de considerar “verificada a qualificativa prevista na alínea a) do artigo 132º do Código Penal”, escreveu-se:

Já no que concerne à circunstância qualificativa que se prende com pratica acto contra pessoa particularmente indefesa em razão de idade, perante o quadro factual provado, tendo em conta a provecta idade da vítima – contava com 85 anos de idade – o sexo – era senhora – e com compleição física frágil e magra, como a descreveram os médicos que a assistiram, parece-nos incontornável concluir que se trata de pessoa particularmente indefesa, em razão da idade.
Constituiu-se, assim, o arguido autor material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131º, nº. 1 e 132º, nºs. 1 e 2, al.s a) e c), na forma tentada” (sublinhados do relator).
Trata-se de lapso, cuja correção pode ser feita pelo tribunal de recurso – art. 380 nºs 1 al. b) e 2 do CPP.

Assim, a al. c) da parte decisória do acórdão recorrido passará a ter a seguinte redação:

c) Condenar o arguido Manuel como autor material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 131º, nº. 1 e 132º, nºs. 1 e 2, als. a) e c), ambos do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão;
*
2 – Nestes autos, foi proferido um primeiro acórdão pela primeira instância.

Desse acórdão, interpuseram recurso para a relação o arguido Manuel e os assistentes Maria, António, Nuno e Alexandra.
Conhecendo desse primeiro recurso, a relação decidiu a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, alterando alguns factos, e determinou o reenvio parcial, para novo julgamento, limitado a uma questão concreta (art. 426 nº 1 do CPP – última parte).
Tendo o processo regressado à primeira instância, foi efetuado o novo julgamento e proferido, em 25-7-2016, novo acórdão (fls. 3.299), que é o agora recorrido.
Deste segundo acórdão da primeira instância, apenas interpôs recurso o arguido Manuel.

Porém, quando notificados para a resposta ao recurso, os assistentes apresentaram o requerimento de fls. 3609, no qual em resumo:

- dão por reproduzida a resposta que apresentaram ao recurso do arguido do primeiro acórdão (fls. 2485 – vol. 8); e
- declaram “manter o seu recurso que instauraram quanto à desqualificação do crime de homicídio qualificado, convolado para simples, praticado na pessoa/vítima Liliana…”.
É uma pretensão que não pode ser atendida.
Decidida a realização de novo julgamento, é proferida nova sentença.
É apenas esta segunda sentença (e não, paralelamente, a primeira) que subsiste. Sobre a primeira, o tribunal de recurso já decidiu.
Sendo diferentes os factos das duas sentenças da primeira instância, é perante os termos da segunda que os sujeitos processuais têm de argumentar, se pretenderem a alteração da decisão.
A argumentação dos assistentes, que consta do recurso que interpuseram do primeiro acórdão, com vista à condenação do arguido por um crime tentado de homicídio qualificado, foi feita no pressuposto de serem outros os factos a considerar. Independentemente da questão da legitimidade dos assistentes para recorrerem, seria uma impossibilidade processual estar agora a decidir se procede um recurso interposto duma sentença que já não produz, nem pode vir a produzir, quaisquer efeitos e que em pontos substancialmente significativos é diferente da única que subsiste.
A segunda sentença teria transitado em julgado, nos termos gerais, se o arguido não tivesse recorrido.

Igualmente, pelas mesmas razões, é irrelevante a declaração do arguido/recorrente de que “mantém as alegações proferidas no primeiro recurso sobre decisão final da primeira instância que não ficarem prejudicadas com a decisão de reenvio” – al. b) das “conclusões”.

Assim, improcede a pretensão dos assistentes. Não se atenderá aos termos da resposta dos assistentes ao recurso interposto pelo arguido do primeiro acórdão, nem se conhecerá do recurso interposto pelos assistentes do mesmo primeiro acórdão.

Igualmente, não se conhecerá de eventuais questões suscitadas no primeiro recurso do arguido, se não forem também objeto do recurso que interpôs do segundo acórdão da primeira instância.

B – A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

O recorrente visa que seja aditado o seguinte facto ao elenco dos provados:

Há pelo menos três anos a Liliana, seu marido, filhos e visitas impediam, reiteradamente, a entrada no pátio comum e o acesso no interior no pátio, com o estacionamento de veículos, deixavam sistematicamente os portões de acesso ao pátio comum abertos, bem sabendo que isso era do desagrado do arguido.
Liliana cuspia para as pernas do irmão”.
Porém, isso não é agora possível.

Vejamos:

Como se referiu, este é o segundo recurso interposto de acórdão final.

No primeiro, de 19-10-2015 (fls. 2668 e ss), a relação conheceu da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, fixando os factos e decidiu o reenvio parcial, para novo julgamento, limitado a uma questão concreta (art. 426 nº 1 do CPP – última parte).
Transcreve-se desse acórdão:

II – Ordena-se o reenvio parcial do processo para novo julgamento, quanto a todos os factos relativos às consequências físicas e psicológicas que resultaram da agressão para a Maria.
III – Efetuado o julgamento, será proferido novo acórdão que considerará os todos factos que resultam deste (os não impugnados, os impugnados cuja redação foi mantida e os que sofreram modificação de redação) e os que forem apurados em consequência do novo julgamento”.

O segundo julgamento esteve limitado aos factos relevantes para a questão concreta identificada.
Quanto aos demais factos, formou-se o caso julgado (1), estando esgotado o poder jurisdicional da relação.
O âmbito do recurso é também delimitado pelo âmbito da decisão recorrida. É pacífica a jurisprudência no sentido de que "a missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pelo tribunal de que se recorreu foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes” - por todos, acs. STJ de 6-2-87 e de 3-10-89, BMJs 364/714 e 390/408.
Sendo manifesto que os factos que o recorrente pretende ver provados nada têm a ver com as “consequências físicas e psicológicas que resultaram da agressão para a Maria”, improcede o recurso nesta parte, sem necessidade de outras considerações.

C – A violação do princípio da proibição da dupla valoração, no crime tentado de homicídio qualificado.

Ensina o Prof. Figueiredo Dias que “não devem ser tomadas em consideração, na medida da pena, as circunstâncias que já façam parte do tipo de crime. O princípio tem “uma justificação quase evidente: não devem ser utilizadas pelo juiz para a determinação da medida da pena circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto”. Tal vale para “todos os elementos que tenham sido relevantes para a determinação legal da pena”.
Porém, tal “não obsta em nada a que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico e, portanto, da concretização deste, segundo as especiais circunstâncias do caso” – As Consequências Jurídicas do Crime, ed. 1993, pag. 234.
O nosso maior Mestre dá vários exemplos em que podem ser considerados a intensidade ou os efeitos do preenchimento do elemento típico. Respiga-se um: se a privação de membro for circunstância qualificativa, não é indiferente que a ofensa corporal se tenha traduzido no corte de uma ou das duas pernas.
Neste enquadramento, vejamos o caso em apreço.
O crime tentado de homicídio foi qualificado pelas circunstâncias das als. a) e c) do nº 2 do art. 132 do Cod. Penal – a vítima ser ascendente (mãe) do arguido e ser pessoa particularmente indefesa, em razão de idade.

Para que, na determinação da pena, pudessem ser consideradas quer a relação filial, quer a particular fragilidade da vítima, era necessária a indicação de especiais circunstâncias que impusessem a conclusão de que, no caso concreto, o juízo de censura é superior ao já especialmente elevado juízo de censura, considerado pelo legislador na punição da generalidade dos homicídios sobre um ascendente, ou sobre pessoa particularmente indefesa.

Por outras palavras, são necessários factos que elevem a intensidade ou os efeitos do preenchimento dos elementos típicos, que indiquem que o caso concreto dos autos é distinto da generalidade das situações em que, igualmente, funcionam as circunstâncias qualificativas em causa.

Pois bem, no acórdão recorrido, na parte relativa à fundamentação da medida da pena, escreveu-se (transcreve-se):

“O grau de ilicitude dos factos afigura-se-nos elevadíssimo, atendendo, nomeadamente, à situação de fragilidade e vulnerabilidade em que se encontrava a vítima, sua mãe pessoa de 85 anos de idade, de frágil compleição física e que tinha acabado de ouvir sua filha aos gritos, prostrada no chão, esfaqueada, e seguindo-se ela própria no iter criminoso do filho, surgindo estes factos fora de qualquer contexto de normalidade dentro do acto de matar; incontornável a indiferença, o desprezo manifestado pelo arguido em relação à vida humana – mesmo à vida de familiares mais próximos – sua irmã e mãe – o que não o fez inflectir a sua acção, sem motivos que levasse à compreensão – ainda remota – da sua motivação e nos transporta para um quadro de inusitada violência, tanto pelo meio empregue, pela forma de cometimento o local do crime – no espaço comum da casa de ambos, onde supostamente aquelas se achariam em segurança – que assim fica irremediavelmente conspurcado para todo o sempre, como pela ignóbil violação da mais elementar regra de convivência social – o respeito pela vida humana” (sublinhados e negritos do relator).

Neste trecho valorou-se agravativamente quer a relação de parentesco, quer o facto da vítima ser pessoa particularmente indefesa (além de se apontar outras circunstâncias agravantes).
É uma conclusão que se impõe em face dos segmentos sublinhados e realçados.

Mas, relativamente a qualquer daquelas duas circunstâncias, nenhum facto foi indicado que sustente o juízo de que, voltando a citar o Prof. Figueiredo Dias, a pena deve ser elevada “em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico (…) segundo as especiais circunstâncias do caso.

Sendo assim, conclui-se que na determinação da medida concreta do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, houve violação do princípio da proibição de dupla valoração.

Contudo:

A violação não tem a amplitude pretendida pelo recorrente.
É que, concorrendo mais de uma circunstância qualificativa (ou «exemplo-padrão»), só deve ser considerado para o efeito da aplicação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.
É um princípio expressamente afirmado na norma do nº 3 do art. 204 do Cod. Penal, a propósito das circunstâncias que qualificam o furto, mas que deve valer igualmente nos exemplos padrão que qualificam o homicídio. Neste sentido, v. Prof. Figueiredo Dias, Conimbricense, Tomo I, pag. 45 – “caso concorram os elementos constitutivos de mais de um exemplo-padrão, ambos com relevo para a qualificação da atitude do agente como especialmente censurável ou perversa, um tal concurso só poderá ter efeito, se dever tê-lo, na determinação da medida da pena”.

Ou seja, em resumo:

1 - Verificando-se duas circunstâncias que qualificam o homicídio, o coletivo valorou ambas na medida da pena, o que não é possível, porque não há factos que permitam o juízo de que a pena deve ser elevada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento do elemento típico.
2 – Mas na medida da pena deve ser valorada a circunstância qualificativa menos forte.

No caso, a circunstância da al. d) do nº 2 do art. 132 do Cod. Penal – a vítima ser pessoa particularmente indefesa, em razão de idade.
Esta conclusão deverá refletir-se na medida concreta da pena fixada para o crime de homicídio qualificado, na forma tentada (2).

D – A medida concreta das penas parcelares

Para além da violação do princípio da proibição de dupla valoração, acima tratada, há a considerar o seguinte:

No primeiro acórdão da primeira instância, o arguido foi condenado em:

- 14 anos de prisão, pelo crime de homicídio “simples”; e
- 7 anos de prisão, pela tentativa crime de homicídio qualificado.

Estas penas foram mantidas no segundo julgamento.
Porém, há factos diferentes nos dois acórdãos, relevantes para a determinação das penas.
Comecemos pelos mais significativos:

No primeiro acórdão, considerou-se provado que:

5. O arguido Manuel criou em si um sentimento de animosidade para com a sua irmã Liliana e a sua mãe Patrícia, pelo que pensou e se determinou a pôr termo à vida destas.
6. Assim, no dia 8 de Março de 2014, cerca das 12:00horas, o arguido Manuel chegou à sua residência sita em Montalegre e apercebeu-se da presença da sua irmã Liliana que se encontrava sozinha junto do alpendre que serve de garagem à residência desta.
7. Determinado a consumar os seus propósitos, dirigiu-se junto da sua irmã Liliana.
8. Inesperadamente e sem dar tempo a qualquer reacção por parte de Liliana, o arguido Manuel brandiu uma faca, de características não concretamente apuradas e com ela atingiu o corpo de Liliana, desferindo de seis golpes, melhor descritos no relatório de autopsia-médico legal junto aos autos a fls. 916 a 926 e que aqui se dá por integralmente reproduzido, sendo estes dois golpes na zona dorsal, um na zona do ombro, dois no abdómen e um no membro superior direito…

Os mesmos nºs 5 a 8 ficaram com a seguinte redação, em consequência das alterações introduzidas no primeiro acórdão da relação:

5 - O arguido Manuel criou em si um sentimento de animosidade para com a sua irmã Liliana e a sua mãe Patrícia.
6 - No dia 8 de Março de 2014, cerca das 12:00horas, o arguido Manuel chegou à sua residência sita em Montalegre e apercebeu-se da presença da sua irmã Liliana que se encontrava sozinha junto do alpendre que serve de garagem à residência desta.
7 - Dirigiu-se junto da sua irmã Liliana.
8 - O arguido Manuel brandiu uma faca, de características não concretamente apuradas e com ela atingiu o corpo de Liliana, desferindo de seis golpes, melhor descritos no relatório de autopsia-médico legal junto aos autos a fls. 916 a 926 e que aqui se dá por integralmente reproduzido, sendo estes dois golpes na zona dorsal, um na zona do ombro, dois no abdómen e um no membro superior direito…
*
No confronto das duas redações há diferenças relevantes.
Na primeira versão, o arguido já se tinha determinado a pôr termo à vida da sua irmã e da sua mãe (facto nº 5), quando no dia 8 de Março de 2014, cerca das 12:00horas, chegou à sua residência. Nesse dia, aproveitando o facto da irmã estar sozinha (6) e, determinado a consumar os seus propósitos, dirigiu-se a ela e esfaqueou-a (7 e 8).

Na versão final dos factos, não existe a pré determinação de matar, apesar de ter ficado provado que o arguido tinha um sentimento de animosidade para com a sua irmã Liliana e a sua mãe Patrícia. Sabe-se que se dirigiu para junto da irmã e que, a certa altura, brandiu a faca. A decisão de matar pode ter ocorrido imediatamente antes da execução, desconhecendo-se quer o episódio que a desencadeou, quer o momento em que o arguido se apoderou da faca. Note-se que se considerou «não provado» “que o arguido trazia a faca consigo quando se dirigiu à Liliana” [al. b) dos factos não provados].

O tempo que medeia entre a decisão da prática do crime e a sua execução, é relevante para a aferição do grau de culpa. O juízo de censura de que o agente é passível, por ter agido de determinado modo, quando podia e devia ter atuado de modo diferente, é maior, quando existe algum tempo para se refletir e arrepiar caminho. Esta acentuação da culpa é particularmente significativa nos crimes contra as pessoas. Reflexo disso, na nossa lei penal, é, por exemplo, a norma da al. j) do nº 2 do art. 132 do Cod. Penal.
*
Igualmente relevantes, embora menos, são as consequências que resultaram da agressão para a Maria (art. 72 nº 2 al. a) do Cod. Penal), as quais, aliás, determinaram o reenvio parcial para novo julgamento.

Na realidade, no primeiro julgamento deu-se como provado que a Patrícia era pessoa robusta e saudável (facto provado nº 73), tendo passado a necessitar diariamente de ajuda, para se movimentar (facto nº 76); Diferentemente, no segundo julgamento, resultou «não provado» que “a ofendida Maria, antes dos factos, era pessoa totalmente independente, robusta, e não lhe eram conhecidas doenças” [al. l)] e, igualmente «não provado» que “agora esteja dependente de tratamentos sucessivos, e de terceiras pessoas para alimentar-se e vestir-se” [al. o)].
*
Apesar do que se referiu, a imagem da gravidade de cada um dos crimes situa-se acima da média neste tipo de delitos.

Como se considerou no acórdão recorrido, o dolo, que reveste a modalidade de dolo direto, é intenso, como atesta a violência empregue no cometimento dos factos, num curtíssimo espaço de tempo. O arguido esfaqueou por seis vezes uma das vítimas, que ficou no chão, usando o mesmo instrumento para ato contínuo tentar matar a outra, pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, a quem desferiu outras três facadas.

Igualmente, o facto de ter abandonado o local, “sem dar conhecimento do sucedido a ninguém, sem prestar socorro às ofendidas, nem promover este socorro” (facto nº 18), revela alguma incapacidade de reflexão, mesmo perante a evidência do estado em que deixara as vítimas.
As exigências de prevenção geral positiva são médias, considerando as exigências normais nos crimes contra a vida, nada as distinguindo da generalidade dos casos similares.
As exigências de ressocialização têm alguma relevância. Da imagem global dos factos, ressalta que os crimes foram fruto duma especial má relação familiar e de vizinhança. Não é possível afirmar, face ao comportamento anterior, a existência de risco sério de reiteração de atos violentos, mas, por outro lado, o curto espaço de tempo na perpetração dos crimes revela alguma facilidade no uso de violência.

Finalmente, a favor do arguido, há a inexistência de antecedentes criminais, o bom comportamento, anterior e posterior aos factos, e a boa inserção social.

Por tudo o exposto, não tendo o nosso direito penal aderido a uma certa ideia de “matematização” da pena, mas sendo certo que, pelas razões acima apontadas, se impõe alguma redução das penas parcelares fixadas, vai o arguido Manuel condenado, em:

- 13 (treze) anos de prisão, pelo crime de homicídio consumado; e
- 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada.
*
E – A pena única

A moldura do concurso é de prisão de prisão de 13 anos a de 19 anos e 6 meses – art. 77 nº 2 do Cod. Penal.
O art. 77 do Cod. Penal fornece um critério especial para a fixação concreta da pena em caso de concurso, para além das exigências gerais de culpa e prevenção: devem ser considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente.

Os «factos» indicam-nos a gravidade do ilícito global perpetrado.

Na avaliação da «personalidade» do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma carreira) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: Só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.

De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) – Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, pags. 190 e ss.

No caso destes autos, a gravidade global dos factos, aferida pela medida das penas e da relação de grandeza que apresentam entre si, sendo uma de média e outra de grande dimensão, é elevada. Daí que a culpa pelo conjunto dos factos, ou o grau de censura a dirigir ao arguido por esse conjunto, seja também elevado, a impor que a pena se fixe bem acima do limite mínimo da moldura do concurso. A gravidade global dos factos releva também pela via da prevenção geral, também determinando um mínimo de pena situado significativamente acima do limite mínimo da moldura.

Finalmente, o número de crimes (apenas dois), não é revelador de uma tendência criminosa, mas não deve ser assinalada, tendo em conta as ligações que entre eles existem (o curto espaço de tempo na perpetração), alguma facilidade em enveredar por comportamentos criminosos violentos. As exigências de ressocialização que daí decorrem impõem que a pena se fixe um pouco acima do mínimo determinado pela prevenção geral.

Ponderando estes dados, acha-se, permitida, necessária e suficiente uma pena única situada a meio da moldura do cúmulo, isto é, de:

- 16 (dezasseis) anos e 3 (três) meses de prisão.

F – A condenação cível

O recorrente impugna alguns dos montantes parciais fixados no acórdão recorrido, todos relativos a danos não patrimoniais.
Importa atender ao disposto no art.496 nº 3, 1ª parte, do Cod. Civil, que estatui que o montante da indemnização por danos não patrimoniais deve ser fixado por critério de equidade, tendo em conta as circunstâncias referidas no artigo 494 do mesmo Código, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
Na formação do juízo de equidade, deve ter-se em conta as regras da boa prudência, a justa medida das coisas, a criteriosa ponderação das realidades da vida, como se deve ter em atenção as soluções jurisprudenciais para casos semelhantes. (cfr. acs do STJ, de 25 de Junho de 2002 ( C.J., ASTJ, ano X, tomo 2.º, pág. 128) e de 4 de Novembro de 2004 ( C.J., n.º 179, pág. 223).

Finalmente, vem sendo jurisprudencialmente entendido que, sempre que a indemnização seja fixada com fundamento num juízo de equidade, os tribunais de recurso devem limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as soluções da jurisprudência para casos semelhantes e com elas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida" – por todos v. ac. do STJ de 09-12-2004, proferido no rec. 04P4118 (relator Simas Santos) e da Rel. Porto de 04-06-2014, proferido no recurso 437/10.7PAOVR.P2 (relatora Maria Dolores Silva e Sousa), ambos disponíveis no sítio do ITIJ. Simples divergências na determinação dos montantes não devem ser relevantes.

Neste enquadramento, vejamos cada uma das parcelas impugnadas no recurso:

a) A indemnização pelo sofrimento da Liliana até ao momento da morte

No acórdão recorrido fixou-se o valor de € 20.000,00.

O recorrente visa que esta parcela seja reduzida a € 10.000,00.

Alega que a Liliana faleceu “vítima do corte de uma artéria, por isso, com morte imediata”.

Porém, desconhece-se quanto tempo exato mediou até ao momento da morte.

Sabe-se, no entanto, que a Liliana foi agredida com seis facadas. A morte não foi instantânea, pois está provado que teve consciência plena que a sua vida ia terminar e que esta compreensão angustiou-a profundamente (factos 56 e 57). A sequência das facadas, durou, necessariamente, algum tempo, sendo adequada a ter provocado pânico na vítima.

A título meramente exemplificativo, veja-se o acórdão do S.T.J. de 8/9/2011, Rel. Oliveira Vasconcelos, in www.dgsi.pt., no qual entendeu adequado o montante de € 25.000,00 € para compensar um tal dano relativamente a menor de 14 anos que, colhida por autocarro, caiu ao chão, vindo o rodado do veículo a passar-lhe por cima, tendo ela sentido medo nessa ocasião; e o ac. da Rel. Porto de 22.05.2012, Rel. Ramos Lopes, in www.dgsi.pt, que considerou adequado o montante de 20.000,00€ para compensar um tal dano relativamente a pessoa de 45 anos de idade que sofreu morte praticamente instantânea.

Assim, a sentença sob escrutínio não merece reparo ao fixar o montante de € 20.000,00 para ressarcimento do dano em causa.
*
b) A indemnização pelos danos não patrimoniais de cada um dos dois filhos e marido da Liliana

No acórdão recorrido fixou-se o valor de € 30.000,00, para cada um dos dois filhos e para o marido.
O recorrente entende que o montante de € 10.000,00, para cada um, é suficiente para ressarcir os danos não patrimoniais do marido e filhos.

Vejamos:

É certo que está provado que os filhos da Liliana mantinham com a mãe relacionamento diário e que a sua morte lhes trouxe grande a dor, desgosto, sofrimento e saudade (factos 62 e ss), mas eram pessoas adultas, economicamente independentes, já com residência própria (62). O sofrimento pela perda da mãe é, normalmente, maior se se tratar duma criança ainda dependente.

Por exemplo, no ac. do TRP, de 22.05.2012, 24/09.2TBCHV.P1, Relator Ramos Lopes, foi atribuído aos autores filhos da vítima a quantia de € 20.000,00, para cada um deles.

De acordo com os elementos constantes do Ac. do STJ de 15/04/09, acessível in www.dgsi.pt, temos que foram fixados os seguintes valores pelo Supremo Tribunal de Justiça, referentes a indemnização por perda de progenitor:

- 17/04/07, Revista nº 225/07-7ª - 20.000 euros.
- 26/04/07, Revista nº 827/07-2ª - (para cada um dos dois filhos) 25.000 euros.
- 27/09/07, Revista nº 2737/07-7ª - 25.000 euros.
- 18/10/07, Revista nº 3084/07-6ª - 25.000 euros (para cada uma das filhas, com três e dez anos).
- 04/12/07, Revista nº 3840/07-1ª - 15.000 euros.
- 23/04/08, Processo nº 303/08 -3ª - (a cada filho) 20.000 euros.
- 06/05/08, Revista nº 851/08-6ª - 30.000 euros (compensação a filha de 3 anos por morte do pai).
- 08/05/08, Revista nº 726/08 - 20.000 euros.
- 05/06/08, Revista nº 1177/08-1ª - (a cada filho) 20.000 euros.
- 25/09/08, Processo nº 2860/08-3ª - 20.000 euros.
- 18/11/08, Revista nº 3422/08-2ª - (a cada filho) 20.000 euros.

E ainda o Ac. do STJ de 03-11-2010, proc. 55/06.4PTFAR.E1.S1, Relator Sousa Fonte € 20.000,00, para cada filho.
O montante de € 30.000 foi apenas atingido no caso duma menina de 3 anos, pela morte do pai, pelo que alguma redução deve ser decidida equitativamente.
Considerando a existência de alguma inflação desde as datas daquelas decisões, fixa-se em € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) a indemnização pelos danos não patrimoniais próprios de cada um dos filhos Nuno e Alexandra.
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Quanto à indemnização do marido António, veja-se o ac. do STJ de 07-01-2010, proferido no Proc. 1975/04.6TBSXL.S1 (relator OLIVEIRA ROCHA), que reputou de justa e equitativa a quantia de € 20 000 fixada para o cônjuge, havendo relação muito estreita, dedicando-se mutuamente grande afeto e amor.
Sendo os casos similares, considerando, igualmente, alguma inflação, entretanto verificada, arbitram-se os mesmos € 25.000,00 para o demandante António.
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c) A indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante Maria.

No acórdão recorrido fixou-se o valor de € 30.000,00.
O recorrente visa que esta parcela seja reduzida a € 7.000,00
O ac. STJ de 26-10-2011, proferido no Proc. 1112/09.0SFLSB.L2.S1 (relator Maia Costa), atribuiu a indemnização de € 20.000, para a vítima duma tentativa de homicídio, com perfuração pulmonar por bala. A vítima sofreu três operações cirúrgicas, uma delas de cerca de 7h30m, esteve internada nos cuidados intensivos continuados, sujeita a ventilação mecânica, em coma induzido. Teve um período de 90 dias de doença, ficando com sequelas físicas da agressão. Na data do julgamento continuava num “penoso processo de recuperação”.

Manifestamente, as consequências foram mais gravosas para a vítima do caso tratado pelo STJ, sendo também certo que a demandante Maria é pessoa muito muito mais idosa.

Mas, por outro lado, ficou provado que a demandante Maria sofre, cada dia que passa, porque habita na casa onde ocorreram os factos, que diariamente revive, e que representam momentos horríveis da sua vida, com os quais se sentiu em choque (facto provado nº 79). A isto acresce a inevitável intensificação da dor moral, resultante do facto de saber que é seu filho o autor da agressão de que foi vítima.
Por isso, arbitra-se para a demandante Maria igual montante de € 20.000,00.
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DECISÃO

Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães, concedendo provimento parcial ao recurso:

INa parte penal, condenam o arguido Manuel

a) por um crime de homicídio p. e p. pelo art. 131 do Código Penal, na pena de 13 (treze) anos de prisão;
b) por um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 131º, nº. 1 e 132º, nºs. 1 e 2, als. a) e c), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão; e
c) em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 16 (dezasseis) anos e 3 (três) meses de prisão.

II – Na parte cível

1 a) fixam em € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) a indemnização pelos danos não patrimoniais de cada um dos dois filhos e marido da Liliana (Nuno, Alexandra e António)
b) fixam em € 20.000,00 (vinte mil euros) a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante Maria.
No mais mantêm o acórdão recorrido.
Custas do pedido cível, em ambas as instâncias, por demandantes e demandado, na proporção dos respetivos decaimentos.



1. Em caso de reenvio, há o chamado “caso julgado progressivo”, que se forma sobre as questões já decididas pelo tribunal de recurso que determina o reenvio – cfr. Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, 3ª ed., em anotação ao art. 426-A, pag. 1153.
2. V. ac. STJ de 08-01-2014, proferido no Proc. 124/10.6JBLSB.E1.S1 (relator Manuel Braz), disponível no sítio do ITIJ, embora sobre situação não totalmente sobreponível: VIII - Se, nos termos do art. 409.º, n.º 1, do CPP, sendo interposto recurso apenas em favor do arguido, é proibido ao tribunal superior agravar a medida da pena, por identidade de razão, impõe-se a esse tribunal o seu desagravamento numa situação em que o tribunal de recurso altera a qualificação jurídica dos factos, afastando uma circunstância que influíra, em desfavor do arguido, na determinação da pena pelo tribunal recorrido. IX - Na verdade, verificando-se que, se o tribunal recorrido houvesse aplicado o direito tal como o definiu o tribunal de recurso, teria fixado uma pena mais favorável ao arguido do que aquela que veio a fixar, num tal caso, a manutenção da pena pelo tribunal de recurso tem o mesmo alcance e significado que a sua agravação numa situação em que se mantêm, em recurso, inalterados os pressupostos de aplicação da pena definidos pelo tribunal recorrido…