Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
781/14.4GBGMR.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: RAI
OMISSÃO DE FACTOS
IRREGULARIDADE
REENVIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A omissão da descrição fáctica na decisão instrutória de não pronúncia, bem como a falta do necessário exame crítico das provas que conduzem à conclusão sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios, afeta intrinsecamente o valor daquela decisão e impede que o tribunal de recurso se pronuncie sobre ela.

II) Com efeito, a valoração lógica dos indícios a levar a cabo pelo tribunal da Relação, por forma a considerá-los suficientes ou insuficientes para sujeitar a arguida a julgamento, exige que se conheçam os factos, dentro do objeto da instrução, considerados indiciados e não indiciados pela primeira instância, bem como a fundamentação subjacente a tal decisão, para poder decidir se os primeiros são ou não suficientes para pronunciar a arguida, de modo a confirmar ou não o despacho de não pronúncia.

III) Um despacho de não pronúncia que, como sucede in casu, seja omisso quanto à descrição dos factos considerados indiciados e não indiciados não padece de nulidade, por tal não estar legalmente previsto, mas sim de irregularidade.

III) Com efeito, de acordo com o princípio da legalidade que vigora no regime geral das nulidades em processo penal, só são nulos os atos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comina essa consequência (artº 118º, nº 1, do CPP), sendo que, nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato é irregular (nº 2 do mesmo artigo).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo com o NUIPC 781/14.4GBGMR, findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, além do mais, quanto aos crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º do Código Penal, e de apropriação ilegítima de coisa achada, p. e p. pelo art. 209º, n.º 1, do mesmo código, que eram imputados à arguida M. F. T., por falta de indícios suficientes (art. 277º, n.º 2, do Código de Processo Penal), e deduziu acusação contra a arguida M. A. T. e outros, imputando-lhe a prática, em coautoria, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.s 143º, n.º 1, e 145º, n.ºs 1, al. a), e 2, com referência ao art. 132º, n.º 2, al. h), todos do Código Penal.
2. A assistente e arguida M. A. T., inconformada com despacho de arquivamento e de acusação, requereu a abertura de instrução, visando, por um lado, a pronúncia da arguida M. F. T. pela prática dos referidos crimes de ofensa à integridade física simples e de apropriação ilegítima de coisa achada e, por outro lado, a sua não pronúncia pela qualificação do crime de ofensa à integridade física.
3. Finda a instrução, foi proferido despacho a não pronunciar a arguida M. F. T. pelos aludidos crimes e a pronunciar a arguida M. A. T. pela prática, em coautoria, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do Código Penal.
4. Mais uma vez inconformada, a assistente M. A. T. interpôs recurso daquela decisão de não pronúncia, extraindo da respetiva motivação as conclusões que a seguir se transcrevem[1]:

«CONCLUSÕES

Vem o presente recurso interposto da decisão instrutória de não pronúncia da arguida pela prática dos crimes de ofensa à integridade física e apropriação ilegítima de coisa achada.
Na decisão recorrida não se escreve uma palavra quanto ao pedido de pronúncia formulado pela assistente quanto ao crime de ofensa à integridade física, muito pouco se dizendo, do mesmo passo, quanto ao crime de apropriação ilegítima de coisa achada.
A decisão recorrida omitiu, por completo, a decisão da matéria de facto, sendo que o Tribunal deveria, na decisão recorrida, fazer uma enumeração dos factos dados como indiciados e não indiciados, o que não fez.
Tal circunstancialismo determina a nulidade da decisão de não pronúncia.
De facto, como diz Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2009 (3ª edição atualizada), pág. 779 que «É também nulo o despacho instrutório que não contiver as menções do artigo 283º, n.º 3 (artigo 308.º, n.º 2, conjugado com os artigos 283º, n.º 3, e 287.º, n.º 2) e, designadamente, é nulo o despacho de não pronúncia que não contenha a indicação dos factos que não estão suficientemente indiciados e a discussão dos indícios.
Tal nulidade, seguindo ainda a mesma lição, pode ser arguida e conhecida no recurso interposto do despacho de não pronúncia (artigo 379.º, n.º 2, por identidade de razão). Aliás, a remissão feita no art. 308.º, n.º 2, para a disciplina da acusação teve o propósito de abranger a não pronúncia, como resulta da menção ao “despacho referido no número anterior” sem qualquer distinção.» - sublinhado nosso.
Por força do disposto no n.º 2 do art. 308º, o estabelecido nos n.os 2, 3 e 4 do art. 283º do Código de Processo Penal, é aplicável ao despacho de não pronúncia, pelo que tal despacho deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam o juízo de suficiência ou insuficiência da prova indiciária, imprescindível para decidir se existe ou não uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, sob pena de nulidade, tal como ocorre com a acusação, tendo em conta o disposto nos arts. 308º, n.os 1 e 2 com referência ao art. 283º, n.os 2 e 3, al. b) do Código de Processo Penal (cfr. neste sentido ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27 de Setembro de 2004, relatado por Heitor Gonçalves no processo n.º 1008/04 da 2ª Secção, publicado in www.dgsi.pt, o acórdão da mesma Relação proferido no processo n.º 1281/02 e ainda o Acórdão de 5 de Janeiro de 2004, proferido no âmbito do processo n.º 293/04 da 1ª Secção, relatado pela Sra. Desembargadora Nazaré Saraiva todos supra citados).
Ainda que se entenda que a omissão no despacho de não pronúncia dos factos provados e não provados e a omissão do exame crítico da prova, não constituem nulidade do despacho de não pronúncia por violação dos arts. 308º n.º 1 e 2, 283º nº 3 b), 374º nº2 e 379º nº1 a) do Código de Processo Penal, sempre a omissão constituiria irregularidade cognoscível oficiosamente em recurso, nos termos do art. 123º n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal.
Acresce que a interpretação que se extraia do vertido nos arts. 308º n.º 1 e 2; 283º n.os 2 e 3 al. b); 123º n.º 1; 97º n.º 5; 374º n.º 2 e 379º n.º 1 al. a) todos do Código de Processo Penal, no sentido de que a omissão dos factos indiciariamente provados e não provados e do exame crítico das provas produzidas no despacho de não pronúncia subsequente a um despacho de arquivamento do Ministério Público não constitui nulidade ou irregularidade arguível em recurso dessa decisão, é inconstitucional por violação dos princípios do Acesso ao Direito, da Tutela Jurisdicional Efetiva e da fundamentação das decisões judiciais nos termos dos arts. 20º n.os 1 e 4, 32º nº7 e 205º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
10ª Deve, assim, a decisão instrutória ser julgada nula e, em consequência, serem os autos remetidos à 1ª instância para a realização de novo debate instrutório e prolação de nova decisão instrutória na qual se cumpra o ónus de descriminar os factos indiciados e não indiciados, fundamentando-se tal decisão.
11ª É entendimento da recorrente que existem indícios suficientes da prática dos factos pela arguida e que tais factos consubstanciam a prática de um crime de ofensa à integridade física e apropriação ilegítima de coisa achada.
12ª A recorrente reportar-se-á na presente motivação ao despacho de arquivamento, porque a decisão recorrida, como se disse, não diz uma palavra sobre o crime de ofensa à integridade física, remetendo para o despacho de arquivamento.
13ª No despacho de arquivamento fez-se um verdadeiro julgamento, inclusivamente com apelo ao princípio da livre apreciação da prova, sendo certo que as regras da normalidade e da experiência comum, podendo servir para formar a “convicção do julgador” não são, elas próprias meios de prova, pelo que nunca, por nunca, pode o “julgador” e muito menos o Ministério Público lançar mão apenas de tais regras para chegar à conclusão sobre a acusação ou arquivamento.
14ª Por outro lado, ao contrário do que se diz no despacho de arquivamento não há qualquer testemunha que corrobore a versão da M. F. T. como arguida, desde logo, porque, ela própria, entendeu não prestar declarações.
15ª As ilações retiradas do depoimento da testemunha J. T. que levou a concluir que as lesões da M. A. T.se deveram a “gestos com que M. F. T. se terá tentado defender e que terão causado as lesões descritas a fls. 8 e 9.”, não têm qualquer apoio na prova testemunhal, nem na suposta versão da M. F. T. que, como se disse, não existe.
16ª Não é apenas o depoimento de J. T. (cfr. fls. 89) que aponta para “agressões mútuas” em sede de inquérito, uma vez que o depoimento da ofendida e o depoimento da testemunha e depois arguido J. M. T. (cfr. fls. 87 dos autos principais e 30 do apenso) também afirma terem existido agressões por parte da arguida à recorrente.
17ª E, por outro lado, no seu depoimento em instrução a testemunha J. M. M. T. afirma que a arguida agrediu a assistente e a testemunha S. T. afirma ter visto a cara da ofendida marcada, tendo a mesma dito à testemunha que foi a arguida que a agrediu (cfr. depoimentos transcritos supra e que aqui se dão por integralmente reproduzidos).
18ª A agressão por parte da arguida a assistente é corroborada ainda pelo auto de exame médico de fls. 8 e seguintes consta na história do evento que a ofendida teria sofrido “agressão com empurrão seguido de queda e unhadas que terá sido infligida por familiar (cunhada)” e no tópico relacionado com as lesões diz-se que a ofendida ostentava na face “três escoriações lineares com crosta fina com sete, quatro e três centímetros situadas ao nível da hemiface direita, paralelas entre si três centímetros e no membro superior direito “hematoma com uma área de seis centímetros quadrados situado ao nível da face posterior do punho.”, concluindo-se que tais lesões resultaram de traumatismo de natureza contundente o que é compatível com a informação e que as lesões em causa determinarão 5 dias para a cura.
19ª A arguida não prestou declarações como decorre de fls. 31 e 32.
20ª Por outro lado, como se diz no despacho de arquivamento, se não é conforme as regras da normalidade que num confronto que opõe uma mulher contra um grupo de uma mulher e vários homens, não é a pessoa isolada que irá desafiar todos os presentes, agredindo a mulher.
21ª Dir-se-á também que não é conforme com as regras da normalidade, alguém ser agredido por 3 pessoas e apresentar apenas 3 equimoses, uma na face, uma no membro superior direito e uma no membro inferior esquerdo que lhe determinaram 3 dias de doença, como aconteceu com a ofendida (fls. 6 dos autos apensos).
22ª Nem se coaduna com a postura de quem se defende, constatar-se que, a final, a agressora ficou pior tratada que a agredida, como decorre dos exames médicos juntos aos autos, com lesões que lhe determinaram 5 dias de doença (cfr. fls. 8 dos autos principais).
23ª Quanto ao crime de apropriação ilegítima de coisa achada, afirma-se no despacho de não pronúncia, “(…) mantêm-se os fundamentos invocados pelo Ministério Público no seu despacho de arquivamento, até porque a única testemunha que se pronunciou acerca da existência de um par de óculos foi J. M. M. T., a qual referiu que os óculos nunca apareceram, sabe que a sua cunhada os pediu de volta e que não foram devolvidos. No entanto, não se fez prova que tenha sido a arguida M. F. T. quem se apropriou dos óculos.
24ª Ora, o Ministério Público o que afirmava no despacho de arquivamento é que em momento algum foi invocado que a M. F. T. se tenha recusado a devolver os óculos.
25ª O depoimento da testemunha J. M. M. T. supra transcrito, deita, desde logo, por terra o que se diz na decisão recorrida, dado que afirma que a arguida pegou nos óculos de propriedade da assistente, ficou com eles e apesar de a recorrente ter pedido para lhos devolver a arguida não o fez.
26ª Da mesma sorte a testemunha R. C., empregada da casa da arguida afirma no seu depoimento que a recorrente foi lá a casa pedir a restituição dos óculos, como se pode ver da transcrição do seu depoimento supra.
27ª Sendo que, a tais depoimentos acresce o depoimento da ofendida na queixa de fls. 4, o depoimento de J. M. T. de fls. 87 e o depoimento de J. T. de fls. 89, nos quais, estas últimas testemunhas, afirmam que a arguida levou uns óculos para o seu quarto que não eram seus.
28ª Pelo exposto existem indícios suficientes da prática dos factos descritos nos artºs 46º a 59º do requerimento de abertura da instrução que consubstanciam um crime de ofensa à integridade física previsto e punido pelo artº 143º nº1 do Código Penal e um crime de apropriação ilegítima em caso de coisa achada previsto e punido pelo artº 209º nº1 do Código Penal, pelos quais a arguida deve ser pronunciada.
29ª A decisão recorrida violou ou fez errada aplicação do disposto nas normas supra referidas que aqui se dão por integralmente reproduzidas e no artº 308º nº1 do Código de Processo Penal, não podendo, pois, manter-se.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que pronuncie a arguida pela prática de um crime de ofensa à integridade física e um crime de apropriação ilegítima de coisa achada, por só assim se fazer
JUSTIÇA!»

3. O Exmo. Procurador da República junto da primeira instância respondeu ao recurso, reconhecendo razão à recorrente na arguição do vício da decisão instrutória de não pronúncia, traduzido na omissão dos factos que julgou indiciados e não indiciados, não dando, assim, cumprimento ao determinado no art. 308º, n.º 2, do Código de Processo Penal, entendendo, porém, que essa falta de fundamentação de facto se traduz numa nulidade sanável e dependente de arguição, o que não foi feito pela assistente, junto do tribunal recorrido, pelo que se encontra sanada. Quanto à outra questão suscitada, relativa aos indícios da prática pela arguida dos aludidos crimes, entende não estarem reunidos indícios suficientes, pelo que a decisão de não pronúncia se mostra correta, não merecendo o recurso provimento.
4. Na intervenção a que se refere o art. 416º do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de a decisão instrutória de não pronúncia padecer de nulidade insanável, por não conter a enumeração dos factos indiciados e não indiciados que estiveram na base da mesma.
5. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta a esse parecer.
6. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do mesmo código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. A decisão recorrida tem o seguinte teor, na parte relevante para a apreciação do recurso (transcrição parcial):

«DECISÃO INSTRUTÓRIA
1.
O Tribunal é competente.
O processo próprio.
Não há questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

*
2.
Findo o inquérito o Ministério Público, a fls. 93 e ss:
Proferiu despacho de arquivamento quanto à queixa apresentada por M. A. T. contra M. F. T., por factos suscetíveis de configurar a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal, um crime à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal e um crime de apropriação ilegítima de coisa achada, previsto e punido pelo artigo 209.º, n.º 1, do Código Penal;
(…)
Não se conformando com o despacho de arquivamento proferido, a ofendida M. A. T., constituída assistente, veio a fls. 141 e ss. requerer a abertura de instrução, requerendo a pronúncia da arguida M. F. T. por factos que, na sua perspetiva, consubstanciam a prática de um crime à integridade física simples, previsto e punido pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal e de um crime de apropriação ilegítima de coisa achada, previsto e punido pelo artigo 209.º, n.º 1, do Código Penal
Requereu a inquirição de quatro testemunhas.
(…)
3.
Por despacho de fls. 167 e 168 foi declarada aberta a instrução.
Foram inquiridas as quatro testemunhas arroladas em ambos os requerimentos de abertura de instrução apresentados, bem como foram inquiridos os dois agentes da GNR que estiveram presentes no local da ocorrência dos factos, conforme consta da respetiva ata e cujas declarações constam de registo áudio.
Procedeu-se ainda à realização de debate instrutório, o qual decorreu de acordo com as formalidades legais.
*
4.
Cumpre proferir decisão instrutória nos termos do art.º 308.º do CPP.
(…)
*
5.
Fixadas as diretrizes, que de acordo com a lei, nos devem orientar na prolação da decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia, interesse, agora, apurar, por um lado, sem em face da prova recolhida até ao momento se indicia suficientemente a prática pela arguida dos factos que lhes são imputados no requerimento de abertura de instrução e, por outro lado, concluindo-se afirmativamente, se tais factos sustentam a imputação jurídico criminal efetuada naquele articulado.
*
Cumpre, pois, proceder à análise da factualidade apurada, ainda que de forma meramente indiciária: a apreciação dos “indícios suficientes” a que se reporta o art.º 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
*
Vejamos o que dos autos dimana.
Da fase de Inquérito.
Documental:
- Auto de denúncia de fls. 3 a 4;
- Auto de denúncia de fls. 14 a 15, do processo apenso;
- Relatórios de episódio de urgência de fls. 21 e 22, do processo apenso.
Pericial:
- Relatório de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 7 a 9, efetuado a M. A. T.;
- Relatório de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 5 a 7, do processo apenso, efetuado a M. F. T.;
- Relatório de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 10 a 11, do processo apenso, efetuado a J. P..
Testemunhal:
- Auto de inquirição de M. A. T.de fls. 24;
- Autos de inquirição da testemunha J. M. T.de fls. 86 a 87;

- Autos de Inquirição da testemunha J. T. de fls. 88 a 90;
- Auto de inquirição da ofendida M. F. T. de fls. 71 a 72 do processo apenso;
- Auto de inquirição da testemunha M. A. de fls. 97 a 98 do processo apenso;
- Auto de inquirição da testemunha E. A. de fls. 99 a 100 do processo apenso;
- Auto de inquirição da testemunha R. C. de fls. 101 a 102 do processo apenso.
*
Da fase de instrução:
Inquirição das quatro testemunhas arroladas nos requerimentos de abertura de instrução apresentados, bem como foram inquiridos os dois agentes da GNR que estiveram presentes no local da ocorrência dos factos, conforme consta da respetiva ata e cujas declarações constam de registo áudio
Procedeu-se à realização de debate instrutório, o qual decorreu de acordo com as formalidades legais.
*
6.
Antes de apreciarmos os indícios existentes, vejamos os tipos legais em causa nos autos.
(…)
7.
Da apreciação dos indícios suficientes.
Feito este breve excurso aos tipos legais de crimes em causa nos autos, apreciemos os indícios existentes nos autos.
Do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente M. A. T..
Pese embora a extensão dos factos articulados pela assistente, certo é que das diligências de prova recolhidas quer na fase de inquérito quer na fase de instrução, não se antevê que a arguida M. F. T. tenha agido conforme lhe é imputado naquela peça processual, sendo que relativamente ao crime de apropriação ilícita de coisa achada, mantêm-se os fundamentos invocados pelo Ministério Público no seu despacho de arquivamento, até porque a única testemunha que se pronunciou acerca da existência de um par de óculos foi J. M. M. T., a qual referiu que os óculos nunca apareceram, sabe que a sua cunhada os pediu de volta e que não foram devolvidos. No entanto, não se fez prova que tenha sido a arguida M. F. T. quem se apropriou dos óculos.
Da acusação pública.
(…)
*
8. Decisão.

Em face do exposto, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, decido:
a) Negar provimento ao requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente M. A. T. e, em consequência, não pronuncio a arguida M. F. T. pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, previsto pelos art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal, e do crime de apropriação ilegítima de coisa achada, previsto e punido pelo art.º 209.º, n.º 1, do Código Penal, pelos quais a assistente pretendia a sua pronúncia.
b) (…).»

2. De acordo com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer menção, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente das respetivas motivações, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, em face das conclusões formuladas, a recorrente circunscreve o objeto do recurso às seguintes questões:
a)- Saber se a decisão instrutória padece de nulidade insanável por não conter a descrição dos factos indiciados e não indiciados, ou, se assim não se entender, de irregularidade cognoscível oficiosamente.
b)- Em caso de improcedência dessa questão, saber se da prova produzida, quer em sede de inquérito, quer na fase de instrução, resultam indícios suficientes da prática pela arguida dos crimes de ofensa à integridade física simples e de apropriação ilegítima de coisa achada que lhe são imputados no requerimento de abertura da instrução.

3. Relativamente a essa primeira questão, alega a recorrente que a decisão instrutória omitiu por completo a enumeração dos factos considerados como indiciados e não indiciados, o que determina a sua nulidade, nos termos do art. 283º, n.º 3, al. b), por remissão do art. 308º, n.º 2, nulidade essa que pode ser arguida e conhecida em recurso, de acordo com o disposto nos art.s 374º, n.º 2, e 379º, n.º 1, al. a), ou, se assim não se entender, que tal omissão sempre constituirá uma irregularidade de conhecimento oficioso e, por isso, cognoscível em recurso, nos termos dos arts. 123º, n.ºs 1 e 2.
3.1 - De acordo com o disposto no art. 286º, n.º 1, a instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento, com base em critérios de legalidade.
Em casos como o dos autos, em que a instrução requerida pelo assistente se destina a reagir contra um despacho de arquivamento do Ministério Público, o requerimento de abertura de instrução, doravante designado abreviadamente por RAI, tem de conter, além do mais, os requisitos exigidos para a acusação, tal como constam do art. 283º, n.º 3, aplicável ao requerimento instrutório por força do disposto no n.º 2 do art. 287º, nomeadamente a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (al b)).
Nestas situações, é o RAI que fixa o objeto do processo, estando o juiz de instrução substancial e formalmente limitado, na pronúncia, aos factos que nele tenham sido descritos e que o assistente considera que deveriam ser objeto da acusação por parte do Ministério Público, assim se compreendendo a proibição da pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento instrutório (art.s 303º, n.º 3, e 309º, n.º 1).
De acordo com o preceituado no art. 308º, n.º 1, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificados os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respetivos factos. Caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
No caso em apreço nos autos, foi proferido despacho de não pronúncia.
A jurisprudência é pacífica quanto à necessidade de tal despacho, enquanto ato decisório do juiz, ter necessariamente de ser fundamentado, o que significa que nele devem ser especificados os motivos de facto e de direito da respetiva decisão (art. 97º, n.ºs 1, al. b), e 5), de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.
Para além dessa imposição legal expressa, saliente-se que o cumprimento da exigência de fundamentação do despacho de não pronúncia que conheça do mérito da causa, com a indicação dos factos indiciados e não indiciados, é essencial para a fixação dos efeitos do caso julgado.
Com efeito, o despacho de não pronúncia por insuficiência de indícios deverá fixar expressamente quais os factos considerados não suficientemente indiciados. É que sobre tais factos forma-se caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do que acontece com o inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos factos novos (art. 279º, n.º 1)[2].
A diferença de tratamento entre estas duas decisões justifica-se pela sua diferente natureza: enquanto que o despacho de arquivamento constitui uma decisão do Ministério Público, que põe termo a uma fase processual caracterizada pela falta de contraditório, a decisão de não pronúncia é proferida após um debate público, contraditório e tematicamente vinculado, pelo que a tomada de posição sobre aqueles factos pelo juiz de instrução terá de beneficiar do princípio do caso julgado, como decisão jurisdicional que é.
Assim sendo, o juiz de instrução que, pronunciando-se sobre o objeto do processo, decide que não se indiciam suficientemente os factos imputados ao arguido e que, por isso não o pronúncia, não seguindo o processo para julgamento, profere uma decisão de mérito, que tem força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, constituindo caso julgado material, só mediante recurso de revisão podendo ser reaberta a discussão sobre tais factos.
Daí que o despacho de não pronúncia tenha de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes.
3.2- Questão distinta é a das consequências jurídico-processuais da preterição dessa obrigação de fundamentação de um despacho de não pronúncia, sobre a qual se mostra dividida a jurisprudência, como dão conta o Exmo. Procurador da República na sua resposta ao recurso e o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, havendo quem entenda tratar-se de uma nulidade, insanável e de conhecimento oficioso para uns e sanável para outros, e quem defenda ser uma mera irregularidade.
Uma parte significativa da jurisprudência[3] pronuncia-se no sentido de que a não descrição dos factos indiciados e não indiciados na decisão instrutória, seja ela de pronúncia ou de não pronúncia, acarreta a respetiva nulidade por ausência de fundamentação, nos termos do art. 308º, n.º 2, ao dispor que é correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior (despacho de pronúncia e de não pronúncia) o disposto no n.º 3 do art. 283º, cuja al. b) fulmina de nulidade a acusação que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
Apesar de o art. 283º, n.º 3, não referir que a nulidade aí cominada é insanável e de a mesma não fazer parte do elenco taxativo das nulidades absolutas constante nas várias alíneas do art. 119º, donde se concluiria que seria uma nulidade dependente de arguição (art. 120º), para essa posição jurisprudencial a lógica do sistema impõe que, também no caso de despacho de não pronúncia, se considere tratar-se de uma nulidade insanável e, por isso, cognoscível em sede de recurso da decisão instrutória.
Para tanto, argumenta que se a falta de narração dos factos na acusação determina a rejeição desta nos termos do art. 311º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. b), não faria sentido que um tribunal de recurso tivesse de apreciar um despacho de pronúncia ou de não pronúncia que fosse omisso quanto à narração de factos indiciários. Além disso, tratando-se de matéria de tão fundamental importância, em que estão em causa direitos de defesa com consagração constitucional, não haveria razão para que tal vício não fosse de conhecimento oficioso.
O entendimento de que essa nulidade do despacho de não pronúncia pode ser arguida e conhecida em recurso é perfilhado também por alguma doutrina[4].
Para outra posição[5], o despacho de não pronúncia deficientemente fundamentado, por não conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitam chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência de indícios, padece antes de nulidade sanável ou dependente de arguição perante o tribunal a quo (e já não em recurso).
Os defensores deste entendimento argumentam que enquanto as situações previstas no n.º 3 do art. 283º que se reconduzem às várias alíneas do n.º 3 do art. 311º constituem uma forma de nulidade sui generis, insanável e de conhecimento oficioso, já os demais casos ali previstos, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, se reconduzem ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição. Daí que, tratando-se, como é o caso, não de um despacho de pronúncia, mas de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação do mesmo se traduza numa nulidade sanável e dependente de arguição.
Para uma terceira posição[6], o vício em questão consubstancia uma irregularidade, com base na seguinte linha de argumentação:
A remissão feita pelo n.º 2 do art. 308º para o art. 283º, n.º 3 (cuja al. b) comina de nulidade a acusação que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança), só pode respeitar ao despacho de pronúncia, face ao teor das várias alíneas daquele n.º 3 do art. 283º, na medida em que as exigências contidas nas alíneas a) a f) não fazem qualquer sentido num despacho de não pronúncia, restando apenas a inócua al. g), que se reporta à data e assinatura, obrigatórias em qualquer despacho.
Assim, tudo indica que o legislador, com a referida remissão, disse mais do que pretendia, já que a mesma só se justifica em relação ao despacho de pronúncia, e já nunca ao despacho de não pronúncia, porquanto só o primeiro deve conter os requisitos formais de uma acusação, previstos nas alíneas do n.º 3 do art. 283º, entre eles a descrição dos factos imputados ao arguido (al. b)).
Daí que, tal como acontece com a acusação que não contenha a narração desses factos, que a lei fulmina com a nulidade, também o despacho de pronúncia que não descreva a factualidade suficientemente indiciada e não indiciada padece de nulidade, a qual é insanável, não obstante o art. 283º, n.º, 3, não o refira expressamente nem a mesma figurar do elenco do art. 119º. Tal conclusão decorre da conjugação com o disposto no art. 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. b), que prevê a rejeição da acusação que não contenha a descrição dos factos, por ser manifestamente infundada, consequência essa aplicável ao despacho de pronúncia por força da remissão feita pelo art. 308º, n.º 2.
Segundo o entendimento supra exposto, de que esta remissão apenas se reporta ao despacho de pronúncia, já o despacho de não pronúncia que seja omisso quanto à descrição dos factos considerados indiciados e não indiciados não padece de nulidade, não tal não estar legalmente previsto, mas sim de irregularidade.
Com efeito, de acordo com o princípio da legalidade que vigora no regime geral das nulidades em processo penal, só são nulos os atos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (art. 118º, n.º 1), sendo que, nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular (n.º 2 do mesmo artigo).
Considera ainda esta posição que a irregularidade em apreço, por poder afetar o valor do ato praticado, é de conhecimento oficioso, podendo ordenar-se a sua reparação no momento em que dela se tomar conhecimento, conforme prevê o n.º 2 do art. 123º, não carecendo, pois, de ser invocada pelo interessado.
Com efeito, conforme já referimos supra, o interesse da fixação da factualidade indiciada e/ou não indiciada não se esgota na delimitação dos poderes de cognição do juiz de instrução nem no dever de fundamentação dos atos decisórios, por forma a permitir a sua apreciação em sede de recurso, sendo também fundamental para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia, quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido, ou seja, quando o tribunal conhece do mérito do requerimento instrutório.
Em nossa opinião, é de seguir esta última posição, segundo a qual a falta de fundamentação em apreço, traduzida na falta de enunciação dos factos que se consideram suficientemente indiciados e aqueles que se consideram não suficientemente indiciados, quando verificada no despacho de não pronúncia, reconduz-se a uma mera irregularidade, ainda que de conhecimento oficioso, embora se ocorrer no despacho de pronúncia já consubstancie uma nulidade insanável.
3.3 - Posto isto, analisando a decisão instrutória de não pronúncia proferida nos autos, constata-se que o Mmº. Juiz a quo, depois de tecer considerações sobre as finalidades da instrução e o conceito de indícios suficientes, de elencar os meios de prova resultantes da fase de inquérito e da fase de instrução (sem qualquer explicitação do seu conteúdo ou significado) e de discorrer sobre os elementos típicos dos crimes objeto da acusação (ofensa à integridade física qualificada, coação e ameaça), em sede de “apreciação dos indícios suficientes” e relativamente ao RAI apresentado pela assistente limitou-se a escrever o seguinte:
«Pese embora a extensão dos factos articulados pela assistente, certo é que das diligências de prova recolhidas quer na fase de inquérito quer na fase de instrução, não se antevê que a arguida M. F. T. tenha agido conforme lhe é imputado naquela peça processual, sendo que relativamente ao crime de apropriação ilícita de coisa achada, mantêm-se os fundamentos invocados pelo Ministério Público no seu despacho de arquivamento, até porque a única testemunha que se pronunciou acerca da existência de um par de óculos foi J. M. M. T., a qual referiu que os óculos nunca apareceram, sabe que a sua cunhada os pediu de volta e que não foram devolvidos. No entanto, não se fez prova que tenha sido a arguida M. F. T. quem se apropriou dos óculos.»
Tendo conhecido de mérito, ao não pronunciar a arguida pelos crimes de ofensa à integridade física simples e de apropriação ilegítima de coisa achada que lhe eram imputados no RAI, o Mmº. Juiz de instrução omitiu a decisão fática, ao não elencar ou especificar por qualquer outra forma os factos descritos no requerimento instrutório que considerou estarem e os que considerou não estarem suficientemente indiciados, ficando-se sem saber se havia indícios sobre alguns deles.
A frase utilizada “não se antevê que a arguida M. F. T. tenha agido conforme lhe é imputado naquela peça processual”, mesmo num esforço interpretativo que poderíamos ser levados a fazer, não é apta a permitir a conclusão de que o Senhor Juiz considerou não se indiciar qualquer dos factos descritos no RAI.
Na verdade, aí são alegados factos integrantes dos elementos objetivos e dos elementos subjetivos dos tipos legais dos crimes imputados à arguida, sendo que pode não haver indícios da verificação de nenhum deles, como podem estar suficientemente indiciados os primeiros e já não os segundos.
Para além disso, em relação ao crime de ofensa à integridade física, o Mmº. Juiz de Instrução não procedeu à mínima explicitação dos motivos pelos quais entendeu não estar suficientemente indiciada a sua prática, omitindo, pois, por completo o exame crítico, ou seja, a discussão sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios probatórios, em face das provas recolhidas em inquérito e em instrução.
Refira-se que a assistente, ao requerer a abertura da instrução, não só pôs em causa as regras da experiência invocadas no despacho de arquivamento relativamente ao crime de ofensas à integridade física simples, bem como alegou que os depoimentos das testemunhas J. T. e J. M. T. confirmam a sua versão de ter sido agredida pela arguida, mais invocando que tal também é corroborado pelas lesões descritas no auto de exame médico a que foi submetida.
Se o objetivo da instrução requerida pela assistente era contrariar a posição assumida pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, através das razões de facto e de direito vertidas no RAI, não podia o Mmº. Juiz deixar de discutir, expressa e fundamentadamente, os indícios pretensamente suportados nas provas recolhidas durante o inquérito, reportando-se às razões de facto e de direito aduzidas no RAI, e nas provas produzidas na fase da instrução.
Ora, nada disso foi feito, o que também não pode deixar de consubstanciar uma irregularidade processual, por falta do juízo de avaliação dos indícios e da explicitação do raciocínio lógico que foi feito.
Semelhante vício se verifica em relação ao crime de apropriação ilegítima de coisa achada, porquanto refere-se na decisão instrutória que «mantêm-se os fundamentos invocados pelo Ministério Público no seu despacho de arquivamento, até porque a única testemunha que se pronunciou acerca da existência de um par de óculos foi J. M. M. T., a qual referiu que os óculos nunca apareceram, sabe que a sua cunhada os pediu de volta e que não foram devolvidos. No entanto, não se fez prova que tenha sido a arguida M. F. T. quem se apropriou dos óculos.»
Lendo o despacho de encerramento do inquérito (fls. 77 e ss.), verifica-se que o fundamento do Ministério Público para arquivar o inquérito quanto a esse crime radicou em não estar suficientemente indiciado o elemento típico traduzido na intenção de a arguida fazer seus os óculos da assistente, por, em momento algum ter sido invocado que os mesmos lhe foram solicitados e que ela se recusou a devolvê-los.
Ora, o Mmº. Juiz refere que a testemunha J. M. M. T., inquirida em sede de instrução, afirmou o contrário, sem que tenha tecido qualquer consideração sobre a credibilidade do seu depoimento. Por outro lado, também não é minimamente explicitada a afirmação final de que «não se fez prova que tenha sido a arguida M. F. T. quem se apropriou dos óculos», pairando até a dúvida sobre se se pretendeu dizer que a arguida não ficou sequer na posse dos óculos da assistente ou se apenas não teve a intenção de se apropriar deles.
Aliás, tendo as testemunhas J. M. T. e J. T., em inquérito, afirmado que a arguida levou uns óculos para o seu quarto que não eram seus, justifica-se alguma referência a estes depoimentos, nomeadamente explicitando porque não lhes terá sido atribuída credibilidade.
Em face do exposto, tendo sido omitida a explicitação da ponderação feita sobre as provas produzidas no inquérito e na instrução, particularmente a sua análise crítica, não é possível verificar e, consequentemente, sindicar o raciocínio feito pelo Mmº. Juiz a quo na tomada da decisão de facto, traduzindo-se a decisão recorrida tão só na conclusão decorrente da sua leitura subjetiva dos factos e das questões em causa nos autos.
Ora, a omissão da descrição fática na decisão instrutória de não pronúncia, bem como a falta do apontado exame crítico das provas que conduzem à conclusão sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios, afeta intrinsecamente o valor daquela decisão e impede que o tribunal de recurso se pronuncie sobre ela.
Com efeito, a valoração lógica dos indícios a levar a cabo por este Tribunal da Relação, por forma a considerá-los suficientes ou insuficientes para sujeitar a arguida a julgamento, exige que se conheçam os factos, dentro do objeto da instrução, considerados indiciados e não indiciados pela primeira instância, bem como a fundamentação subjacente a tal decisão, para poder decidir se os primeiros são ou não suficientes para pronunciar a arguida, de modo a confirmar ou não o despacho de não pronúncia.
Impõe-se, assim, ordenar a reparação do vício detetado, que em nosso entender constitui irregularidade que influi na decisão da causa e que impede uma correta apreciação do recurso, designadamente sobre a existência ou não de indícios suficientes quanto aos crimes imputados à arguida no RAI apresentado pela assistente, pelo que fica prejudicado o conhecimento desta outra questão, igualmente suscitada.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pela assistente, julgando inválido o despacho de não pronúncia, que deverá ser substituída por outro em que o Mmº. Juiz de Instrução proceda à reparação da irregularidade consistente na insuficiente fundamentação, por falta da enumeração dos factos indiciados e dos factos não indiciados, por referência ao requerimento de abertura da instrução, e por omissão da análise crítica das provas produzidas no inquérito e na instrução.

Sem tributação.
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(Elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)

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Guimarães, 23 de outubro de 2017

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)


[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada.
[2] - Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar e outros, 2014, Almedina, pág. 1024, no mesmo sentido se pronunciando Damião da Cunha, "Ne bis in idem e exercício da ação penal”, Que futuro para o processo penal?, pág. 557, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição atualizada, 2009, Universidade Católica Editora, pág. 778, anotação 10ª.
[3] - Cf., designadamente, os acórdãos do TRC de 09-12-2010 (processo n.º 185/08.8GAFIG.C1), do TRE de 01-03-2005 (processo n.º 1481/04-1), do TRG de 04-05-2015 (processo n.º 154/14.9GBGMR.G1) e de 15-02-2012 (processo n.º 774/09.3GAPTL.G1), e do TRP de 26-04-2017 (processo n.º 719/16.4T9PRT.P1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[4] - Vd. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 779, anotação 3ª.
[5] - Cf., nomeadamente, os acórdãos do TRC de 16-06-2015 (processo n.º 12/11.9GTLRA.C1) e de 26-10-2011 (processo n.º 199/10.8GDCNT.C1), do TRG de 02-11-2015 (processo n.º 44/14.5GAMSF.G1) e do TRP de 31-05-2017 (processo n.º 628/14.1TDPRT.P1), de 21-01-2015 (processo n.º 9304/13.1TDPRT.P1), de 07-07-2010 (processo n.º 102/08.5PUPRT.P) e de 23-04-2008 (processo n.º 0810048), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[6] - Seguida, entre outros, nos acórdãos do TRG de 09-07-2009 (processo n.º 504/07.4GBVVD-A.G1) e de 27-09-2004 (processo n.º 1008/04-2), do TRP de 14-06-2017 (processo n.º 5726/14.9TDPRT.P1), de 12-10-2016 (processo n.º 276/11.8TAVLC.P2) e de 10-12-2014 (processo n.º 281/12.7TAVLG.P1),todos disponíveis em http://www.dgsi.pt, e ainda os acórdãos do TRP de 06-01-2016, in Coletânea de Jurisprudência n.º 268, Tomo I, pág. 187, e do TRG de 04-07-2005, in Coletânea de Jurisprudência, Ano XXX, tomo IV, pág. 300.