Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4052/18.9T8VNF-B.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: QUINHÃO HEREDITÁRIO EM HERANÇA
APREENSÃO EM INSOLVÊNCIA
HIPOTECA SOBRE IMÓVEL INCLUÍDO NO ACERVO DA HERANÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – art. 686º, n.º 1, do Código Civil (CC).

II- A garantia decorrente da hipoteca só tem efeitos sobre o bem a que respeita e apenas pode ser considerada para efeitos da venda desse bem.

III- A meação dos bens comuns do casal, bem como a quota de herança indivisa nem sequer podem ser objeto de hipoteca, conforme decorre do art. 690º do CC que as exclui expressamente.

IV- Incindindo a apreensão sobre o quinhão hereditário pertencente ao insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge e o seu direito à meação no património comum do casal extinto, o que será vendido serão esses direitos e não o imóvel hipotecado, pelo que o credor hipotecário não beneficia de preferência na graduação do seu crédito, sendo um mero credor comum.

V- A aplicabilidade ao processo de insolvência do regime previsto no 743º, n.º 2 do CPC “ex vi” do art. 17º, n.º 1, do CIRE em nada interfere com a qualificação (garantida ou não) do crédito reclamado.
VI- A hipoteca goza de sequela sobre o bem e não caduca com a venda do quinhão hereditário ou direito à meação, continuando o bem imóvel hipotecado a responder pela satisfação do crédito garantido.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

Por apenso ao processo de insolvência no qual foi declarada a insolvência de J. M., nos autos de reclamação de créditos o Administrador da Insolvência apresentou a relação definitiva de credores nos termos do disposto no artigo 129.º do C.I.R.E.
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Por despacho datado de 26/22/2018, foi o Administrador da Insolvência notificado para esclarecer o facto deste reconhecer um crédito privilegiado à Caixa ..., S.A., decorrente de hipoteca voluntária incidente sobre imóvel propriedade do Insolvente (Prédio Urbano), quando nos autos não foi apreendido nenhum imóvel, mas apenas o direito à meação (bem móvel) que ao insolvente pertence no património comum com o seu ex-cônjuge, do qual faz parte o referido imóvel.
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Respondeu o Administrador da Insolvência, esclarecendo que, aquando da qualificação do crédito em questão, por mero lapso, o colocou garantido pelo imóvel, quando, na verdade, o mesmo encontra-se garantido (hipoteca voluntária) pelo produto da liquidação correspondente aos direitos, à meação e quinhão hereditário, incidentes sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o n.º ... / ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ….
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De seguida, a Caixa ... requereu, para efeitos de graduação, e pelo produto da venda do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o n.º .../... (produto esse a reverter, em parte, para o presente processo e, em parte, para o processo executivo) seja atendida a garantia real hipotecária de que beneficia o crédito da Caixa ... emergente do empréstimo identificado pelo nº 00352112005154685, reconhecido pelo Sr. Administrador da Insolvência na lista a que alude o art. 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Foi posteriormente proferida sentença de sentença de verificação e graduação dos créditos, datada de 29/04/2019, que, julgando improcedente a pretensão da Caixa ..., decidiu qualificar o seu crédito como comum.

Mais foi sentenciada a reclamação de créditos (verificação e graduação), com o seguinte dispositivo:

«Considerando os princípios atrás expostos, procede-se ao pagamento dos créditos, através do produto da massa insolvente, na seguinte forma:
1) As dívidas da massa insolvente saem precípuas (n.º 1 e n.º 2 do artigo 172.º do CIRE);
2) do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos comuns;
3) os créditos subordinados».
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Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a credora reclamante Caixa ..., S.A., tendo formulado, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões:

«1ª) A Caixa ... reclamou nestes autos, pela forma e tempo legalmente previstos, o pagamento (entre outros) de um crédito no valor de € 299.533,68 (duzentos e noventa e nove mil quinhentos e trinta e três euros e sessenta e oito cêntimos).
2ª) Crédito esse garantido por hipoteca voluntária devidamente registada – através da Ap.02 de 2006.11.23 - sobre o prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o n.º .../....
3ª) Tal crédito foi reconhecido pelo Sr. Administrador de Insolvência, em sede da lista a que alude o art. 129º do CIRE, pela totalidade e com a natureza de crédito garantido, não tendo sido objecto de impugnação alguma.
4ª) O imóvel supra mencionado e sobre que incide hipoteca voluntária a favor da Caixa ... encontra-se registado, em comum e sem determinação de parte ou direito, em nome do insolvente e de seu filho, J. P..
5ª) No âmbito dos presentes autos foi apreendido o quinhão hereditário e o direito à meação do insolvente, de que faz parte o aludido prédio.
6ª) Em face do incumprimento verificado nos financiamentos também aqui reclamados, previamente à declaração de insolvência, a Caixa ... instaurou contra o insolvente e seu filho (mutuários) a execução que corre termos, com o nº 2102/18.8T8VNF, no Juiz 1 do Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão do Tribunal Judicial da Comarca de Braga.
7ª) Por força do disposto no art. 743º/2 do CPC, aplicável ex vi art. 17º do CIRE, dever-se-á proceder à venda, num só processo, da totalidade do imóvel, distribuindo-se posteriormente o seu produto, na proporção que a cada processo couber, por ambos os processos – executivo e de insolvência.
8ª) Vendido que seja, o direito de propriedade sobre o prédio em causa – atento o disposto no art. 824º/2 do Código Civil – será transferido livre de quaisquer ónus e encargos.
9ª) A sentença em crise não procede a graduação específica quanto a esse imóvel, por entender que, tendo sido apreendidos quinhão hereditário e direito à meação, o referido imóvel não será vendido no âmbito da liquidação.
10ª) E, assim, porquanto a hipoteca é uma garantia que incide sobre um bem em concreto, qualifica os créditos hipotecários da Caixa ... como “comuns” e, em consequência gradua todos os credores rateadamente,
11ª) Descurando a preferência de pagamento que para a Caixa ... decorre em virtude da hipoteca voluntária a seu favor sobre o imóvel em questão e esvaziando de conteúdo o disposto no mencionado art. 743º/2 do CPC (cuja aplicação, sublinhe-se, se crê ser imperativa, assim como se determina, designadamente, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.11.2010, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/8fa42e6 a7f133d1a802577f90030cf84?OpenDocument).
12ª) Significa isto que, mantendo-se a qualificação e graduação, nestes autos, dos créditos hipotecários da Caixa ... como comuns, a Caixa ... perderá a sua garantia, sem obter o correspectivo pagamento preferencial que lhe confere a hipoteca voluntária registada em seu benefício.
13ª) Sucede que, goza a Caixa ... – face ao disposto no art. 686º do C.Civil – do direito de ser graduada para pagamento pelo produto da venda desse bem com preferência sobre os demais credores.
14ª) Assim não se decidindo na sentença em crise, encontra-se a mesma ferida de ilegalidade, por violação do disposto nesse dispositivo legal e sonegação do direito da Caixa ..., que vê excutida a sua garantia sem ver pago o crédito por si reclamado.

TERMOS EM QUE, deve o presente recurso proceder, com as legais consequências e com vista à acostumada JUSTIÇA!».
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Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II. Delimitação do objeto do recurso

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber se ocorreu erro de julgamento na graduação dos créditos, por terem sido reconhecidos e graduados como comuns créditos garantidos por hipoteca (os da Caixa ...).
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III. Fundamentos

IV. Fundamentação de facto

As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os que decorrem do relatório supra – que por brevidade aqui se dão por integralmente reproduzidos –, a que acrescem os seguintes:

1. A Caixa ... apresentou a reclamação dos créditos que detém sobre o insolvente, no montante global de € 381.337,88, assim discriminado:
a) contrato de mútuo com hipoteca nº 00352112005154685, celebrado por escritura pública datada de 18 de Dezembro de 2006 (alterado em 17 de Setembro de 2013, 09 de Outubro de 2014, 11 de Novembro de 2015 e 28 de Março de 2017), em que são mutuários o insolvente e J. P., com uma dívida global de € 299.533,68;
b) contrato de abertura de conta de depósitos à ordem nº 00350882088202500, formalizado em 15 de Maio de 2008, com uma dívida global de € 178,64;
c) contrato de abertura de conta de depósitos à ordem nº 00352112036873400, formalizado em 22 de Agosto de 2006, com uma dívida global de € 597,57;
d) contrato de mútuo nº 00350882011724985, celebrado por escritura pública de partilha e mútuo com hipoteca e fiança datada de 12 de Dezembro de 2008, em é mutuário J. P. e fiador o aqui insolvente, com uma dívida global de € 44.842,62;
e) contrato de mútuo nº 00350882011726685, celebrado por escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança datada de 12 de Dezembro de 2008, em é mutuário J. P. e fiador o aqui insolvente, com uma dívida global de € 36.185,37.
2. O financiamento identificado pelo nº 00352112005154685 encontra-se garantido por hipoteca voluntária, registada pela Ap.02 de 2006.11.23, sobre o prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o n.º .../....
3. À Caixa ... foram reconhecidos créditos do montante global de € 381.337,88, os quais não foram alvo de qualquer impugnação.
4. À massa insolvente foi apreendido o quinhão hereditário pertencente ao insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge e o seu direito à meação no património comum do casal extinto.
5. Desse quinhão e direito à meação faz parte o prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o n.º .../..., mostrando-se o mesmo registado, em comum e sem determinação de parte ou direito, em nome do insolvente e de seu filho, J. P..
6. A hipoteca voluntária em benefício da Caixa ... foi constituída por ambos, em garantia do empréstimo pelos mesmos contraído, identificado pelo nº 00352112005154685.
7. Na sequência de deliberação nesse sentido em sede de assembleia de credores realizada no dia 13 de Agosto de 2018, foi determinado o prosseguimento dos autos para liquidação do activo apreendido.
8. Em virtude do incumprimento por parte dos mutuários das obrigações emergentes do mencionado financiamento (e de outros), a Caixa ... intentou contra os obrigados - J. M., ora insolvente, e J. P. - acção executiva, a qual, com o n.º 2102/18.8T8VNF, corre termos no Juiz 1 do Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão do Tribunal Judicial da Comarca de Braga.
9. Tal execução prossegue os seus termos contra o filho do insolvente (e mutuário).
10. Nessa execução, a Caixa ... nomeou à penhora bens, incluindo o prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o n.º .../....
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V. Fundamentação de direito

1. Se parte do crédito da apelante tem prioridade no pagamento dos bens/direitos apreendidos, por ser um crédito garantido e não comum.

Na decisão recorrida o Mm.º Juiz “a quo” aduziu a seguinte fundamentação:

«Neste processo de insolvência foi apreendido, entre outros, o quinhão hereditário pertencente ao insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge M. M. e o direito à meação do insolvente marido no património comum com a sua ex-cônjuge.
Desses quinhão e direito à meação faz parte o prédio urbano supra descrito, sobre o qual incide hipoteca a favor da Caixa ... (cfr. requerimento apresentado pelo senhor Administrador da Insolvência nestes autos a 27 de Outubro de 2018).
Ora, os referidos quinhão hereditário e direito à meação constituem direitos sobre uma universalidade de bens e, portanto, bens móveis para efeitos da sentença de Verificação e Graduação de Créditos a proferir.
Aliás, sendo a herança em causa composta por vários bens, não é sequer certo que o imóvel referido venha a integrar o quinhão hereditário e o direito à meação que pertence ao insolvente e que serão aqui vendidos.
A hipoteca é uma garantia que incide sobre um bem imóvel em concreto, nos termos do art. 686º, nº 1 do Código Civil.
Assim, não pode o crédito reconhecido à Caixa ... ser qualificado como garantido, pois o imóvel sobre que incide a hipoteca a seu favor não foi apreendido para a massa insolvente, nem será vendido no âmbito da liquidação do activo, mas apenas os referidos quinhão hereditário e direito à meação.
Pelo exposto, improcede a pretensão da Caixa ..., devendo o seu crédito ser qualificado como comum».
Embora, em tese, a recorrente diga que concorda com o transcrito raciocínio, contrapõe, porém, com ele não se poder conformar em face do caso concreto.
Para tanto defende que, no caso vertente, terá de ser diligenciada a venda do imóvel em si (i.é “da totalidade do imóvel num só processo”), com posterior distribuição do produto da sua venda por ambos os processos, em conformidade com o disposto no art. 743º, n.º 2 do CPC “ex vi” do art. 17º do CIRE, pelo que, uma vez vendido o imóvel, o direito de propriedade sobre o prédio em causa será – atento o disposto no art. 824º/2 do Código Civil – transferido livre de quaisquer ónus e encargos.
Acrescenta que, a manter-se a qualificação e graduação, nestes autos, dos créditos hipotecários da Caixa ... como comuns, a recorrente perderá a sua garantia, sem obter o correspectivo pagamento preferencial que lhe confere a hipoteca voluntária registada em seu benefício, dado que o produto da sua venda será rateado por entre todos os credores comuns, o que consubstanciará violação do disposto no art. 686º do Código Civil.
Vejamos se tais argumentos serão de proceder.
Decorre dos autos que foi apreendido pelo Administrador da Insolvência, a favor da massa insolvente, o quinhão hereditário pertencente ao insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge e o seu direito à meação no património comum do casal extinto.
Como é sabido, a hipoteca é um direito real de garantia (1) que incide sobre coisas imóveis ou equiparadas do devedor ou de terceiro.
A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – art. 686º, n.º 1, do Código Civil (CC).
O efeito principal da hipoteca é a satisfação do direito de crédito garantido através do bem hipotecado. O seu interesse é puramente instrumental, na medida em que a sua finalidade é assegurar o cumprimento de outro direito (o de crédito).
Trata-se, portanto, de um direito acessório do direito de crédito a que serve de garantia.
Em caso de incumprimento da obrigação garantida pela hipoteca, o credor hipotecário pode executar a hipoteca.
Como direito real, a hipoteca goza de preferência e da sequela, o que significa que, em princípio, prevalece sobre os direitos reais de garantia posteriormente constituídos (2) e segue a coisa onerada nas suas transmissões, podendo sempre o credor hipotecário fazer valer o seu direito.
Como referem Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte (3), “(…) a hipoteca garante o crédito pelo valor de certo bem. O credor hipotecário paga-se pelo valor desse bem com preferência em relação aos demais credores; só depois de estar totalmente ressarcido é que os outros credores podem obter a satisfação dos respetivos créditos, através do remanescente”.
Podemos assim concluir que a garantia decorrente da hipoteca só tem efeitos sobre o bem a que respeita e apenas pode ser considerada para efeitos da venda desse bem.
A hipoteca constituída a favor da apelante incide sobre o prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o n.º .../... e teve origem num financiamento (nº 00352112005154685) concedido pela apelante ao ora insolvente e ao filho deste, J. P..
Nos presentes autos de insolvência o que está apreendido a favor da massa insolvente é o quinhão hereditário pertencente ao insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge e o seu direito à meação no património comum do casal extinto, do qual faz parte o aludido prédio urbano hipotecado, mostrando-se o mesmo registado, em comum e sem determinação de parte ou direito, em nome do insolvente e de seu filho, J. P..
Nesta medida e uma vez que o que é vendido é o que se encontra (efetivamente) apreendido, será o quinhão hereditário pertencente ao insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge e o seu direito à meação no património comum do casal extinto que serão objeto de venda e não o imóvel hipotecado, pelo que o credor hipotecário não beneficia de preferência na graduação do seu crédito, sendo um mero credor comum.

Não tendo sido apreendido o bem sobre o qual recai a hipoteca invocada, será indiferente que esse imóvel objeto da hipoteca integre a meação e o quinhão hereditário apreendidos, pois o quinhão hereditário e o direito à meação não conferem o direito aos bens concretos que integram herança e a comunhão conjugal, sendo certo que, não podendo a meação e a quota de herança indivisa ser objeto de hipoteca por força do estatuído no art. 690º do CC (4), não poderia agora permitir-se o que este preceito proíbe (5).

Com efeito, a pretensão da recorrente de que se lhe reconheça preferência no pagamento de parte do crédito por si reclamado nos autos, pelo produto da venda do quinhão hereditário pertencente ao insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge e do seu direito à meação no património comum do casal extinto, nos quais se integra o imóvel hipotecado a seu favor, a ser admitida, traduzir-se-ia numa violação indireta do disposto no art. 690º do CC, pois dar-se-lhe-ia preferência no pagamento pelo produto da venda de um direito, sem que fosse admitida a constituição da garantia fundamentadora da preferência no pagamento sobre o direito objeto da venda. Por outro lado, o quinhão hereditário e o direito à meação conjugal não se traduzem num qualquer direito inerente ao imóvel hipotecado a favor da recorrente, pois não conferem qualquer direito sobre bens concretos e determinados integrantes do acervo hereditário e da comunhão conjugal (6) (7). O direito à meação e o quinhão hereditário apenas se virão a determinar após partilha dos bens na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do cônjuge do insolvente. Enquanto não forem feitas partilhas, o insolvente não é proprietário de nenhum bem ou direito que integre a herança, mas tão-só titular de um direito sobre uma quota-parte, abstrata e idealmente considerada, desse património (8).

A hipoteca também não impede o devedor de alienar a coisa hipotecada e é nula a cláusula que impeça o proprietário de alienar ou onerar bens hipotecados (art. 695º do Cód. Civil) (9). Os bens hipotecados não ficam subtraídos ao comércio jurídico, pelo que podem ser livremente transmitidos para terceiros (10). O que sucede é que o adquirente da coisa a adquire onerada com a hipoteca, ou seja, apesar de a coisa passar a ter outro titular, continua a responder pela satisfação do crédito garantido como se permanecesse na titularidade do devedor. É o que resulta da sua natureza de direito real de garantia e da faculdade de sequela que lhe anda associada (11). O mesmo é dizer que, enquanto subsistir, a hipoteca habilita o seu titular a atingir a coisa, onde esta se encontrar. Este atributo de sequela é consequência necessária do direito real de hipoteca e traduz o poder do titular desse direito de atuar sobre a coisa que lhe foi afeta, sem ter de se deter perante a atitude da pessoa que estiver atualmente na posse da coisa (12).

No caso, incindindo a apreensão sobre o quinhão hereditário pertencente ao insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge e o seu direito à meação no património comum do casal extinto, e vindo eles a ser vendidos na insolvência, o que sucede é que quem vier a adquirir esses direitos, apenas adquire uma parte ideal do património comum e indiviso no qual se integra um imóvel hipotecado e apesar de eventualmente o direito mudar de titular, o bem imóvel hipotecado continua a responder pela satisfação do crédito garantido, isto é o que decorre da natureza própria da hipoteca e da sequela de que goza, pelo que o credor hipotecário não é prejudicado (13).

Por último, situando-nos em sede de verificação e graduação de créditos, afigura-se-nos irrelevante a argumentação aduzida pela recorrente no tocante à invocação do regime previsto no 743º, n.º 2, do CPC.
Ainda que se reconheça a sua aplicabilidade ao processo de insolvência por força da remissão estabelecida no art. 17º, n.º 1, do CIRE (14), certo é que o mesmo, determinando a realização de uma única venda quando, em execuções/insolvências diversas, sejam penhorados/apreendidos todos os quinhões no património autónomo ou todos os direitos sobre o bem indiviso, com posterior divisão do produto obtido, não se confunde com a venda do imóvel penhorado/apreendido em si mesmo, posto que do que ali se trata é da venda da totalidade do património autónomo ou do bem indiviso (15).
Acresce que a imposta venda conjunta – visando terminar com uma situação de compropriedade, evitando o processo de divisão de coisa comum, além de trazer a vantagem de tornar mais fácil e rentável a venda, com poupança de esforço, meios e gastos – em nada interfere com a qualificação (garantida ou não) do crédito reclamado.
Assim, não incidindo a apreensão dos autos de insolvência sobre o imóvel que integra o quinhão hereditário e a meação do insolvente, mas sim sobre o direito àquele quinhão e à meação, não funciona a preferência que para o Banco apelante resulta da hipoteca que oportunamente constituiu sobre aquele imóvel, já que na liquidação dos autos nunca poderá ser vendido o imóvel em questão (art. 174º do CIRE), pelo que o seu crédito terá de ser graduado como crédito comum.
Pelo exposto, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida quando não reconhece sobre os bens apreendidos – quinhão hereditário pertencente ao insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge e o seu direito à meação no património comum do casal extinto – qualquer garantia real proveniente da hipoteca existente sobre um imóvel que faz parte desse património autónomo em favor da apelante, e consequentemente graduou o crédito da apelante decorrente do mútuo hipotecário como crédito comum.
Resta, pois, concluir pela confirmação da decisão recorrida, improcedendo as conclusões da apelante.
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As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade da recorrente, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC)

I – A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – art. 686º, n.º 1, do Código Civil (CC).
II – A garantia decorrente da hipoteca só tem efeitos sobre o bem a que respeita e apenas pode ser considerada para efeitos da venda desse bem.
III - A meação dos bens comuns do casal, bem como a quota de herança indivisa nem sequer podem ser objeto de hipoteca, conforme decorre do art. 690º do CC que as exclui expressamente.
IV - Incindindo a apreensão sobre o quinhão hereditário pertencente ao insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge e o seu direito à meação no património comum do casal extinto, o que será vendido serão esses direitos e não o imóvel hipotecado, pelo que o credor hipotecário não beneficia de preferência na graduação do seu crédito, sendo um mero credor comum.
V - A aplicabilidade ao processo de insolvência do regime previsto no 743º, n.º 2 do CPC “ex vi” do art. 17º, n.º 1, do CIRE em nada interfere com a qualificação (garantida ou não) do crédito reclamado. VI - A hipoteca goza de sequela sobre o bem e não caduca com a venda do quinhão hereditário ou direito à meação, continuando o bem imóvel hipotecado a responder pela satisfação do crédito garantido.
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VI. – DECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação apresentado pela apelante, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Guimarães, 17 de outubro de 2019

Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)


1. Os direitos reais de garantia são aqueles que conferem o poder de, pelo valor de uma coisa ou pelo valor dos seus rendimentos, o respetivo beneficiário obter, com preferência sobre todos os outros, o pagamento de uma dívida de que é titular activo - cfr. Mota Pinto, in Direitos Reais, coligido por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, p. 135.
2. Há algumas exceções, como as que decorrem dos privilégios imobiliários especiais (art. 751º do CC) e do direito de retenção. - cfr. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias, 2017, 2ª ed., Almedina, p. 199.
3. Cfr. Garantias de Cumprimento, 2ª ed. Almedina, p. 123.
4. Estabelece o citado normativo que “[n]ão pode ser hipotecada a meação dos bens comuns do casal, nem tão-pouco a quota de herança indivisa”.
5. Cfr. Ac. da RL de 11/01/2018 (relatora Maria Teresa Pardal), in www.dgsi.pt.
6. Cfr. decisão sumária da RC de 14/02/2012 (relator Carlos Gil) e Ac. da RP de 29/04/2014 (relatora Anabela Dias da Silva), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
7. Segundo Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela”, (cfr. Curso de Direito da Família, Volume I, 3ª ed., Coimbra Editora, 2003, p. 550). O património coletivo, acrescentam os referidos autores (obra e local citados), “pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideais, como na compropriedade. Enquanto esta é uma comunhão por quotas, aquela é uma comunhão sem quotas. Os vários titulares do património colectivo são sujeitos de um único direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal. Não tem, pois, cada um deles algum direito de que possa dispor ou que lhe seja permitido realizar através da divisão do património comum”.
8. Como se decidiu no Ac. do STJ de 26-01-99, BMJ n.º 483, p. 211, “a comunhão hereditária, geralmente entendida como universalidade jurídica, não se confunde com a compropriedade, (cfr. nº 1, do art. 1403), uma vez que os herdeiros não são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. Da aceitação sucessória apenas decorre directamente para cada um dos chamados o direito a uma quota hereditária. Os herdeiros são titulares apenas de um direito à herança, universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais esse direito ficará a pertencer, se só a alguns ou a um, sendo os demais compensados em tornas. Enquanto a herança se mantiver no estado de indivisão, nenhum dos herdeiros tem “direitos sobre bens certos e determinados”, nem “um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles”. Quer dizer, aos herdeiros, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos (designadamente uma quota) sobre cada um dos bens que integram o património hereditário. Até à partilha, os herdeiros são titulares, tão somente, do direito “a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed, pág. 347-348, e Vol VI, pág. 160, Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, 2ª ed, pág. 90-92, 99 e 126; Revista dos Tribunais, nº 84, pág. 196, nº 87, pág. 126 e nº 88, pág. 95)”. Só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança. Na verdade, a partilha extingue o património autónomo da herança indivisa, retroagindo os seus efeitos ao momento da abertura da sucessão - art. 2119 do Cód. Civil. A partilha “converte os vários direitos a uma simples quota (indeterminada) de um todo (determinado) em direito exclusivo de uma parcela determinada do todo” [cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, pp 195 -196 e 203 e Ac. do STJ de 21/04/2009 (relator Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt.].
9. Cfr. Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, obra citada, p. 124, os quais referem ser, todavia, frequente incluir-se no contrato constitutivo de uma hipoteca uma cláusula nos termos da qual, na eventualidade de o bem ser vendido ou onerado, a obrigação vence-se imediatamente.
10. Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Garantias das Obrigações, 4.ª ed., pág. 193 e A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lex, p. 765.
11. Cfr. Ac. RP de 31/01/2013 (relator Aristides Rodrigues de Almeida), www.dgsi.pt.
12. Cfr. Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, “Parecer sobre Expurgação da Hipoteca”, em CJ, Ano XI, T. 5, pp. 35 a 47.
13. Cfr., sobre esta questão e com uma resposta unânime da jurisprudência na qualificação do crédito hipotecário como comum, veja-se, entre outros, o Ac. da RL de 13-02-2014 (relator Vaz Gomes), Ac. da RP de 29/04/2014 (relatora Anabela Dias da Silva), Ac. da RC de 24-09-2013 (relatora Maria Inês Moura), Ac. da RC de 07/02/2017 (relator Vítor Amaral), Ac. da RG de 30/01/2008 (relator António Sobrinho), Ac. da RG de 5/06/2014 (relator Manuel Bargado), Ac. da RG de 19-05-2016 (relatora Conceição Bucho) e Ac. da RE de 7/01/2016 (relator Francisco Matos), todos disponíveis in www.dgsi.pt.
14. Cfr., nesse sentido, o Ac. da RP de 22.11.2010 (relator Soares de Oliveira) e o Ac. da RC de 17/05/2016 (relatora Maria Domingas Simões), in www.dgsi.pt., invocados pela apelante, nas suas alegações. Como é referido neste último aresto, no caso ali versado, não obstante ser o direito à meação que integrava a massa insolvente, os termos equívocos do auto de arrolamento/apreensão deram origem a uma inscrição registral igualmente equívoca, que permitiu a realização da venda de cada um dos bens concretos e determinados ali identificados.
15. O direito de propriedade sobre um imóvel não é confundível com o direito à meação e herança por morte de outrem.