Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
881/14.0T8BRG.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
TUTELA GERAL DA PERSONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - As palavras “bom” e “jeitoso”, designam normalmente admiração, aprovação e qualidades positivas, sendo termos que não assumem, só por si, qualquer carga pejorativa, não se tratando de termos naturalmente polissémicos, ainda que o seu uso metafórico ou em determinados contextos possa assumir significados diversos;

II - As expressões “O doutor desculpe, mas o doutor…estou a ver que é tão bom como ele”, “É tão jeitoso como o D. C., senhor doutor”, proferidas por testemunha, ora ré, no contexto de uma audiência de julgamento e não se restringindo à resposta sobre a concreta questão formulada por Advogado surgem como desajustadas, posto denotarem uma abordagem muito informal e pouco polida no contexto indicado;

III - Não é possível conferir um significado objectivo e unívoco às referidas expressões se as mesmas surgem no decurso de interrogatório conduzido por Advogado, com um contexto concreto e dinâmico, sabendo-se que o Advogado actua na defesa do seu constituinte num processo em que se debatem posições conflituantes, sobretudo em sede de audiência de julgamento, e que tal contexto é susceptível de gerar algum tipo de reacção, exaltação ou mesmo perturbação em alguns dos intervenientes, designadamente nas testemunhas, perante o âmbito das questões, das abordagens e dos comentários que se desenvolvem e se, perante os factos provados, resultam indeterminados os termos da referida comparação;

IV - As referidas expressões não revelam, no contexto indicado, um concreto e determinado desvalor que permita considerar violado, de forma intolerável, o núcleo essencial das qualidades que permitem delimitar a honra, dignidade ou reputação do visado.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

A. A., Advogado, instaurou ação declarativa sob a forma de processo comum contra Maria, ambos melhor identificados, pedindo a condenação da ré a pagar ao autor a quantia de €7.730,73, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora vincendos desde a citação até integral pagamento.

Alegou para o efeito, e em síntese, que, no âmbito da sua atividade profissional de advogado, representa o arguido D. C. no processo comum singular n.º 201/07.OIDBRG que corre termos pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Braga, tendo no âmbito desse processo sido ouvida como testemunha a ora ré; sustenta que no momento em que inquiria a referida testemunha, em sede de audiência de julgamento, aquela dirigiu ao autor palavras com intenção de lesar, atingir e afetar o seu bom nome, reputação, imagem, honra e consideração, assim lhe provocando danos não patrimoniais e patrimoniais, que descreve.

A ré contestou, negando ter dirigido ao autor uma das expressões que lhe são imputadas pelo autor, bem como o conteúdo e intencionalidade que aquele lhes atribui em sede de petição inicial.

Os autos prosseguiram com a realização da audiência prévia, no decurso da qual foi proferido o despacho saneador, tendo sido selecionados os temas da prova e admitidos os meios de prova.

Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, datada de 30-01-2018, que decidiu o seguinte:

“ (…)
Pelo exposto, julgo totalmente improcedente a acção e, em consequência, absolvo a ré Maria do pedido contra si deduzido pelo autor A. A..
Custas pelo autor, nos termos do disposto no art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
O valor da causa já foi fixado a fls. 191.
Registe e notifique.”

Inconformado, o autor apresentou-se a recorrer, pugnando no sentido da revogação da sentença, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. Da prova produzida através das declarações de parte do autor e do depoimento da testemunha S. R., na audiência de julgamento destes autos, que se encontram transcritos no corpo destas alegações, flui que a Meritíssima Juíza a quo julgou incorretamente os factos dados como não provados sob os pontos 1, 2 e 3, que deveriam ter sido considerados como provados.
2. As passagens da gravação das declarações de parte do autor, em que o recorrente se funda, estão registadas desde 00:00:18 a 00:01:50; desde 00:08:13 a 00:08:52; desde 00:10:16 a 00:10:52 e desde 00:11:24 a 00:15:21;
3. As passagens da gravação do depoimento da testemunha S. R. que fundamentam a pretensão do recorrente estão registadas desde 00:00:55 a 00:05:10; desde 00:09:31 a 00:10:11 e desde 00:13:26 a 00:14:07.

Concretizando:

4. A expressão “o doutor é burro”, foi proferida pela recorrida em plena audiência de julgado, conforme perentoriamente afirmado pelo recorrente (cfr. minuto 0:18 e seguintes da gravação do depoimento de parte).
5. Apenas por uma mera razão técnica, essa expressão não consta da transcrição da gravação áudio do julgamento.
6. Essa razão, segundo um perito de transcrições, reside no facto de a expressão ter sido proferida em tom baixo (impercetível para a gravação) ou ter sido dita, não diretamente para o microfone, mas para o visado recorrente, de forma fugidia.
7. O caráter fugaz com que foi proferida a expressão em causa poderá ter feito com que escapasse à perceção do Julgador, explicando assim a sua passividade.
8. O recorrente, na altura, não alimentou a controvérsia com a recorrida acerca da sua afirmação, por ter ficado convencido de que essa expressão tinha ficado gravada no sistema de gravação da sala de audiência.
9. Não tendo sido efetuada qualquer prova em contrário, o Tribunal recorrido deveria ter valorado favoravelmente o depoimento do apelante e considerado provado o facto imputado à recorrida no nº 4 supra.
10. Com as expressões referidas na alínea E) a apelante pretendeu comparar, em termos comportamentais, o arguido (acusado de um crime de fraude fiscal qualificado) ao recorrente.
11. Essa comparação visava lesar e atingir o bom nome, reputação, honra, consideração pessoal, e brio profissional do recorrente.
12. Efetivamente, o termo “jeitoso” pode ter uma conotação estética, significando “elegante”, “esbelto”; ou pode ser entendido pejorativamente, com o significado de “biltre” ou “ordinário”.
13. As circunstâncias de tempo e de modo em que esse termo foi proferido pela recorrida excluem que se trate de um qualquer galanteio ou apreciação estética, já que tal palavra foi usada no decurso de uma audiência de discussão e julgamento e não numa ocasião propícia para sedução ou num “casting” de modelos.
14. Deste modo, resta o entendimento pejorativo do termo, sendo que o que a ré quis significar foi: “É tão biltre, tão ordinário como o D. C., senhor doutor”.
15. Foi assim que o recorrente entendeu a comparação verbalizada pela apelada, e era assim que o homem médio, suposto pela ordem jurídica, a entenderia também.
16. Neste conspecto, deve considerar-se provado que “a ré proferiu as expressões referidas em E) e 1 com a intenção de lesar e atingir o bom nome, reputação, imagem, honra, consideração pessoal, social e profissional, brio e imagem do autor”.
17. E deve considerar-se provado que “por causa do referido em E) e 1, o autor sentiu-se angustiado, ferido no seu brio e reputação pessoal, social e profissional, enervado, humilhado e perturbado”.
18. Quando se entenda que a recorrida não apodou o apelante de “burro”, deve considerar-se provado que “a ré proferiu as expressões referidas em E) com a intenção de lesar e atingir o bom nome, reputação, imagem, honra, consideração pessoal, social e profissional, brio e imagem do autor”;
19. e que “por causa do referido em E), o autor sentiu-se angustiado, ferido no seu brio e reputação pessoal, social e profissional, enervado, humilhado e perturbado”,
20. pois seriam com certeza estes os danos que se produziriam na esfera jurídica de um magistrado judicial se, no decurso de uma audiência de julgamento, uma testemunha o comparasse ao arguido que estava a ser julgado.
21. O estado de descontrolo e nervosismo – que não consta dos factos provados – de que eventualmente padecia a apelada mercê da forma incisiva e insistente como vinha sendo interrogada pelo ora recorrente, não desculpa ou atenua o seu comportamento, já que o nervosismo das testemunhas e a forma muitas vezes incisiva com que são inquiridas é algo que ocorre diariamente nos tribunais, sem que, apesar disso, se percam o respeito e a urbanidade.
22. O trecho do Acórdão citado na prolatada sentença, embora aparente poder aplicar-se ao caso dos autos, quando apreciado in totum, não revela essa virtualidade, nem com o melhor esforço hermenêutico.
23. A sentença sub judicio viola o disposto nos artigos 70º, n.º1 e 483º, n.º1, ambos do Código Civil e ainda os artigos 607º, n.º4, e 615º, n.º1, alínea c), do Código de Processo Civil.

Pelo exposto e pelo muito mais que V.as Ex.as proficientemente suprirão, concedendo provimento ao presente recurso, revogarão a sentença recorrida, considerando a ação procedente, e condenando a recorrida numa indemnização fixada em prudente arbítrio.

Assim, farão a costumada
JUSTIÇA !!!”

A ré apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso interposto e a consequente manutenção do decidido.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) - o objeto do presente recurso circunscreve-se às seguintes questões:

A) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
B) Pressupostos da responsabilidade extracontratual;
C) Obrigação de indemnizar.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos

1.1.Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra relevando ainda os seguintes factos considerados provados pela 1.ª instância na decisão recorrida:

1.1. A) O autor exerce a advocacia desde 29-7-1987, desempenhando a sua atividade no âmbito de processos judiciais, nomeadamente de natureza cível, criminal e administrativa e pontualmente também em sede de procuradoria;
1.1. B) E, quer no desempenho da sua vida de advogado, quer na sua vida privada, é pessoa merecedora do respeito de todos com quem se cruza no dia-a-dia;
1.1. C) Na qualidade de advogado, o autor representou os arguidos D. C. e Construções D. C., Lda., no âmbito do processo comum singular n.º 201/07.0IDBRG, que correu termos pelo 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, onde os referidos arguidos se encontravam acusados da prática de um crime de fraude fiscal qualificada, crime do qual a final foram absolvidos por sentença transitada em julgado;
1.1. D) A ré foi ouvida como testemunha no âmbito do processo referido em C) em sessão de julgamento realizada no dia 7-3-2013, na parte da manhã;
1.1. E) Na referida data, quando o autor, na qualidade de advogado dos réus, se encontrava a inquirir a testemunha, cerca das 12:00 horas, a mesma dirigindo-se ao mesmo, disse: “O doutor desculpe, mas o doutor…estou a ver que é tão bom como ele”, “É tão jeitoso como o D. C., senhor doutor”;
1.1. F) Com a transcrição do depoimento da ré, o autor despendeu a quantia de €210,33, tendo ainda despendido a quantia de € 20,40 com a obtenção de uma certidão da sentença proferida no processo referido em C).

1.2. O Tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:

1.2.1. Na ocasião referida em D), a ré disse “o doutor é burro”;
1.2.2. A ré proferiu as expressões referidas em E) e 1 com a intenção de lesar e atingir o bom nome, reputação, imagem, honra, consideração pessoal, social e profissional, brio e imagem do autor;
1.2.3. Por causa do referido em E) e 1, o autor sentiu-se angustiado, ferido no seu brio e reputação pessoal, social e profissional, enervado, humilhado e perturbado.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

2.1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

O recorrente começa por impugnar a decisão sobre a matéria de facto incluída na sentença recorrida.
Está em causa, no caso presente, a reapreciação da decisão proferida pela 1.ª instância, relativa a determinados pontos da matéria de facto.
Nas conclusões das respetivas alegações, o recorrente indica quais os factos que sustenta terem sido indevidamente julgados.

Quanto a estes pontos, verifica-se que o recorrente especificou os concretos meios probatórios que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida, concretamente, as declarações de parte prestadas pelo próprio recorrente em sede de audiência final e o depoimento da testemunha S. R., com indicação das passagens da gravação dos depoimentos em que baseia a sua discordância e transcrição de forma extensa no corpo das alegações, dos excertos considerados relevantes. Por fim, faz referência à decisão que entende dever ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Assim, mostram-se concretizados os meios probatórios que o recorrente entende impor as pretendidas alterações, pelo que se considera suficientemente cumprido o ónus imposto pelo artigo 640.º do CPC.

Resulta do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, com a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Tal como ressalta do preceito legal antes citado, a reapreciação da decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto deve ter a mesma amplitude que o julgamento efetuado em 1.ª instância, dispondo para tal a Relação de autonomia decisória de forma a assegurar o duplo grau de jurisdição.

A este propósito, refere António Santos Abrantes Geraldes (1) que “ (…) sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640º, quando estejam em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos à livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência.

(…) a Relação deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.

Importa, porém, considerar que a necessária ponderação dos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova implica que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados - Neste sentido, cfr. por todos, o Ac. TRG de 30-11-2017 (relator: António Barroca Penha) p. 1426/15.0T8BGC-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt .

Cumpre, assim, proceder à reapreciação da decisão proferida pela 1.ª instância relativamente à factualidade impugnada pelo recorrente.

Neste domínio, verifica-se que o recorrente pretende a alteração da matéria de facto, sustentando que os factos enunciados sob os pontos 1., 2., e 3., dos “Factos Não Provados” devem ser dados como provados.

Analisando a decisão recorrida, verifica-se que os concretos pontos da matéria de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados têm a seguinte redação:

1. Na ocasião referida em D), a ré disse “o doutor é burro”;
2. A ré proferiu as expressões referidas em E) e 1 com a intenção de lesar e atingir o bom nome, reputação, imagem, honra, consideração pessoal, social e profissional, brio e imagem do autor.
3. Por causa do referido em E) e 1, o autor sentiu-se angustiado, ferido no seu brio e reputação pessoal, social e profissional, enervado, humilhado e perturbado.
O Tribunal recorrido motivou a decisão sobre a matéria de facto com base no seguinte:
“ (…)

Motivação

A factualidade constante de A) a D) foi considerada assente em face do acordo das partes manifestado em sede dos articulados.

Para a formação da sua convicção quanto à demais factualidade, o tribunal analisou a prova documental que se mostrava já adquirida nos autos a fls. 74 a 86, 89 a 92, 93 a 157 e ainda o depoimento da testemunha S. R., filha do autor, que se concatenaram com as declarações produzidas em audiência pelo próprio autor.

Assim, pese embora o autor tivesse reafirmado ter sido apodado pela ré, no decurso da inquirição da mesma, de “burro”, certo é que mais nenhuma prova foi produzida a tal respeito, nada sabendo directamente a testemunha S. R. por não ter estado presente no aludido acto processual, e não constando transcrita qualquer expressão semelhante a fls. 93 e ss., retirando-se, pelo contrário, de tal transcrição, a imediata negação peremptória por parte da ré da autoria de tais dizeres (vide parte inicial de fls. 132), pelo que, considerando ainda que não se anota ter havido qualquer reacção de censura à testemunha por parte de quem presidia à audiência de julgamento em questão, censura que certamente teria existido se a testemunha tivesse proferido tal expressão, o tribunal não logrou convencer-se da factualidade enunciada em 1.

Por outro lado, não encontra o tribunal qualquer correspondência entre os dizeres proferidos pela ré no decurso da sua inquirição e a intencionalidade referida em 2, resultando antes evidente da análise global do seu depoimento (nos termos constantes de fls. 93 e ss.) que a mesma entrou num estado de descontrolo e nervosismo mercê da forma incisiva e insistente como vinha sendo confrontada pelo autor, na qualidade de advogado, no longo contra interrogatório a que a sujeitou, sendo natural que, ao cabo de largos minutos de inquirição e de perguntas insistentes, sem substrato documental que as suportasse, como por várias vezes anotado pelo Mm.º Juiz, com necessidade de sucessivas intervenções por parte de quem presidia à audiência de julgamento, que a testemunha entrasse num estado de perturbação do qual, aliás, a própria imediatamente deu conta (vide fls. 142).

Tudo serve para dizer que o tribunal, pese embora a forma pouco educada e deselegante como a ré veio a dirigir-se ao autor, não encontra nos seus dizeres qualquer intuito injurioso ou desonroso, afigurando-se-nos ainda como inverosímeis as consequências referidas em 3, que só no depoimento naturalmente parcial e interessado da filha do autor e nas palavras deste obtiveram confirmação, não sendo crível que o autor, advogado com longos anos de experiência, se viesse a deixar abalar minimamente pelas palavras proferidas pela ré.”.

Com vista à reapreciação da matéria de facto impugnada, foram revistos e analisados os concretos meios probatórios indicados pela recorrente, no caso, as declarações de parte prestadas em audiência pelo autor, ora recorrente, bem como o depoimento da testemunha S. R., filha do autor/recorrente.

Foram ainda analisados todos os documentos juntos pelas partes e admitidos pelo Tribunal a quo nos autos, concretamente de fls. 74 a 86 (certidão da sentença proferida no processo comum singular n.º 201/07.0IDBRG, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga), 89 a 92 (cópia da ata de audiência de discussão e julgamento datada de 7-03-2013 no processo comum singular n.º 201/07.0IDBRG, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga), e de fls. 93 a 153 (cópia da transcrições das declarações e dos depoimentos prestados na audiência de discussão e julgamento datada de 7-03-2013 no Processo Comum Singular n.º 201/07.0IDBRG, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga) e documento n.º 1 junto com a contestação, de fls. 164 a 168 (cópia do despacho de arquivamento proferido no processo de Inquérito n.º 1621/13.7TABRG em 10-01-2014, relativo à queixa apresentada pelo ora recorrente contra a recorrida, relativa a factos ocorridos em 7-03-2013 ao ser inquirida pelo queixoso, enquanto testemunha, na audiência de julgamento no âmbito do Processo Comum Singular n.º 201/07.0IDBRG, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga), os quais não mereceram válida impugnação no processo.

Seguindo o critério adotado no corpo das alegações de recurso apresentadas pelo recorrente, iniciaremos a nossa análise pela matéria de facto enunciada sob o ponto 1.º dos “Factos Não Provados”, após o que será apreciada, em conjunto, a materialidade contida sob os pontos 2., e 3., dos “Factos Não Provados”, por se tratar de factos estreitamente relacionados entre si.

Assim, começando pela matéria de facto enunciada sob o ponto 1.º dos “Factos Não Provados”, pretende o recorrente que se considere como provado o seguinte:

“Na ocasião referida em D), a ré disse “o doutor é burro”.

Os fundamentos em que o recorrente se alicerça para impugnar esta concreta factualidade assentam, no essencial, na alegada assertividade das declarações por si prestadas em sede da audiência final realizada nos presentes autos, e que transcreve nas referidas alegações. Admite que do registo áudio das declarações e dos depoimentos prestados na audiência de discussão e julgamento datada de 7-03-2013 no processo comum singular n.º 201/07.0IDBRG, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga não consta a imputada afirmação mas destaca como relevantes os esclarecimentos que prestou junto do Tribunal recorrido, em sede de audiência final, sobre os motivos pelos quais a afirmação imputada não consta do registo áudio do processo 201/07.0IDBRG. Neste domínio, enunciou as explicações dadas pela empresa que lhe dá assistência técnica (transcrições) acerca da ausência desse registo, elucidando que a expressão ou foi proferida em tom baixo (impercetível para a gravação) ou que foi dita, não diretamente para o microfone, mas para o visado recorrente, de forma fugidia. Acrescenta que o caráter fugaz com que foi proferida a expressão em causa poderá ter feito com que escapasse à perceção do Julgador, explicando assim a sua passividade. Confirmou ter ouvido tal expressão em sede de audiência, esclarecendo que, na altura, não alimentou a controvérsia com a recorrida acerca da sua afirmação, por estar convencido de que essa expressão tinha ficado gravada no sistema de gravação da sala de audiência. Entende que as declarações de parte que prestou quanto a este facto mereciam diferente valoração pelo Tribunal por considerar que as mesmas não foram contraditadas por nenhum outro meio de prova.

Ora, ainda que se constate que o âmbito material das declarações de parte prestadas pelo ora recorrente em sede de audiência final nos presentes autos coincidem, no essencial, com o vertido em sede de alegações do presente recurso, o que é certo é das referidas declarações não resulta qualquer constatação relevante que nos permita divergir da apreciação feita pelo Tribunal recorrido a propósito da concreta matéria de facto agora em apreciação. Deste modo, a argumentação apresentada pelo Tribunal recorrido quanto à motivação da decisão de facto relativa a este ponto baseia-se na circunstância de não constar transcrita qualquer expressão semelhante a fls. 93 e ss., retirando-se, pelo contrário, de tal transcrição, a imediata negação peremptória por parte da ré da autoria de tais dizeres (vide parte inicial de fls. 132), pelo que, considerando ainda que não se anota ter havido qualquer reacção de censura à testemunha por parte de quem presidia à audiência de julgamento em questão, censura que certamente teria existido se a testemunha tivesse proferido tal expressão, o tribunal não logrou convencer-se da factualidade enunciada em 1.

Nos termos do artigo 466.º, n.º 3, do CPC, o Tribunal aprecia livremente as declarações de parte, salvo se as mesmas constituírem confissão, afigurando-se manifesto que em tal valoração não poderá o Tribunal deixar de ter presente o manifesto interesse das partes no desfecho da lide. Neste quadro, importa confrontar as declarações prestadas pelas próprias partes com outros elementos de prova. E foi isso que fez o Tribunal a quo para concluir que não logrou consubstanciar relevantemente, em termos probatórios, que a testemunha, ora recorrida, tivesse proferido tal expressão ao ser inquirida em sede de audiência final do processo 201/07.0IDBRG.

Neste domínio, importa constatar que toda a prova produzida na referida audiência de julgamento foi objeto de gravação mediante registo em CD através da aplicação “Habilus Media Studio”, nela se incluindo o depoimento prestado pela testemunha Maria, aqui ré/recorrida.

Atenta a natureza do referido processo é aplicável o preceituado nos artigos 363.º e 364.º do Código de Processo Penal (CPP), dos quais resulta, além do mais, que as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na ata, sob pena de nulidade, sendo a mesma efetuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, quando aqueles meios não estiverem disponíveis.

Será este, então, o meio legalmente previsto para documentação da prova produzida oralmente em sede de audiência de julgamento, a qual configura, inclusivamente, uma formalidade ad substantiam, cuja omissão implica a inexistência dessa prova (2).

Por isso, no caso concreto em apreciação podemos concluir que a referida documentação dos atos de audiência configura o meio de prova adequado e idóneo à concreta conformação das declarações que foram objeto da mesma. Certo é, tal como aceita o recorrente, que do registo áudio não consta que a referida testemunha, ora ré, tenha proferido a expressão que lhe é imputada pelo autor/recorrente. E as explicações apresentadas pelo recorrente para a ausência de tal registo constituem meras hipóteses teóricas sobre as quais não incidiu qualquer meio de prova. Acresce que a impercetibilidade, ainda que parcial, da gravação, torna esta parcialmente ininteligível, levando a que, nessa parte, se considere que nenhuma declaração oral se extrai da mesma, ou seja, à inexistência da mesma, de forma idêntica, aliás, ao que sucede nas situações de impercetibilidade, total ou parcial, das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento, resultantes das gravações, em sede de recurso com impugnação da matéria de facto perante o Tribunal superior que inviabilizam a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.

Por outro lado, confirma-se a conclusão já enunciada pelo Tribunal recorrido, no sentido de que as restantes passagens das gravações efetivamente transcritas não são idóneas a formar um juízo probatório consistente sobre a ocorrência em causa, revelando-se claramente insuficientes para permitir formar e exprimir uma convicção minimamente segura e incontroversa sobre a realidade do facto objeto de impugnação. Assim, constata-se que a únicas referências que resultam da aludida transcrição, quanto à referida expressão, foram feitas pelo ora recorrente, nos seguintes moldes: “A senhora disse aí uma palavra que é capaz de lhe sair caro”, acrescentando mais à frente “A senhora chamou-me de burro e isso está gravado”. E, tal como também resulta de fls. 132 da transcrição em apreço, a ré negou de imediato ter proferido tal expressão, não se tendo registado qualquer advertência ou censura por parte do juiz que presidia à audiência de julgamento em questão, o que se afigura plausível que tivesse acontecido perante a própria natureza da palavra em referência e face aos poderes de disciplina e direcção dos trabalhos atribuídos legalmente ao Juiz que preside à audiência de julgamento, tal como decorrem do preceituado nos artigo 85.º, 322.º, e 323.º do CPP.

Acresce que o próprio recorrente confirmou, em sede de declarações de parte prestadas no âmbito da presente ação, ter apurado posteriormente, no processo-crime que foi instaurado a propósito de tais factos, que os restantes intervenientes no julgamento referiram nada ter ouvido com referência a tal palavra. Isso mesmo resulta, aliás, do despacho de arquivamento proferido em 10-01-2014 no processo de Inquérito n.º 1621/13.7TABRG em 10-01-2014, relativo à queixa apresentada pelo ora recorrente contra a recorrida - quanto a factos ocorridos em 7-03-2013 ao ser inquirida pelo queixoso, enquanto testemunha, na audiência de julgamento no âmbito do Processo Comum Singular n.º 201/07.0IDBRG, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, reproduzido no âmbito do documento n.º 1 apresentado com a contestação nos presentes autos - no qual se consignou, a propósito:

- “ (…) procedeu-se à inquirição, a fls. 178, do Dr. A. P., ilustre Advogado, o qual, enquanto mandatário da sociedade co-arguida naqueles autos de processo Comum Singular n.º 201/07.0IDBRG, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, esteve presente e que referiu que, pese embora se tenha apercebido de uma altercação na voz do queixoso, ouvindo-o dizer que iria extrair certidão, não ouviu porém qualquer insulto”. Por seu turno, inquirida R. M., a qual enquanto funcionária judicial do 2.º Juízo Criminal deste tribunal, esteve presente na audiência de julgamento em causa nos autos, sendo certo que, apesar de se ter apercebido, no decurso das questões colocadas pelo queixoso à denunciada, de uma certa exaltação entre ambos, não ouviu qualquer insulto por parte da denunciada ao ofendido (fls. 186) ”.

Rejeitam-se, por isso, as conclusões que o recorrente pretende extrair relativamente ao valor probatório das declarações de parte quanto a este facto e à circunstância de as mesmas não terem sido contraditadas por nenhum outro meio de prova.

Assim sendo, quanto à matéria de facto enunciada sob o ponto 1.º dos “Factos Não Provados”, resta concluir pela improcedência da impugnação.

Quanto à materialidade contida sob os pontos 2., e 3., dos “Factos Não Provados”, defende o recorrente que se o Tribunal recorrido tivesse tido em conta as declarações de parte do autor, o testemunho da sua filha, a ausência de contraditoriedade das referidas declarações e depoimento, bem como, as regras da experiência comum, teria considerado como provados tais pontos da matéria de facto.


Relativamente a estes factos, verificamos que o Tribunal a quo enunciou a motivação da decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:

“ (…) Por outro lado, não encontra o tribunal qualquer correspondência entre os dizeres proferidos pela ré no decurso da sua inquirição e a intencionalidade referida em 2, resultando antes evidente da análise global do seu depoimento (nos termos constantes de fls. 93 e ss.) que a mesma entrou num estado de descontrolo e nervosismo mercê da forma incisiva e insistente como vinha sendo confrontada pelo autor, na qualidade de advogado, no longo contra interrogatório a que a sujeitou, sendo natural que, ao cabo de largos minutos de inquirição e de perguntas insistentes, sem substrato documental que as suportasse, como por várias vezes anotado pelo Mm.º Juiz, com necessidade de sucessivas intervenções por parte de quem presidia à audiência de julgamento, que a testemunha entrasse num estado de perturbação do qual, aliás, a própria imediatamente deu conta (vide fls. 142).

Tudo serve para dizer que o tribunal, pese embora a forma pouco educada e deselegante como a ré veio a dirigir-se ao autor, não encontra nos seus dizeres qualquer intuito injurioso ou desonroso, afigurando-se-nos ainda como inverosímeis as consequências referidas em 3, que só no depoimento naturalmente parcial e interessado da filha do autor e nas palavras deste obtiveram confirmação, não sendo crível que o autor, advogado com longos anos de experiência, se viesse a deixar abalar minimamente pelas palavras proferidas pela ré”.

Ora, analisados os concretos meios de prova indicados pelo recorrente como justificadores da impugnação da matéria de facto, concretamente, as declarações de parte prestadas em audiência pelo autor, ora recorrente, bem como o depoimento da testemunha S. R., filha do autor/recorrente, resulta manifesto que os mesmos se conformam dentro dos limites da apreciação da prova que foi levada a cabo pelo Tribunal a quo, ainda que resulte da motivação aduzida por aquele Tribunal que os mesmos foram analisados criticamente e à luz de todos os documentos juntos pelas partes e admitidos pelo Tribunal a quo nos autos, antes referenciados.

Neste domínio, verifica-se que a fundamentação em que se baseou o Tribunal a quo teve por base apenas as expressões referidas em 1.1. E) e não também em 1.2.1., posto que, como se viu, aquele Tribunal considerou não provada a matéria de facto integrante deste último ponto, decisão que se confirma nesta instância. E, neste enquadramento, revendo e analisando todos os meios de prova produzidos, tendo como referência apenas as expressões referidas em 1.1. E), também esta Relação formula convicção idêntica à do Tribunal recorrido, cuja argumentação se acompanha relativamente à materialidade contida sob os pontos 2., e 3., dos “Factos Não Provados”.

Com efeito, no que toca à intencionalidade referida no facto enunciado sob o ponto 2.º dos factos não provados, e tal como salientou o Juiz a quo importa destacar o contexto em que foram proferidas as únicas expressões que resultaram demonstradas, no decurso de um longo e intenso interrogatório, com as particularidades enunciadas pelo Tribunal recorrido no âmbito da referenciada motivação, destacando-se efetivamente as sucessivas insistências sobre questões colocadas, com necessidade de inúmeras intervenções por parte do juiz que presidia à audiência de julgamento, não apenas chamando a atenção para a falta de suporte documental das perguntas formuladas como, ainda, alertando para a inadequação de algumas das perguntas formuladas à testemunha, de que são exemplo diversos trechos das transcrições relativas a esse segmento da audiência de julgamento juntas aos autos, o que, aliás o ora recorrente admitiu em sede de declarações prestadas nos presentes autos. A este propósito, cumpre assinalar o comentário efetuado pelo Juiz que presidiu à audiência de julgamento em apreciação, na sequência das expressões proferidas pela testemunha, ora ré-recorrida, do qual resulta a seguinte constatação: “A pergunta foi colocada efetivamente de uma maneira complicada. Não recebeu e nunca há-de receber. Pronto. A questão é esta: A senhora diz, pelo que transmitiu foi, que pagaram-lhe esses cento e tal mil euros” - cf. fls. 132 da cópia da transcrições das declarações e dos depoimentos prestados na audiência de discussão e julgamento datada de 7-03-2013 no processo comum singular n.º 201/07.0IDBRG, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga.

Ora, as referenciadas constatações levam a suscitar sérias e inultrapassáveis dúvidas quanto à intencionalidade alegadamente subjacente a tais expressões, as quais parecem representar uma forma de reação ou mesmo de desabafo relativamente ao tipo de pergunta efectuada e à insistência sobre a mesma, permitindo configurar alguma perturbação perante a veemência da instância, o que desde logo resulta da referência feita pela testemunha (reproduzida a fls. 142 da transcrição) e já realçada na decisão recorrida, o que afasta qualquer objectivo no sentido de imputar ou consubstanciar um juízo específico sobre as qualidades ou competências do interlocutor.

Relativamente ao âmbito das consequências referidas em 3., dos factos impugnados, julgamos que as mesmas são indissociáveis da intencionalidade enunciada em 2., razão pela qual se verifica que a motivação exarada pelo Tribunal a quo, quanto a estes pontos da matéria de facto, foi enunciada de forma articulada e conjunta. Assim, resulta indiscutível que o juízo probatório a empreender ao nível da repercussão ou dos efeitos das referidas expressões na esfera pessoa e/ou profissional do recorrente não pode abstrair das concretas expressões apuradas nem do concreto contexto em que ocorreram, por consubstanciarem factos interdependentes e, como tal, passíveis de serem analisados conjuntamente, visando a formulação de um juízo de verosimilhança suficiente para sustentar uma adequada confirmação das questões de facto enunciadas. Este juízo crítico revela-se essencial, à luz do princípio da livre apreciação da prova, sobretudo tendo presente que os meios de prova que o recorrente entende impor as pretendidas alterações se reconduzem às suas próprias declarações de parte e ao depoimento da testemunha S. R., filha do autor/recorrente.

Assim, relativamente a esta testemunha, não podemos deixar de ter presente que o seu interesse no desfecho da lide é manifesto, por via da relação familiar que serve de base à razão de ciência invocada pela testemunha, circunstância que não pode deixar de ser ponderada na análise da credibilidade probatória de tal depoimento. Neste domínio, afigura-se ainda que o depoimento em causa não foi suficientemente esclarecedor quanto à dimensão e amplitude das consequências em apreciação, porquanto alicerçado sobretudo em juízos eminentemente conclusivos ou argumentativos e pouco circunstanciado em termos fácticos. Acresce que a espontaneidade e genuinidade do depoimento foi seriamente afectada pela forma sugestiva como foram colocadas algumas das questões, requerendo apenas respostas afirmativas ou negativas.

Relativamente às declarações de parte do ora recorrente, verifica-se que reiterou, no essencial, a posição já assumida na petição inicial da presente acção, pouco mais acrescentando de relevante com vista a conferir credibilidade à versão dos factos ali assumida quanto às alegadas consequências das expressões proferidas pela ré durante o interrogatório a que foi sujeita enquanto testemunha na audiência de julgamento no âmbito do Processo Comum Singular n.º 201/07.0IDBRG, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga. A propósito cumpre assinalar que, conforme decorre dos elementos documentais juntos aos autos, a queixa-crime inicialmente formulada pelo ora recorrente contra a recorrida, com base nas circunstâncias agora em apreciação, teve o seu âmbito circunscrito à frase integrada pelos dizeres: “O doutor desculpe, mas o doutor é burro, estou a ver que é tão bom como ele” (documento junto a fls. 164 dos presentes autos), o que permite indiciar que o juízo inerente às consequências do ato para o autor assentou inicialmente numa conformação mais ampla, tal como ficou plasmada na queixa-crime por si apresentada.

Neste contexto, o juízo agora a empreender tem necessariamente por base apenas as expressões referidas em 1.1. E) e não também em 1.2.1., pelos fundamentos antes enunciados. E, relativamente a estas, revelam-se pertinentes os argumentos já antes enunciados a propósito do contexto em que foram proferidas as únicas expressões que resultaram demonstradas.

Pelo exposto, não se revela possível a este Tribunal extrair diferente solução relativamente aos elementos ou meios de prova produzidos, nem concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos factos cuja reapreciação vem requerida pela recorrente.

Em consequência, improcede a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

2.2. Pressupostos da responsabilidade extracontratual

Atenta a improcedência da impugnação da matéria de facto, resulta evidente que os factos a considerar na apreciação da questão de direito são os que se mostram enunciados sob os n.ºs 1.1. a 1.1. F) supra.

Tal como resulta das conclusões 1., a 20., das alegações apresentadas pelo recorrente, grande parte da argumentação desenvolvida pelo recorrente visava a alteração da decisão da matéria de facto no que concerne aos pontos 1., 2., e 3., dos factos dados como não provados na sentença.

Suscita, porém, algumas questões a propósito da fundamentação jurídica utilizada na decisão recorrida, designadamente a propósito do trecho do Acórdão citado na prolatada sentença, concluindo ainda que a sentença viola o disposto nos artigos 70.º, n.º 1 e 483.º, n.º 1, ambos do Código Civil (CC).

Mantendo-se inalterado o quadro factual julgado provado e não provado pelo Tribunal a quo, vejamos, ainda assim, se existe qualquer desacerto da solução jurídica dada ao caso sub judice, tal como sustenta o recorrente.

O Tribunal a quo julgou totalmente improcedente a acção e, em consequência, absolveu a ré do pedido contra si deduzido pelo autor, entendendo, em síntese, não existir fundamento para a pretensão indemnizatória do autor, por não estar demonstrada a ilicitude pressuposto da obrigação de indemnizar que pretendia assacar da ré nem ter resultado demonstrado que o autor tivesse sofrido danos em virtude da actuação desta.

Pela presente acção pretende o autor obter a condenação da ré no pagamento do valor de €7.730,73 acrescida de juros de mora vincendos desde a citação até integral pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes de palavras que a ré lhe dirigiu no decurso de uma audiência de julgamento onde foi inquirida como testemunha pelo autor, então mandatário de um dos arguidos no processo, alegadamente com intenção de lesar, atingir e afetar o seu bom nome, reputação, imagem, honra e consideração pessoal e profissional.

O princípio geral em matéria de responsabilidade por factos ilícitos encontra-se plasmado no artigo 483.º, n.º 1, do CC, norma que impõe a quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

São, assim, vários os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos: o facto voluntário do agente, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Relativamente à ilicitude, enquanto requisito necessário para que o ato seja gerador de responsabilidade civil extracontratual, a mesma tanto pode consubstanciar a violação de direitos subjetivos - os quais podem ser absolutos (direitos de personalidade, direitos reais), mas também direitos familiares, de conteúdo patrimonial ou, mesmo, pessoal - como a de uma norma protetora de um interesse alheio.

Já a culpa pondera o lado subjectivo do comportamento do agente do facto, pressupondo um juízo de censura ou de reprovação da conduta, podendo surgir fundamentalmente na modalidade de mera culpa (culpa em sentido estrito ou negligência), nos casos em que o agente não previu o resultado ilícito ou, tendo-o previsto, confiou temerariamente na sua não ocorrência, ou de dolo, quando o agente, tendo previsto o resultado, o aceitou como possível, isto é, não deixou de atuar em razão dessa possibilidade (3).

Mas o facto ilícito culposo só implica responsabilidade civil caso ocorra um dano ou prejuízo a ressarcir, consubstanciado este de forma genérica como toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica (4).

Relativamente à delimitação das formas de ilicitude relevantes para a aferição da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, e reportando-nos ao caso concreto em apreciação, observa-se que está em causa a tutela geral da personalidade, tal como consagrada no artigo 70.º do CC, no desenvolvimento do princípio da inviolabilidade da integridade moral e física das pessoas, tal como previsto no artigo 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Tal como decorre do artigo 70.º, n.º 1, do CC, “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”, mais resultando do n.º 2 de tal preceito que as regras gerais previstas para a responsabilidade civil extracontratual são aplicáveis aos casos de ofensa ilícita aos direitos de personalidade, o que nos remete para a aferição, em concreto, de todos os requisitos já enunciados a propósito da análise do artigo 483.º do CC.

Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela (5), a propósito da delimitação dos direitos genericamente tutelados no artigo 70.º do CC, “daquela referência genérica pode, sem dúvida, inferir-se a existência de uma série de direitos (à vida, à integridade física, à liberdade, à honra, ao bom nome, à saúde, até ao repouso essencial à existência física, etc.), que a lei tutela nos termos do n.º 1 do artigo”.

No caso vertente, estão em causa palavras ou expressões que a ré dirigiu ao autor no decurso de uma audiência de julgamento onde foi inquirida como testemunha por aquele, o que nos reconduz, em concreto à tutela da honra e consideração do indivíduo, as quais, para além da tutela constitucional e civilística, antes enunciadas, merecem ainda proteção jurídico-penal, de que é exemplo, no que ora nos interessa, o tipo legal do crime de injúria, tal como previsto no artigo 181.º do Código Penal.

A este propósito, José de Faria Costa (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pgs. 603 e 607 em anotação ao art.º 180.º do C. Penal), enuncia a honra subjectiva ou interior, que consiste no juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesmo, e a honra objectiva ou exterior, equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, o mesmo é dizer, a consideração, o bom nome, a reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente, para depois esclarecer que a doutrina dominante tempera a concepção normativa com uma dimensão fáctica (concepção dual), de acordo com a qual a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior, concluindo ainda que “o ordenamento jurídico-penal português, na linha da tradição anterior e, sobretudo, em inteira consonância com a ordem constitucional, alarga a tutela da honra também à consideração ou reputação exteriores”.

Tal como se refere no Ac. TRG de 09-10-2017 (relator: Jorge Bispo), p. 118/14.2T9VNF.G1, disponível em http://www.dgsi.pt : “ (…). Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma deselegante ou indelicada. Contudo, o direito não pode intervir sempre que a linguagem ou as afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana”.

A este propósito, sublinha-se ainda no Ac. TRE de 10-05-2016 (relator: Ana Barata Brito), p. 163/13.5GBELV.E1, disponível em http://www.dgsi.pt. “Assim, e no que respeita à “injúria”, nem tudo o que causa contrariedade e se apresenta como desagradável, grosseiro e pouco educado, mesmo até quando formalmente pareça integrar o tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos. A lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre. A valoração deve fazer-se de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural”.

No caso vertente, o Tribunal a quo entendeu que as expressões dirigidas pela ré ao autor, nas concretas circunstâncias apuradas, não configuram qualquer acto praticado contra o seu bom nome, honra ou consideração (pessoal ou profissional), concluindo que o juízo comparativo que a ré estabeleceu entre o autor e o D. C., que por aquele era patrocinado, não permite, sem mais, ou seja, sem que se estabeleça os termos da referida comparação, concluir pela sua natureza ofensiva ou susceptível de pôr em causa a boa imagem do autor e a sua auto-estima.

Já o recorrente defende que tais expressões têm um significado depreciativo, atendendo ao contexto em que foram proferidas, no decurso de uma audiência de discussão e julgamento, sustentando que a ré quis significar que “É tão biltre, tão ordinário como o D. C., senhor doutor”.

Importa, ainda, sublinhar que quer a palavra “bom”, quer o termo “jeitoso”, designam normalmente admiração, aprovação e qualidades positivas, sendo termos que não assumem, só por si, qualquer carga pejorativa. Ou seja, não se trata de termos naturalmente polissémicos, ainda que o seu uso metafórico ou em determinados contextos possa assumir significados diversos.

Tudo ponderado, e mesmo não esquecendo que as palavras podem adquirir diferentes significados ou intencionalidades de acordo com o contexto situacional ou sociocultural em que são proferidas, julgamos que a situação em causa não permite configurar nem atribuir às expressões em referência a carga pejorativa nem o valor objetivamente ofensivo que o recorrente lhes pretende atribuir, configurando-se razoavelmente que as mesmas tenham surgido, no decurso da inquirição da ré pelo recorrente em audiência de julgamento, como reacção ou desabafo relativamente ao tipo de pergunta efectuada e à insistência sobre a mesma, permitindo mesmo configurar alguma perturbação perante a veemência da instância, o que parece afastar qualquer objectivo no sentido de imputar ou consubstanciar um juízo específico sobre as qualidades ou competências do interlocutor, tal como já deixámos enunciado na presente decisão a propósito da fundamentação da impugnação da matéria de acto, na qual se confirmou a decisão da 1.ª instância, no sentido de considerar não demonstrado que a ré proferiu as expressões referidas em 1.1.E) com a intenção de lesar e atingir o bom nome, reputação, imagem, honra, consideração pessoal, social e profissional, brio e imagem do autor, ou seja, com animus injuriandi. Sabendo-se que o Advogado actua na defesa do seu constituinte num processo adversarial em que se debatem posições conflituantes, sobretudo em sede de audiência de julgamento, e que tal contexto é susceptível de gerar algum tipo de reacção, exaltação ou mesmo perturbação em alguns dos intervenientes, designadamente nas testemunhas, perante o âmbito das questões, das abordagens e dos comentários que se desenvolvem.

Mas, ainda que se admita que de tais expressões, perante o contexto em que foram proferidas, possa decorrer uma significação comparativa ou metafórica entre o autor e o D. C., que por aquele era representado no processo, julgamos não ser possível extrair das mesmas um concreto termo referencial ou comparativo que exprima um desvalor objectivamente ofensivo apenas pela circunstância de se tratar (no que toca ao D. C.) de um dos arguidos no processo comum singular n.º 201/07.0IDBRG, que correu termos pelo 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, onde se encontravam acusados da prática de um crime de fraude fiscal qualificada, crime do qual a final foram absolvidos por sentença transitada em julgado. Na verdade, e tal como já se referiu e também decorre dos factos em análise, as referidas expressões surgiram no decurso de interrogatório conduzido pelo ora recorrente, com um contexto concreto e dinâmico, o que, sem outro enquadramento fáctico, não permite conferir um significado objectivo e unívoco às referidas expressões quando interpretadas isoladamente.

Assim, não se mostram suficientemente enunciados os concretos contornos em que se inserem as expressões em análise, desconhecendo-se grande parte dos factos relativos ao litígio onde as afirmações foram proferidas, a pertinência das questões abordadas com a testemunha bem como o tipo de envolvimento da ré nos factos em apreciação. Desconhecem-se ainda as características pessoais ou o grau de consideração social dos arguidos, nem foram feitas quaisquer referências às mesmas, pelo que, à luz dos factos provados, resultam indeterminados os termos da referida comparação e, em consequência, o alcance ou significado concreto das referidas expressões.

Trata-se, assim, de expressões que certamente revelam falta de correcção e urbanidade já que se dirigem a Advogado, são proferidas no contexto de uma audiência de julgamento e não se restringem à resposta sobre a concreta questão formulada. Neste contexto, a terminologia utilizada surge efetivamente como despropositada e desajustada, posto que revelam uma abordagem muito informal e pouco polida. Porém, as mesmas não revelam, no contexto indicado, um concreto e determinado desvalor que permita considerar violado, de forma intolerável, o núcleo essencial das qualidades que permitem delimitar a honra, dignidade ou reputação do autor/recorrente.

Rejeitam-se, assim, pelas razões expostas, as conclusões que o recorrente pretende extrair relativamente ao intuito ou sentido objectivo das expressões em causa.

Nestes termos, não se mostra configurada a ilicitude das expressões ou afirmações usadas pela ré, nem o correspondente elemento subjectivo inerente à culpa, pelo que é manifesto que não se encontram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.

2.3. Obrigação de indemnizar

Baseando o pedido indemnizatório formulado em responsabilidade extracontratual, incumbe ao autor o ónus de alegar e provar a ocorrência dos respetivos pressupostos, conforme resulta do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC.
Tendo-se concluído, na análise realizada em 2.2., que não se mostra configurada a ilicitude das expressões ou afirmações usadas pela ré, nem o correspondente elemento subjectivo inerente à culpa, é manifesto que não se encontram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.

Em consequência, improcede o pedido indemnizatório formulado pelo réu.

Pelo exposto, cumpre concluir, tal como na 1.ª instância, pela improcedência total da ação e a consequente absolvição da ré da totalidade do pedido contra si formulado.

Improcede, assim, a apelação.

Sumário:

I - As palavras “bom” e “jeitoso”, designam normalmente admiração, aprovação e qualidades positivas, sendo termos que não assumem, só por si, qualquer carga pejorativa, não se tratando de termos naturalmente polissémicos, ainda que o seu uso metafórico ou em determinados contextos possa assumir significados diversos;
II - As expressões “O doutor desculpe, mas o doutor…estou a ver que é tão bom como ele”, “É tão jeitoso como o D. C., senhor doutor”, proferidas por testemunha, ora ré, no contexto de uma audiência de julgamento e não se restringindo à resposta sobre a concreta questão formulada por Advogado surgem como desajustadas, posto denotarem uma abordagem muito informal e pouco polida no contexto indicado;
III - Não é possível conferir um significado objectivo e unívoco às referidas expressões se as mesmas surgem no decurso de interrogatório conduzido por Advogado, com um contexto concreto e dinâmico, sabendo-se que o Advogado actua na defesa do seu constituinte num processo em que se debatem posições conflituantes, sobretudo em sede de audiência de julgamento, e que tal contexto é susceptível de gerar algum tipo de reacção, exaltação ou mesmo perturbação em alguns dos intervenientes, designadamente nas testemunhas, perante o âmbito das questões, das abordagens e dos comentários que se desenvolvem e se, perante os factos provados, resultam indeterminados os termos da referida comparação;
IV - As referidas expressões não revelam, no contexto indicado, um concreto e determinado desvalor que permita considerar violado, de forma intolerável, o núcleo essencial das qualidades que permitem delimitar a honra, dignidade ou reputação do visado.

IV. Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Guimarães, 6 de dezembro de 2018
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Espinheira Baltar (1.º adjunto)
Eva Almeida (2.º adjunto)


1. In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2013, p. 224-225
2. Cf. o Ac. TRL de 10-11-2009 (relator: Rijo Ferreira) p. 3027/08.0YXLSB-A.L1-A-1 disponível em http://www.dgsi.pt
3. Cf., Ana Prata, CÓDIGO CIVIL Anotado, Coord. Ana Prata, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 627-628
4. Cf., Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Coimbra, Almedina, 2013, p. 591
5. Cf. Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 116.