Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
181/19.0T8CBC.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: ÁGUAS
USUCAPIÃO
POSSE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O direito à água que nasce em prédio alheio pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste.
II- Constitutivos do direito de propriedade fundado na usucapião são os factos que integram uma atuação sobre a coisa por forma correspondente ao exercício do direito – o denominado “corpus” –, com a intenção de exercer sobre ela, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto – o que se designa por “animus” –, em que a posse se traduz (art. 1251º e art. 1253º, “a contrario”, ambos do CC).
III- Assim sendo, para que se configure o corpus necessário à aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre determinada água é necessária a alegação e prova de uma atuação do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que essa água possa prestar, não bastando a utilização da dita água na rega de um determinado prédio, que apenas consubstancia o corpus necessário à aquisição por usucapião de um direito de servidão.
IV- Da presunção da posse naquele que exerce o poder de facto prevista no art. 1252º, n.º 2, do Cód. Civil, extrai-se que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”, interpretação firmada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ, de 14/05/1996.
V- Todavia, uma declaração do próprio agente, contrária ao sentido do comportamento integrante do corpus por aquele assumido desqualifica a posse para a mera detenção, devendo considerar-se que o agente exerceu o poder de facto sem intenção de agir como beneficiário do direito (alínea a) do art. 1253º do Cód. Civil).
VI- Existindo uma declaração desta natureza não se está perante um caso de dúvida, não havendo, pois, razões para, com base no estatuído no art. 1252º, n.º 2, do Cód. Civil, se presumir o animus do agente.
VII- Numa outra perspetiva, para funcionar a referida presunção importa que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse, desligado, portanto, de qualquer possuidor antecedente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

J. F. instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra A. L. e mulher G. T., peticionando que:

a) se declare o autor dono e legítimo possuidor da raiz ou nua propriedade do prédio descrito no artigo 1.º da petição inicial;
b) se declare o autor proprietário e legítimo possuidor da água que nasce e que aflui à mina identificada nos artigos 15.º a 18.º da petição inicial;
c) se declare o autor titular do direito de superfície da mesma mina e do poço de vigia identificados nos artigos 15.º a 18.º da petição inicial;
d) se condene os réus a reconhecer os direitos supra declarados e a reconstruir a galeria da mina e o poço de vigia;
e) se condene os réus a absterem-se da prática de quaisquer atos que perturbem os aludidos direitos do autor.

Alegou para o efeito, e em síntese, que é dono e legítimo possuidor do prédio misto denominado “Cerca ...”, melhor identificado no artigo 1.º da petição inicial, por o ter adquirido por compra aos seus anteriores proprietários, que reservaram para si o usufruto, por escritura pública de 19/12/2008, invocando, ademais, atos de posse relativos à prescrição aquisitiva sobre o referido prédio e a presunção a seu favor da titularidade do direito de propriedade que deriva do registo predial.
Acrescentou que, para rega e lima do seu prédio, continuamente e durante todo o ano, é utilizada água de uma mina feita por mão do homem, há mais de 15/20 anos, água que nasce no prédio dos réus, designado por “Olival ...”, e que segue em galeria subterrânea, com um poço de limpeza, vigia e ar, atravessando aquele prédio e a estrada, entrando no prédio do autor onde a mina tem a sua boca de entrada e saída, e que depois vai cair numa poça de pedra, cimento e terra, invocando atos de posse relativos à prescrição aquisitiva sobre a mencionada água.
Mais alegou beneficiar do direito de servidão da mina sob o solo do prédio dos réus e do poço de ar, luz e vigia, por usucapião.
Referiu que a mina tem vindo a aluir no interior do prédio dos réus há cerca de 4/5 anos e que estes procederam ao seu aterro, sensivelmente a meio do seu prédio e no comprimento de 20 metros, destruindo a galeria e impedindo a água de correr totalmente no seu interior.
Terminou pugnando pela condenação dos réus a reconstruir a galeria da mina, na parte aterrada e destruída e que aqueles reconheçam e se abstenham de perturbar o exercício dos direitos do autor.
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Devidamente citados, contestaram os réus, alegando, como questão prévia, um diferendo prévio existente entre os pais do autor e os réus no concernente à titularidade das águas nascidas no prédio “Olival ...”, diferendo que deu origem a uma ação judicial que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Cabeceiras de Basto sob o n.º 23/03.8TBCBC, que terminou por transação entre as partes, e homologada por sentença, onde, entre o mais, os pais do autor reconheceram não ter quaisquer direitos a águas nascidas no prédio dos réus e estes autorizaram aqueles a utilizar as águas objeto da transação para consumo doméstico e rega dos seus prédios, autorização que caducaria a 31/12/2017.
Afirmaram, ainda, que, alertados pelo pai do autor da existência de um aluimento de terras, cerca de 2/3 anos depois do decurso da autorização fixada em sentença, constatando a existência de um buraco de dimensões consideráveis no seu prédio, atulharam-no com pedras e terra, apenas tendo conhecimento após a citação para a presente ação que o referido buraco havia sido reaberto.
Nesta sequência, impugnam a titularidade do direito de propriedade do autor sobre o prédio melhor descrito no artigo 1.º da petição inicial, arguindo a nulidade da escritura pública celebrada a 19/12/2008, por simulação absoluta, alegando que a celebração da compra e venda teve como propósito evitar o caso julgado decorrente da ação anterior.
Arguiram, assim, a exceção de caso julgado, pugnando pela sua absolvição da instância, afirmando que os pais do autor não poderiam transmitir a título translativo mais do que aquilo que lhes pertencia, ou seja, quaisquer direitos a águas que excluíram na transação celebrada com os réus. E, ainda, que a aquisição originária está também excluída pois decorreram menos de 11 anos desde a data da escritura até à data da propositura da ação.
Admitindo, contudo, que a referida escritura não padece de nulidade, invocaram a ilegitimidade do autor por preterição de litisconsórcio necessário, a conduzir à absolvição dos réus da instância.
Por fim, e por mera cautela, alegaram que a ação tem necessariamente de improceder face à declaração e reconhecimento pelos pais do autor da não titularidade de quaisquer direitos a águas nascidas no prédio dos réus, direitos esses que a existir, sempre seriam qualificados como de servidão.
Terminaram requerendo a apensação aos autos do processo n.º 23/03.8TBCBC.
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Notificado para exercer o contraditório quanto às exceções arguidas pelos réus, veio o autor pugnar pela improcedência das exceções invocadas.
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Por decisão datada de 29/10/2019, foi indeferida a requerida apensação e notificados os réus para procederem à junção aos autos de certidão dos articulados e sentença do processo n.º 23/03.8TBCBC, certidão junta por requerimento de 12/11/2019.
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Findos os articulados e oferecida a prova pelas partes, foi realizada audiência prévia, tendo o Ilustre Mandatário do autor peticionado a retificação de um alegado lapso de escrita no artigo 15.º da petição inicial, solicitando que, onde se lia “mina essa que tem a sua nascente no lado poente do referido prédio dos RR”, se passasse a ler “mina essa que tem a sua nascente a poente do referido prédio dos RR”.
Concedida a palavra ao Ilustre Mandatário dos réus, pelo mesmo foi referido opor-se à requerida retificação, alegando, em suma, que tal retificação implicaria uma alteração do objeto do presente processo.
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Por decisão datada de 07/01/2020, foi indeferido o pedido de retificação formulado pelo autor em sede de audiência prévia, por implicar uma alteração da causa de pedir e do objeto do litígio da presente ação, pois colidia com o princípio da estabilidade da instância.
Mais, detetada pelo Tribunal a exceção dilatória de ineptidão parcial da petição inicial por falta de causa de pedir em relação aos pedidos formulados pelo autor relacionados com a declaração da titularidade de um direito de superfície sobre a mina e do poço de vigia identificado nos artigos 15.º a 18.º do seu articulado, foram as partes convidadas para exercerem o seu direito ao contraditório.
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Exercido o direito ao contraditório pelas partes, foi proferido despacho saneador, a 03/02/2020, decidindo-se declarar a ineptidão da petição inicial, mais concretamente na parte relativa aos pedidos c), d) e e), sendo que em relação a estes dois últimos só na parte relativa ao pedido de condenação dos réus no reconhecimento da titularidade, da parte do autor, de um direito de superfície da mina e do poço de vigia identificado nos artigos 15.º a 18.º da petição inicial e, de se absterem da prática de quaisquer atos que perturbem tal direito e, em consequência, decidiu-se absolver parcialmente os réus da instância.
Mais se decidiu julgar improcedentes as exceções dilatórias de ilegitimidade ativa por preterição de litisconsórcio necessário ativo e de caso julgado, arguidas pelos réus.
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O autor, não se conformando com o despacho proferido a 03/02/2020, na parte em que declarou a ineptidão parcial da petição inicial, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, que julgou a apelação improcedente, mantendo a decisão recorrida.

Efetuada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente, ali se decidindo, em consequência:

a) declarar que o autor é dono e legítimo possuidor da raiz ou nua propriedade do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial;
b) condenar os réus a reconhecerem que o autor é dono e legítimo possuidor da raiz ou nua propriedade do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial;
c) condenar os réus a absterem-se da prática de quaisquer atos que perturbem o direito do autor declarado e reconhecido supra;
d) absolver os réus do demais peticionado.

Inconformado, o Autor interpôs o presente recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

a) Vem a presente apelação interposta da douta sentença de fls., na parte em que absolveu os RR. do pedido de reconhecimento do A. como proprietário e legitimo possuidor da água que nasce e aflui à mina identificada nos artigos 15º a 18º da P.I., e ainda na reconstrução da galeria da mina e o poço de vigia e, bem assim, a absterem-se da prática de qualquer acto que perturbe os direitos do A.;
b) Porém, a decisão não está correcta quer dos factos quer do direito, tendo o Tribunal “a quo” incorrido em erro de julgamento, impondo-se assim, a impugnação quanto à matéria de facto e do direito aplicável;
c) Atento o julgamento da matéria de facto que consta da decisão de fls. e que aqui se dá por reproduzida, o apelante não aceita a factualidade dada como não provada pelo Tribunal “a quo” sob as alíneas c), d) e e) da douta sentença, pois entende que tais factos, ante o ónus da prova imposto às partes e da prova produzida em audiência de julgamento, deveriam ser dados como provados, desde logo, tendo em atenção os factos dados como provados, sob os pontos 17. a 21. e 25., bem como da prova testemunhal produzida, sobre aqueles factos, impunha-se uma resposta no sentido de julgar provado que: Há mais de 15 e 20 anos, o autor e seus antecessores usam a galeria da mina para colher e derivar a água referida em 18 e 19, à vista de toda a gente, com conhecimento de todos, sem oposição nem interrupção, na convicção de que estavam, como sempre estiveram, bem como toda a gente, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre tal água e que o autor, e seus antecessores, sempre usaram a água referida em 18 e 19, sem oposição nem interrupção, na convicção de que estavam, como sempre estiveram, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre tal água. Sendo que, em consequência da acção dos RR., como provado no ponto 25., a água deixou de correr e de chegar à poça existente no prédio do autor;
d) Resulta da sentença sob o ponto 20. dos factos provados que o A. provou a posse sobre a dita água, tendo praticado ao longo de mais de vinte anos, os actos inerentes à mesma;
e) Face a este facto provado, sem prejuízo da avaliação adequada da prova testemunhal e tendo em conta o que dispõem os artigos 342.º e 1252.º do Código Civil, a posição manifestada pelo Tribunal “a quo” e que determinou a resposta à matéria inserta nas alíneas c) e d) dos factos não provados, é errada;
f) Quanto à prova testemunhal produzida, é de salientar os depoimentos, que Tribunal considerou credíveis quer da testemunha, A. P., vizinho do autor, com 62 anos de idade, pois em alusão a este disse: “(…) referiu, de forma objetiva e clara, e, portanto, credível, conhecer o prédio há mais de 50 anos, descrevendo, não só a sua composição, mas também, os atos possessórios levados a cabo pelos pais do autor e autor, sem qualquer oposição, convictos da sua propriedade (…)”. “Ainda, A. P., conhecedor desde pequeno, como se deixou expresso, do prédio descrito em 5, frisou que o mesmo dispõe de rega e que, em tal prédio, existe, pelo menos desde há 50 anos, a boca de uma mina, mina que afirmou ser térrea, mas cuja nascente, trajetória e dimensões não soube descrever, de onde saía água em rego, água utilizada pelo autor e seus pais sem oposição de ninguém. Mais, confirmou a existência de uma poça desde sempre, facto asseverado por J. T., que assegurou que a água da poça vinha de uma mina, apenas tendo percecionado a sua entrada, nunca tendo, contudo, lá entrado dentro, nem sabendo se é térrea, nem a sua nascente, nem a sua extensão. Por seu turno, R. C., assertivamente, esclareceu ao Tribunal que o prédio identificado em 5 tem um sistema de rega a pé e que a água utilizada para tal vem de uma mina que já existia no imóvel quando os pais o adquiriram, água que vai cair numa poça. Descreveu a mina como comprida, todavia afirmou não saber até onde ia. Também a testemunha A. M., amigo do réu marido há muitos anos, desde o tempo de escola, confirmou que, abaixo da estrada que separa ambos os prédios, existe uma poça cuja água vem de uma mina, tendo observado a sua boca, contudo, referiu não saber quer onde se situa a sua nascente, quer onde termina a mina.
(…) concatenada a prova supra exposta, não tivemos hesitações em considerar os pontos 17 a 20 como assentes, em concreto, que a mina já se achava naquele local há cerca de 50 anos”.
g) Ora, sem prejuízo do que melhor consta da fundamentação da sentença, e que nos parece impunha ao tribunal decisão diversa quanto aos referidos pontos ou alíneas da matéria de facto, é certo que o depoimento da referida testemunha A. P., prestado em 15/10/2020, gravado em sistema digital na aplicação informática em funcionamento no tribunal, das 11:44:17 ás 12:11:00 horas, supra transcrito e que aqui por brevidade se dá por reproduzido, sobre o existência e direito sobre a água na esfera jurídica do A., é muito claro quanto à existência da posse na pessoa do A. e antecessores, pois deu conta dos actos praticados ao longo de mais de vinte anos e ainda da convicção com que os mesmos eram praticados, in cau, o “animus” dessa posse, ou seja, que tudo era feito na convicção do exercício do direito de propriedade;
h) Também a testemunha R. C., cujo depoimento foi prestado em 15/10/2020, gravado em sistema digital na aplicação informática, em uso no tribunal, das 11:01:17 ás 11:43:19 horas, supra transcrito e que aqui se dá por reproduzido, deu conta dos actos de posse praticados ao longo dos anos, no que aquela água diz respeito, que sempre tudo foi feito de forma pacifica, sem oposição de ninguém e à vista e com o conhecimento de toda a gente.
i) Assim sendo, os depoimentos prestados mostram-se suficientes para atestar a aquisição do direito do A. sobre aquela água;
j) Sem prejuízo da prova testemunhal e da sua suficiência quanto à verificação do “animus” por parte do A. e seus antecessores, na aquisição do direito à água, importa ter em consideração que sendo a posse conducente à dominialidade concebida em sentido estrito e não a posse precária ou mera detenção, devendo ser integrada por dois elementos, o corpus (ou seja, a actuação de facto correspondente ao exercício do direito) e o “animus” (correspondente à intenção de exercer como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela). É certo que, podendo a prova do “animus” ser muito difícil é estabelecida uma presunção legal que nos diz que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto. Daqui decorrendo que o exercício do “corpus” faz presumir a existência do “animus”.
k) Podendo adquirir por usucapião, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa. Aliás, a jurisprudência sobre a matéria aponta precisamente no sentido de que, face ao exercício de um poder de facto sobre uma coisa, ser de presumir que o possuidor possui em nome próprio, sem necessidade de provar o elemento subjectivo da posse.
l) Por ser difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, estabelece o n. 2 do artigo 1252º, do Código Civil, uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus).
m) Donde, e tendo em conta o que dispõe o nº 1 do artigo 350º, competir àqueles que se arrogam a posse provar que o detentor não é possuidor. No caso dos autos, tendo os RR. colocado em crise o direito à água por parte do A., sempre tinham que provar que ele era um mero detentor, o que não lograram provar.
n) Pelo que, é errada a posição manifestada pelo Tribunal “a quo”, neste segmento, por ter considerado que não havia “animus”, invocando para o efeito a transacção efectuada nos autos que correrem termos sob o nº 23/03.8TBCBC do Juízo de Competência Genérica de Cabeceiras de Basto, e que a mesma era do conhecimento do A., na qual os seus pais renunciaram ao direito à água nascida no prédio dos RR..;
o) Ora, os RR. na sua contestação de fls. deduziram além do mais defesa por excepção invocando a verificação do caso julgado, por ter decorrido o processo nº 23/03.8TBCBC, aludindo ao facto da situação da água ter sido ali decida. Por despacho de fls., proferido em 03/02/2020, a alegada excepção foi julgada improcedente, adiantando que, na transacção alcançada entre os pais do A. e os aqui RR., no que para estes autos interessa, apenas foi admitido e acordado que os pais do A. não tinham quaisquer direitos sobre quaisquer águas nascidas no prédio dos RR.. Contudo, não foi objecto de contrato de transacção (nem obviamente, de qualquer decisão judicial) os alegados actos de posse praticados pelo A. nestes autos, nem tão pouco o alegado aterro total da galeria de mina efectuado pelo R. marido (…). A transacção invocada pelos RR. não se debruçou, pois, sobre os alegados actos de posse praticados pelo A. em relação à água identificada no artigo 15.º da petição, quanto aos actos alegadamente praticados pelo A. em relação à mina identificada na petição inicial, nem tão pouco em relação à alegada destruição da galeria de mina e do poço de vigia da parte do R.. A transacção apenas visou o não reconhecimento de quaisquer direitos dos pais do A. em relação às águas nascidas no prédio dos RR. e determinou a utilização que, por estes, podia ser feita, com autorização dos RR.”;
p) Face ao decidido naquele despacho, já transitado em julgado, a decisão ora tomada, não é correcta, além do mais, pelas seguintes razões: Primeira – apenas relativamente às águas nascidas no prédio dos RR., é que está vedada a sua captação e utilização. Porém, em momento algum foi alegado e ou provado, que as águas que afluem à mina e são encaminhas pela galeria até à poça existente no prédio do A., nascem no prédio dos RR., antes se diz que a mina existe e atravessa o prédio dos RR. e água aflui a esta. E sendo esta água diversa daquela que foi objecto de discussão naqueles autos e que transaccionaram, nascendo esta água em local diverso, é inegável que não estava vedado ao A. pugnar pela sua aquisição; Segunda – tendo os RR. deduzido defesa por excepção, alegando que a situação das águas estava decidida naquele processo e que o A., face à transacção realizada, não tinha direito à água. A matéria alegada pelos RR. constitui inequivocamente matéria de excepção pois trata-se de matéria reconduzível ao conceito de «factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado» (art.s 342º, nº 2, do C.Civil e 571º, nº 2, do CPC). Nessa medida, a prova dos factos que consubstanciam a ocorrência dessa excepção deve obedecer à regra do artº 342º, nº 2, do C.Civil, competindo aos RR. fazer a prova dos factos, pois o A. invocou contra estes o direito de propriedade da água, ou seja, os RR. tinham o ónus da prova de que a água reivindicada pelo A. nascia ou tinha a sua nascente localizada no seu prédio;
q) O que não sucedeu, pois é manifesto da prova produzida e até do vertido na sentença que, não foi feita prova do local da nascente;
r) Terceira razão – trata-se inequivocamente de uma água diversa daquela que foi objecto de transacção nos autos que correram termos sob o nº 23/03.8TBCBC, não estando vedado ao A. exercer os actos de posse, como se refere no despacho de fls, proferido em 03/02/2020, o que demonstrou à saciedade;
s) A posição manifestada pelo Tribunal “a quo”, padece de erro manifesto, quer por via prova testemunhal produzida e ainda em face dos factos provados, no caso, o que melhor consta do facto inserto no ponto 20. da matéria de facto (factos provados). Na verdade, encontra-se expressamente referido que o A e seus antecessores, para rega e lima do prédio melhor identificado em 5., durante todo o ano, utiliza a água que aflui à mina há mais de 15 e 20 anos, à vista de toda a gente, com o conhecimento de todos, sendo pertinente, ainda nesta matéria ter em conta o que consta dos pontos 17., 18. e 19. dos factos provados, onde são indicadas as características da mina, da galeria e da poça.
t) Resultando dos depoimentos transcritos supra, que a mina em causa já existe há mais de 50 anos, não sendo correto a referência do Tribunal quanto à impossibilidade de situar no tempo a construção da galeria da mina, pois sempre se impunha, face à prova testemunhal, que a mina e a sua galeria já tem mais de 50 anos, dado que há pelo menos esse tempo, que a testemunha se lembra da sua existência;
u) Ante o exposto e que melhor resulta dos autos, a decisão sobre tais pontos da matéria de facto – alíneas c) a d) é errada, devendo ser alterada para factos provados, viabilizando a aquisição do direito à água por parte do A., por efeito da usucapião;
v) Resulta ainda da sentença proferida, na parte da fundamentação de direito, que o Tribunal “a quo” inúmera duas as razões para a não verificação da aquisição do direito de propriedade sobre a água, dizendo, em primeiro lugar por não ter resultado provado que a água nascesse no prédio dos RR. e em segundo lugar, por ter ocorrido a transacção entre os RR. e os pais do A. sobre o direito às águas nascidas no prédio daqueles. E ainda, tendo em conta que apenas decorreram 13 anos sobre a dita transacção e por isso, não decorreu o tempo suficiente para a sua aquisição;
w) Ora, esta fundamentação não é correcta e de forma manifesta o Tribunal “a quo” laborou em erro quer de facto quer de direito. Na verdade, não tendo ficado provado qual o local da nascente, não pode o Tribunal “a quo” concluir como o fez, que o A. não tem direito à água, tanto mais que, o ónus da prova de que a água nasce no prédio dos RR., a estes incumbia e incumbe – Cfr. artigo 342.º, nº 2 do Código Civil. Ademais, os RR. não fizeram qualquer prova no sentido de que a água reivindicada pelo A., lhes pertence, no caso, de que a mesma nasce no seu prédio;
x) Por fim, entendeu o Tribunal “a quo”, que quanto aos actos praticados pelos RR., aliás, provados sob o ponto 25. da matéria de facto, não havia necessidade da reposição da galeria da mina e o oculo desta, por não ter sido provado o direito de propriedade da água, improcedendo nesse sentido o pedido;
y) Considerando o exposto supra e que melhor resulta dos autos, o pedido formulado pelo A., no sentido da reposição da galeria e do óculo/poço de visita da mina, sempre podia e devia proceder, na mediada em que o A. tem efectivamente o direito de propriedade sobre a água e os actos praticados pelos RR. puseram e põem em causa esse seu direito;
z) Pelo que, sempre os RR. deveriam ser condenados na reposição da galeria e oculo da mina. Sendo ainda certo que, tendo ocorrido um aterro total da galeria da mina – cfr. ponto 25. da matéria de facto provada, evidente se torna que este acto impediu e impede a água de ser conduzida para a poça localizada no prédio do A. e neste ensejo, evidente se torna que o facto constante da alínea e) dos factos não provados sempre deve alterado, dando-o como provado;
aa) Sendo errada a decisão por erro na apreciação da matéria de facto e ainda por erro na aplicação do direito, este Tribunal “ad quem” pode alterá-la, uma vez que do processo constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto aqui em causa;
bb) E fazendo a alteração, como deve fazer, é no sentido de dar como provados as alíneas c), d) e e) da factualidade não provada, impondo-se em consequência a subsunção jurídica dos factos, que determinam a procedência da acção, declarando além do mais, o A. como titular do direito de propriedade sobre a água que nasce e aflui à mina identificada nos artigos 15 a 18 da petição inicial, mais condenando os RR. a reconhecer tal direito e a absterem-se de praticar qualquer acto que perturbe o direito, condenando-os na reposição a galeria e poço de vigia da mina;
cc)Donde a sentença apelada ter violado, entre outros, o disposto nos art.s 342º, 350º, 1252º, 1256º,1268º, 1311º, 1316º, 1317º, 1390º, do Código Civil;
dd) Funda-se, ainda, o presente recurso no disposto nos artºs 571º, nº 2, 607º, 615º nº 1 als. b) e c), 662º, do CPC.

Termos em que deve a apelação ser julgada procedente e, em consequência, revogada a douta sentença apelada, substituindo-se por outra que julgue a acção totalmente procedente, com as legais consequências.
Os Recorridos apresentaram contra-alegações, defendendo a improcedência da apelação e impugnando, também eles, diversos pontos de facto da mesma.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).

No caso vertente, as questões a decidir são as seguintes:

- Saber se existe erro na apreciação da prova e na subsunção jurídica dos factos, sendo, o último, consequência do primeiro;
- Saber qual o conteúdo do corpus correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre determinadas águas por contraponto ao corpus correspondente ao exercício do direito de servidão;
- Saber se aquele que emite uma declaração no sentido de reconhecer que não é titular do direito correspondente aos poderes de facto (corpus) que exerce sobre determinada coisa pode adquiri-la por usucapião.
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III. FUNDAMENTOS:

Os factos.

Na primeira instância foi dada como provada a seguinte factualidade:

1. Por escritura de compra e venda outorgada em 26/05/1982, no Cartório de …, lavrada a fls. 63, do livro ..-B, J. M., na qualidade de procuradora de R. L., M. M., B. L. e mulher B. T., A. P. e marido A. S., E. M. e marido A. C., J. L. e mulher Maria, declararam vender pelo preço de 200 mil escudos a F. C., que declarou comprar, o prédio misto, denominado “Cerco do Olival ...”, sito no lugar de ..., freguesia de ..., composto de uma morada de casas, Leira de Cima do Olival ..., Leira do Meio do Olival ..., Leira do Fundo do Olival ..., Corte de gado e Sorte de mato, a confrontar de nascente com a levada velha e terra dos herdeiros de Dr. A. L. e de F. P., do sul com terra de A. G., do norte com o antigo caminho de Leiras a ... e terra de H. L. e do poente com a estrada municipal de ... a Leiradas, omisso no registo predial e inscrito na matriz nos artigos … urbano e …, …, …, …, … rústicos.
2. Por escritura de compra e venda outorgada em 19/12/2008, no Cartório Notarial de L. M., sito em Cabeceiras de Basto, lavrada a fls. 63, do livro ..-A, F. C. e mulher M. P., pais do autor, e na qualidade de primeiros outorgantes, declararam o seguinte:
“Que pelo preço de ONZE MIL EUROS já recebido, e correspondendo do preço dois mil euros à parte rústica e nove mil euros à parte urbana, VENDEM, ao segundo outorgante, seu filho e presuntivo herdeiro legitimário, o seguinte prédio (…) e RESERVANDO PARA SI O USUFRUTO simultâneo, o qual se extinguirá apenas à morte do último que sobreviver:
Misto – denominado de “Cerca ...”, sito no lugar de ... da dita freguesia de ..., composto de casa de habitação, de rés-do-chão e primeiro andar e Olival ... composto pela Leira do Meio do Olival ..., Leira do Fundo do Olival ..., Corte de Gado e Sorte de Mato, terreno de cultivo arvense e sequeiro, mato, horta, oliveiras e vinha, descrito na conservatória sob o número novecentos e noventa e um/mil novecentos e noventa e nove onze zero três, registado a favor dos primeiros pela apresentação número quatro de mil novecentos e noventa e nove/onze/zero três, e inscrito na matriz sob os artigos 604 rústico e 1315 urbano, com o valor patrimonial tributável global correspondente de € 9162,76”.
3. Nesse mesmo ato, o autor, na qualidade de segundo outorgante, declarou: “Que aceita este contrato e que destina o urbano a sua habitação própria e permanente”.
4. Os réus não tiveram conhecimento da celebração da escritura supra referida.
5. Sob a AP. 2999 de 2009/01/19, encontra-se averbada a favor do autor a aquisição por compra de um imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …/19991103, situado em ..., composto por dois prédios, um urbano e um rústico, respetivamente, com matriz predial urbana n.º 1315 e rústica 604, com a seguinte composição: “Casa de habitação, de rés-do-chão e 1.º andar com área coberta de 96 m2; e Olival ... - composto pela Leira do Meio do Olival ..., Leira do Fundo do Olival ..., Corte de Gado e Sorte de Mato - terreno de cultivo arvense e sequeiro, mato, horta, oliveiras e vinha e 5 dependências agrícolas, com a área coberta de 258 m2 e descoberta de 15.742,00 m2”, e confrontações: “Norte: Antigo caminho de Leiradas a ... e H. L. – Sul: J. C. – Nascente: Levada velha, A. L. e M. E. – Poente: Estrada municipal de ... a Leiradas”.
6. Sob a AP. 2999 de 2009/01/19, encontra-se averbada a favor de F. C. e de M. P. a reserva em venda do imóvel descrito em 5.
7. Na caderneta predial urbana emitida pelos Serviços de Finanças de Cabeceiras de Basto, o valor patrimonial atual, determinado no ano de 2018, do prédio sob o artigo matricial n.º … é de € 30.285,55.
8. Sob a AP. n.º 2 de 2003/07/31, encontra-se averbada a favor dos réus a aquisição por partilha da herança por óbito de A. L. de um prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …/20030731, situado no Olival ..., com matriz rústica n.º …, com a seguinte composição: “Terreno de mato e pastagem”, e confrontações: “Norte – A. R.; - Sul: M. V.; - Nascente: J. V. e F. C.; Poente: Estrada Camarária e A. L.”.
9. Entre os prédios identificados em 5 e 8 situa-se a estrada que liga ... a Leiradas.
10. O autor, por si e antecessores, há mais de 15/20 anos habitam o prédio urbano e cultivam o prédio rústico identificados em 5, semeando e colhendo cereais, hortaliças e legumes, podando as árvores de fruto, videiras e oliveiras, colhendo os frutos, criando animais, fazendo benfeitorias e reparações nos mesmos, pagando os impostos.
11. Isto, ininterruptamente, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém.
12. Na firme convicção de estarem no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre os referidos prédios.
13. Entre os pais do autor, na qualidade de autores, e os réus foi celebrado termo de transação, no âmbito do processo com o n.º 23/03.8TBCBC, que correu termos na extinta Secção Única do Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, homologado por sentença a 17 de março de 2006, transitada em julgado, do qual constam as seguintes cláusulas com relevo para a decisão da causa que se reproduzem para os devidos efeitos legais:
“3 – Os AA. reconhecem que não têm quaisquer direitos a águas nascidas no prédio dos RR. acima identificado.
4 – Os RR. autorizam, no entanto, os AA. a utilizarem as águas aludidas na alínea C) dos factos assentes, para consumo doméstico na sua casa de habitação e para rega dos seus prédios (…).
5 – Os AA. poderão limpar as caixas e valas (…) por forma a encaminharem as águas para os eu prédio, mas não poderão explorar águas novas.
6 – A autorização referida nas alíneas anteriores caduca automaticamente e sem qualquer aviso no dia 31/12/2007 (…).
7 – Os RR. Entregaram neste acto aos AA. a importância de 3.750 € (…) como compensação pela celebração desta transação”.
14. No âmbito do processo referido em 13, peticionaram os pais do autor a declaração e reconhecimento do seu direito a águas que nascem no interior do prédio dos réus identificado em 8, no seu lado poente-norte, através de uma rota cavada no solo e subsolo, armazenada numa caixa de cimento e conduzida por um tubo de plástico até outra caixa, que, segue num tubo de plástico no sentido nascente, subterrâneo, em direção ao prédio identificado em 5, e aí armazenada num depósito construído em blocos de cimento, que utilizavam para efeitos domésticos e rega e lima do prédio.
15. Deu-se como assente no supra citado processo que “Existe uma água que nasce no interior do prédio identificado em B), no seu lado poente-norte, através de uma rota cavada no solo e subsolo, com cerca de três metros de comprimento e igual profundidade”.
16. O autor, aquando da celebração da escritura de compra e venda descrita em 2, tinha conhecimento da transação celebrada entre os seus pais e os réus.
17. No imóvel descrito em 5 existe a boca de entrada e saída de uma mina, com cerca de 50 anos, atualmente com cerca de 60 centímetros de largura e 1,60 cm de altura.
18. A mina é feita em galeria térrea, por mão do homem, no subsolo do prédio identificado em 8, atravessa a estrada que dá acesso à freguesia de ... (Centro), e entra no prédio descrito em 5, onde tem a boca da entrada e saída.
19. Da mina afluem águas que vão desaguar numa poça no prédio descrito em 5, de formato circular, com diâmetro e profundidade não concretamente apurados, feita em pedra, cimento e terra, com lavadouro e pocinheiro, com um tubo cor de laranja.
20. Para rega e lima do prédio melhor identificado em 5, durante todo o ano, é utilizada a água que aflui à mina há mais de 15 e 20 anos, pelo autor e seus antecessores, à vista de toda a gente, com o conhecimento de todos
21. Existia no prédio identificado em 8, em local não concretamente apurado e desde data não concretamente apurada, um poço de limpeza, vigia e ar da mina, feito por mão do homem, para aceder à mina para trabalho de reparação e limpeza e para entrar luz e ar para o seu interior.
22. Por volta de 2014, no prédio identificado em 8, no local onde se situava o poço de limpeza, vigia e ar da mina, ocorreu um aluimento de terras.
23. Alertados para o sucedido, os réus procederam ao aterro de parte da galeria da mina e do poço de vigia e limpeza.
24. Nessa sequência, o autor, juntamente com o seu pai e o seu irmão, procedeu à limpeza da mina, reabrindo o poço de vigia e limpeza.
25. Posteriormente, e em data não concretamente apurada, os réus procederam ao aterro total da galeria da mina.

E foram considerados não provados os seguintes factos:

a) O autor não quis comprar nem os pais do autor quiseram vender o prédio objeto da escritura outorgada a 19/12/2008, não tendo sido pago o preço de € 11.000,00 pelo negócio, tendo como intuito evitar o caso julgado decorrente da ação n.º 23/03.8TBCBC. b) A mina tem a sua nascente no lado poente do prédio descrito em 8, depois segue em galeria subterrânea com a largura de 50 cm e altura de 1 m, dirige-se no interior daquele prédio para nascente e percorre um trajeto de cerca de 50 m.
c) Há mais de 15/20 anos, o autor e seus antecessores usam a galeria da mina para colher e derivar a água referida em 18 e 19, à vista de toda a gente, com conhecimento de todos, sem oposição nem interrupção, na convicção de que estavam, como sempre estiveram, bem como toda a gente, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre tal água.
d) O autor, e seus antecessores, sempre usaram a água referida em 18 e 19, sem oposição nem interrupção, na convicção de que estavam, como sempre estiveram, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre tal água.
e) Em consequência do aterro total da galeria da mina, a água deixou de correr e de chegar à poça existente para recolha no prédio identificado em 5.

O Direito

- Impugnação da matéria de facto

A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é admitida pelo artigo 640º, n.º 1, do Código de Processo Civil, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Por sua vez, estatui o n.º 1 do artigo 662º do mesmo diploma legal que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Sustenta o Recorrente que houve erro na apreciação da prova no que toca aos factos “não provados” - que entende deveriam ter sido considerados provados – que se seguem:

c) Há mais de 15/20 anos, o autor e seus antecessores usam a galeria da mina para colher e derivar a água referida em 18 e 19, à vista de toda a gente, com conhecimento de todos, sem oposição nem interrupção, na convicção de que estavam, como sempre estiveram, bem como toda a gente, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre tal água.
d) O autor, e seus antecessores, sempre usaram a água referida em 18 e 19, sem oposição nem interrupção, na convicção de que estavam, como sempre estiveram, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre tal água.
e) Em consequência do aterro total da galeria da mina, a água deixou de correr e de chegar à poça existente para recolha no prédio identificado em 5.
E defende-o, por entender que outra não poderia ser a decisão ante o ónus da prova imposto às partes e da prova produzida em audiência de julgamento (…) desde logo, tendo em atenção os factos dados como provados, sob os pontos 17. a 21. e 25., bem como (…) os depoimentos, que, sublinha, o Tribunal considerou credíveis, quer da testemunha A. P., quer da testemunha R. C..
Mais defende que, face ao facto provado no ponto 20, sem prejuízo da avaliação adequada da prova testemunhal e tendo em conta o que dispõem os artigos 342.º e 1252.º do Código Civil, a posição manifestada pelo Tribunal “a quo” e que determinou a resposta à matéria inserta nas alíneas c) e d) dos factos não provados, é errada.

Vejamos.

Quanto ao referido facto assente no ponto 20 – Para rega e lima do prédio melhor identificado em 5, durante todo o ano, é utilizada a água que aflui à mina há mais de 15 e 20 anos, pelo autor e seus antecessores, à vista de toda a gente, com o conhecimento de todos – e o que dele alegadamente resulta relativamente às alíneas c) e d), desde já se dirá que, interpretando devidamente as decisões a que se reporta o Recorrente, o sentido do estatuído no ponto 20 em nada obriga a considerar como assente a factualidade a que se reportam as alíneas c) e d), certo que nada impede que a água que aflui à mina em causa possa ter sido utilizada pelo tempo e nas condições referidas no aludido ponto 20, sem que os respetivos utilizadores tivessem relativamente a tal água ânimo de proprietários – múltiplas sendo as circunstâncias que podem explicar uma atuação como a referida desassociada da convicção de se estar a exercer um direito – e, por outro lado, também nada impede que a dita água que aflui à mina possa ter sido, ao longo desse tempo, colhida e derivada por outra(s) via(s) que não a da alegada galeria – referindo-se expressamente, a este propósito, na motivação da decisão da sentença recorrida, que Da inspeção ao local constatamos que a água que aflui ao poço no prédio identificado em 5 vem através de um tubo que, de acordo com os esclarecimentos prestados pelo autor em tal ato, foi ali colocado há cerca de 2/3 anos, o que, para além de encontrar respaldo na prova produzida, como, designadamente, se pode constatar da análise da ata de 14.10.2020 onde está documentada a observação em causa, constitui uma explicação plausível para a posição assumida pelo tribunal a quo –, não impondo, por último, a factualidade provada, que a utilização da água que, segundo a primeira instância, comprovadamente foi levada a cabo pelos pais do Autor e por este, tivesse ocorrido sem qualquer oposição ou interrupção. Em suma, não há, no que toca a este aspeto, qualquer contradição ou erro a apontar à primeira instância.
Mas vejamos se a conjugação dos pontos 17 a 21 e 25 com os depoimentos das supra aludidas testemunhas já impõe a requerida alteração.

Recordemos, na íntegra, o teor dos aludidos pontos assentes:

17. No imóvel descrito em 5 (o do Autor) existe a boca de entrada e saída de uma mina, com cerca de 50 anos, atualmente com cerca de 60 centímetros de largura e 1,60 cm de altura.
18. A mina é feita em galeria térrea, por mão do homem, no subsolo do prédio identificado em 8, atravessa a estrada que dá acesso à freguesia de ... (Centro), e entra no prédio descrito em 5, onde tem a boca da entrada e saída.
19. Da mina afluem águas que vão desaguar numa poça no prédio descrito em 5, de formato circular, com diâmetro e profundidade não concretamente apurados, feita em pedra, cimento e terra, com lavadouro e pocinheiro, com um tubo cor de laranja.
20. Para rega e lima do prédio melhor identificado em 5, durante todo o ano, é utilizada a água que aflui à mina há mais de 15 e 20 anos, pelo autor e seus antecessores, à vista de toda a gente, com o conhecimento de todos
21. Existia no prédio identificado em 8, em local não concretamente apurado e desde data não concretamente apurada, um poço de limpeza, vigia e ar da mina, feito por mão do homem, para aceder à mina para trabalho de reparação e limpeza e para entrar luz e ar para o seu interior.
25. Posteriormente, e em data não concretamente apurada, os réus procederam ao aterro total da galeria da mina.

Relembre-se aqui que não temos dúvidas de que, como se pode ler no acórdão deste Tribunal de 7.4.2016, incumbe à Relação, “enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”.
Isto dito, desde já se avançará que, no caso concreto, ouvida a prova gravada e conjugada a mesma com o mais constante dos autos, e, ainda, com as decisões relativas aos restantes factos (provados e não provados), concluiu este Tribunal que não há razões para afirmar a existência de erro, nada impondo as pretendidas alterações.

A fim de justificar o afirmado, relembremos, em primeiro lugar, o que, a respeito das alíneas impugnadas – e, também, para integral compreensão do decidido, o que a respeito da alínea b) – consta da motivação da decisão relativa à matéria de facto da sentença recorrida:

A classificação do ponto b) como não provado resultou do facto de não ter sido possível efetuar nenhuma prova quanto à nascente da mina, dimensões da sua galeria e trajetória. De facto, nem do ato inspetivo, nem dos depoimentos de parte e testemunhais, nem das declarações do réu, se conseguiu apurar se a nascente da mina é no prédio identificado em 8 ou num qualquer outro prédio. Todas as testemunhas que referiram ter conhecimento da existência da mina, tão-só mencionaram a sua boca, nunca lá nenhuma tendo entrado, não sabendo onde identificar a sua nascente, onde termina ou começa, nem as suas dimensões. À exceção de R. C.. Mas mais uma vez, o seu depoimento se revelou titubeante a este propósito pois, num primeiro momento, referiu que a água da mina vinha do terreno do réu, mas num segundo momento, afirmou não saber se vinha de um outro terreno.
Ainda, ressaltaram-nos dúvidas quanto ao uso pelo autor e seus antecessores da galeria da mina há mais de 15/20 anos para colher e derivar a água referida em 18 e 19, e bem assim, que o fizessem à vista de toda a gente, com conhecimento de todos, sem oposição nem interrupção, na convicção de que estavam, como sempre estiveram, bem como toda a gente, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre tal água.
Nenhuma testemunha o descreveu, para além de R. C.. E como dissemos, neste segmento o seu depoimento mostrou-se comprometido, não lhe atribuindo o Tribunal a confiança necessária para se convencer do uso da galeria pelo tempo alegado.
Mas mais.

Da inspeção ao local constatamos que a água que aflui ao poço no prédio identificado em 5 vem através de um tubo que, de acordo com os esclarecimentos prestados pelo autor em tal ato, foi ali colocado há cerca de 2/3 anos. Ora, de acordo com a testemunha A. P., a água que vinha da mina vinha em rego, sendo distinta da água discutida no âmbito da transação efetuada entre os pais do autor e os réus, que vinha canalizada.
Assim, não conseguiu o Tribunal apurar do período em que a galeria da mina foi construída, nem os caracteres da posse exercidos sobre aquela e sobre a água dela advinda.
Os próprios termos da transação celebrada, de acordo com as regras da normalidade, sustentam o antedito.
Concretizando, não é verosímil que os pais do autor, ao reconhecerem não terem direitos a águas nascidas no prédio dos réus, tendo-lhes sido, ainda, sido entregue uma compensação monetária pela transação efetuada, a usassem sem oposição, sem interrupção e estivessem na plena convicção do exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre a água em crise nos autos. Nem o autor, visto ter conhecimento da transação celebrada (não obstante ter pretendido fazer crer ao Tribunal, o que não nos convenceu, que acreditava que a transação não englobava a água da mina).
Motivos pelos quais não restou ao Tribunal outra opção senão tabelar os factos vertidos em c) e d) como não demonstrados.
Por fim, consideramos o ponto e) como não provado dado que nem o autor nem nenhuma das testemunhas fez referência ao aí descrito, apenas R. C. tendo dito que o aterro total afetou a água, sem especificar de que forma.
Alterando a ordem da apreciação dos argumentos invocados pela primeira instância, em função da importância que entendemos ser de atribuir-lhe, e tendo presente que, de acordo com a configuração da ação efetuada pelo Autor na petição inicial, a água objeto dos presentes autos é aquela que provém de uma mina que tem a sua nascente no lado poente do prédio descrito em 8, depois segue em galeria subterrânea com a largura de 50 cm e altura de 1 m, dirige-se no interior daquele prédio para nascente e percorre um trajeto de cerca de 50 m, cumpre, antes de mais, recordar o teor integral da transação efetuada pelos pais do Autor e pelos Réus na anterior ação a que aludem os autos.

Sabe-se que, entre os pais do autor, na qualidade de autores, e os réus foi celebrado termo de transação, no âmbito do processo com o n.º 23/03.8TBCBC, que correu termos na extinta Secção Única do Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, homologado por sentença a 17 de março de 2006, transitada em julgado, do qual constam as seguintes cláusulas com relevo para a decisão da causa que se reproduzem para os devidos efeitos legais:

“3 – Os AA. reconhecem que não têm quaisquer direitos a águas nascidas no prédio dos RR. acima identificado.
4 – Os RR. autorizam, no entanto, os AA. a utilizarem as águas aludidas na alínea C) dos factos assentes, para consumo doméstico na sua casa de habitação e para rega dos seus prédios (…).
5 – Os AA. poderão limpar as caixas e valas (…) por forma a encaminharem as águas para o seu prédio, mas não poderão explorar águas novas.
6 – A autorização referida nas alíneas anteriores caduca automaticamente e sem qualquer aviso no dia 31/12/2007 (…).
7 – Os RR. Entregaram neste acto aos AA. a importância de 3.750 € (…) como compensação pela celebração desta transação”.

Cabe ainda relembrar que o autor, aquando da celebração da escritura de compra e venda descrita em 2, tinha conhecimento da transação celebrada entre os seus pais e os réus.
A este propósito diz o Recorrente que apenas relativamente às águas nascidas no prédio dos RR., é que está vedada a sua captação e utilização e que em momento algum foi alegado e ou provado (nos presentes autos), que as águas que afluem à mina e são encaminhadas pela galeria até à poça existente no prédio do A., nascem no prédio dos RR., antes se diz que a mina existe e atravessa o prédio dos RR. e água aflui a esta, afirmação, esta última, que, no que toca ao alegado, como claramente decorre do que acima se foi dizendo, não corresponde à realidade.
E é uma evidência que o declarado na transação acima transcrita tem relevância para efeito da tomada de decisão relativa à matéria de facto e que tal relevância se afere não pelo que se não provou – concretamente pelo que restou por provar de acordo com a referida alínea b), ou seja, que a mina tem a sua nascente no lado poente do prédio descrito em 8, depois segue em galeria subterrânea com a largura de 50 cm e altura de 1 m, dirige-se no interior daquele prédio para nascente e percorre um trajeto de cerca de 50 m – ou só pela matéria de facto assente, mas pelos contornos da causa de pedir pelo Autor invocada com vista a sustentar o pedido formulado nestes autos, não fazendo, qualquer sentido, no contexto do objeto da ação definido na petição inicial, pelo próprio Autor, defender, agora, este último, que os RR. tinham o ónus da prova de que a água reivindicada pelo A. nascia ou tinha a sua nascente localizada no seu prédio não tendo os mesmos logrado satisfazer esse suposto ónus que sobre eles recaía, quando foi o próprio a alegar que a água reivindicada tinha a sua nascente no dito prédio dos Réus.
É certo que, por despacho de 03.02.2020, foi decidida a improcedência da exceção de caso julgado invocada pelos Réus, na fundamentação de tal despacho se tendo também abordado e afastado a possibilidade de se verificar a “exceção da transação” (ao dizer-se não tendo a transacção alcançada (…) qualquer virtualidade de impedir o prosseguimento dos presentes autos, no plano da sua admissibilidade).
Esquece, porém, o Autor que, logo a seguir à afirmação de que a transacção alcançada no processo identificado supra não teve por objecto a causa de pedir e o pedido formulados nestes autos se adverte que, não obstante o afirmado, a mesma tem natural repercussão e relação com a apreciação do mérito da presente causa, explicitando a primeira instância que, com isto pretendemos dizer que a alcançada transacção pode e deve ser ponderada pelo Tribunal para aferição do mérito dos fundamentos fáctico-jurídicos alegados pelo autor, mais concretamente quanto aos alegados actos de posse praticados por si e pelos seus antecessores há mais de 15 anos em relação à água reivindicada nestes autos (…) aquando da prolação de decisão de mérito nestes autos (…), outra coisa não tendo feito a sentença recorrida senão pôr em prática, aquando da decisão relativa à matéria de facto, o que antes havia sido enunciado no aludido despacho de 03.02.2020.

Por outro lado, deve também aqui recordar-se aquilo que, quando o Autor pretendeu alterar o alegado, peticionando a retificação de um suposto lapso de escrita no artigo 15.º da petição inicial – solicitando que, onde se lê “mina essa que tem a sua nascente no lado poente do referido prédio dos RR”, se passasse a ler “mina essa que tem a sua nascente a poente do referido prédio dos RR” –, constitui a fundamentação do despacho de 07.01.2020, despacho esse que, de nenhum modo, foi impugnado:

Bem analisada a petição inicial, na qual deve ser desenhada a causa de pedir e o pedido, verifica-se que o autor é claro no artigo 15.º quando alega que a nascente que serve a mina, cuja água pretende que seja reconhecida o seu direito de propriedade, localiza-se no prédio dos réus melhor identificado no artigo 13.º. Para facilidade de compreensão, transcreve-se aqui o teor do artigo 15.º da petição inicial:
“Mina essa que tem a sua nascente no lado poente do referido prédio dos RR, depois segue em galeria subterrânea com a largura de cerca de 50 cm e altura de 1 m, dirige-se no interior daquele prédio para nascente, percorre um trajeto de cerca de 50 m, atravessa a estrada que dá acesso à freguesia de ... (centro), e entra no prédio do A. onde tem a boca da entrada e saída” (sublinhados e negritos nossos).
No artigo 18.º da petição inicial, o autor alega o seguinte: “encontrando-se a mina em galeria térrea, no subsolo do prédio dos RR., mas com um poço de limpeza, vigia e ar, que se destina à necessária vigia, à entrada de pessoas para o trabalho de limpeza e para entrar luz e ar para o seu interior”.
Na mesma linha de alegação, o autor no artigo 21.º sustenta o seguinte: “Galeria essa feita por mão do homem, escavada no subsolo do prédio dos RR., como foi feito por mão do homem o poço de vigia (…)”.
Posto isto, decorre da causa de pedir, tal como delineada pelo autor, que a água, cujo direito de propriedade pretende que seja reconhecido, tem a sua nascente no prédio dos réus identificado no artigo 13.º da petição inicial.
(…)
Ora, salvo melhor entendimento, o pedido de rectificação efectuado em sede de audiência prévia provoca uma alteração da factualidade alegada que transmuta o objecto inicial do processo para um outro totalmente diverso.
Uma coisa são as águas que nascem no prédio dos réus. Outra totalmente diversa são as águas nascidas noutro prédio, cuja identificação não foi sequer alegada pelo autor no requerimento de rectificação apresentado.
Como acima já dissemos e bem se assinala no despacho acabado de citar, objeto dos presentes autos é uma água alegadamente nascida no prédio dos Réus, não sendo pelo facto de o Autor não ter logrado provar aquilo que ele próprio decidiu invocar que o objeto da ação passa, convenientemente, a ser um outro, sendo, por outro lado, ineludível que, na transação efetuada, os pais do Autor, Autores no anterior processo, reconheceram não terem quaisquer direitos a águas nascidas no referido prédio dos Réus.
Neste contexto, é impossível proceder-se, como pretende o Autor, a uma leitura isolada do conteúdo da prova testemunhal a que alude, ignorando a celebração, em 17 de março de 2006, da transação acima transcrita, contendo a declaração dos pais do Autor no sentido de reconhecer que não tinham nenhum direito sobre quaisquer águas nascidas no prédio dos Réus, e as consequências daí advindas no que toca à exclusão da intenção de agirem como beneficiários do correspondente direito de propriedade subjacente a qualquer ato praticado pelos pais do Autor e pelo próprio Autor, sucessor daqueles na alegada posse, sobre toda e qualquer água nascida (ou alegadamente nascida, segundo o próprio Autor) no prédio dos Réus – uma vez que, face ao alegado e considerado provado quanto aos atos praticados pelos pais do Autor e por este, a atuação subsequente à declaração pelos primeiros efetuada na transação se apresenta em continuidade com a atuação que já antes daquela ocorria, sem que entre elas se tenha interposto nenhum ato originador de uma eventual nova e autónoma atuação –, não sendo, pois, nessa medida, uma mera opinião em sentido diverso eventualmente transmitida pelas testemunhas ouvidas, quanto ao animus subjacente aos atos praticados pelos pais do Autor e por este, o bastante para contrariar o que, em nosso entender, de tal declaração resulta. Veja-se que a testemunha A. P. que a esse respeito disse “normalmente é porque é mesmo deles (sic)”, tampouco revelou saber da existência da aludida transação, não estando, pois, na posse de todos os dados necessários para avaliar o contexto em que os pais do Autor e este foram fazendo a utilização da água em questão e o que seria “normal” em tal contexto, e que, por seu turno, a testemunha A. P., irmão do Autor, tentou distinguir entre a água objeto da anterior ação e a água objeto dos presentes autos, como se tal afastasse a relevância do declarado na transação efetuada, quando, na realidade, a primeira cláusula da dita transação abrange todas e quaisquer águas nascidas no prédio dos Réus, integrando o reconhecimento, pelos pais do Autor, de que não têm quaisquer direitos a essas águas – com o que assumiram que eventuais atuações suas sobre quaisquer águas ali nascidas não tinham subjacente a intenção de agirem como beneficiários de qualquer direito sobre as mesmas –, sendo de sublinhar que a referida testemunha, quando confrontada com o teor de tal cláusula, se refugiou no desconhecimento da mesma (“isso não estou ao corrente”).
Depois do declarado na aludida cláusula seria, aliás, indiferente, que, interiormente, os pais do Autor e este, tivessem, a determinado momento, passado a atuar com animus de proprietário, como noutra fase infra melhor se verá.
Acresce que, ao contrário do entendido pelo Recorrente e como se nos afigura uma evidência, não é pelo facto de o Tribunal ter considerado o depoimento de alguma testemunha quanto a determinados aspetos que se torna imperioso que todo o seu depoimento deva ser considerado, estando, no caso concreto, perfeitamente objetivadas as razões que conduziram a primeira instância a desatender a determinadas passagens do declarado pelas testemunhas a que se refere o Recorrente, razões essas que, ouvidos os depoimentos em causa, este Tribunal subscreve, na medida em que o depoimento do irmão do Autor é claramente um depoimento comprometido, com patentes contradições, oportunamente apontadas, de forma direta, ao depoente, aquando da respetiva audição em audiência de julgamento, pela juíza a quo, e o depoimento da testemunha A. P. também se revelou pouco consistente, aqui se recordando que a referida testemunha começou por dizer que no prédio que ora pertence ao Autor só havia uma água (a que agora é reivindicada), depois, após insistência no assunto por parte do mandatário do Autor, acabou por repentinamente se lembrar (“Ah!..Ah!...”) que afinal “eles também levavam aquela aguita lá de cima”, tentando de forma confusa estabelecer diferenças entre as duas supostas águas aproveitadas no dito prédio, mas sempre dizendo que não sabia onde era a nascente da mina a que se referem os autos.
Quanto à utilização da galeria para acolher e derivar as águas em causa, as hesitações da testemunha A. P. e o documentado na inspeção ao local justificam as dúvidas suscitadas sobre o(s) processo(s) a que foram recorrendo os pais do Autor e este para procederem à utilização da água em causa para com ela regarem o prédio que ora pertence ao Autor.
Por outro lado, da matéria contida nos pontos 22 a 25 – 22. Por volta de 2014, no prédio identificado em 8, no local onde se situava o poço de limpeza, vigia e ar da mina, ocorreu um aluimento de terra.
23. Alertados para o sucedido, os réus procederam ao aterro de parte da galeria da mina e do poço de vigia e limpeza.
24. Nessa sequência, o autor, juntamente com o seu pai e o seu irmão, procedeu à limpeza da mina, reabrindo o poço de vigia e limpeza.
25. Posteriormente, e em data não concretamente apurada, os réus procederam ao aterro total da galeria da mina. –, que se encontram definitivamente assentes, resulta claro que, a ser a água acolhida e derivada pela via alegada pelo Autor, como continua este a defender, então, forçoso seria considerar que ocorreram interrupções da utilização da galeria e da própria água e atos de oposição a essas mesmas utilizações por parte dos Réus, o que reforça o bem fundado da decisão da primeira instância.

Face ao exposto, resta-nos a matéria de facto considerada assente a que alude o Recorrente, sendo esta insuficiente para, por si só, determinar a pretendida alteração da decisão relativa às alíneas c) e d).

Por último, desconhecendo-se, por falta da respetiva demonstração, a concreta via, o processo através do qual era acolhida e derivada a água em causa, impossível se torna formar uma convicção favorável ao ponto fáctico vertido na alínea e) dos Factos não provados”, ou seja, que, em consequência do aterro total da galeria da mina, a água deixou de correr e de chegar à poça existente para recolha no prédio identificado em 5.

Em conclusão, reafirma-se, não há razões para se concluir ter havido erro de julgamento nas decisões relativas à matéria de facto objeto da apelação.
Improcede, pois, na íntegra, a impugnação da matéria de facto.
Face à improcedência da impugnação efetuada pelo Autor e, ao que infra se dirá em termos de subsunção jurídica dos factos, que determina a total improcedência do recurso, prejudicado fica o conhecimento da impugnação da matéria de facto apresentada pelos Recorridos, certo que a impugnação destes, na respetiva contra-alegação, só poderia valer a título subsidiário, prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas pelo Recorrente – art. 636º, nº 2, do CPC.
*
Subsunção jurídica dos factos:

Mantendo-se inalterada a matéria de facto, não se verifica o erro de direito alicerçado na sua propugnada modificação e que a tinha como pressuposto.
Defende, porém, o Recorrente que, mesmo não sendo alterada a matéria de facto, errou o tribunal a quo quando não considerou a atuação dos pais do Autor e deste como conducente à aquisição da água em causa por usucapião, porquanto se mostra provado o corpus da posse e, provado o corpus, deve presumir-se o animus.

Será assim?
Vejamos.
Sendo certo que “as águas – e a respectiva nascente – são porções do solo de onde emergem, pars fundi, inserindo-se no direito de propriedade deste, pelo que a propriedade do solo importa necessariamente a propriedade da nascente e das águas que dela surgem”, também é inegável que “uma vez desintegradas do prédio (por lei ou por negócio jurídico), deixam de ser partes componentes ou integrantes dele, e adquirem autonomia passando a ser consideradas, de per si, imóveis” (cfr. Acórdão do STJ de 12.07.11, acessível in www.dgsi.pt).
E, como se relembra no citado acórdão do STJ, “a separação e desintegração das águas do domínio do prédio pode verificar-se na sequência de título de aquisição do direito à água (ou ao uso da água) a favor de terceiro, sendo que nos termos do art. 1390.º do CC, é título justo de aquisição qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões, entre elas a usucapião”.
Constitutivos do direito de propriedade fundado na usucapião são os factos que integram uma atuação sobre a coisa por forma correspondente ao exercício do direito – o denominado “corpus” –, com a intenção de exercer sobre ela, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto – o que se designa por “animus” –, em que a posse se traduz (art. 1251º e art. 1253º, “a contrario”, ambos do CC).
Podendo a posse ser exercida quer pessoalmente, quer por intermédio de outrem (art. 1252º, nº 1, do CC), situações há em que os atos praticados se apresentam como equívocos, devendo, então, em caso de dúvida, presumir-se a posse naquele que exerce o poder de facto (art. 1252º, nº 2, do CC).
Da referida presunção da posse naquele que exerce o poder de facto, extrai-se que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”, interpretação firmada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ, de 14/05/1996, publicado no Diário da República, II Série, n.º 144, de 24/06/1996.
Deste modo, em tais casos inverte-se o ónus da prova no que ao “animus” respeita, ficando aquele que se arroga o direito livre do encargo de o provar, cabendo, antes, àquele que pretende ver derrubado o direito arrogado, a prova de factos tendentes a ilidir a aludida presunção.

No caso, é certo, demonstrou-se que, para rega e lima do prédio melhor identificado em 5, durante todo o ano, é utilizada a água que aflui à mina há mais de 15 e 20 anos, pelo autor e seus antecessores, à vista de toda a gente, com o conhecimento de todos, o que segundo o Autor seria suficiente para integrar uma atuação sobre a coisa por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, sobra a aludida água, reclamado nos autos, forçoso sendo, por isso, na perspetiva daquele, presumir-se o correspondente animus.

Que dizer?

Deve começar por sublinhar-se que, por um lado, o Autor nunca alegou que ele e os seus antecessores utilizassem a água em questão de forma exclusiva e, por outro, o provado circunscreve-se à utilização da água na rega de um determinado prédio, não estando provado, nem sequer tendo sido alegado, que o Autor e os seus antecessores utilizassem a água de forma plena, isto é, não limitada às necessidades do dito prédio.
Ora, assim sendo, independentemente de tudo o mais, cremos que a factualidade alegada nunca poderia integrar o corpus da posse correspondente ao exercício do direito de propriedade conducente à aquisição, pelo Autor, desse mesmo direito de propriedade, sobre a água em questão.

Na verdade, “o direito à água que nasce em prédio alheio, conforme o título da sua constituição, pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste. No primeiro caso, a figura constituída é a da propriedade da água; no segundo é a servidão” (Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. III, 7ª ed., pág. 305).
Desenvolvendo este tema e citando Antunes Varela, RLJ, ano 115, pág. 220, refere o Acórdão desta Relação de 03.05.2018 (Relator – José Alberto Moreira Dias) que, “entre direito de propriedade à água e direito de servidão, existe “uma profunda diferença, tanto no seu conteúdo, como na sua extensão ou dimensão: no primeiro caso há um direito pleno e, em princípio ilimitado sobre a coisa, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que a água possa prestar; o segundo confere ao seu titular apenas a possibilidade de efetuar o tipo de aproveitamento no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante”.

Com interesse para o caso em apreço, refere-se ainda naquele acórdão, agora citando Tavarela Lobo, in “Manual do Direito de Águas”, vol. II, 1990, págs. 35 e 36, que “as consequências jurídicas são diversas e de largo alcance prático conforme o direito adquirido por terceiro revestir a natureza de propriedade ou de servidão. Se o terceiro adquirente pode fruir ou dispor livremente da água nascida em prédio alheio e desintegrada da propriedade superficiária, aliená-la ou captá-la subterraneamente, usá-la neste ou naquele prédio, para este ou aquele fim, constitui-se um direito de propriedade. Neste caso, o antigo dono da nascente não pode fazer novas cessões e deve mesmo abster-se de utilizar as águas da nascente pessoalmente.”. Diferentemente, “constituir-se-á um direito de servidão se o aproveitamento de uma nascente existente num prédio (serviente) é concedido a terceiro em benefício de um seu prédio (dominante) e para as necessidades deste”.

Face ao que se acaba de expor, no caso, é de reafirmar que o alegado (e provado) pelo Autor sempre seria insuscetível de traduzir uma atuação sobre a água em causa por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade – isto é uma atuação do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que essa água possa prestar –, mas, antes, sublinha-se de novo, revelador de uma atuação correspondente ao exercício de um direito de servidão – mediante a utilização da dita água na rega de um determinado prédio –, não estando, pois, sequer configurado o
corpus necessário à aquisição por usucapião do direito de propriedade reclamado, o que, em rigor, prejudicaria a necessidade de se conhecer da questão de saber se a partir da referida atuação dos pais do Autor e deste deve ou não presumir-se a intenção dos mesmos de exercerem, como seus titulares, o direito real de propriedade sobre a aludida água.

Mas ainda que assim não se entendesse e que considerássemos o alegado e provado suficiente para o preenchimento do corpus relativo ao direito de propriedade, cremos que, tendo os pais do Autor reconhecido, como reconheceram, não terem direito a qualquer água nascida no prédio dos ora Réus, forçoso seria concluir que o aproveitamento por aqueles efetuado da água alegadamente nascida em tal prédio foi sempre, necessariamente, um aproveitamento feito sem intenção de agirem como proprietários de tal água, o que, nos termos do art. 1253º, a), do Cód. Civil, corresponde apenas a uma posse precária, insuscetível de conduzir à usucapião.
Precisamente a propósito da intenção a que se reporta a referida alínea a) do art. 1253º do Cód. Civil, diz Oliveira Ascensão, in Direito Civil — Reais, pág. 88, que a mesma se reconduz àquela que é exteriorizada por uma declaração portadora de um sentido contrário ao resultante do próprio comportamento. Assim, a intenção exigida pelo referido normativo seria a “intenção declarada”, só essa relevando por se tratar de um elemento objetivo “facilmente reconhecível”: como se pode adquirir a posse por inversão do título (art. 1265.º), basta, reciprocamente, a declaração, para desvalorizar a indicação fornecida pelo corpus.
Deve, aliás, assinalar-se que, mesmo quem é objetivista, perante a questão de saber se uma declaração do próprio agente, contrária ao sentido do comportamento integrante do corpus por aquele assumido tem relevância jurídica, embora não aceitando que a mesma possa aniquilar o significado jurídico de tal comportamento, isto é, desqualificá-lo para a mera detenção, acaba por reconhecer-lhe relevância, “no sentido em que consubstancia uma renúncia aos commoda possessionis que se encontram na sua livre disponibilidade, ou seja, que não se pretende prevalecer, designadamente, do direito aos frutos que assiste ao possuidor de boa-fé (art. 1270.º) nem do regime aplicável às benfeitorias estabelecido pelos arts. 1273.º e 1275.º nem do direito de usucapião (arts. 1287.º e seguintes)” – Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, in “Sobre a distinção entre posse e detenção”, pág. 98.

Assim, no caso, como aqueles que iniciaram a posse – os pais do Autor –, ao emitirem a declaração constante da cláusula primeira da transação a que se alude nos autos, claramente emitiram uma declaração contrária ao comportamento que eles próprios vinham assumindo em relação a uma determinada água nascida, segundo o alegado pelo ora Autor, no prédio dos Réus, mesmo para quem prescinda do elemento subjetivo e apenas exija o corpus para qualificar uma determinada atuação como posse, sempre seria de concluir que ao assim terem procedido, renunciaram ao exercício do direito de usucapir a tal posse – desde que prolongada por um determinado período de tempo – associado.
Por outro lado, relativamente ao ora Autor, impõe-se recordar que o referido art. 1252º, nº 2, com base no qual se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, cuida de ressalvar que o ali prescrito é “sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º”, preceito segundo o qual se presume que “a posse continua em nome de quem a começou”, com o que excluídos ficam, do âmbito da presunção da posse em nome próprio naquele primeiro preceito estabelecida, os casos em que o detentor (ou aparente possuidor) “não foi o iniciador da posse” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 8).
“Significará isto – como se preconiza no acórdão do STJ de 12 de maio de 2016 (Relator – Manuel Tomé Soares Gomes) – que, para funcionar a presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 1252.º do CC importa que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse, desligado, portanto, de qualquer possuidor antecedente, sendo que, “in casu” se pode afirmar que, do próprio conteúdo da alegação do Autor, não resulta que este se tenha apresentado como possuidor desligado dos antecedentes, isto é, como possuidor que “tivesse praticado aqueles atos como iniciador da posse, em nome próprio, desligado do anterior possuidor”, o que exclui o Autor do leque de beneficiários da presunção prevista no art. 1252º, nº 2, do CC.
De todo o modo, ainda que relativamente ao Autor fosse possível defender uma atuação autónoma e original, desligada da dos seus antecessores e não afetada pela declaração emitida por estes, forçoso sempre seria, tendo em conta o disposto no art. 1296º do Cód. Civil, concluir pela insuficiência do período de tempo pelo qual a mesma se prolongou para, com base nela, o Autor usucapir o direito de propriedade sobre as águas, certo que, como resulta da ligação da utilização da água à rega do prédio pertencente aos pais do Autor e a este último por aqueles vendido, sabendo-se que a dita venda ocorreu em 2008, a atuação de aproveitamento da referida água, pelo Autor, para rega do prédio deste apenas se poderá ter iniciado no referido ano.
Face a tudo o que se expôs, não é de aplicar ao caso em apreço a referida presunção do animus.
Estando-se, então, como se está, perante o exercício do poder de facto sobre a água em causa sem uma intenção subjacente de agir como beneficiário do direito, cumpre concluir não existir mais do que uma mera detenção e, como se sabe, a usucapião não pode verificar-se nos detentores ou possuidores precários: a posse precária não constitui uma posse boa para usucapir.
Por último, como se disse, mesmo para quem seja objetivista, no caso forçoso é reconhecer a existência de uma renúncia por parte dos pais do Autor ao exercício do direito de aquisição das aludidas águas por usucapião, para esse efeito suficiente se mostrando o teor da declaração contida na cláusula primeira da transação, entre aqueles e os Réus celebrada em 2006, com todas as consequências acima assinaladas.
E mais não será necessário dizer para que o pedido de reconhecimento do direito de propriedade relativo às águas em causa improceda.
Improcedendo o aludido pedido, impossível se torna afirmar a violação de um direito do Autor que demande reparação, improcedente se revelando, pois, o demais peticionado.
Improcede, pois, a apelação.
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Sumário:

I – O direito à água que nasce em prédio alheio pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste;
II – Constitutivos do direito de propriedade fundado na usucapião são os factos que integram uma atuação sobre a coisa por forma correspondente ao exercício do direito – o denominado “corpus” –, com a intenção de exercer sobre ela, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto – o que se designa por “animus” –, em que a posse se traduz (art. 1251º e art. 1253º, “a contrario”, ambos do CC).
III – Assim sendo, para que se configure o corpus necessário à aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre determinada água é necessária a alegação e prova de uma atuação do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que essa água possa prestar, não bastando a utilização da dita água na rega de um determinado prédio, que apenas consubstancia o corpus necessário à aquisição por usucapião de um direito de servidão;
IV – Da presunção da posse naquele que exerce o poder de facto prevista no art. 1252º, nº 2, do Cód. Civil, extrai-se que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”, interpretação firmada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ, de 14/05/1996;
V – Todavia, uma declaração do próprio agente, contrária ao sentido do comportamento integrante do corpus por aquele assumido desqualifica a posse para a mera detenção, devendo considerar-se que o agente exerceu o poder de facto sem intenção de agir como beneficiário do direito (alínea a) do art. 1253º do Cód. Civil);
VI – Existindo uma declaração desta natureza não se está perante um caso de dúvida, não havendo, pois, razões para, com base no estatuído no art. 1252º, nº 2, do Cód. Civil, se presumir o animus do agente.
VII – Numa outra perspetiva, para funcionar a referida presunção importa que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse, desligado, portanto, de qualquer possuidor antecedente.

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Guimarães, 15.04.2021

Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues