Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
30532/21.0TYIPRT.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- Ao cessionário de crédito cabe apenas demonstrar que esse crédito existe e lhe foi transmitido, para que se satisfaça o ónus do art. 342º, nº 1, do Código Civil;
- É ao devedor que incumbe, nos termos do nº 2, dessa mesma norma, fazer prova do cumprimento da sua obrigação no âmbito do negócio cedido, inexistindo qualquer ónus de o cessionário demonstrar o seu incumprimento.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I – Relatório

Recorrente(s): AA e BB;

- Recorrido/a(s): C... Limited.
*
No presente processo a Recorrida intentou demanda contra os Recorrentes peticionando o pagamento da quantia, a título de capital, de €7.010,42, acrescida de juros de mora no valor de €1779,85 e ainda €153,00 a título de outras quantias e taxa de justiça.

Sustentava que, a 15.6.2018, lhe fora cedido crédito mutuado pelo então Banco de Portugal, S.A. (que foi objecto de fusão por incorporação com transmissão integral de património no Banco 1..., S.A.) à sociedade Granitos de S..., no valor de €25.000,00, da qual os réus se constituíram fiadores, sendo o valor peticionado o que falta restituir do mútuo.

Opuseram-se os réus alegando, no essencial, nulidade do processo por ineptidão do requerimento injuntivo e que toda a quantia mutuada foi paga no âmbito de processos executivos.
A final foi proferida sentença que considerou improcedente a nulidade invocada e culminou com o seguinte dispositivo:
 “Pelo exposto, julga-se a presente acção totalmente procedente e, em consequência, condenam-se os réus no pagamento à autora da quantia de €7.010,42 (sete mil e dez euros e quarenta e dois cêntimos) acrescida da quantia de €1.770,85 (mil setecentos e setenta euros e oitenta e cinco cêntimos).
Custas pelos réus.”
*
Inconformados com tal decisão, dela interpuseram os Réus o presente recurso de apelação, em cujas alegações formulam as seguintes
conclusões:

I. O recurso é interposta na sequência da sentença proferida que julgou procedente a acção intentada pela recorrida contra os recorrentes, condenando-os no valor peticionado.
II. A recorrida peticionou a condenação dos recorrentes a pagar-lhe a quantia de €7 010,42 acrescida de juros de mora no valor de €1 779,85 e ainda €153,00 a título de outras quantias e taxa de justiça, pelo alegado incumprimento de um contrato de mútuo.
III. A recorrida alegou que a 15/06/2018 lhe foi cedido esse crédito, mutuado pelo então Banco 2... S.A. á sociedade Granitos de S..., no valor de €25 000,00 do qual os recorrentes se constituíram fiadores, sendo o valor peticionado o que falta restituir do mútuo, existindo incumprimento do contrato celebrado, por banda dos recorrentes.
IV. O tribunal a quo decidiu baseando-se somente nos documentos juntos aos autos.
V. Os recorrentes impugnaram os documentos juntos pela recorrida (requerimento com a referência electrónica ...64 de 24/06/2021).
VI. A recorrida não demonstrou, nem provou, o alegado incumprimento por parte dos recorrentes do contratado com o Banco 2... e posteriormente com o Banco 1..., e também nenhuma prova logrou produzir do alegado incumprimento perante ela.
VII. Impendia sobre a recorrida o ónus de demonstra que a instituição bancária com a qual celebrou o contrato de cessão de créditos era, à data da celebração desse contrato, titular do crédito que a recorrida alega ter-lhe sido cedido, o que não logrou provar.
VIII. Não resulta dos autos se os recorrentes pagaram algum valor ao Banco 2..., ao Banco 1... e se algum montante ficou por liquidar.
IX. A recorrida não demonstrou que o Banco cendente era, à data da celebração do contrato de cessão de créditos, titular do crédito sobre os recorrentes que declarou ceder à recorrida.
X. A recorrida não logrou demonstrar conforme era o seu ónus (artigo 342.º n.º 1 do Código Civil) qualquer factualidade da qual se extraia o alegado incumprimento pelos recorrentes das obrigações para si emergentes do contrato de mútuo, ou seja, que tivessem incumprido a sua obrigação de efectuar o pagamento das quantias utilizadas, nem sequer demonstrou qual o incumprimento em que incorriam, nem por conseguinte, que o Banco cedente fosse titular de qualquer crédito sobre os recorrentes.
XI. Os recorrentes verteram esta fundamentação na oposição apresentada.
XII. O tribunal a quo, ao proferir a decisão recorrida, violou o disposto no artigo 342 n.º 1 do Código, uma vez que a recorrida não demonstrou, nem provou cabalmente os factos constitutivos do seu direito.
XIII. A decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a acção.
Termos em que, e nos melhores de direitos que Vexas Venerandos Desembargadores suprirão, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que decida julgue totalmente improcedente a acção intentada pela recorrida, …
 
A Recorrida não apresentou contra-alegações.

II – Delimitação do objecto do recurso e questões prévias a apreciar:

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[i] Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[ii] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[iii]
As questões enunciadas pelos recorrentes podem ser sintetizadas da seguinte forma: saber se o tribunal a quo, ao proferir a decisão recorrida, violou o disposto no artigo 342 n.º 1 do Código, uma vez que esta não demonstrou, nem provou cabalmente os factos constitutivos do seu direito.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos

1. Factos

Factos provados, com interesse para a decisão da causa.

A. Por documento datado de 15 de Junho de 2018, o Banco 1..., S.A. cedeu à autora o crédito resultante de empréstimo cedido à sociedade Granitos de S..., no valor, de capital, de €7.010,42, acrescido de juros.
B. Por documento datado de 2.3.2011, o Banco 2..., S.A., que entretanto foi objecto de fusão por incorporação com transmissão integral de património no Banco 1..., S.A., mutuou à sociedade Granitos de S... a quantia de €25.000,00, que lhe depositou em conta.
C. Os réus, por esse mesmo documento, constituíram-se fiadores e principais pagadores dessa quantia.

Factos não provados com interesse para a decisão da causa

Os réus e a sociedade Granitos de S... restituíram quer ao Banco 2..., S.A., quer ao Banco 1..., S.A, quer ainda à autora, a totalidade da quantia mutuada, designadamente, no âmbito de acções executivas, a quantia de €7010,42 a título de capital.

2. Direito

Os Recorrentes alegam, em suma, que a recorrida não demonstrou, nem provou, o alegado incumprimento por parte dos recorrentes do contratado com o Banco 2... e posteriormente com o Banco 1..., e também nenhuma prova logrou produzir do alegado incumprimento perante ela, bem como, que. impendia sobre a recorrida o ónus de demonstrar que a instituição bancária com a qual celebrou o contrato de cessão de créditos era, à data da celebração desse contrato, titular do crédito que a recorrida alega ter-lhe sido cedido, o que não logrou provar.
Nesta medida, os Recorrentes abordam a decisão como se dela não constassem os factos provados e não provados que acima se dão por reproduzidos e esquecendo o que eles próprios admitem e foram admitindo, factualmente, ao longo dos autos, exercendo de forma imprópria a sua impugnação.
Com efeito, essas decisões de facto constantes da sentença em crise, não foram aqui questionadas nos termos do disposto no art. 640º, nº 1, do Código de Processo Civil (das conclusões não resulta qualquer impugnação relevante da sentença em sede de matéria de facto), razão pela qual se deve considerar definitivamente adquirido o decidido, até porque inexistem razões para, nos termos do citado art. 662º, nº 1, ponderar a violação de alguma norma de direito material.
Posto isto, não podemos deixar de concordar com a decisão recorrida, que considerou fundado o apontado direito de crédito.
Na verdade, contrariamente ao defendido na apelação, não cabia à Autora/Recorrida demonstrar os mencionados factos negativos relativos ao alegado incumprimento pelos Recorrentes do direito de crédito em apreço.
Era sim aos Recorrentes/devedores que incumbia alegar e provar o pagamento desse débito (cf. art. 342º, nº 2, do Código Civil), bastando à credora demonstrar, como demonstrou (item A, dos factos provados) que lhe havia sido cedido[iv] o crédito[v] em causa, nos termos do art. 577º, do Código Civil, transmissão que a tornou titular do mesmo (cf. art. 342º, nº 1, do Código Civil).
Ocorrida essa cessão, conforme se apurou, operou-se imediatamente a transferência do direito à prestação do cedente para o cessionário, com todas as faculdades que lhe são inerentes, podendo essa cedência ser parcial, como admite o art. 577º, nº 1, do Código Civil.
Em face do exposto, não ocorreu aqui qualquer violação do disposto no art. 342º, do Código Civil, razão pela qual deve improceder a apelação em apreço.

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação.

Condenam-se nas custas da apelação, os Recorrentes, em partes iguais (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil).
N.
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Sumário[vi]:

- Ao cessionário de crédito cabe apenas demonstrar que esse crédito existe e lhe foi transmitido, para que se satisfaça o ónus do art. 342º, nº 1, do Código Civil;
- É ao devedor que incumbe, nos termos do nº 2, dessa mesma norma, fazer prova do cumprimento da sua obrigação no âmbito do negócio cedido, inexistindo qualquer ónus de o cessionário demonstrar o seu incumprimento. 
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Guimarães, 27/4/2023.

Relator – Des. José Manuel Flores
1º Adj.- Des. Sandra Melo
2º Adj.- Des. Conceição Sampaio


[i] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
[ii] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efectivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[iii] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
[iv] Beneficiando na transmissão de créditos em massa do regime do D.L. nº 42/2019
[v] Note-se que os Recorrentes não questionaram a existência do original crédito cedido, discutindo-se apenas se já estaria pago…
[vi] Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.