Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6277/20.8T8BRG.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
APREENSÃO DE IMÓVEL
LIQUIDAÇÃO DO ACTIVO
NULIDADE
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
EXCEÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O meio processual próprio para o terceiro invalidar a decisão alegadamente irregular do administrador da insolvência em sede de liquidação do ativo é a impugnação incidental no processo da insolvência, não uma ação autónoma de processo comum.
II - Tendo o terceiro enveredado por uma tal ação, está-se perante uma exceção dilatória inominada, insuscetível de sanação, a implicar a absolvição dos réus da instância.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

A. F. intentou a presente declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra a Massa Insolvente de M. P. e M. J., F. A. e A. T., peticionando:

a) Seja declarado nulo o negócio jurídico celebrado entre a Massa Insolvente, representada pelo Réu F. A., na qualidade de Administrador da Insolvência, e o Réu A. T., que teve por objeto os imóveis melhor identificados no art. 1º da petição inicial, sendo que tal negócio foi concretizado no âmbito da liquidação realizada no processo de insolvência que corre termos no juízo do comércio de Vila Real sob o n.º 23/17.0T8MTR, e o cancelamento do registo predial das inscrições feitas a favor do Réu A. T., bem como de quaisquer outras que o Réu venha a efetuar;
b) Que o tribunal se pronuncie sobre a nulidade suscitada pela Autora da apreensão daqueles imóveis no processo de insolvência;
c) A condenação dos Réus F. A. e A. T. a pagarem uma indemnização/compensação pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos decorrentes da respetiva atuação no quadro do referido negócio celebrado no dia 06 de julho de 2020;
d) Seja reconhecido o seu direito de preferência na aquisição daqueles imóveis, na qualidade de arrendatária dos mesmos.

A Ré Massa Insolvente apresentou contestação invocando, na parte que aqui releva, a exceção do erro na forma do processo, e alegando em síntese que a questão que a Autora pretende ver apreciada afetaria não só os intervenientes na presente ação, mas todos os demais interessados no processo de insolvência, designadamente os credores, sendo que a pretensão a Autora se iria refletir nos termos da liquidação e no seu resultado.
O Réu F. A. apresentou articulado de contestação onde invoca também, na parte que aqui interessa, o erro na forma de processo por entender que a presente ação não é o meio próprio para fazer valer o direito de preferência de que a Autora se arroga.
Mais alega que, entendendo a Autora ter sido violado o seu direito de preferência deveria lançar mão da ação prevista no artigo 1410º do Código Civil no prazo de seis meses contados da data do conhecimento da alienação e depositando o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação, o que não fez, continuando sem fazer qualquer depósito do preço devido.
O Réu A. T. veio contestar invocando também, na parte que aqui releva, a exceção do uso de meio processual desadequado e do erro na forma do processo, sustentando que entendendo a Autora ter sido violado o seu direito de preferência deveria lançar mão da ação prevista no artigo 1410º do Código Civil no prazo de seis meses contados da data do conhecimento da alienação e depositando o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação, o que não fez, continuando sem fazer qualquer depósito do preço devido.
A Autora exerceu o seu direito ao contraditório respondendo às exceções suscitadas.
Foi realizada a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador que julgou verificado o erro na forma do processo determinante da anulação de todos os atos praticados na presente ação e a absolvição da instância.

Inconformada veio a Autora interpor recurso apresentando as seguintes conclusões:
“II - CONCLUSÕES

I) A Recorrente é arrendatária de dois imóveis melhor identificados nas presentes alegações aprendidos a favor da massa insolvente de M. P. e M. J. no âmbito do processo identificado pelo n.º 23/17.0T8MTR, que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real – Juízo de Comércio de Vila Real,
II) Apesar de ter legitimidade e de estar dentro do prazo para exercer o Direito de Preferência que lhe assiste legalmente na aquisição dos imóveis que é inquilina e que são sua casa de família á longos anos, não obstante ter sido notificada pelo Administrador Judicial para exercer esse direito tendo a Recorrente para tal depositado a respetiva caução a favor da Massa Insolvente e informado quer o Sr. Administrador de Insolvência , por carta registada com aviso de receção , quer o Tribunal onde corre termos o processo referente á Insolvência , a sua intenção em preferir na aquisição dos bens imóveis que é arrendatária certo é que, estranhamente, viu o seu Direito legal de Preferência ser violado quando no dia seis de Julho de 2020 perante o Notário Exmo. Sr. Dr. J. N. com Cartório sito na Rua …, n.º .. na cidade de Barcelos, o Sr. Administrador de Insolvência, em preterição da Recorrente celebrou escritura pública formalizando a venda desses bens ao proponente A. T..
III) Infalivelmente tal negócio Jurídico formalizado pela escritura publica aludida foi celebrado contra legem, porquanto tem na sua génese a violação de normas de caracter imperativo , o art.º 1091º do Código Civil não foi acatado, estando tal alienação ferida pela nulidade como preceitua a primeira parte do art.º 294.º do Código Civil.
IV) Na sequencia de tal violação a Recorrente interpôs no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Braga uma Ação de Declaração de Nulidade do negocio jurídico celebrado a seis de Julho do ano de 2020, entre Massa Insolvente de M. P. e M. J., representada pelo Administrador Judicial Exmo., Sr. Dr. F. A. e o investidor A. T., ação tramitada no Juiz 5 , no âmbito do processo N.º 6277 / 20 .8T8BRG
V) A 10 de março de 2022 O Tribunal a quo veio pronunciar através de Douta sentença que quaisquer vicissitudes referente aos procedimentos de venda e apreensão no processo de insolvência deveriam ser todas suscitadas perante o Juiz da insolvência nos respetivos apenso de liquidação do ativo do insolvente e apreensão e aí tramitadas, apreciadas e decididas.
VI) Como se depreende da decisão, o Douto Tribunal, considerou-se incompetente em razão da matéria no que concerne ao que lhe foi apresentado pela Autora aqui Recorrente
VII) Não obstante veio o Tribunal na mesma decisão proferir o que se transcreve ipsis verbis “de todo modo, importa acrescentar que a autora não procedeu ao depósito do preço dos prédios em discussão nos autos, no prazo de 15 dias após a propositura da presente ação em que pretende exercer o direito de preferência sobre a sua aquisição, conforme prescreve o art.º 1410,n.º 1, do código civil, o que determina, desde logo, a caducidade de tal direito.
Na verdade, na ação de preferência, conforme decorre do n.º 1 do artigo 1410º do Código Civil, são dois ónus que recaem sobre o preferente: por um lado tem de interpor a ação no prazo de 6 meses a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e, por outro lado, tem de depositar o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação.
Face ao exposto, acompanha-se o entendimento pugnado pela ré massa insolvente na contestação apresentada, de que se verificam claro e manifesto erro na forma do processo, o qual determina a anulação de todos os atos praticados na presente ação – art.º193, n.º 1 , do C.P.C- , que importa conhecer – arts. 196º e 200º , n.º 2, do CPC."
VIII) É de se verificar que o Tribunal a quo na sua decisão embora assevere a sua incompetência material concomitantemente pronuncia-se sobre o mérito ( ou falta dele ) da pretensão deduzida pela Autora , aqui Recorrente .
IX) É sobremodo importante assinalar que não é da competência do Tribunal que se julga materialmente incompetente, em razão de matéria, pronunciar-se sobre o mérito da pretensão deduzida, só o Tribunal materialmente competente logrará decidir do Fundo da causa ou enunciar qualquer entendimento sobre a mesma.
X) Esta atuação do Tribunal é contra legem , ferindo indubitavelmente a segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo do art.º 615 do CPC, na sua versão atualizada ,
XI) Por conseguinte in casu nitidamente se verifica error in procedendo com as suas inerentes consequências legais.
XII) Com efeito a douta sentença, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Braga - Juiz 5 no âmbito do Processo N.º 6277 / 20 .8T8BRG, é nula .
XIII) Além do error in procedendo a presente decisão enferma igualmente de error in procedendo senão vejamos o que se passa a explanar :
XIV) Vem o Tribunal a quo na sua decisão apoiar-se no entendimento, equivocado , pugnado pela Ré Massa Insolvente , de que se verifica um claro e manifesto erro na forma do processo utilizado pela Recorrente para se defender da violação dos seus direitos.
XV) Os imoveis dos quais a Recorrente é arrendatária e deles faz sua casa de morada de família ,á longos anos ,juntamente com o seu marido e o seu filho menor os quais pretendia, e pretende adquirir , pautada pelo direito de preferência que a lei lhe atribui e que viu ser violado, com a formalização titulada pela escritura publica da sobredita alienação, deixaram a 6 de julho de 2020 a esfera jurídica da Massa Insolvente para se introduzirem e fazerem parte, ilicitamente, da esfera jurídica do Réu A. T. .
XVI) A escolha da autora ora Recorrente no que concerne á forma de processo foi determinada, de entre os tipos de processo legalmente previstos, pela pretensão processual deduzida e em função da causa de pedir por esta alegada na Petição Inicial tendo em vista a proteção dos direitos que viu serem agredidos.
XVII) Dispõem o art.º 546º, nº1 do Código do Processo Civil, o processo pode ser comum ou especial. Já o número 2 do mesmo preceito refere que o processo especial se aplica aos casos expressamente designados na lei e que o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda um processo especial.
XVIII) Os atos processuais terão a forma que, nos termos mais simples, melhor corresponda ao fim que visam atingir, isto á luz do princípio da legalidade das formas processuais, que se expressa no art.º 131º do C.P.C.,
XIX) O princípio da tipicidade das formas processuais incumbe, em primeiro lugar, à utilização de entre aquelas que a lei prevê e regula, da forma processual mais adequada à pretensão que se quer fazer valer em juízo.
XX) A Recorrente ao interpor no Tribunal Judicial da Comarca de Braga Juízo Central Cível de Braga uma Ação Declarativa de Condenação com Processo Comum - Ação de Declaração de Nulidade do negocio jurídico , celebrado a seis de Julho do ano de 2020, entre Massa Insolvente de M. P. e M. J., representada pelo Administrador Judicial Exmo., Sr. Dr. F. A. e o investidor A. T., tramitada no Juiz 5 , no âmbito do processo N.º 6277 / 20 .8T8BRG interpôs através da forma processual legalmente prevista e correta .
XXI) A Recorrente ao ser omitida na aquisição dos prédios em apreço porquanto o Administrador Judicial apesar de a ter notificado para exercer tal preferência não lhe consentiu, estranhamente, o exercício de tal direito tendo aquela legitimidade alicerçada na sua pretensão séria, por serem o local onde á longos anos , enquanto arrendatária, a sua morada, de se valer da prerrogativa que considerou ser a mais pertinente para pugnar pelo direito que viu violado in casu lançando mão de uma Ação de Declaração de Nulidade do negocio jurídico, intentada à luz dos artigos 1091.º , 294 .º 286.º do Código Civil .
XXII) Não podendo vingar a decisão do Tribunal a quo porquanto equivocadamente alicerçada no entendimento, também ele distorcido, pugnado pela Ré Massa Insolvente, de que se verifica in casu um claro e manifesto erro na forma do processo.
XXIII) Com o devida vénia, alcançámos que o Tribunal ao seguir o pugnado pela ré Massa Insolvente , muito mal andou , porquanto ao invocar erro na forma de processo não aplicou convenientemente o art.º 193 do CPC.
XXIV) O Tribunal a quo equivoca-se ainda quando alude na sua decisão a existência de uma Ação de Preferência elencando os ónus que recaem sobre o preferente, confundindo-se porquanto não foi uma Ação de Preferência que a Autora, ora Recorrente , intentou mas sim uma Ação de Declaração de Nulidade do negocio jurídico celebrado a seis de Julho do ano de 2020, entre Massa Insolvente de M. P. e M. J., representada pelo Administrador Judicial Exmo., Sr. Dr. F. A. e o investidor A. T.,
XXV) Com todo o respeito que é muito o Juiz a quo na sua decisão decidiu mal , aplicando e interpretando erradamente o direito , apreciando erradamente os factos que lhe foram apresentados consubstanciando-se tais posturas indubitavelmente em error in procedendo.
XXVI) O Tribunal a quo, tinha o incumbência de analisar , á luz dos preceitos legais vigentes, o pedido que lhe foi solicitado, pela Autora aqui Recorrente, sobre a forma de uma Ação de Declaração de Nulidade do Negocio celebrado a seis de julho do ano de 2020, entre Massa Insolvente de M. P. e M. J., representada pelo Administrador Judicial Exmo., Sr. Dr. F. A. e o investidor A. T. e não , desfasado , sobre a forma de qualquer outra .
Nestes termos e nos mais de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas deverá, o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, declarar a nulidade da Sentença e a inerente inexistência de erro na forma de processo, ordenando em consequência o prosseguimento, á luz dos preceitos legais, da presente ação no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, revogando - se a decisão recorrida”.
A Ré Massa Insolvente apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.

O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a nulidade invocada pela Recorrente nos seguintes termos:
“Ref. 12906137:
A autora recorrente alegou que a decisão que pôs termo ao processo é nula, nos termos do art. 651º, n.º 1, al. d) do C.P.C, uma vez que conheceu questões de que não podia tomar conhecimento.
A decisão em causa absolveu os réus da instância, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 278º, nº 1, al. b), 576º, nº 2, 577º, al. b) e 578º, todos do C.P.C., porquanto julgou procedente a exceção invocada na contestação da ré Massa Insolvente de M. P. e M. J. quanto ao erro na forma do processo.
Nessa decisão, acrescentou-se que, de todo o modo, sempre o direito invocado pela autora teria caducado por falta de depósito do preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação, conforme obriga o disposto no art. 1410º, n.º 1, do Código Civil, sendo que tal matéria foi igualmente invocada nas contestações apresentadas nos autos.
Face ao exposto, afigura-se que não assiste qualquer razão à autora, não se verificando a nulidade arguida.
Notifique”.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, são as seguintes:
1 – Saber se a sentença é nula nos termos do artigo 651º, n.º 1, alínea d) do CPC, por ter conhecido questões de que não podia tomar conhecimento;
2 – Saber da admissibilidade legal da presente ação e da verificação de erro na forma de processo ou de uso de um meio processual autónomo inadequado.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Da nulidade da sentença

A Recorrente começa por invocar a nulidade da sentença por excesso de pronuncia nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.
Sustenta que o tribunal a quo entendeu declarar-se incompetente em razão da matéria na medida em que determinou que a presente ação teria de ser instaurada perante o juiz da insolvência, no respetivo apenso de liquidação do ativo e, não obstante, pronunciou-se sobre o mérito da pretensão da Autora, o que apenas competiria ao tribunal materialmente competente pois só este poderá e deverá decidir do fundo da causa ou proferir qualquer entendimento sobre a mesma.
Vejamos se lhe assiste razão.

Estabelece o n.º 1 do artigo 615º do CPC de forma taxativa as causas de nulidade da sentença:

“1- É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.

As decisões judiciais podem encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respetiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respetiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido artigo 615º.
Assim, as nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal: “trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual (nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma) ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma” (Acórdão do Supremo Tribunal de 03/03/2021, Processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Como ensinava já Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, p. 124 e 125), o magistrado comete um erro de atividade quando na elaboração da sentença infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional, trata-se de um erro de carácter formal respeitando à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua atividade.
Conforme decorre da alínea d), a nulidade aí prevista prende-se com a omissão de pronúncia (quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar) ou com o excesso de pronúncia (quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento).
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há-de assim resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
O tribunal, por regra, não só não pode conhecer senão das questões que lhe tenham sido colocadas pelas partes, como também não pode decidir ultrapassando os limites do pedido que foi formulado, sob pena da decisão ficar afetada de nulidade.
Assim, impõe-se ao conhecimento do tribunal um limite máximo que decorre da proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo as que forem de conhecimento oficioso, e da impossibilidade de condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Da violação desse limite decorre, desde logo, a nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
Ora, analisada a sentença recorrida entendemos ser possível concluir facilmente que não padece da nulidade prevista na referida alínea d) pois o tribunal a quo não deixou de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (a não ser as que julgou prejudicadas pela decisão que proferiu) e nem conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.
Vejamos.
Sustenta a Recorrente que o Tribunal a quo entendeu declarar-se incompetente em razão da matéria e, não obstante, pronunciou-se sobre o mérito da pretensão da Autora, o que apenas competiria ao tribunal materialmente competente.
A afirmação da Recorrente parte, contudo, de premissas erradas.
É certo que o Tribunal a quo entendeu que as eventuais nulidades/invalidades/anulabilidades ou irregularidades ocorridas no âmbito dos procedimentos de venda e apreensão no processo de insolvência devem ser todas suscitadas perante o juiz da insolvência, nos respetivos apenso de liquidação do ativo da insolvente e apreensão e aí tramitadas, apreciadas e decididas; tal não significa que se tenha julgado incompetente em razão da matéria, o que não fez, mas tão só que as questões suscitadas pela Recorrente não podem ser apreciadas e decididas em ação autónoma.
Por outro lado, também não se pronunciou o tribunal a quo sobre o mérito da pretensão da Autora, pois que absolveu os Réus da instância por força da anulação de todos os atos do processo por se verificar erro na forma do processo. A referência constante da decisão recorrida ao facto de não ter procedido ao depósito do preço dos prédios no prazo de 15 dias após a propositura da ação, conforme prescreve o artigo 1410º, n.º 1, do Código Civil, determinante da caducidade do direito, não é mais do que isso, não contando como fundamento da decisão proferida, pois esta absolveu os Réus da instância (e não do pedido) com base em erro na forma do processo (e não em caducidade).
Assim, e apesar de também ter sido invocada pelos Réus a exceção de caducidade, esta questão não foi decidida pelo tribunal a quo, que absolveu os Réus da instância com base em erro na forma do processo.
Em face do exposto, julgamos ser de concluir que, analisada a decisão proferida em 1ª Instância, não se verifica a invocada nulidade, improcedendo desde já e nesta parte o recurso.
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3.2. Da admissibilidade legal da presente ação e da verificação de erro na forma de processo ou de uso de um meio processual autónomo inadequado

A questão principal a decidir no presente recurso, tal como já delimitado, consiste em saber se é legalmente admissível a presente ação e se, não o sendo, se verifica erro na forma de processo, tal como decidido pelo Tribunal a quo, ou o uso de um meio processual autónomo inadequado, uma vez que as questões que a Recorrente pretende ver apreciadas e decididas em ação autónoma o devem ser no processo de insolvência, concretamente no apenso da liquidação do ativo.
Sustenta a Recorrente que o Tribunal a quo errou ao invocar o erro na forma do processo, tendo aplicado indevidamente o artigo 193º do CPC.
Entende a Recorrente que, em face do princípio da tipicidade das formas processuais se lhe impunha que lançasse mão do meio processual mais adequado à pretensão que pretende fazer valer e que esse meio (mais pertinente à defesa do direito que viu violado) é uma ação de declaração de nulidade do negócio jurídico intentada à luz dos artigos 1091º, 294º e 286º do Código Civil.
Vejamos então se lhe assiste razão, adiantando desde já não merecer a decisão recorrida, em nosso entender, a censura que lhe é apontada pela Recorrente, ao decidir que as eventuais nulidades/invalidades/anulabilidades ou irregularidades ocorridas no âmbito dos procedimentos de venda e apreensão no processo de insolvência devem ser suscitadas perante o juiz da insolvência, nos respetivos apensos de liquidação do ativo da insolvente e apreensão e aí tramitadas, apreciadas e decididas.
A questão essencial que importa apreciar é a de saber se contra a alegada atuação irregular ou ilícita do Administrador da Insolvência, seja no âmbito da venda, seja no âmbito da apreensão dos bens imóveis em causa, se impunha, como meio próprio para a Autora reagir e fazer valer a sua pretensão (declaração de nulidade do negócio jurídico e apreciação da nulidade da apreensão dos imóveis) a impugnação incidental junto do processo da insolvência ou, ao invés, lançar mão de uma ação autónoma (ação de processo comum).
Não podemos deixar de começar por referir que a Autora peticiona ainda na presente ação o reconhecimento do o seu direito de preferência na aquisição dos imóveis, por força da sua qualidade de arrendatária dos mesmos, mas não pretende aqui exercer o seu direito de preferência; ou seja, a Autora não configurou a presente ação como uma ação de preferência (a que alude o artigo 1410º do Código Civil) mas de declaração de nulidade do negócio de compra e venda celebrado pela Massa Insolvente no âmbito da liquidação do ativo, onde invoca também, e pretende ver apreciada, a própria nulidade da apreensão efetuada no processo de insolvência dos imóveis.
E, se dúvidas se suscitassem sobre a configuração da presente ação e a pretensão da Autora, as mesmas ter-se-iam totalmente dissipado com as alegações de recurso onde afirma perentoriamente estar em causa uma ação de declaração de nulidade do negócio jurídico e não uma ação de preferência (cfr. conclusões XX e XXIV).
Ora, se estivesse em causa uma ação de preferência podia a Autora efetivamente lançar mão de uma ação autónoma para fazer valer o seu direito de preferência.
Prevê o n.º 1 do artigo 1410º do Código Civil que o preferente preterido pode exercer o seu direito no prazo de seis meses a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais do negócio, desde que deposite o preço devido nos quinze dias seguintes à propositura da ação; são constitutivos do direito de preferência o exercício desse direito no prazo de 6 meses, a contar da data do conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e o depósito do preço, nos quinze dias seguintes à propositura da ação, e a inobservância de qualquer destes prazos fazem precludir o direito, são prazos de caducidade.
Contudo, e como refere a Recorrente, não estamos perante uma ação de preferência, mas uma ação de declaração de nulidade do negócio jurídico de compra e venda realizada pela Massa Insolvente, representada pelo seu Administrador, no âmbito da liquidação do ativo, na qual a Autora invoca também a nulidade da própria apreensão dos imóveis no processo de insolvência.
Vejamos então se podia lançar mão de uma ação autónoma.
Prevê o artigo 55º n.º 1 alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, de ora em diante designado por CIRE) que cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir, preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram.
Ao administrador da insolvência cabe, por isso, promover a liquidação dos bens que integram a massa insolvente.
Nos termos do disposto no artigo 158º n.º 1 do CIRE “[T]ransitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida em que a tanto se não oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia, apresentando nos autos, para o efeito, no prazo de 10 dias a contar da data de realização da assembleia de apreciação do relatório, um plano de liquidação de venda dos bens, contendo metas temporalmente definidas e a enunciação das diligências concretas a encetar”, estabelecendo o n.º 1 do artigo 164º que “[O] administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente”.
Aos credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, é aplicável o disposto para o exercício dos respetivos direitos na venda em processo executivo (artigo 165º doo CIRE).
In casu, a Autora alega que, não obstante ter demonstrado a sua intenção em exercer o seu direito de preferência, o Administrador da Insolvência, preterindo-a, celebrou com o Réu A. T., por escritura publica de 6 de julho de 2020, negócio de compra e venda que considera nulo e cuja declaração de nulidade pretende; pretende ainda que o tribunal se pronuncie quanto à nulidade da apreensão dos bens imóveis objeto do contrato de arrendamento.
Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2º Edição, Quid Juris Sociedade Editora, 2013, p. 651 e 652) referem, a propósito da liquidação e das modalidades de alienação que o regime agora fixado diverge em dois pontos essenciais do vigente no domínio do CPEREF: por um lado é agora possível o recurso a modalidades de alienação diferentes das tipificadas na lei processual comum e, por outro lado, a decisão quanto à escolha é cometida, em exclusivo, ao administrador da insolvência. Como afirmam “[E]sta opção insere-se no quadro geral do reforço dos poderes do administrador e satisfaz, de modo significativo, a intenção de desjudicialização do processo”.
No sentido desta “desjudicialização do processo” pode ler-se no ponto 10 do preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18 de março (que aprovou o CIRE) que “[A] afirmação da supremacia dos credores no processo de insolvência é acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo.
Por toda a parte se reconhece a indispensabilidade da intervenção do juiz no processo concursal, tendo fracassado os intentos de o desjudicializar por completo. Tal indispensabilidade é compatível, todavia, com a redução da intervenção do juiz ao que estritamente releva do exercício da função jurisdicional, permitindo a atribuição da competência para tudo o que com ela não colida aos demais sujeitos processuais. (…) Ainda na vertente da desjudicialização, há também que mencionar o desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores (que podem, não obstante, ser revogadas pela assembleia de credores), como os atos do administrador da insolvência (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa)”.
Resulta do que vem de se expor que “o legislador do CIRE visou inverter a solução de pretérito, afastando a possibilidade de impugnação dos atos do administrador (substantivos ou de procedimento) diretamente perante o juiz da insolvência. Porém, resulta patente que tal inversão foi pensada unicamente para os credores e o insolvente, e, mesmo assim, apenas “por regra”. (…) Em contrapartida, passou-se a conferir expressamente - art. 59.º do CIRE – um direito indemnizatório aos credores e ao devedor (mas não aos terceiros) contra o administrador da insolvência pelos danos causados em decorrência da inobservância culposa dos respetivos deveres funcionais (esse direito indemnizatório do devedor e dos credores é a exercitar, naturalmente, através da competente ação autónoma de processo comum). Pretendeu-se deste modo, sem prejuízo pois para o exercício do direito à reparação do prejuízo a que haja lugar, afastar do âmbito da insolvência tergiversações das partes naturais do processo (devedor e credores) relativamente aos atos do administrador da insolvência. É este o sentido e alcance, cremos, do aludido ponto 10 do Preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2020, processo n.º 1094/11.9TYLSB-R.L1.S1, Relator José Rainho, disponível em www.dgsi.pt)
Contudo, importa consignar que, mesmo relativamente aos credores, parte da jurisprudência tem vindo a colocar em causa a conformidade constitucional da possibilidade de recurso apenas a uma ação de indemnização e a admitir aos credores, sob pena de indefesa, a impugnação judicial dos atos do administrador da insolvência, considerando que o meio de reação contra os atos irregulares do administrador da insolvência será a arguição incidental da irregularidade no âmbito da liquidação do ativo (v. entre outros os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 04 de abril de 2017, Processo n.º 1182/14.0T2AVR-H.P1, Relator Fonseca Ramos, e de 15 de fevereiro de 2018, Processo n.º 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1, Relator Henrique Araújo, ambos disponíveis em www.dgsi.pt; neste sentido pronunciou-se também o Tribunal Constitucional no Acórdão de 21 de novembro de 2018, processo n.º 616/2018, disponível em www.tc/jurisprudência/acórdãos e publicado no Diário da República, II Série, de 04 de janeiro de 2019, ao julgar “inconstitucional a norma contida nos artigos 163.º e 164.º, n.os 2 e 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada”).
De todo modo, no caso concreto, a Autora/Recorrente não é a devedora e nem é uma credora, mas um terceiro que invoca ser titular de direito de preferência por força da sua qualidade de arrendatária.
Ora, enquanto terceiro, julgamos que à Recorrente, não estava vedada a possibilidade de impugnar no processo de insolvência (designadamente no processo de liquidação do ativo) o alegado ato irregular/ilícito do Administrador da Insolvência, pois que, conforme a mesma sustenta, o que está em causa na presente ação, é a irregularidade no procedimento da venda, determinante em seu entender da nulidade do negócio jurídico celebrado (sendo certo que a Recorrente também sustenta a irregularidade/nulidade da apreensão dos imóveis levada a cabo no processo de insolvência).
E, assim sendo, era perante o juiz da insolvência que a Recorrente devia ter reagido, e não com a instauração de ação autónoma.
Perfilhamos, por isso, o entendimento do tribunal a quo e julgamos que a invocação, apreciação e decisão da questão da alegada irregularidade dos atos do Administrador de Insolvência e consequente invalidade do negócio jurídico celebrado deve ter lugar no processo de insolvência, designadamente nos autos da liquidação, uma vez que o que está em causa é a atuação do Administrador levada a cabo na liquidação do ativo, o que determina a necessidade de intervenção da totalidade dos interessados e a obtenção de uma decisão vinculativa para todos, o que não seria passível de ser obtido com a instauração de ações autónomas e dispersas, que poderiam levar, para além do mais, à contradição de julgados.
Em sentido idêntico se pronunciou o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2020 onde se afirma que “não faria o menor sentido que, estando em causa uma questão incidental surgida no domínio da liquidação e com repercussão direta sobre o processo de insolvência - cujo decurso se quer urgente (art. 9.º, n.º 1 do CIRE) e cuja liquidação do ativo se quer ver tratada com prontidão (art. 158.º, n.º 1 do CIRE) - se admitisse o recurso a um meio processual autónomo para a sua apreciação jurisdicional (recurso a uma ação de processo comum, e, ademais, insubmisso a qualquer limite temporal. Como conjugar uma tal possibilidade com o funcionamento normal do processo de insolvência, com o princípio geral de que as controvérsias incidentais surgidas no decurso do processo devem, sob pena de preclusão, ser nele suscitadas e decididas (e não numa ação ad hoc) e com a estabilização dos direitos e interesses do insolvente e dos credores?”
Temos, pois, de concluir que a Recorrente, ao contrário do que afirma, não lançou mão do meio processual adequado, e o uso de um meio processual inadequado (no sentido de não previsto ou admitido por lei) constitui uma exceção dilatória inominada, na medida em que está aqui ausente uma condição (pressuposto processual) indispensável ao conhecimento do mérito da causa, que determina a absolvição dos réus da instância nos termos do disposto nos artigos 576.º, n.º 2 e 278.º, n.º 1, alínea e), ambos do CPC.
De facto, in casu, não seria possível levar a cabo a sanação da falta do pressuposto processual uma vez que se trata de espécies processuais (uma ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum autónoma ou um incidente de impugnação no processo de insolvência) estruturalmente diferentes e incompatíveis.
A Recorrente, para fazer valer a sua pretensão, deveria ter-se socorrido da impugnação incidental e não de uma ação autónoma, não sendo a presente ação o meio processual adequado para discutir os alegados atos irregulares do Administrador da Insolvência e a invocada nulidade do negócio jurídico por aquele celebrado no âmbito da liquidação do ativo realizada no processo de insolvência que corre termos no juízo do comércio de Vila Real sob o n.º 23/17.0T8MTR, e a consequência, conforme já referimos, é a absolvição dos Réus da instância, tal como decidido pelo tribunal a quo.
Contudo, ainda que a solução determine de igual forma a absolvição da instância, conforme resulta do já exposto, julgamos não estar verdadeiramente em causa o erro na forma de processo.
Vejamos.
O erro na forma de processo decorre da circunstância de o autor ter usado uma via processual inadequada para fazer valer a sua pretensão (v. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2014, p. 245).
O elemento essencial para determinar a forma do processo é a da pretensão do autor: o processo deve seguir a forma em cuja finalidade se integre a pretensão formulada pelo autor. A idoneidade da forma de processo afere-se, por isso, “em função do tipo de pretensão formulada” ocorrendo erro “quando o autor usa uma via processual inadequada para fazer valer a sua pretensão” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, página 232).
O erro na forma do processo encontra-se regulado na secção das nulidades processuais, estabelecendo o artigo 193º do CPC que o erro na forma de processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
Trata-se, por isso, de um vício que pode ser sanado mediante a prática dos atos necessários à recondução do processo à forma adequada estabelecida pela lei; tal vicio só não será sanável quando não seja viável aproveitar os atos já praticados, sendo certo que não devem aproveitar-se os atos já praticados se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu (n.º 2 do referido artigo 193º).
No caso concreto a Autora instaurou uma ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum pretendendo ver declarado nulo o negócio jurídico celebrado entre a Massa Insolvente e o Réu A. T., que seja reconhecido o seu direito de preferência na aquisição dos imóveis, na qualidade de arrendatária dos mesmos, que o tribunal se pronuncie sobre a nulidade suscitada pela Autora da apreensão dos imóveis no processo de insolvência e a condenação dos Réus F. A. e A. T. a pagarem uma indemnização/compensação pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
A ação proposta pela Autora, tal como a mesma refere, não pode deixar de ser considerada, segundo entendemos, como formalmente adequada à pretensão que formula e, por isso, ser efetivamente ajustada à finalidade configurada em abstrato pela lei para tal forma de processo.
Contudo, no caso concreto, considerando os fundamentos invocados pela Autora, os quais radicam na irregularidade da atuação do Administrador da Insolvência, situando-se o negócio de compra e venda no âmbito da liquidação do ativo, em processo de insolvência, entendemos que a Autora não se devia ter socorrido de uma ação autónoma, antes devia ter reagido por via incidental.
E, devendo a Autora reagir incidentalmente, deveria fazê-lo no processo de insolvência, ou, concretamente, no apenso de liquidação do ativo, pois o respetivo incidente não pode ser considerado de forma autónoma relativamente ao processo onde ocorreram a alegada atuação irregular e/ou ilícita; como se afirma no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2020 “[C]abe observar, a propósito, que as normas que regem para a forma do processo são de ordem pública, e por isso as partes e o tribunal estão-lhes indeclinavelmente vinculados”.
Temos, por isso, para nós, que a opção levada a cabo pela Autora, ao lançar mão de uma ação autónoma para fazer valer a sua pretensão, quando segundo o estabelecido por lei, o meio processual adequado seria de natureza incidental, não se traduz verdadeiramente num erro na forma de processo, mas sim, no uso de um meio processual autónomo não previsto ou admitido por lei, que, não sendo exatamente a mesma coisa que o erro na forma do processo, constitui exceção dilatória inominada e determina também a absolvição da instância.
De referir, contudo, que ainda que se pudesse aceitar estar perante uma situação enquadrável no erro na forma de processo, mostrava-se acertada a solução constante da decisão recorrida porquanto, no caso concreto, atendendo ao previsto no referido artigo 193º do CPC, não existem atos suscetíveis de aproveitamento e nem se vislumbram que atos concretos deveriam ser praticados para que o processo se aproximasse da forma prevista por lei.
É que, conforme já referimos estamos perante, de um lado, uma ação declarativa de condenação em processo comum, e do outro perante um incidente de impugnação, que constituem espécies processuais muito diferentes e que se apresentam como incompatíveis, uma vez que a Autora, em sede de ação comum, quer ver imposta apenas a estes Réus (Massa Insolvente, Administrador da Insolvência e comprador) uma situação jurídica cuja apreciação competia ao processo de insolvência, permitindo o contraditório a todos os aí intervenientes e interessados, pois o negócio foi realizado no âmbito da liquidação do ativo e que os fundamentos invocados pela Autora radicam na atuação do Administrador, e envolvem um juízo sobre a regularidade da sua atuação no exercício das suas funções, não só nas diligências de venda mas também da própria apreensão dos imoveis, cuja nulidade a Autora também suscita e pretende ver apreciada.
De todo o exposto importa concluir pela improcedência do presente recurso e confirmação da decisão recorrida, ainda que com fundamento não inteiramente coincidente.
As custas são da responsabilidade da Recorrente, em face do seu decaimento, e sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia (artigo 527º do Código de Processo Civil).
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SUMÁRIO (artigo 663º n.º 7 do Código do Processo Civil):

I - O meio processual próprio para o terceiro invalidar a decisão alegadamente irregular do administrador da insolvência em sede de liquidação do ativo é a impugnação incidental no processo da insolvência, não uma ação autónoma de processo comum.
II - Tendo o terceiro enveredado por uma tal ação, está-se perante uma exceção dilatória inominada, insuscetível de sanação, a implicar a absolvição dos réus da instância.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Guimarães, 30 de junho de 2022
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Afonso Cabral Andrade (2ª Adjunto)