Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
731/16.3T8VRL.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
INEFICÁCIA DA VENDA
PROVA DOS FACTOS INDIRECTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Verificados os seus pressupostos, através da impugnação pauliana, o Autor obterá a declaração de impugnação do ato contra o qual reagiu e o reconhecimento do direito de executar, no património do adquirente, os bens validamente transmitidos, na medida necessária à satisfação do seu crédito.

2. O ato de alienação mantém a sua plena validade, dado não estar afetado por qualquer vício intrínseco, mas alteram-se os seus efeitos apenas na medida do interesse do credor reclamante. A impugnação pauliana não torna o ato de disposição inválido, mas apenas ineficaz na medida do necessário para que não ocorra prejuízo na esfera patrimonial do credor.

3. Por isso, mesmo que apenas um dos cônjuges seja responsável pela dívida que se pretende garantir com a impugnação pauliana e o bem objeto do negócio de transmissão celebrado por ambos os cônjuges tenha sido comum, procedendo a impugnação pauliana relativa a esse negócio, todo o bem fica sujeito à ineficácia, mesmo que anteriormente á transmissão impugnada tal bem não respondesse na plenitude pela dívida.

4. A prova de factos como a intenção, conhecimento ou vontade só por meios indiretos se pode fazer, recorrendo a outros factos que as vão revelando, ainda que todos concatenados, através das regras da experiência comum, da razoabilidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Autor e Apelado:

ANTÓNIO (…), solteiro, maior, com residência habitual na Praça (..), número …, em (…)

Réus:

1ºs Réus, ambos ora. Apelantes:
MANUEL (…) e mulher
OLGA (…), ambos residentes habitualmente na Quinta (…), São (…), em Santa Marta de Penaguião
2ª Ré:
SARA (…), com domicílio profissional na Avenida …, número …, (Banco …), na cidade de (…)
autos de: (apelação em) ação declarativa constitutiva com forma comum

I- Relatório

Pede o Autor que seja declarada ineficaz, em relação ao autor, a compra e venda a que se refere o artigo 5.º da petição inicial e a que se reporta o documento número 1, tendo o autor direito à restituição do imóvel em causa, na medida do interesse dele autor, podendo executá-lo no património da segunda ré, e praticar sobre tal imóvel os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei (artigo 616.º, do CC).

Alega, para tanto e em súmula, que é credor dos primeiros réus, pela importância de 95.111,00 € proveniente de vários empréstimos, todos eles de valor não superior a 2.000,00 euros cada um, celebrados durante os anos de 2002 e 2003, bem como dos respetivos juros, estes à taxa legal, crédito este que se encontra titulado por uma letra de câmbio, aceite pelo primeiro réu marido. Os 1ºs réus declararam vender à 2.ª Ré um prédio misto, sito em …, da freguesia de …, concelho de Santa Marta, por valor inferior ao seu preço de mercado e que nunca foi pago. A 2.ª Ré é filha dos 1ºs. Réus. Esse prédio existia no património dos 1ºs. Réus quando se constituiu o crédito do Autor, que dele dispuseram após, voltando a adquiri-lo em 2011. Os primeiros réus têm também mais credores e resultou do ato em causa a impossibilidade para o Autor de obter a satisfação integral do seu crédito.

Os dois primeiros Réus contestaram, impugnando o invocado pelo Autor e deduzindo reconvenção, a qual foi rejeitada no saneador.

Invocam, em síntese, na sua contestação:

Como resulta do disposto no artigo 610º do Código Civil, uma ação como a presente tem como pressuposto essencial a comprovada existência de um crédito do impugnante, a qual não se verifica, pois o crédito que o A. invoca ainda não está demonstrado; o A. não tem qualquer crédito sobre os Réus; apenas formalmente e não na realidade os 1ºs RR. compraram o prédio em questão; os 1ºs RR. apenas cederam à 2.ª R a sua posição no contrato de locação financeira; justificando-se a compra e venda para garantir o que já deviam à filha, 2.ª Ré.

Foi apresentada réplica e foi, após audiência final, proferida sentença, com a seguinte decisão:

1- Julgo a presente ação totalmente procedente por provada e, em consequência, declaro ineficaz, em relação ao autor, a compra e venda a que se reporta o documento número 1 anexo, e o artigo 5º da petição inicial, tendo o autor direito à restituição do imóvel em causa, na medida do interesse dele, autor, podendo executá-lo no património da segunda ré, e praticar sobre tal imóvel os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei.
2- Julgo improcedente o pedido de condenação por litigância de má-fé.
3- Condeno os réus no pagamento das custas da ação.
4- Registe e notifique.”

Os 1ªs Réus recorreram da sentença, pugnando pela sua revogação e a sua absolvição com as seguintes conclusões:

Quando à presente ação foi instaurada, o A. ainda não era titular reconhecido de qualquer crédito sobre os primeiros RR, o que devia ter obstado ao prosseguimento da ação, em virtude de esta não comportar o reconhecimento desse crédito.

Mesmo que assim não se entendesse, também a ação devia ser julgada improcedente por não ter sido formulado qualquer pedido e, por isso, também não ter sido proferida (na sentença) qualquer declaração correspondente (ser o A. titular de qualquer crédito sobre os 1ºsRR.).

Para o caso de assim não se entender:

Conforme consignado no 2º parágrafo de págs. 13 da sentença recorrida, foram desconsiderados todos os restantes meios de prova (testemunhas e declarações de parte) e a decisão da matéria de facto foi apenas baseada na prova documental existente no processo.

Assim sendo e porque nenhum dos documentos juntos ao processo consta o que quer que seja relativamente ao consignado nos pontos 11, 13, 14, 16 (quanto ao Armando … ) e 18 dos factos provados, essa factualidade só podia ser dada como não provada.
2. A mesma decisão se impunha quanto à matéria dos pontos 20 e 21 dos factos provados, relativamente a todos os RR. e a do ponto 19 em relação à 2.ª R., pois não existe qualquer documento no processo que possa constituir suporte probatório dessa factualidade, além de que devia da -se como provado o que consta do primeiro ponto dos factos não provados de pgs.9 já que isso mesmo resulta documentalmente provado pela respetiva escritura pública de compra e venda.
3. Apesar dos documentos que lhe respeitam, não podia dar-se como provada a matéria dos pontos 1, 2 da Fundamentação de Facto da sentença recorrida.
A matéria dos pontos 1 e 2, respeitante ao crédito do A. só poderia dar-se como provada com base na letra de câmbio e na declaração de fls. 258 junta pelos RR.
Quanto à letra, porque valendo apenas como quirógrafo, seria necessária a prova da relação subjacente, assim como de todo o circunstancialismo da sua emissão, o que, de todo, nem dela própria, nem de qualquer outro documento, resulta provado.
Além disso, uma vez que foi preenchida pelo A. como ele próprio reconheceu (v.min. 14.06) devia este ter alegado e provado o respectivo pacto de preenchimento.
Por sua vez, a referida declaração apenas podia valer para a finalidade que determinou a sua junção que foi desacreditar as declarações do A., além de que os RR. referiram que noutro processo em que essa declaração foi junta, os RR. impugnaram a autoria da assinatura do 1ºR. marido.
A restante matéria de facto indicada (13, 14, 20 e 21) essa é que, por dela nada constar em qualquer documento, forçosamente tinha de ser dada como não provada.
E não provada que fosse essa factualidade, necessariamente que a ação tinha de ser julgada improcedente.
4. Mesmo que assim não se entendesse e apesar da letra de câmbio, nunca se devia dar como provada a existência do crédito do A. sobre o R. marido pela manifesta inverosimilhança, contradições e imprecisões em que incorreu quanto aos alegados empréstimos, seus montantes e condições assim como quanto ao circunstancialismo de emissão da própria letra, a tudo isso certa- mente se tendo ficado a dever ter-se dado como não provado o correspondente à matéria por ele próprio alegada (três primeiros pontos dos factos não provados) além de não ter conseguido dar qualquer explicação aceitável para tão tardiamente (mais de um ano depois) ter junto a letra ao processo e quanto à declaração, nem sequer a ter referido apesar de já ambas estarem em seu poder.
5. Assim sendo, tanto com base na não demonstração do crédito do A. bem como dos requisitos constantes da última parte da al.a) do art. 610º e ainda dos constantes do art. 612º, ambos do C. Civil, a ação só podia ser julgada improcedente, o que nos parece tão evidente e indiscutível que apenas uma justificação se descortina para assim não ter sido entendido e decidido que é o facto de a Mma Juiz recorrida ter tomado como certos outros factos não provados, tais como já anteriormente o réu ter usado cheques da filha, por isso ter sido referido na audiência de julgamento (v. parágrafo 3º de págs. 15 da sentença) e que o imóvel é, na realidade, dos primeiros réus ( v. 4º parágrafo de págs. 16) e por eles ter sido impressionada.
Só que nenhum desses factos consta de qualquer documento (única espécie de prova considerada e tomada em conta) e em relação ao segundo a prova documental existente (escritura de venda à 2.ª R.) é precisamente em sentido contrário.
6. Também para o caso de assim não se entender, a única prova relevante produzida em audiência (declarações de parte do A. e da 2.ª R.) impunha dar-se como não provada a matéria dos pontos 1, 2, 13, 14, 19, 20 e 21 (este último em relação à 2.ª R.) dos factos provados e dar-se como provada toda a factualidade dada como não provada, à exceção dos últimos dois pontos de págs. 9.
7. Quanto à matéria dos pontos 1 e 2 respeitante ao crédito do A., mesmo só pelo que já se expôs quanto à letra e à declaração de fls. 258 se justificava e impunha que, pelo menos com base na dúvida (a valorar contra a parte de quem aproveita, no caso, o A.) fosse dada como não provada.
8. O mesmo ainda mais se justificava pelas divergências e contradições entre o alegado na p.i. e o declarado pelo A. em audiência, em relação a factos essenciais, tais como os montantes dos alegados empréstimos (v. min. 11.40 e 12.02) ao tempo em que os mesmos teriam ocorrido (v.min. 10) e quanto às declarações de dívida e não dívida alegadamente assinadas pelo 1º R. (v.min. 15.30).
Tanto que, certamente devido a todas essas inverosimilhanças, imprecisões e contradições, é que se deu como não provada a correspondente factualidade (os três primeiros pontos dos factos não provados), tudo justificando que, tanto pelas regras dos ónus da prova, como pelas regras da experiência comum, não restasse à Mma Juiz recorrida outra alternativa senão dar como não provada a existência do crédito do A., tanto bastando para a ação ser julgada improcedente.
9. Também a matéria dos pontos 13, 14, 20 e 21 devia ter sido dada como não provada, desde logo por implicação da não demonstração do crédito do A..

Além disso, também com base nas declarações de parte prestadas pela 2.ª Ré que, tanto pela sua coerência intrínseca, como pela forma espontânea, clara e segura com que foram prestadas, deviam ter merecido total credibilidade. Ora, quanto à matéria dos artigos 20 e 21, a 2.ª R. foi perentória na sua negação, justificando de forma completa, circunstanciada e em perfeita consonância com as regras da experiência comum a celebração do ato impugna- do (v.mins.3.20, 4.45, 5.30 , 13.43, 14.14 e 15.48) sendo particularmente assertiva e convincente na afirmação do desconhecimento de qualquer dívida do pai ao A. e na negação de a venda ter sido celebrada para furtar o imóvel à ação dos credores até pelos problemas que lhe podiam advir para a sua situação profissional de gerente bancária (v.mins. 2.25, 7.40,8.21,9.57 e 12.27), razão pela qual, se soubesse de algum problema, nunca se tinha "metido" (v.min. 7.40) e mandaria para a frente outro irmão ( v.min. 8.21), merecendo especial destaque a explicação que deu para não saber "nem fazer a mínima ideia" de qualquer problema com o A. uma vez que, até há três ou quatro anos, este ia ao banco onde ela trabalhava buscar coisas (fruta, vinho e azeite) que o pai lhe mandava e, apesar de estar muitas vezes sozinho com ela, nunca lhe falou em nada (v.min. 0.39, 1.05, 1.40, 2.15 e 3.09) como ele próprio confirmou (v.min. 18.08) e que, mesmo após a instauração deste processo, o pai sempre negou qualquer débito ao A. (v.min. 10.11) .
10. Igualmente confirmou, também de forma pormenorizada e consistente, o contrário do que consta como provado nos pontos 13 e 14 e de forma tão credível que não deixou de reconhecer mas justificar factos desfavoráveis, como seja o valor de compra inferior ao valor real e de ter outra casa na Régua (v.mins. 12.27, 13.10, 13.43, 14.14 e 15.48).
11. Da mesma forma, confirmou a indicada factualidade dada como não provada e que se defende dever passar a constar como provada, sendo que a do ponto 7 de pág. 9 da sentença com a correcção do lapso inicial de forma a passar a constar em vez de "justificando-se a hipoteca", "justificando-se a compra e venda".
Quanto aos primeiros sete pontos da págs. 9 tudo relatou com a maior clareza e precisão (v.mins. 4.45, 5.57, 6.50, 7.00 e 7.30).
Além disso, também confirmou de forma credível e estribada na mais sólida razão de ciência (conhecimento e participação directa nas situações em causa) a matéria constante dos pontos de págs. 10, o último deles e em relação a ela própria com fundamento no já exposto para se dar como não provada a matéria dos pontos 20 e 21.
12. De acordo com o exposto, também com base na prova relevante produzida em audiência (declarações de parte do A. e da 2.ª R.) se justificam as propugnadas alterações da decisão da matéria de facto e, tanto pela não demonstração do crédito do A., como pela não demonstração dos requisitos constantes da 2ª parte da al. a) do art. 610º, assim como do art. 612º, ambos do C. Civil, a ação deve ser julgada improcedente.
13. Finalmente, no que concerne ao que consta do último ponto da pg. 10 e em relação à primeira R. mulher pela mais evidente e irrefutável razão se deve dar como provado.
Porque ninguém a ela se referiu, nem quanto à intervenção ou destinatária dos empréstimos, nem como conhecedora de alguma dívida do marido, nomeadamente ao A., na data do acto impugnado.
O próprio A. sempre disse que os alegados empréstimos foram feitos ao 1º R. marido e nunca referiu que a esposa (1ª R. mulher) tivesse conhecimento de algum desses empréstimos ou de alguma dívida do marido para com ele.
Por isso, independentemente de tudo o mais, sempre a factualidade dos pontos 18, 20 e 21 dos factos provados também deve ser alterada de forma a dela deixar de constar ou abranger a primeira R. mulher, o que também só por si, em nosso modesto entender, é fundamento bastante para a improcedência da ação.
14. Portanto, se, como fez a Mma Juiz recorrida, apenas se valorar e tiver em conta a prova documental existente no processo, nada mais se pode dar como provado a não ser o crédito do A. sobre o 1ª R. marido (e não também sobre a 1ªR. mulher), assim como a venda do imóvel dos primeiros réus, sem qual- quer demonstração do requisito da má-fé constante do art. 612º do C. Civil, tanto bastando para implicar a improcedência da ação .
15. Mesmo que se entenda valorar também as declarações de parte do A. e da 2.ª R. (única prova relevante, uma vez que como se entendeu e nos parece correcto , a prova testemunhal se mostrou totalmente inócua) atentas as imprecisões, inverosimilhanças e contradições das declarações do A. e a credibilidade que nos parecem merecer as declarações da segunda ré mulher (tanto pela sua coerência intrínseca, como pela forma espontânea, clara e segura com que foram prestadas), na pior das hipóteses para os RR., pelo menos dúvidas insanáveis (necessariamente a valorar contra o A.), devia dar-se como não provada tanto a factualidade respeitante ao crédito do A. sobre o R. marido, como o conhecimento desse mesmo crédito ou de quaisquer outras dívidas por parte da segunda ré e, por maioria de razão (uma vez que a ela ninguém, mesmo o próprio autor, se referiu como destinatária ou conhecedora do mesmo crédito ou de quaisquer outras dívidas do marido ) por parte da primeira ré mulher e, também por isso a ação ter que ser julgada improcedente.
16. Assim não se tendo entendido e decidido considera a A. que a sentença, além de enfermar de incorreta análise e valoração da prova, acabou também por violar, entre outros preceitos legais, os dos arts. 342º, 610º e 612º do C. Civil.

Não houve resposta.

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).

Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se forem de conhecimento oficioso ou se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - Artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Importa ainda apreciar as questões por ordem lógica, não havendo normas que imponham o conhecimento prévio de algumas questões, (artigo 608º nº 1 do Código de Processo Civil), tendo em conta, além do mais (cf artigos 278º nº 3, 578º, 595 nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil), o princípio da economia processual, começando por aquelas que, a procederem, tornam desnecessário conhecer das demais.

Importa decidir:

1. se é pressuposto da impugnação pauliana o prévio reconhecimento, noutra ação, do crédito que se visa garantir;
2. se deve improceder uma ação pauliana quando não é formulado pedido de reconhecimento do crédito que se visa garantir;
3. verificando-se que a ação não improcede por força do referido em 1. e 2, há que apreciar da impugnação da matéria de facto e, procedendo, se as suas consequências na decisão da causa conduzem à conclusão jurídica pugnada pelos Recorrentes, e em caso afirmativo, absolver em conformidade.

III- Fundamentação de Facto

A sentença vem com a seguinte matéria de facto provada e não provada, desde já se sublinhando os factos provados que foram impugnados para mais rápida compreensão desta decisão e simplificação numa eventual futura consulta do processo, colocando-se a negrito os factos provados e não provados que resultarão da análise das alegações do recurso e subsequente decisão, ficando condensada no respetivo capítulo toda a matéria de facto a atender nos autos (evitando-se ainda a repetição de toda a matéria de facto, caso se recorresse à sua posterior apresentação global em função da decisão que neste acórdão se proferisse, entendendo-se que é nenhum o prejuízo que resulta de desde já se adiantar tal decisão).

Factos provados:

O autor é credor dos primeiros réus, pela importância de 95.111,00 euros (noventa e cinco mil cento e onze euros), proveniente de vários empréstimos, feitos a tais réus, durante os anos de 2002 e 2003. Este facto passará a ter a seguinte redação “O primeiro Réu obrigou-se a pagar ao Autor a importância de 95.111,00 euros (noventa e cinco mil cento e onze euros), proveniente de vários empréstimos, feitos ao mesmo, durante os anos de 2002 e 2003”
2º. Tal importância encontra-se titulada por uma letra de câmbio, aceite pelo primeiro réu marido, e da qual o autor é portador. (este facto não sofrerá alteração infra)
.. Os primeiros réus não pagaram ainda ao autor a importância em causa.
No dia 28 de (…) de 2011, através de escritura notarial, nessa data lavrada, no cartório notarial da Notária, Licenciada Laurinda (..), sito na Rua das (..), n.º …, no Porto, foi celebrado um contrato mediante o qual os primeiros réus, MANUEL (…) e mulher OLGA (…), transmitiram para a terceira ré, SARA (…) mediante um preço, a propriedade de um imóvel, “o prédio misto, correspondendo, em parte, a casa do rés-do-chão e primeiro andar, armazém, garagem, anexo e logradouro e por uma parcela de vinha da região demarcada do Douro de segunda classe, seis oliveiras de primeira classe, treze oliveiras de segunda, sete oliveiras de terceira e duas cerejeiras, sito em (…), da freguesia de São (..), concelho de Santa Marta de Penaguião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Marta de Penaguião, descrito na Conservatória do Registo predial de Santa Marta de Penaguião sob o número …, inscrito na matriz urbana sob o artigo …”.
.. Ou seja, foi celebrado um contrato de compra e venda, através do qual os primeiros réus MANUEL (…) e mulher OLGA (…), como vendedores, declararam vender, à terceira ré SARA (…), e esta, como compradora, declarou comprar àqueles, o referido imóvel.
Os vendedores eram, aquando da celebração do contrato de compra e venda referido, os únicos proprietários do imóvel que tem vindo a ser referido.
A propriedade dos vendedores sobre o imóvel que tem vindo a ser referido, resultou deles, vendedores, terem, nesse mesmo dia 28 de … de 2011, e através de escritura, lavrada no cartório notarial atrás referido, e anteriormente à escritura mencionada, adquirido a propriedade do imóvel em causa, ao Banco ... S.A..
Os primeiros réus haviam já sido proprietários de tal imóvel, até que, numa operação conhecida por lease back, o venderam àquela instituição de crédito, com quem depois celebraram, como locatários, um contrato de locação financeira, operações, essas, que foram levadas a registo no dia 26 de Maio de 2004, através, respetivamente, das Ap. 8 e Ap. 9, ambas desse dia.
Até 26 de Maio de 2004, a propriedade do imóvel em questão encontrava-se, definitivamente, registada no registo predial a favor dos primeiros réus.
10º O Banco ... S.A. era em 28 de Abril de 2011, o proprietário de tal imóvel.
11º Os 179.000,00 euros (cento e setenta e nove mil euros), pelos quais foi declarado que o imóvel em questão foi comprado pela terceira ré aos primeiros réus, são inferiores ao valor real que o imóvel tinha na altura, isto é, em 28 de Abril de 2011, pois que esse valor ascendia então, a cerca de 300.000,00 euros. (este facto não sofrerá alteração infra)
12º A terceira ré é filha dos primeiros réus.
13º Os referidos 179.000,00 euros não entraram no património dos primeiros réus. (este facto não sofrerá alteração infra)
14º Ao contrário do que se diz na escritura atrás referida, não foi paga pela compradora, isto é, pela SARA (…), nenhuma contrapartida. (este facto não sofrerá alteração infra)
15º O imóvel que tem vindo a ser referido, constituía, na altura, o único património penhorável dos primeiros réus, que, com a venda de tal imóvel, e o não recebimento do respetivo preço, ou o desaparecimento dele de tal património, deixaram de possuir quaisquer bens penhoráveis, situação que se manteve desde então até agora.
16º Além do autor, os primeiros réus têm também mais credores, e por valores significativos, como sejam, por exemplo, e entre outros: (este facto não sofrerá alteração infra)
- Francisco (…) o qual, de harmonia com a transação, levada a cabo, no dia 12 de Abril de 2016, e nesse dia homologada por sentença, no âmbito do processo que, sob o número 168/12.3TBPRG, corre os seus termos pela Secção Cível J2, da Instância Central de Vila Real, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, é solidariamente credor dos primeiros réus, como aliás também da terceira ré, pelo montante de 36.500,00 euros (vide o documento número 3 anexo);
- Armando (…). (este facto não sofrerá alteração infra)
17º O crédito do autor remonta aos anos de 2002 e de 2003, tendo o ato aqui judicialmente impugnado ocorrido em 24 de Novembro de 2011.
18º Os primeiros réus tinham total conhecimento e plena consciência, quando procederam à venda em causa do imóvel em questão, de que do ato em causa resultou a impossibilidade para o autor de obter a satisfação integral do seu crédito, pois que sabiam eles perfeitamente que essa venda iria causar prejuízo aos credores deles, nomeadamente ao autor. (este facto não sofrerá alteração infra)
19º A terceira ré, sendo filha dos primeiros réus, não podia ignorar, nem ignorava, a difícil situação financeira e económica em que tais primeiros réus, pais dela, se encontravam. (este facto não sofrerá alteração infra)
20º Bem sabendo também, disso tendo total consciência, que a venda do imóvel em causa iria causar prejuízo aos credores dos primeiros réus, designadamente ao autor. (este facto não sofrerá alteração infra)
21º Sabendo também todos os réus que a venda em causa visava ou tinha como motivo, subtrair o imóvel em questão à ação dos credores dos primeiros réus. (este facto não sofrerá alteração infra)
22º Em 28 de Abril de 2011, os primeiros Réus intervieram como compradores numa escritura de compra e venda que teve por objeto o prédio em causa, tendo intervindo nessa mesma escritura, na qualidade de vendedora, "BANCO ..., S.A.", a respetiva sociedade locadora.
23º Tal escritura titulou também a alteração/cessação do contrato de locação financeira que tinha por objeto o mesmo prédio e do qual era locadora a mesma sociedade bancária.
24º E, no mesmo dia e no mesmo Cartório Notarial foi celebrada a escritura junta com a petição inicial como documento 1.
25º Para pagamento do valor residual do contrato (80.742,00 €), a ré Sara emitiu o cheque da quantia de 86.754,42 € que se destinou ao pagamento desse valor e de outras despesas e custos administrativos respeitantes a todas as operações bancárias efetuadas.
26º Devido às suas dificuldades económicas, os 1ºs Réus, por várias vezes, incorreram em atrasos de pagamento das prestações.
27º Os 1ºs Réus pediram à locadora e esta aceitou uma reestruturação do contrato.
28º No mesmo dia do ato impugnado (28 de Abril de 2011), foi contraído um empréstimo junto do Banco (…) S.A., em nome da ré Sara, da quantia de 145.000 €, para garantia do qual constituiu uma hipoteca precisamente sobre o mesmo imóvel.

Factos não provados (que se manterão inalterados infra):

Com interesse para a decisão, não se provaram os seguintes factos:

- Os empréstimos feitos pelo autor aos réus foram todos eles de valor não superior a 2.000,00 euros cada um.
- Empréstimos cujo prazo de reembolso era de um ano.
- A letra foi entregue, como garantia e dação pro solvendo, do pagamento dos empréstimos.
- Entre o Autor e o Réu marido, e não também a Ré mulher, apenas houve transações comerciais que se prolongaram por vários anos, sensivelmente, até 2003.
- Apenas formalmente e não na realidade os primeiros Réus compraram o prédio em questão.
- Quem, de facto, o comprou à citada locadora foi a 2.ª Ré, apenas não tendo sido esta a comprá-lo logo e diretamente à locadora pela circunstância de, na vigência do contrato de locação, a venda só poder ser efetuada aos locatários, conforme informação da própria locadora.
- Por isso ocorreu a celebração de duas compras e vendas.
- Foi a 2.ª Ré quem pagou o valor residual do contrato.
- Os primeiros réus apenas cederam à 2.ª Ré a sua posição no referido contrato de locação financeira.
- Mesmo que os 1ºs Réus tivessem realmente comprado o prédio, não tinham outro remédio senão vendê-lo ou hipotecá-lo.
- Justificando-se a compra e venda para garantir o que já deviam à filha, 2.ª Ré, tanto pela indicada quantia do preço residual por ela paga, como pelas várias dezenas de milhares de euros que já lhe deviam de diversos empréstimos para fazer face a muitas situações de responsabilidades por eles assumidas, incluindo para pagamentos devidos no âmbito do referido contrato de locação financeira. (efetuando-se a correção do manifesto lapso de escrita apontado pelos Recorrentes, quanto à substituição da menção à hipoteca pela compra e venda, nos termos do artigo 249º do Código Civil e 613º do Código de Processo Civil)
- E devido a alguns desses atrasos, a citada locadora chegou a penhorar o vencimento da 1ª Ré mulher, como empregada de balcão de um estabelecimento comercial propriedade de seus pais.
- Uma situação dessas ocorreu entre Dezembro de 2009 e Junho de 2010.
- Mas porque, mesmo assim, os 1ºs Réus concluíram que continuavam a não poder cumprir, viram-se mesmo obrigados a ceder a sua posição contratual.
- E como tal se proporcionou com uma sua filha (2.ª Ré) não desperdiçaram essa oportunidade, para assim ficar na família o prédio em questão.
- E terem garantida a possibilidade de nele (parte urbana) continuarem a viver, como lhes foi garantido pela 2.ª Ré, tratando-se de pais e filha e sendo uma casa que, pela sua grandeza, permite perfeitamente nela viverem duas famílias.
- O negócio impugnado apresentou-se como a solução mais oportuna ao alcance dos 1ºs. Réus, já que a hipoteca, para além dos respetivos encargos, iria manter uma situação de dívida que eles nunca poderiam cumprir.
- Tanto mais que os únicos rendimentos de que então dispunham eram a reforma do 1º Réu marido de cerca de 300 € por mês e o referido vencimento da 1ª Ré mulher.
- Sendo que, entretanto, a já débil situação económica dos 1ºs. Réus piorou ainda mais, em virtude de a Ré mulher ter ficado desempregada.
- A 1ª Ré mulher e a 2.ª Ré não tinham sequer conhecimento de qualquer dívida do 1º Réu marido.

IV-Fundamentação de Direito

.1- Do regime jurídico aplicável à impugnação pauliana

a) Considerações gerais importantes para a decisão da causa:

A impugnação pauliana é, entre outros, um meio de conservação da garantia geral do cumprimento de obrigações, protegendo dos credores dos desvios que o devedor faça ao património, desde que este obstaculize ou agrave a dificuldade na satisfação dos seus créditos.
Verificados os seus pressupostos, o Autor obterá a declaração de impugnação do ato contra o qual reagiu e o reconhecimento do direito de executar, no património do adquirente, os bens validamente vendidos na medida necessária à satisfação do crédito do credor. O ato de alienação mantém a sua plena validade, dado não estar afetado por qualquer vício intrínseco, mas alteram-se os efeitos do ato apenas na medida do interesse do credor reclamante.

Tem os seguintes quatro pressupostos, previstos nos artigos 610.º a 612.º do Código Civil:

a) - a existência de um crédito (declarado ou não, vencido ou não - artigo 614º do Código Civil);
b) -a prática, pelo devedor, de um ato que não seja de natureza pessoal, que provoque, para o credor um prejuízo (a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade).

A diminuição da garantia patrimonial pode verificar-se, ou por uma redução do ativo do devedor, ou pelo aumento do seu passivo. Deve existir um nexo de causalidade entre o ato impugnado e a referida impossibilidade ou agravamento. O agravamento da impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação do seu crédito pode consistir na substituição dos bens do devedor por outros facilmente deterioráveis ou consumíveis. O momento a atender-se para averiguar se se verifica o requisito da insuficiência do património do devedor e bem assim da existência desses bens penhoráveis de igual ou maior valor é aquele em que ocorreu a transmissão.
c) - a anterioridade do crédito relativamente ao ato ou, se o crédito for posterior, ter sido o ato dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
d) - que o ato seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé (artigo 612º do Código Civil).

Basta o conhecimento da desconformidade do ato face ás regras jurídicas, a convicção da “conduta não ser reta conforme ao direito”, ficando afastada somente a negligência inconsciente. (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/11/2014, no processo 2868/03.0TBVIS-P.C1, sendo este e todos os acórdãos citados sem menção de fonte consultados no portal www.dgsi.pt na data da prolação desta). “A má-fé, enquanto requisito da impugnação pauliana, com ressalva da situação em que o acto a atacar for anterior à constituição do crédito, consiste na consciência do prejuízo que o mesmo causa ao credor, ou seja, na diminuição da garantia patrimonial do crédito, o que requer, tão-só, a verificação do elemento intelectual, comum ao dolo eventual e à negligência consciente, e não já do elemento volitivo, não sendo, por isso, necessário demonstrar a intenção de originar tal prejuízo.” cf Acórdão TRC de 09-02-2012 no processo 233/07.0TBCBR-C1.S1 “ O conceito normativo de má fé, para efeitos do art. 612º, nº2, do CC, envolvendo a consciência do prejuízo causado pelo acto impugnado à garantia dos credores do alienante, pode revelar-se sob a forma dolosa, em qualquer das suas modalidades, e ainda sob a forma de negligência consciente, estando, todavia, excluído de tal conceito a mera negligência inconsciente.. Na verdade, não se enquadra na expressão legal «consciência do prejuízo» a mera cognoscibilidade do efeito nocivo do acto impugnado sobre a garantia geral dos credores, que se não traduziu ou consubstanciou em efetiva representação ou conhecimento do prejuízo causado, ainda que decorrente da omissão de um pretenso dever de diligência no esclarecimento e averiguação, por parte do adquirente dos bens, de todas as circunstâncias envolventes do negócio, respetivas motivações subjetivas e efetiva situação financeira do alienante dos bens”.

A distribuição do ónus da prova foi prevista na estipulação do seu regime, como já supra aflorado, mantendo-se o credor onerado com a prova do seu crédito e da anterioridade dele em relação ao ato impugnado. No entanto, cabe ao devedor ou ao terceiro adquirente o ónus da prova da existência de bens penhoráveis de valor igual ou superior na titularidade do obrigado (611º do Código Civil).

.2- Dos requisitos avançados pelos Réus

Invocam os Réus dois requisitos suplementares para a procedência da impugnação pauliana: que o crédito já esteja previamente declarado ou, falhando este, que seja pedida a sua declaração, sem que, todavia, o fundamentem de direito.
Uma coisa é ter no processo por certo o crédito, isto é, apurar-se a existência do crédito, e esse é, de forma clara, um pressuposto da procedência desta ação; coisa diversa é a imposição de que o mesmo já esteja previamente declarado ou reconhecido em ação judicial ou a necessidade da sua declaração na própria ação impugnatória do ato.
O Recorrente não justifica de qualquer forma tais exigências e, como se viu, estas não decorrem, sequer indiretamente, de qualquer uma das normas que regulam o instituto, supra mencionadas e analisadas.
A título exemplificativo, veja-se que tal pedido não foi formulado no processo 903/11.7TBFND.C1. S1, como decorre do seu relatório (nomeadamente da transcrição do decisório da sentença) e, não obstante, o acórdão proferido em 10/01/2015, pelo Supremo Tribunal de Justiça, julgou procedente a ação.
Isto posto, avancemos para o cerne do recurso, que se traduz na impugnação da matéria de facto provada e não provada.

.3– Da impugnação da matéria de facto

3.1 Requisitos para o conhecimento desta questão

Para que possa ser apreciada a razão do Recorrente quanto à decisão tomada na sentença sobre a matéria de facto, importa que sejam cumpridos os ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil e que os factos impugnados pelo Recorrente tenham alguma relevância na apreciação da causa.

Não há dúvidas nos autos quanto a estes requisitos, pelo que não é necessário aprofundá-los, carregando esta decisão com informação inútil.

3.2 -Dos critérios para a apreciação da impugnação da matéria de facto

Na reapreciação dos meios de prova deve-se assegurar o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância -, efetuando-se uma análise crítica das provas produzidas.

É à luz desta ideia que deve ser lido o disposto no artigo 662º nº 1 do Código de Processo Civil, o qual exige que a Relação faça nova apreciação da matéria de facto impugnada, recorrido a todos os meios de prova produzidos, mesmo que não atendidos na sentença recorrida.

A falta da imediação de que padece o tribunal de recurso pode limitar o acesso a uma mais profunda apreciação da convicção com que são proferidas as declarações dos intervenientes processuais (veja-se que a comunicação humana não é apenas verbal, não bastando muitas vezes, para a sua correta do transmitido, a interpretação das palavras e inflexões da voz, exigindo-se, também, que estas sejam contextualizados com os gestos, a postura corporal, os olhares, todos estes demais elementos, consistentes na comunicação não verbal e tantas vezes afastadas da possibilidade de controlo do declarante e por isso mais fidedignas). No entanto, a Relação pode e deve livremente fazer operar a sua livre convicção, caso da audição da prova gravada resulte a sua segura convicção, mesmo em desacordo com a sentença, tendo, obviamente, em conta todas as razões expressas na sentença que levaram a diversa conclusão.

Como explanado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2012 no processo 649/04.2TBPDL.L1.S1, (sendo este e todos os acórdãos citados sem menção de fonte consultados no portal www.dgsi.pt) “A reapreciação das provas que a lei impõe ao Tribunal da Relação no artigo 712.º, n.º 2, do CPC, quando haja impugnação da matéria de facto que haja sido registada, implica que o tribunal de recurso, ponderando as razões de facto expostas pelos recorrentes em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, forme a sua prudente convicção que pode coincidir ou não com a convicção do tribunal recorrido (art. 655.º, n.º 1, do CPC)”.

A reapreciação da prova não se reduz a um controlo formal sobre a forma como o Tribunal de 1.ª instância justificou a sua convicção sobre as provas que livremente apreciou, evidenciada pelos termos em que está elaborada a motivação das respostas sobre a matéria de facto.”

Apesar disso, como afirma Abrantes Geraldes, obra citada, p. 155 e ss, sem esquecer que atualmente é função normal da Relação a manutenção ou possibilidade de alteração da matéria de facto provada pela 1ª instância, dentro das condições previstas por lei, “foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislado optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.”

Visto que vigora também neste tribunal o princípio da livre apreciação da prova, há que mencionar que esta não se confunde com a íntima convicção do julgador.

A mesma impõe uma análise racional e fundamentada dos elementos probatórios produzidos, que estes sejam valorados tendo em conta critérios de bom senso, razoabilidade e sensatez, recorrendo às regras da experiência e aos parâmetros do homem médio.

Porque baseada em critérios objetivos, é suscetível de controlo.

Se o tribunal de recurso, com base em critérios racionais, concluir, com a necessária certeza, que houve um erro na apreciação da prova, porque esta deveria ser analisada em sentido diferente, deve proceder em conformidade, fazendo proceder a impugnação da matéria de facto nessa medida. Ao efetuar tal juízo, não obstante, nos casos de fronteira, deve-se ter em conta o afastamento que o tribunal de recurso tem de determinado tipo de provas, como a gravada e inspeção ao local.

E como alcançar tal certeza?

A formação da convicção não se funda na certeza absoluta quanto à ocorrência ou não ocorrência de um facto, em regra impossível de alcançar, por ser sempre possível equacionar um acontecimento, mesmo que muito improvável, que ponha em causa tal certeza, mas num alto grau de probabilidade.

“Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz – meio da apreensão e não critério da apreensão – a ideia de que mais do que ser possível (pois não é por haver a possibilidade de um facto ter ocorrido que se segue que ele ocorreu necessariamente) e verosímil (porque podem sempre ocorrer factos inverosímeis), o facto possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.” cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2014 no processo 1040/12.2TBLSD-C. P1

A convicção do julgador é obtida em concreto, face a toda a prova produzida, com recurso ao bom senso, às regras da experiência, quer da vida real, quer da vida judiciária, à diferente credibilidade de cada elemento de prova, à procura das razões que conduziram à omissão de apresentação de determinados elementos que a parte poderia apresentar com facilidade, a dificuldade na apreciação da prova testemunhal e a fragilidade deste meio de prova.

3.3 Das questões centrais nestes autos no que toca à impugnação da matéria de facto provada

São dois os problemas, em termos gerais, que cumpre apurar nestes autos: da obrigação assumida pelos Réus perante o Autor no pagamento da quantia de 95.111,00 €, o que se faz apurando da veracidade da assinatura aposta pelo Réu na letra e declaração de dívida e da posição da 2ª Ré nessas declarações; como infra melhor se verá, aquando da pronúncia sobre os concretos factos 1º e 2º da matéria de facto provada e na fixação o estado subjetivo das partes.

Quanto a este último aspeto cumpre ter em conta que a prova de factos como a intenção, conhecimento ou vontade só por meios indiretos se pode fazer, recorrendo a outros factos que as vão revelando, ainda que todos concatenados, através das regras da experiência comum, da razoabilidade.

Na impugnação pauliana, face ao objetivo tantas vezes enganatório da mesma, ou pelo menos o conhecimento que o ato causa prejuízo ao credor, a prova direta será praticamente impossível, dada a intenção de camuflagem ali pretendido.

Sobre tais factos que vão revelando o ocorrido, escreve-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2007 no processo 07P4588: “Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indireta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra.” E conclui, para área do direito penal, onde a prova se pode considerar ainda mais exigente “IV - A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova direta (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência - O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, direto, segundo as regras da experiência.”

No presente caso as circunstâncias, serão, caso se conclua pela existência do crédito, em abstrato, propícias à impugnação pauliana: o 1º Réu, casado com a 1.ª Ré no regime de comunhão de adquiridos, será devedor de avultadas quantias ao Autor, a 2.ª Ré é filha dos Réus, tendo todos os Réus interesse na manutenção do património junto da esfera jurídica dos primeiros, nomeadamente a 1.ª Ré, por ter sido a titular do imóvel e casada com o devedor e a 2.ª Ré, quer pela sua futura condição de herdeira, quer pela especial relação de confiança que a todos une, atentos os laços familiares e de parentesco.

Os primeiros Réus estavam em risco de perder a disponibilidade do imóvel, quer face à penhora, quer face aos débitos avultados assumidos pelo Réus, demonstrado pela transação celebrada com terceiro e, provando-se o crédito do Autor, também por este.

3.4 Concretização

Com estas ideias em mente, passemos, pois, à análise dos diversos pontos da matéria de facto que são impugnados pelo Recorrente.

Invocam os Recorrentes que os documentos juntos aos autos, de que a sentença se socorreu para motivar a matéria de facto provada e não provada, por ter considerado que a prova testemunhal não era suficientemente segura para nela se fundar, é também por si incapaz de justificar a demonstração dos factos dados como provados supra sublinhados.

Vejamos, pois, os elementos documentais mais relevantes produzidos neste processo, a fim de verificar se os mesmos permitem com a necessária segurança, ainda que concatenados e lidos à luz da experiência comum, concluir no sentido fixado pela sentença ou, ao invés, seguir na medida do defendido pelos Recorrentes.

12: contrato de compra e venda de 28 de abril de 2011 entre os primeiros Réus e a 3º Ré, que ali consta como sua filha;
14: certidão permanente da Conservatória do Registo Predial, onde consta, de mais relevante, a aquisição do imóvel pelo Banco … por inscrição de …, por compra, locação financeira por registo da mesma data, penhora datada de … para garantia de 4.789,26 €, e por inscrições de 28-4-2011 a aquisição pelo 1º Réu, cancelamento da locação financeira por compra pela 2.ª Ré aos 1º Réus e constituição de hipoteca em que esta figura como sujeito passivo e por inscrição de 16-5-2012 nova penhora em que figura como sujeito ativo “ (…) desenvolvimento de software, Lda.” para garantia de 42.152,01 €;
17: ata de audiência final do processo nº 168/12.3TBPRG, com homologação de transação em que os Réus se obrigam a pagar a Francisco (…) a quantia de 36.500,00 €;
30: conjunto de letras sacados pelo Réu em que figura como sacador o Autor, do ano de 2001, 2002, 2003;
34: alteração do contrato de locação financeira datada de 21-7-2010;
36v: cheque emitido pela 2.ª Ré a favor do BANCO ..., em 28-4-2011, no valor de 86.754,4€;
38v: comunicação de aprovação de contrato locação financeira de 28-4-2011;
42v: mútuo com constituição de hipoteca sobre o imóvel constituído pela 2.ª Ré a favor do Banco (…), datada de 28-4-2011, com a finalidade de aquisição do mesmo;
132 original da letra no valor de 95.111,00 €, datada de 31-02-2005, referente a “vários empréstimos”, sacada pelo Autor e em que figura como sacado o Réu, aceite, mas cuja assinatura se mostra impugnada pelo Réu. Essa assinatura foi sujeita a perícia, cujo relatório concluiu que é provável que a mesma fosse da autoria do 1º Réu;
258: declaração emitida pelo Réu, com data de 31 de março de 2005, junta por este, mas cuja autoria é também impugnada pelo mesmo, na qual afirma: “declaro que nesta data tendo sido feito um acerto de contas, nada me é devido pelo Sr. António (…), a quem fiquei a dever 95.111 €, relativamente aos diversos empréstimos que me foram feitos por aquele senhor a quem aceitei uma letra de igual importância”;

Vejamos, pois, facto por facto, se os factos impugnados têm sustento nesta prova e mostrando-se a mesma parca, se a demais prova junta aos autos os suportam, face ao supra exposto, quanto aos deveres deste tribunal aquando da apreciação da matéria de facto e obtenção da sua livre convicção quanto aos mesmos.

.a. Quanto aos factos provados 1º e 2º: O 1º O autor é credor dos primeiros réus, pela importância de 95.111,00 euros (noventa e cinco mil cento e onze euros), proveniente de vários empréstimos, feitos a tais réus, durante os anos de 2002 e 2003. Tal importância encontra-se titulada por uma letra de câmbio, aceite pelo primeiro réu marido, e da qual o autor é portador.

Invoca o Réu que a letra não demonstra estes factos, porque desacompanhada da alegação do circunstancialismo da sua emissão, nomeadamente como, quando e por quem tinha sido preenchida e assinada, montante e data de vencimento, ao que acresce ter sido junta um ano depois da apresentação da petição inicial. Mais afirma que o normal seria terem sido assinadas duas letras, por o Autor ter invocado que os empréstimos tinham data de vencimento de anos diferenciados: 2002 e 2003. Mais afirma que não tem credibilidade que tenham sido efetuados empréstimos em número superior a dois por mês nesse período e que a declaração de fls. 258, porque junta pelo Réu para desacreditar a letra só poderia ser valorada para esse fim. Ainda refere que embora não o tenha efetuado no requerimento em que requereu a junção desse documento, imediatamente antes da prolação do despacho de admissão do mesmo, em sede de audiência final, afirmou “falta acrescentar que o Réu impugnou a autoria dessa declaração de dívida”.

Ouvida a gravação, efetivamente confirma-se tal acrescento impugnatório da autoria do documento de fls. 258.

Isto posto, não tendo o Réu aceite que assinou estes documentos, importa apurar da sua credibilidade. E para tanto há que recorrer aos demais elementos de prova dos autos.

Já foi mencionado na sentença o relatório pericial que aponta para a veracidade da assinatura do Réu sob o aceite da letra.

A testemunha Francisco (…) apenas referiu que o Autor se queixou que o Réu lhe devia cerca de cem mil euros, mas nunca viu nenhum documento. No entanto, o que infra nos interessará, acrescentou que também intentou contra o Réu uma impugnação pauliana, tendo as partes alcançado transação nesses autos.

A testemunha Armando (…) mencionou que o Réu lhe devia dinheiro. Foi perentório em afirmar que o Autor fez empréstimos ao Réu no tempo do escudo e do euro, mas não sabe concretamente quando, situando o valor em dívida em cerca do valor de 90.000,00 e 100.000,00 €. Como razão de ciência, além do que lhe contaram o Autor e Réu, descreveu de forma vívida como o Réu lhe jurou que lhe pagaria as quantias que lhe devia, assim como ao Autor, mas dizendo-lhe que primeiro pagaria ao Autor, porque lhe devia muito dinheiro. Prestou o seu depoimento de forma muito convicta e foi muito concreto nas suas afirmações, não tendo pruridos em afirmar que não conhecia todos os factos que lhe eram perguntados, sendo consistente a descrever aqueles que conhecia. Afirmou que tinha letras do Réu “passadas” em branco e cheques, sendo que ultimamente este para pagamentos de diversas coisas lhe entregou cheques do filho e da filha.

Entende-se que as simples declarações da 2.ª Ré não são de modo algum suficiente para pôr em causa este depoimento, porquanto estas contrariam de forma muito patente as mais simples regras da experiência comum. A declarante afirmou que apenas sabia que os seus pais deviam dinheiro ao banco, relativo à aquisição da sua casa. Ora, não é credível que alguém, que viva com os seus pais, que tenha a profissão de gerente bancária e logo não só familiarizada com estes tipo de assuntos, mas com especiais conhecimentos na área, que tenha emprestado dinheiro aos seus pais (de valores relevantes, como esta afirma), lhes tenha comprado a casa na data em que o contrato de locação financeira teve o seu términus, não conheça com pormenor os seus problemas económicos, nomeadamente as suas dívidas a outras pessoas, duas das quais determinaram penhoras, uma anterior à aquisição (a favor da “Caixa …”), como resulta da certidão permanente da Conservatória do Registo Predial e outra que foi objeto de ação constitutiva, em que também veio a ser Ré, como resulta da certidão da homologação da transação. A tal obsta a convivência na mesma casa, as relações pessoais, das mais fortes, que os unem, a ajuda financeira que a filha prestou aos pais, que só se concebe que lhe fosse pedida com a prestação de informação sobre a situação económica em que se encontravam (se esta não a conhecesse já), a comunhão de interesses na salvaguarda do património que foi adquirido pela família e a exposição da existência de outras dívidas expressa na certidão permanente da Conservatória do Registo Predial.

Enfim, dá-se credibilidade ao depoimento desta testemunha e não às declarações da 2.ª Ré.

A testemunha José … disse que o Réu lhe mostrou cheques e letras do dinheiro que o Autor lhe emprestava e que este lhe indicou que lhe tinha já emprestado cerca de cem mil euros. Atribuiu ao imóvel o valor de cerca de duzentos mil euros. Também nada põe em causa a veracidade do seu depoimento, atenta a dúvida colocada às declarações da 2.ª Ré.

Ora, toda a prova testemunhal produzida, com particular relevo para o depoimento de Armando …, conjugado com o relatório pericial fazem concluir, com segurança, pela veracidade da assinatura da letra de fls. 132, assim se credibilizando tal documento. Destes elementos também se conclui pela veracidade da assinatura da declaração de fls. 158, a qual explica em que circunstâncias e termos foi a letra assinada.

O facto de o documento não ter sido junto com a petição inicial não os descredibiliza (os Réus afirmam-no, mas não o justificam, sendo que não se sabe o que determinou tal atraso na junção, visto que são pouco compreensíveis as razões apresentadas pelo Autor nas declarações que prestou nos autos, afirmando que teve medo que o Réu entre a junção e o julgamento agisse em represália). E o próprio Autor esclareceu que embora tenha escrito os documentos, estes foram logo assinados pelo Réu, não existindo, pois, qualquer pacto de preenchimento que tivesse que ser provado.

Resulta patente das declarações do mesmo que este confundiu 1995 com 2005, o que pode ocorrer com facilidade, com pessoas já reformadas e com bastantes anos de vida (nasceu em 1953, como resulta de fls.19), sem afastar a sua credibilidade. Assim, as suas imprecisões quanto à data dos empréstimos, ou ás declarações de “dívida e não dívida”, e sua transcrição em um ou dois documentos, não põem em causa a existência dos créditos (e veracidade dos documentos), face às declarações escritas realizada pelas testemunhas.

O Réu afirma que o normal seria terem sido assinadas duas letras, por o Autor ter invocado que os empréstimos tinham data de vencimento de anos diferenciados: 2002 e 2003, o que não corresponde à verdade, face à referida declaração, que menciona um acerto de contas em data posterior ao dos empréstimos.

Conclui-se, assim, que o Réu declarou por escrito que devia 95.111,00 € ao Autor, assinando uma declaração e uma letra nesse sentido. Há que dar credibilidade a tal declaração. E dizendo este, nesses documentos, que esse débito diz respeito a diversos empréstimos, tudo isto confirmado pelo Autor na sua petição inicial, também se lhe há que dar crédito (não obstante estes empréstimos, em abstrato, não fossem estas condições, se considerassem no âmbito da fraca probabilidade).

Com efeito, não é de prever que alguém realize, durante dois anos, um conjunto de empréstimos (todos de valor inferior a 2000,00 €, o que daria uma média muito superior a um por mês, caso fossem regulares) até perfazer o valor de cerca de 95.000,00 €. Mas o Réu assinou declarações confessórias nesse sentido e por isso não era ao Autor que cumpria provar a realização desses empréstimos: o Autor beneficia da presunção concedida pelo artigo 458º do Código Civil, sendo certo que o mesmo alegou na petição inicial a relação fundamental.

Mas de qualquer forma, tal falta de probabilidade não corresponde à sua total impossibilidade e tendo-se Autor e Réu a afirmar tais factos, documentalmente, sem que se prove qualquer coação ou falta de liberdade na prolação dessas declarações, sempre haveria que lhes dar total credibilidade confessória.

Aplica-se, ainda, aqui a explicação dada no Acórdão deste Tribunal, de 11/23/2017, no processo 3144/13.5TBGMR-A.G1, referente a um cheque, mas cujo regime, nesta parte se aplica mutatis mutantis, à letra de câmbio destes autos, também prescrita: “ II-O cheque, prescrito, por conter o reconhecimento de uma dívida que se traduz numa ordem de pagamento, dispensa o credor de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário (cfr. art. 458.º, n.º 1 do CC) mas deve cumprir o ónus de alegação dos respectivos factos. III-Cumpre, por seu turno, ao declarante, ., alegar e provar que a relação fundamental, fonte do negócio, não existe, é anulável ou nula, ou se extinguiu, apesar do reconhecimento da dívida (cfr. art. 344.º, n.º 1 do CC).”

O Autor cumpriu este ónus, alegando que a dívida teve origem em diversos empréstimos que concedeu ao Réu, tal como consta da declaração que este juntou aos autos.

Por outro lado, o Réu não afastou a validade ou manutenção da obrigação ali descrita, provada que foram as efetivas assinaturas da letra e da declaração de dívida.

O princípio da aquisição processual implica que “O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las”, como dispõe o artigo 413º do Código de Processo Civil; sem que aqui exista qualquer disposição que declare irrelevante a alegação dos factos constantes das declarações, por não terem sido alegados por determinado interessado.

A extensão da declaração de dívida à 1.ª Ré, cônjuge do Réu, também foi posta em causa na própria contestação, onde se não só se nega a dívida, como se refere que as transações comerciais que existiram não englobaram a 1.ª Ré.

O Autor alega que o empréstimo foi efetuado a ambos os Réus. No entanto, das declarações juntas só resulta que o empréstimo foi efetuado ao 1º Réu, nada permitindo alargar o mesmo à 1.ª Ré, tanto mais que o Autor não alegou que os Réus eram casados à data da constituição da dívida, nem o proveito comum e que o empréstimo foi tomado no âmbito dos normais poderes de administração.

Há, pois, apenas, que extirpar do ponto 1º da matéria de facto provada a expressão mais conclusiva e a referência à 1.ª Ré, passando este a ter a seguinte redação: “O primeiro Réu obrigou-se a pagar ao Autor a importância de 95.111,00 euros (noventa e cinco mil cento e onze euros), proveniente de vários empréstimos, feitos a tal Réu, durante os anos de 2002 e 2003.”, mantendo, no mais, estes factos provados.

.b. Quanto ao facto provado nº 11º: Os 179.000,00 € (cento e setenta e nove mil euros), pelos quais foi declarado que o imóvel em questão foi comprado pela terceira ré aos primeiros réus, são inferiores ao valor real que o imóvel tinha na altura, isto é, em 28 de Abril de 2011, pois que esse valor ascendia então, a cerca de 300.000,00 euros.

É a 2.ª Ré que acaba por assumir este facto, nas suas declarações de parte, pelo que se deve manter como provado, não obstante a sentença o não ter fundamentado.

.c. Quanto aos factos provados 13º e 14º : Os referidos 179.000,00 euros não entraram no património dos primeiros réus. Ao contrário do que se diz na escritura atrás referida, não foi paga pela compradora, isto é, pela SARA (…), nenhuma contrapartida.

Nas suas declarações de parte, a 2.ª Ré afirmou que pagou o montante necessário para extinguir a locação financeira ao próprio banco (o que se mostra documentalmente provado) e que não pagou aos seus pais a totalidade do restante, porquanto se compensou de outros empréstimos que lhes havia concedido. Certo é que esta não juntou nos autos qualquer comprovativo do pagamento de quantias aos seus pais, nem foi junto comprovativo da entrada do restante preço em falta no património destes. Assim, face a todos os contornos dos autos e à falta de junção de qualquer prova, de fácil demonstração, de tais pagamentos, mais não há que considerar este facto provado: o preço acordado não entrou no património dos seus pais.

.d. Quanto ao facto 16º: Além do autor, os primeiros réus têm também mais credores, e por valores significativos, como sejam, por exemplo, e entre outros, Armando ….

Este facto foi referido por esta testemunha, de forma clara e convicta, nada o infirmando. Há que o manter.

.e. Quanto ao facto 18º :Os primeiros réus tinham total conhecimento e plena consciência, quando procederam à venda em causa do imóvel em questão, de que do ato em causa resultou a impossibilidade para o autor de obter a satisfação integral do seu crédito, pois que sabiam eles perfeitamente que essa venda iria causar prejuízo aos credores deles, nomeadamente ao autor.

Face a todos os contornos do caso, impossível é que quer o 1º Réu, quer a 1.ª Ré, casados entre si, não soubessem das consequências dos seus atos. Porque os Réus são casados, coabitam e vivem em comunhão, partilhando, como descreveu a 2.ª Ré nas suas declarações, as despesas, sustentando ambos, como podiam, a sua casa, com a pensão do primeiro e o vencimento da 1ª Ré (sem que, no entanto, se possa afastar que tenham ambos também outros rendimentos que ajudassem no custeio das suas despesas), fazem as regras da experiência comum considerar que conheciam os problemas económicos que que padeciam e que podiam, como se viu, face às penhoras realizadas e ao processo que contra eles correram seu curso, pôr em causa a Quinta que adquiriram e onde habitam. Assim, ambos os membros do casal tinham que conhecer as dívidas assumidas e a falta de outro património em seu nome, pelo que tinham que saber que os seus credores iam deixar de ter a possibilidade de recuperar os montantes emprestados. Desta forma, agindo como agiram, de livre vontade e sabendo das consequências desses atos, apura-se o seu dolo direto.

.f. Quanto aos factos 19º, 20º e 21º: A terceira ré, sendo filha dos primeiros réus, não podia ignorar, nem ignorava, a difícil situação financeira e económica em que tais primeiros réus, pais dela, se encontravam. Bem sabendo também, disso tendo total consciência, que a venda do imóvel em causa iria causar prejuízo aos credores dos primeiros réus, designadamente ao autor. Sabendo também todos os réus que a venda em causa visava ou tinha como motivo, subtrair o imóvel em questão à ação dos credores dos primeiros réus.

Também aqui todo o circunstancialismo em causa demonstra claramente estes factos.

É certo que a 2.ª Ré o nega, mas as suas afirmações são claramente infirmadas por toda a prova produzida, como se viu. A mesma vivia com os seus pais, como a mesma refere, sabia que estes tinham problemas financeiros, por não poderem sequer pagar as prestações da sua casa. Chegou mesmo a passar cheques a favor de outros credores dos seus pais, como referiu a testemunha Armando … . Assim, esta Ré não falou verdade quando afirmou que não sabia que os seus pais tinham outras dívidas.

As consequências que a 2.ª Ré afirma poder vir a sofrer por causa desta compra, por ser gerente bancária, não só não estão bem esclarecidas, como todo este comportamento foi tomado tendo como crença que não seria descoberto (de outro modo carecia de sentido), pelo que não são indício da veracidade das suas declarações.

O Autor explicou que esta Ré assistiu à conversa que teve na casa onde vivia, com o seu pai, em que lhe pediu o pagamento do que lhe devia, tendo-lhe este mostrado os títulos dos PPR que estava à espera de receber. Enfim, atenta a partilha de habitação, o facto destas matérias não serem estranhas à Ré que é gerente bancária, ter passados cheques a outros credores a pedido do seu pai, ter-lhe comprado a casa e conhecer os seus problemas bancários, não se concebe que a mesma não conhecesse os seus problemas financeiros e dívidas, nem conhecesse a normal consequência que tal compra ia ter na garantia patrimonial dos créditos de terceiros sobre os seus pais, perdendo tais créditos, como o do Autor, a possibilidade de virem a ser pagos, por falta de bens que pudessem responder.

Por outro lado, apesar de ter comprado a casa, quem lá continua a viver, como também acabou por ser afirmado por esta Ré, são os seus pais, mantendo a 2.ª Ré residência na habitação, que diz arrendada, sita na localidade em que os seus filhos frequentam a escola (a Régua). Afirma que comprou a casa dos seus pais assumindo a obrigação de permitir que estes continuem a lá viver até à sua morte, embora não ficasse a constar da escritura a constituição de usufruto a favor daqueles Réus. Este facto, por si só, infirmando, pelo menos em parte, o teor da escritura de compra e venda logo põe em causa a veracidade do seu teor e demonstra a vontade de não ficar a constar do registo qualquer bem ou direito a favor do Réu ou do casal.

Também a 1.ª Ré tem todo o interesse em que o imóvel dos autos não responda pela dívida, podendo continuar a usufruir do mesmo. Enfim, verifica-se uma tentativa, por todos os Réus, de esconder o património, a fim de lograr que este não responda pelos seus créditos.

Também este facto é de manter.

.g.Quanto à matéria de facto não provada

Desconsiderada a credibilidade da 2.ª Ré, quase nada pode sustentar a matéria de facto não provada, sendo que é, aliás, nestas declarações que os Recorrentes fundam a prova de toda a sua versão. Aliás, de modo contraditório, a 2.ª Ré afirmou que pagou aos seus pais montantes que extravasam o preço necessário para expurgar o leasing: na versão que apresenta, a compra nunca se pode considerar efetuada a essa entidade, uma vez que além de expurgar o ónus, teria pago aos seus pais quantias relativas ao preço acordado na compra e venda, que se outra forma se não justificariam. Enfim, na sua versão, para ter tido necessidade de pagar aos seus pais, sempre lhes terá que ter adquirido alguma posição jurídica vantajosa.

Tendo em conta a facilidade com que se transfere dinheiro, apesar de documentalmente comprovado que o montante mutuado à 2.ª Ré foi, em parte, entregue à Locadora Financeira para o pagamento do preço residual, daqui não se pode concluir que foi efetivamente esta Ré que pagou tal preço, com a necessária segurança. Como se diz na sentença, é possível e provável que esse dinheiro viesse a ser devolvido, pelo que o documento em causa não assegura tal pagamento.

Todo o circunstancialismo destas compras e vendas e a admissão, pela 2.ª Ré, da existência de declarações não constantes das escrituras, como a constituição de uma espécie de usufruto a favor dos primeiros Réus e as compensações de dívidas entre eles, retiram toda a credibilidade à versão dos Recorrentes.

Não se podem dar como provados os factos não provados.

4. Aplicação das regras jurídicas aos factos ora apurados

Fundam os Recorrentes a improcedência da ação na alteração da matéria de facto provada e não provada. Foram já supra explanadas as normas jurídicas que fundam o instituto aqui em causa, bem como os requisitos para a sua procedência, que não é necessário repetir.

A única questão que agora se levanta é se a normal execução da totalidade do bem, com se pertencente à 2ª Ré, é impedida pelo facto do bem se integrar no património do casal constituído pelos 1ºs. Réus, sem que a 1ª Ré possa aqui ser considerada devedora do Autor, mas tão só interveniente no negócio realizado.

Entende-se, por um lado, que mesmo que não existam aqui elementos que conduzam à comunicabilidade da dívida à 1.ª Ré, permanecem todos os requisitos supra mencionados, sendo que esta passa a ter posição semelhante à da 2.ª Ré, participando, também como interessada, no ato impugnado, como se aprofundará infra.

Mantém-se o primeiro requisito deste instituto: a existência de um crédito do Autor sobre o primeiro Réu. Igualmente se mantém a prática pelo devedor, 1º Réu, de um ato que não é de natureza pessoal, que provocou, para o credor um prejuízo (a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade), visto que ficou sem o imóvel que deteve na sua propriedade e garantia o crédito, não se conhecendo outros que sejam suficientes para pagar ao credor.

O ato tem natureza gratuita (visto que se provou que nada foi pago aos primeiros Réus pela 2.ª Ré); mesmo que fosse oneroso, provou-se que o devedor e as demais Rés agiram de má-fé com consciência do prejuízo que causavam.

Assim, dá-se a ineficácia da venda que os primeiros Réus fizeram à 2.ª Ré e tem o autor direito à restituição do imóvel em causa aos primeiros Réus, na medida do interesse dele, autor, podendo executá-lo no património da terceira Ré, e praticar sobre tal imóvel os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei.

Não obstante, importará ainda ponderar-se se haverá que restringir os efeitos desta ineficácia na medida em que o bem pertencia anteriormente a ambos os membros do casal, 1ºs Réus, e apenas se provou que o 1º Réu era responsável pela dívida.

Vejamos.

Como é sabido, a impugnação pauliana não torna o ato de disposição inválido, mas apenas ineficaz na medida do necessário para que não ocorra prejuízo na esfera patrimonial do credor. Assim, mantendo-se o ato de disposição válido, mantém-se vigente e com produção de efeitos toda a parte do ato que não é necessário para a garantia do crédito (cf., neste sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7ª edição, Vol. II, pág. 458 e Pires de Lima e Antunes Varela , C.Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 633:“…sacrificando o acto apenas na medida do interesse do credor impugnante, mostra-se claramente que ele não está afectado por qualquer vício intrínseco capaz de gerar a sua nulidade, pois se mantém de pé, como acto válido, em tudo quanto excede a medida daquele interesse …”)

Desta forma, há que ter em conta que a impugnação pauliana tem como objeto executar um bem que passou a ser de terceiro, a filha dos Réus, pelo que já não interessa, no momento da execução, se este era próprio ou comum do casal: o direito de propriedade do bem não regressa aos 1ºs. Réus, seus anteriores proprietários - o bem mantém-se na titularidade da 2.ª Ré.

E recorrendo a critérios e justiça, cita-se a sentença proferida no processo 13/11.7TBPSR, na parte reproduzida no acórdão de revista excecional do Supremo Tribunal de Justiça de 03/12/2015, no processo 13/11.7TBPSR.E1.S1, que confirmou integralmente a decisão de apelação que sufragara também este entendimento “Neste contexto, a solução mais adequada é a de permitir que a impugnação pauliana atinja o bem na totalidade, ainda que na prática implique uma ampliação da garantia patrimonial do credor, sob pena de os interesses do cônjuge não devedor prevalecerem injustificadamente sobre os daquele primeiro. Isto, tanto mais que se a transmissão foi onerosa, nomeadamente por venda, à partida terá ingressado o respetivo preço no património comum do casal e, se gratuita, então presidiu-lhe um espírito de liberalidade, não se vislumbrando iniquidade da solução para o cônjuge não devedor. … Assim, no caso de impugnação de ato de alienação de bem comum por ambos os cônjuges (. . .), aquele bem que, antes da transmissão, fora um bem comum do casal, com a transmissão, que se considera válida, valendo o título contra o credor, deixou de ter esta qualidade por referência ao património em que anteriormente estava integrado. Compreende-se, pois, que, depois da transmissão, não poderá falar-se de partilha do património comum do casal transmitente a fim de se verificar a qual dos dois cônjuges é deferido o bem transmitido. O bem já não integra o património destes cônjuges, mas o património de terceiro. …E em face de uma eventual responsabilidade perante o terceiro adquirente, por ter estado em causa a transmissão de um bem comum e por ambos os cônjuges, na medida em que responda um bem comum, então sempre poderá ser lançada mão da medida prevista no nº 2 do art. 1697° do Código Civil caso venha a ser responsabilizado pelo terceiro nos termos do nº 1 do art. 617° do Código Civil”. No mesmo sentido decidiram, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de
10/12/2017 no processo 89/08.4TBVLF.C1.S1 e de 11/06/2008, no processo 07B4517.


Termos em que se mantém a decisão operada na sentença em recurso.

V-Decisão

Por todo o exposto, julga-se a apelação improcedente e em consequência mantém-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes. (artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil)
Guimarães, 21 de fevereiro de 2019

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Fernanda Proença Fernandes