Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
552/19.1PAVNF.G1
Relator: HELENA LAMAS
Descritores: DECISÃO IRRECORRIVEL
REJEIÇÃO DA SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
DESPACHO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
A decisão instrutória que rejeita a suspensão provisória do processo requerida pelo arguido no requerimento para abertura da instrução e que o pronuncia pelos factos descritos na acusação do Ministério Público é irrecorrível, por força do artigo 310º, nº1 do C.P.P., sendo que o despacho proferido em primeira instância que admite o recurso respectivo não vincula o tribunal superior.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. A decisão
No Processo de Instrução nº 552/19.... do Juízo de Instrução Criminal ..., foi proferida, em 31/5/2022, decisão instrutória, que negou provimento ao requerimento de abertura da instrução e pronunciou, para julgamento em processo comum e perante Tribunal singular, o arguido AA pelos factos e disposições normativas constantes da acusação pública de fls. 256 a 260.

1.2. O recurso
1.2.1. Das conclusões do arguido

Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

O princípio em matéria de recursos é o de que é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei (cfr. o artigo 399º do Código de Processo Penal), sendo que, relativamente à suspensão provisória do processo, se diz no nº5 do artigo 281º do mesmo Código, que a decisão de suspensão, nos termos do nº1 não é recorrível.
Na fase da instrução, ao contrário da hipótese colocada no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 16/2009, de 24 de dezembro de 2009, os papéis invertem-se: o Juiz de Instrução, enquanto dominus do processo nesta fase, decide a questão, devendo obter a concordância do Ministério Público (que na fase do inquérito decidia), pelo que se deve entender que a decisão é recorrível.
3ª Na decisão recorrida indeferiu-se o requerimento, apresentado pelo arguido, de suspensão provisória do processo, baseando-se tal decisão, única e exclusivamente, na discordância do assistente quanto a esta questão.
4ª A al. a) do n.º 1 do artigo 281.º do CPP, ao conferir ao assistente a possibilidade de verdadeiramente conformar esta decisão de acordo com as suas intenções, está a condicionar o exercício da ação penal e a independência dos Tribunais.
5ª A lei ordinária ao permitir que a aquiescência do assistente à requerida suspensão provisória do processo seja condição sine qua non de aplicação de tal instituto, permite que aquele tome as rédeas do processo penal e o conduza segundo o seu próprio arbítrio.
6ª Desta forma, quer o Ministério Público, quer o Juiz de Instrução acabam por decidir contra as suas próprias convicções, tomando uma posição que não é a sua. Cria-se, assim, uma situação em que quem decide é o assistente por intermédio do Juiz de Instrução, absolutamente instrumentalizado em função dos interesses daquele – o que não se concebe nem se concede.
7ª As normas conjugadas dos artigos 281.º, n.º 1, al. a) e 307.º, n.º 2 do CPP, na medida em que preveem como condição sine qua non para aplicação da suspensão provisória do processo a concordância do assistente, são inconstitucionais por violação dos artigos 219.º, n.º 1 e 2 e 203.º, ambos da CRP.

SEM PRESCINDIR,
8ª Mesmo que se entenda, ao contrário do referido supra que as normas dos artigos 281º nº1 al. a) e 307º nº2 do Código de Processo Penal estão de acordo com os ditames constitucionais, é entendimento do arguido que o juízo de concordância ou discordância exigido ao assistente pelo artigo 281.º, n.º 1, al. a) do CPP deve ser devidamente fundamentado, por oposição ou inverificação dos requisitos de aplicação do instituto.
9ª De facto, se se entender que a posição do assistente é vinculativa relativamente à decisão do juiz na aplicação do instituto, deve o assistente fundamentar a sua não aquiescência quanto ao pedido de suspensão provisória do processo efetuado pelo arguido, por forma a que se possa fazer a respectiva sindicância pelo juiz, sendo assim a decisão de indeferimento fundada nas razões apresentadas pelo assistente.
10ª De facto, o juízo de não aplicação do instituto deve ser fundamentado em razões de facto e de direito, pois que só assim o arguido poderá ficar a conhecer o porquê do indeferimento. Se assim não for, nunca se logrará obter um processo justo e equilibrado, porquanto o arguido fica numa posição de desvantagem face ao assistente, pois nunca lhe será possível conhecer as razões deste indeferimento de forma a que possa elaborar uma defesa digna e eficaz e, designadamente, exercer o seu direito ao recurso.
11ª Na verdade, uma oposição infundamentada à aplicação do instituto por banda do assistente, gera, necessariamente, um despacho de indeferimento infundamentado, o que é violador do princípio da fundamentação das decisões em matéria penal e, como tal, violador do direito ao recurso.
12ª Assim, a interpretação que se extraia do disposto nas normas conjugadas do artigo 281º nº1 al. a) e 307º nº2 do Código de Processo Penal no sentido de que a oposição do assistente relativamente à aplicação do instituto da suspensão provisória do processo pode basear-se em fundamentos que não constituam oposição ou inverificação dos requisitos de aplicação do instituto, podendo fundar-se o despacho de indeferimento na mera oposição do assistente, é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 32º nº1, 203º e 205º nº 1 da Constituição.
13ª O despacho recorrido violou ou fez errada interpretação das normas supra referidas na motivação que aqui se dão por reproduzidas breviatis causa, não podendo, pois, manter-se.                                        
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve ser concedido provimento ao recurso, com as legais consequências, só assim se fazendo
JUSTIÇA. 

1.2.2. Tal recurso não foi admitido por despacho de 14/7/2022, tendo o recorrente reclamado para o Exmº Juiz Presidente desta Relação que, por decisão de 29/9/2022, atendeu à reclamação, pelo que determinou que o tribunal de 1ª instância proferisse despacho de admissão de recurso, o que foi feito.

1.2.3. Da resposta do Ministério Público
O Ministério Público, em primeira instância, respondeu, entendendo que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, pois a suspensão provisória do processo pressupõe um consenso alargado entre Ministério Público, juiz de instrução, arguido e assistente, sendo que este último não tem que justificar no processo a sua concordância ou eventual discordância quanto à aplicação do instituto . A intervenção do assistente deverá ser considerada como constitucionalmente conforme, dado que não existe qualquer desconformidade constitucional quanto ao facto de o assistente não ter que fundamentar uma eventual concordância ou recusa relativamente à aplicação da suspensão provisória do processo.

1.2.4. Da resposta da assistente
Também a assistente BB respondeu, tendo levantado como questão prévia, a irrecorribilidade do despacho em análise, tal como foi doutamente decidido na primeira instância, sendo que tal interpretação não padece de qualquer inconstitucionalidade, além de que não se encontram reunidos os pressupostos para a aplicação da suspensão preventiva do processo, pois a oposição dos assistentes à requerida suspensão provisória do processo, só por si, inviabiliza o seu deferimento.
1.2.5. O Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, acompanhando a posição veiculada nos autos pelo assistente e pelo Ministério Público da 1ª instância .

1.2.6. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.P., o arguido respondeu, mantendo, ponto por ponto, o que alegou em sede de motivação.
Foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à Conferência, na qual foi suscitada a questão prévia da admissibilidade do presente recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Tendo em atenção a questão prévia suscitada, importa considerar o que resulta da análise dos autos com interesse para a decisão a proferir:

1 – Em 29/12/2020 foi proferida acusação contra o recorrente AA, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo disposto nos artigos 13º, 15º e 137º, nº 1 do C.P., a que acresce a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período entre 3 meses e 3 anos (cfr. o artigo 69º, nº 1, al. a) do mesmo código), em concurso aparente com as contra-ordenações p. e p. pelo disposto nos artigos 25º, nº 1, als. a) e c), 103º, nº 2 do C. da Estrada e ainda com referência aos artigos 138º, 145º, nº 1, als. e) e i) do Código da Estrada.
2 – O recorrente requereu a abertura da instrução, tendo requerido que a final fosse proferido despacho de não pronúncia ou, quando assim não se entendesse, que fosse proferido despacho suspendendo provisoriamente o processo.
3. Em 31/5/2033 foi proferida a seguinte Decisão instrutória:

· Saneamento.
Declaro encerrada a Instrução.
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O Tribunal é competente.
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Não há quaisquer nulidades, ilegitimidades, excepções, questões prévias ou incidentais que importe conhecer e que obstem a uma decisão de mérito.
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· Relatório.

Findo o inquérito decidiu o Ministério Público deduzir acusação pública contra o arguido AA, nos termos e com os fundamentos que constam a fls. 256 e seguintes, imputando-lhe a prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo disposto nos artigos 13.º, 15.º e 137.º, n.º 1, do Código Penal, a que acresce pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período entre três meses e três anos (cfr. artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal), em concurso aparente com as contra-ordenações previstas e punidas pelo disposto nos artigos 25.º, n.º 1, alíneas a) e c), 103.º, n.º 2, do Código da Estrada, e, ainda, com referência aos artigos 138.º e 145.º, n.º 1, alíneas e) e i), todos do Código da Estrada.
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Na sequência de tudo isto veio o arguido requerer a abertura da instrução, tendo em vista a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, conforme consta a fls. 363 e seguintes.
Refere, para tanto e em síntese, que em virtude do intenso transito que no momento se fazia sentir, não conseguiu ver a infeliz vítima e evitar o embate.
Termina, concluindo pela procedência do requerimento de abertura da instrução.
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A fase da instrução foi declarada aberta por despacho judicial datado de 01/07/2021 e constante de fls. 378 dos autos.
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A ponderação da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo ficou inviabilizada por força da oposição das Assistentes.
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Não se tendo vislumbrado qualquer outro acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, nem tendo sido requerida a realização de mais algum, efectuou-se o debate instrutório, que decorreu em conformidade com o disposto nos artigos 298.º, 301.º e 302.º, todos do Código de Processo Penal.
Cumpre agora, nos termos do artigo 308.º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória.
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· Fundamentação de facto e de direito.

Importa, antes de mais, começar por delimitar o âmbito e objectivo desta fase da Instrução.
A Instrução visa, segundo o que nos diz o artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, «a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento». Configura-se assim como fase processual sempre facultativa – cfr. n.º 2 do mesmo dispositivo – destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida.
Como facilmente se depreende do citado dispositivo legal, a instrução configura-se no Código de Processo Penal como actividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respectivo enquadramento jurídico-penal.
Com efeito, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade material, conforme dispõe do artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia».
Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.
Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como deixamos dito, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.
Depois, no n.º 2 deste mesmo dispositivo legal, remete-se, entre outros, para o n.º 2 do artigo 283.º, nos termos do qual «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
Isto posto, para que surja uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento.
Todavia, como a simples sujeição de alguém a julgamento não é um acto em si mesmo neutro, acarretando sempre, além dos incómodos e independentemente de a decisão final ser de absolvição, consequências, quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista jurídico, entendeu o legislador que tal só deveria ocorrer quando existissem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado.
Assim sendo, para fundar uma decisão de pronúncia não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.
Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Neste sentido, segue-se Castanheira Neves[1] que perfilha a tese segundo a qual na suficiência de indícios está contida «a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final», apenas com a limitação inerente à fase instrutória, no âmbito da qual não são naturalmente mobilizados «os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação».
*
Conforme referimos supra, no introito desta decisão, com o requerimento ora em apreço pretendeu o arguido a aplicação no caso dos autos do instituto da suspensão provisória do processo.
No essencial, não questiona a suficiente indiciação da matéria de facto descrita na acusação pública, nem tão pouco a qualificação jurídica aí efectuada.
Relembre-se que nos presentes autos foi deduzida acusação pelo Ministério Público contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo disposto nos artigos 13.º, 15.º e 137.º, n.º 1, do Código Penal, a que acresce pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período entre três meses e três anos (cfr. artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal), em concurso aparente com as contra-ordenações previstas e punidas pelo disposto nos artigos 25.º, n.º 1, alíneas a) e c), 103.º, n.º 2, do Código da Estrada, e, ainda, com referência aos artigos 138.º e 145.º, n.º 1, alíneas e) e i), todos do Código da Estrada.
Fundamenta o Ministério Público a acusação que deduziu na prova testemunhal, pericial e documental recolhida durante o inquérito.
Diremos, desde já, que a indiciar-se suficientemente a matéria de facto descrita na acusação, cremos nada haver, pelo menos nesta altura, a alterar à qualificação jurídica nela efectuada.
Questão diferente é a de saber se tais factos se mostram ou não suficientemente indiciados. E a resposta terá forçosamente de ser afirmativa.
Com efeito, a matéria de facto imputada ao arguido e descrita naquela acusação é suficientemente sustentada pela prova produzida em sede de inquérito, com especial relevo para o relatório elaborado pelo órgão de polícia criminal que procedeu à investigação.
Por tudo isto, cremos poder ser afirmado que a matéria de facto descrita na acusação pública encontra sustentação suficiente na prova referida, prova essa que não foi infirmada, nem sequer nesta fase de instrução.
Acresce que, a aplicação no caso dos autos do instituto da suspensão provisória do processo mostra inviabilizada, conforme referimos supra, atenta a oposição das Assistentes.
O que se disse é, a nosso ver, suficiente para o não provimento do requerimento de abertura da instrução, pois aplicando os princípios e conceitos supra enunciados ao caso sub judicie constata-se ter sido trazida aos autos prova indiciária suficiente para que ao arguido venha a ser aplicada uma pena – o que levará, consequentemente, à pronúncia do mesmo.
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· Decisão.

Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido negar provimento ao requerimento de abertura da instrução em apreço e, em consequência, pronuncio para julgamento em Processo Comum e perante Tribunal Singular, o arguido AA, pelos factos e disposições normativas constantes da acusação pública de fls. 256 a 260, a qual se considera integralmente reproduzida, nos termos do disposto nos artigos 307.º, n.º 1, e 308.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
*
· Prova.
A constante da acusação pública de fls. 259.
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· Medidas de coacção.
Como é sabido, para aplicação de uma qualquer medida de coacção, com excepção do simples Termo de Identidade e Residência, necessário se torna, no momento da sua aplicação, a verificação em concreto de um dos requisitos gerais previstos no artigo 204.º, do Código de Processo Penal.
Da análise dos autos, e daquilo que é do conhecimento do Tribunal, não há, pelo menos neste momento, qualquer circunstancialismo ou factualismo que permita ter por verificado um (ou mais) daqueles requisitos.
Por conseguinte, o arguido deverá aguardar os ulteriores termos do processo sujeito às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência (cfr. artigos 191.º, 192.º, 193.º, 196.º e 204.º, todos do Código de Processo Penal), já prestado nos autos a fls. 94.
*
· Responsabilidade tributária.
Sem custas, por não serem devidas – artigos 513.º, n.º 1, 514.º, n.º 1, e 515.º, n.º 1, alínea a), todos por interpretação «a contrario sensu», e n.º 1 do artigo 522.º, todos do Código de Processo Penal.
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Anote na pasta própria e notifique.
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Remeta os autos à distribuição.

IV. APRECIAÇÃO DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

Dado que a decisão proferida em 15/11/2022, com o teor «Por ser admissível, estar em tempo e ter legitimidade, admito o recurso interposto pelo arguido da decisão a proferida nos autos, o qual sobe imediatamente, nos próprios autos e tem efeito meramente devolutivo – artigos 399.º e 400º, este por interpretação “a contrario”, 411.º, n.º 1, alínea a), 401.º, n.º 1, alínea b), 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, alíneas a) e i) e 408.º também por interpretação «a contrario», todos do Código de Processo Penal. Notifique», não vincula este colectivo, há que apreciar a questão prévia da admissibilidade do presente recurso.
Isto, na medida em que, conforme consta do nº 3 do artigo 414º do C.P.P. «A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior».

Com relevo nesta matéria, importa considerar a seguinte norma do Código de Processo Penal:
Artigo 399º - Princípio geral
«É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.».
Este preceito consagra o princípio geral da recorribilidade em processo penal, princípio este que, porém, não é absoluto : a irrecorribilidade tem é de estar prevista na lei .
Na verdade, a garantia do acesso ao direito e aos tribunais, consagrada constitucionalmente no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, não impõe o duplo grau de jurisdição perante toda e qualquer decisão judicial. O legislador ordinário tem liberdade para conformar os requisitos de admissibilidade dos recursos – cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Editorial Verbo 1994, volume III, p. 304.
Assim, desde logo o artigo subsequente prevê vários despachos e decisões que não admitem recurso, estipulando no seu nº 1, al. g) que não é admissível recurso nos demais casos previstos na lei.

Este preceito aponta para o artigo :
 Artigo 310º - Recursos
1 - A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas.
3 - É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior.
Esta nulidade reporta-se à decisão instrutória, quando pronuncia o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.
A irrecorribilidade da decisão instrutória consagrada no nº 1 do preceito transcrito explica-se pela própria natureza facultativa da instrução, sendo esta uma fase que visa comprovar judicialmente a acusação – cfr. o nº 1 do artigo 286º do C.P.P. – e funda-se no princípio da celeridade processual .
De acordo com Nuno Brandão, in «A nova face da instrução», ponto 3.2, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2 e 3 2008, p. 227-255, a lei salvaguarda a possibilidade de o tribunal de julgamento excluir provas proibidas, como estipulado no artigo 310º, nº 2 do C.P.P., e a decisão instrutória não forma caso julgado sobre questões que possam contender com a afirmação da responsabilidade penal do arguido em julgamento, como sucede com a amnistia do crime ou a prescrição do procedimento criminal, pois a decisão do juiz de instrução que se debruce sobre estas questões é irrecorrível, pelo que a última palavra sobre essas questões cabe sempre ao juiz de julgamento.
Por outro lado, desde a entrada em vigor da Lei nº 48/2007, de 29/8, que deu nova redacção ao nº 1 do artigo 310º e introduziu a disciplina do nº 2, no que toca às nulidades, apenas é recorrível o despacho que indeferir a arguição de nulidade consistente na pronúncia por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação (do Ministério Público ou do assistente) ou no requerimento para abertura da instrução.
Tudo para concluir que é irrecorrível o despacho que aprecie outras nulidades, questões prévias ou incidentais..
Neste sentido, ver a decisão da reclamação nº 148/00.1idprt-A.P1, de 9/11/2011, do Vice-Presidente da Relação do Porto; o Acórdão da Relação do Porto de 13/2/2008, processo 0745687, relatado por Abílio Ramalho; e a decisão singular da Relação de Évora de 15/3/2012, processo 32/07.8jflsb-A.E1, de António Manuel Ribeiro Cardoso; todos acessíveis in www.dgsi.pt.
No caso em apreço, o Juiz de instrução pronunciou o arguido «pelos factos e disposições normativas constantes da acusação pública de fls. 256 a 260, a qual se considera integralmente reproduzida…», razão pela qual, em face do disposto no artigo 310º, nº 1 do C.P.P., temos por seguro que tal decisão é irrecorrível.
 Defende o recorrente que é inaplicável ao caso em apreço a doutrina constante do Acórdão de uniformização de Jurisprudência nº 16/2009 do S.T.J., publicado no Diário da República nº 248, 1ª série de 24/12/2009, consistente em : «A discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, não é passível de recurso».
E concordamos com ele nesta parte : tal doutrina só seria obrigatoriamente aplicável se o despacho do juiz de instrução tivesse sido proferido na fase de inquérito.
Tendo sido proferido na fase de instrução, concretamente, fazendo parte integrante da decisão instrutória, é-lhe aplicável a norma, acima transcrita, especificamente prevista para os recursos de tal acto processual .
Deste modo, a irrecorribilidade em questão não se funda no aludido acórdão para fixação de Jurisprudência, mesmo que interpretado de forma extensiva; resulta claramente do nº 1 do artigo 310º do C.P.P..
No sentido acabado de expor, cfr. a decisão da reclamação nº 4719/16.6t9avr-A.P1, de 4/4/2022, do Vice-Presidente da Relação do Porto; a decisão da reclamação nº 82/05.9iidrg-A.G1, proferida pelo Presidente da Relação de Guimarães; o Acórdão da Relação do Porto de 15/5/2019, processo 517/16.5ptprt.P1, relatado por Pedro Vaz Pato; o Acórdão da Relação de Coimbra e 26/6/2019, processo 4097/15.0t9cbr.C1, relatado por Maria Pilar de Oliveira; e o Acórdão desta Relação de 7/11/2022, processo 32/19.5ptchv.G1, relatado por Anabela Varizo Martins, todos in www.dgsi.pt.
Acresce que o Tribunal Constitucional já se pronunciou mais do que uma vez acerca da constitucionalidade da irrecorribilidade da decisão que nega a aplicação da suspensão provisória do processo quando a mesma faz parte integrante da decisão instrutória.
Vejam-se os Acórdãos nº 235/2010, no processo nº 986/09, 1ª secção, relatado pelo Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira; nº 708/2014, no processo nº 743/14, 2ª secção, e nº 237/2015, no processo nº 174/15, 2ª secção, ambos relatados pelo Conselheiro João Cura Mariano .

Verdadeiramente, o Tribunal Constitucional tem decidido que a garantia do recurso apenas existe para as decisões penais condenatórias e para as decisões penais de privação ou restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais. Entre outros vejam-se os Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 30/2001 e nº 189/2001.

Em suma, embora a irrecorribilidade em questão possa ser prejudicial para o recorrente, dada a sua necessária submissão a julgamento, a decisão recorrida, nem é condenatória, nem o priva ou limita a sua liberdade ou outro direito fundamental.

V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS – cfr. os artigos 513º, nºs 1 e 3 do C.P.P. e 8º, nº 9 do R.C.P. e tabela III anexa.
Guimarães, 2 de Maio de 2023

(Helena Lamas - relatora)
(Cruz Bucho)
(Teresa Baltazar)


[1] NEVES, Castanheira, «Sumários de Processo Criminal», págs. 38 e 39.